A seguir, a entrevista que o Prof. Dr. Luís Reis Torgal, Catedrático da Universidade de Coimbra, concedeu à Revista Tema Livre. O historiador, um dos maiores pesquisadores internacionais sobre o fascismo, fala à revista sobre o fascismo português, suas relações com a Alemanha de Hitler e a Itália de Mussolini e, ainda, sobre a imagem que Salazar construiu de si próprio para a população portuguesa.

Revista Tema Livre – Qual a sua atuação na Universidade de Coimbra e quais pesquisas o Sr. está a desenvolver atualmente?

Luis Reis Torgal – Bem, eu, actualmente, trabalho com o Estado Novo. O Estado Novo, digamos assim, para simplificar, significa o período do nosso fascismo à portuguesa, com Antonio Oliveira de Salazar e Marcelo Caetano, e que vai desde mais ou menos 1930 até 1974. Grande parte das pesquisas que eu faço e que eu oriento são nessa área. Quer na área da licenciatura, quer na área do mestrado, quer na área do doutoramento.
Por outro lado, coordeno um centro de investigação que pertence à Universidade de Coimbra, embora esteja ligado à Fundação para a Ciência e Tecnologia, que é o nosso organismo máximo de ordenação cientifica, que é o tal Centro de Estudos Interdisciplinares do século XX [CEIS-20], que, como o nome diz, é um centro interdisciplinar que aborda o século XX. Interdisciplinar porque existem, na verdade, grupos que trabalham, genericamente, a história do século XX, outros mais estritamente em história económica, história da imprensa, história da educação, história da ciência… Bom, é um centro interdisciplinar que abrange oito grupos de investigação e, por conseguinte, é essa a minha tarefa, a de coordenar este centro. Concluindo, sou professor de seminários de história contemporânea, nomeadamente do Estado Novo, oriento as teses, faço investigação nesta área e coordeno o Centro.

RTL – O senhor pode falar sobre o Salazar e a construção de sua imagem para a população portuguesa?

Torgal – Ora bem, em primeiro lugar, Salazar tinha a sua origem popular. Não quer dizer que fosse uma pessoa completamente pobre, mas, enfim, o pai era um agricultor em uma pequena aldeia próximo de Santa Comba Dão, não muito longe de Coimbra, embora numa outra área, em uma outra região, que é bem alta, sendo que Coimbra pertence à Beira Litoral. Foi um homem que teve uma formação de seminarista, uma formação para ser padre. Depois, foi para a Faculdade de Direito, onde forma-se e, aí, começa a ter uma militância em um centro católico chamado Centro Acadêmico Democracia Cristã e, posteriormente, no Centro Católico Português, onde acaba por ser deputado. Em 1928 entra no governo como Ministro das Finanças, e não sai mais. Em 1932, Salazar passa a primeiro ministro e, podemos dizer que, a partir de 1930, ele está a construir com correntes ideológicas muito distintas uma idéia de Estado Novo.
Por conseguinte, podemos dizer que com o Estado Novo há uma convergência de vários movimentos, nos quais temos os católicos, alguns monárquicos, alguns republicanos conservadores, alguns mais ligados diretamente à área fascista italiana, nacionais sindicalistas, até alguns indivíduos que vieram do movimento intelectual do modernismo, enfim, Salazar consegue fazer esta convergência. Fazia uma política de conciliação, em que havia as forças armadas, igreja, forças econômicas, alguns intelectuais, enfim, há uma conciliação também de natureza social junto ao governo e, até podemos dizer, entre patrões e operários. Aliás, o Estado Novo dirige-se, em uma primeira fase, muito aos operários, em uma idéia de se constituir um Estado Social e tal qual o fascismo italiano, em uma lógica antiliberal, que, ao mesmo tempo, era apresentada também como uma lógica anticapitalista. Por conseguinte, podemos dizer, de uma certa maneira, que este movimento que nós podemos chamar amplamente de fascismo genérico era uma terceira via. Era a via liberal, era a via comunista, que era a segunda, e esta era a via corporativista, fundamentalmente de características corporativas, criando uma conciliação de classes, evitando o encerramento das empresas pelas greves, há uma conciliação, e é nessa perspectiva que se ergue todo o Estado Novo.
Salazar vai construindo, como você perguntou, a sua imagem. A dele e a do Estado. A imagem dele era, normalmente, a da humildade, de uma pessoa que estava apenas para servir ao país, era esta a idéia que aparecia sempre. Cria-se uma imagem de alguém que veio do povo, mas de alguma maneira está um pouco para além do povo. O conceito de que como ele veio do povo ele sabe governar pensando no povo, é esta idéia que aparece nesta perspectiva. Digamos que ele foi um homem que entendeu ou procurou fazer toda uma política de massas. Às vezes, diz-se que não há uma idéia de massa no Estado Novo, imagem do governante carismático… Mas há a idéia do governante carismático, ela está a ser construída até com alguns discursos que Salazar fez. Ele está a construir exactamente esta imagem e é nessa perspectiva que nós podemos dizer que o Estado Novo foi aceito normalmente. Quer dizer, há algumas linhas de oposição, é evidente, os republicanos que tinham feito parte do governo antes a 1926, há ainda alguns monárquicos, que pensam no regresso da monarquia, há alguns católicos de linha avançada, mas poucos, muito poucos, pois o catolicismo deu um grande apoio ao Estado Novo, há os anarquistas, que estão com força nesta altura, há o partido comunista, ainda muito fraco, mas o que eu quero vos dizer é que o Estado Novo é bem aceito em uma primeira fase. Até os anos de 1940 é bem aceito. Depois é que começa todo um processo corrosivo. Isto deve-se, em grande parte, à imagem formada pelos órgãos de propaganda que se criaram, assim como foi com o fascismo de Mussolini. A repressão é importante, mas ela é, digamos assim, apenas aquilo que se tem de fazer para criar uma aceitação, mas mais importante é a reprodução ideológica. Evidentemente, ostraciza-se, sobretudo, quem fazia parte do Partido Comunista. Era preso, havia toda uma repressão neste sentido, mas o processo reprodutivo não é menos importante do que o processo repressivo, eu diria que era até mais importante.

RTL – Conte-nos sobre a questão da repressão no regime do Salazar.

Torgal – Pois, o que eu posso dizer é que realmente o regime de Salazar teve em conta imediatamente todo um processo repressivo, que é feito em nome da nação. Há o decalco do Estado Novo, que é um documento oficial que foi feito por um ideólogo e que são os dez mandamentos do Estado Novo. E o último mandamento diz mais ou menos isto: quem é contra o Estado Novo é contra a nação, e logo se é contra a nação, pode-se exercer a repressão, porque ao exercer a repressão está a se defender o regime e os direitos da pátria. Há toda uma legitimação da repressão e, embora a constituição de 1933, que é a nossa constituição do Estado Novo, e temos, exactamente, um dos casos raros. O nazismo imediatamente liquida a constituição de Weimar. O fascismo italiano acaba com a constituição liberal de 1848. Curiosamente, o Estado Novo cria uma constituição para atuar pela aparência de legalidade. Por exemplo, no artigo oitavo da constituição, aparecem todos os direitos que surgem em qualquer constituição liberal, mas, ao mesmo tempo, criam-se leis, que vão, de alguma maneira, contradizer as liberdades que estavam consideradas no artigo oitavo.
Por outro lado, você tem uma polícia política, um aparelho de censura, prisões políticas, a culminar, em 1936, na Colônia Penal do Tarrafal, na ilha de São Tiago, em Cabo Verde, para onde iam os anarquistas, comunistas e, depois, se cria todo um complexo de repressão, que não vai mudar essencialmente até 1974. Esse é um ponto importante. E é uma repressão que se exerce não apenas em relação aos políticos militantes, aos partidos de esquerda, nomeadamente ao comunista, mas exerce-se em relação a qualquer cidadão acima de qualquer suspeita. Quer dizer, todos nós éramos vigiados, todos tínhamos uma ficha na PIDE, até gente do próprio governo tinha ficha na PIDE. A PIDE, que chamou-se, primeiramente, Polícia de Vigilância e Defesa do Estado e, depois, em 1945, passou a Polícia Internacional e de Defesa do Estado. Internacional porque também era uma polícia de fronteiras. Por isso, ela ficou mais conhecida pelo nome PIDE do que PVDE, que é até um nome mais soante, mais forte, Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, de maneira que há toda uma rede repressiva que, também, passava pela polícia de segurança pública, pela polícia judiciária, pela guarda nacional republicana, pelos presidentes das câmaras, pelos governadores civis… Há toda uma rede de vigilância e de repressão, que, na verdade, como eu disse, mantêm-se exercendo em relação aos anarquistas primeiro e aos comunistas depois, mas, também, aos republicanos liberais, que até às vezes eram anti-comunistas, e aos católicos progressistas. Depois de 1940, depois da concordata, há uma série de católicos progressistas, padres, inclusivamente, que por esta via ou por aquela vão estar contra o Estado Novo, e vão ser alguns deles presos, outros ostracizados, enfim, alguns afastados para o estrangeiro, alguns afastados dentro do próprio país, em uma espécie de exílio doméstico… A repressão é uma rede e daí o facto de haver processos da PIDE em quantidades muito elevadas que estão agora a começar a ser estudado, alguns já estão a ser estudados há algum tempo, mas realmente começam aparecer há pouco tempo as primeiras obras mais globais sobre a PIDE e estamos cada vez mais a analisar o processo repressivo.
Por outro lado, para além desta repressão, há uma repressão, que, como eu digo, é ao contrário, que era fazer uma propaganda ideológica mostrando que há uma espécie de arte boa e de uma arte má, uma literatura boa e uma literatura má, enfim, toda uma repressão que se fazia ao contrário, através de uma reprodução de modelos. Um pouco como a chamada arte degenerada, aquela famosa exposição que Hitler realizou em Munique, em que há a arte boa e a arte degenerada, por conseguinte, é assim, mais ou menos, que as coisas se passam.

RTL – Finalizando, o Sr. pode falar sobre a relação do governo do Salazar com os outros governos autoritários da época, como o de Hitler e Mussolini?

Torgal – Ora bem, estão a começar a ser estudadas estas relações. Curiosamente existem alguns estudos interessantes sobre as relações de Portugal com a Espanha franquista, de Portugal com o regime francês, digamos assim, de direita, que de alguma maneira fez uma resistência ao fascismo hitleriano. Mas não há estudos aprofundados sobre as relações com o nazismo, nem com o fascismo italiano. Eu tenho dois orientandos, um que está a fazer o pós-doutoramento, alemão mesmo, que está a fazer um estudo das relações de Portugal com a Alemanha nazi. Há outro que está a fazer o doutoramento, italiano, de Bologna, que está a fazer o estudo das relações do Portugal salazarista com a Itália fascista de Mussolini. Mas aquilo que já sabemos é que as relações são muito diversificadas. Há relações a vários níveis. Há relações culturais, relações repressivas das polícias, a juventude fascista ou a juventude nazi vinha a Portugal, e a mocidade portuguesa ia à Alemanha ou à Itália, quer dizer, há todo um relacionamento bastante significativo. Agora, uma coisa que o meu amigo deve perceber é isto: Salazar foi muito hábil na política internacional, porque havia, por um lado, o nazismo e o fascismo, ele tinha uma grande admiração por Mussolini, não teria grande admiração por Hitler, mas ele tinha estes tipos de relações com estes países, como depois vem a ter com Getúlio Vargas, aqui no Brasil, como tinha relações com a Romênia, com a Polônia, com a Hungria, com uma série de países que assumiram, digamos assim, a sua posição ditatorial. Mas, atenção, Portugal tinha um grande aliado que era a Inglaterra. Ora, a gente sabe que a Inglaterra tinha uma lógica monárquica-constitucional tradicional, com partidos, por conseguinte, havia uma certa concessão democrática na Inglaterra e Salazar vai manter esta ligação. Assim, na guerra, Salazar vai manter-se em uma posição neutral, por um lado esperando que os governos de direita possam, de alguma maneira, ganhar a guerra, mas sem haver uma lógica imperialista, no entanto, ao mesmo tempo, de uma forma que a Inglaterra também não perca. Isto é uma lógica de ambigüidade, eu diria que Salazar queria que ganhassem os dois. É uma lógica do empate, porque o que interessava-lhe, realmente, era uma certa ordenação entre uma área e outra, mas sempre pensando que os regimes liberais estavam em falência, tinham acabado.

 

 

 

Conheça outros artigos acadêmicos disponíveis na Revista Tema Livre.

 

 

Leia entrevistas com historiadores de diversas instituições do Brasil e do exterior clicando aqui.

 

 

Voltar à edição nº 12

 

 

 

Voltar ao inicio do site