Por Jéssica Alves Fontes
Mestre em Ensino de História no 3.° Ciclo do Ensino Básico e no Ensino Secundário. Licenciada em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Correio electrónico: up201303797@letras.up.pt.
- Introdução
Este convento confinado à regra que regulava a Congregação de São João Evangelista é resultado de uma época e meio no qual está inserido. Uma congregação que ao longo do tempo vai adquirindo uma boa imagem e protecionismo por parte da realeza portuguesa e outras figuras ilustres, pelo prestamento de um serviço de excelência nas missões de evangelização, assim como, na administração dos melhores hospitais do país.
A escolha desta congregação para o novo convento do Espírito Santo da Feira deve-se ao grande desejo por parte da família Forjaz Pereira, nomeadamente D. Manuel Forjaz Pereira e seu filho, D. Diogo Forjaz Pereira, que tinham como ambição a construção de um convento não só para o seu benefício, como também para habitantes da vila.
Embora a questão da encomenda esteja mais do que entendida, as imensas transformações que este convento sofreu ao longo do tempo, levaram consequentemente à ausência de documentação manuscrita referente a quem pertence ao certo o traço do convento, da igreja, bem como o envolvimento de possíveis artistas na sua edificação. “(…) por isso venho escrever da Feira, terra importante, mas pobre em documentos antigos para a sua história, para a história do seu colégio1.”
Com efeito, foram várias as circunstâncias que levaram a esta escassez de fontes, como a extinção das Ordens Religiosas em 1834, que fez com que a parte sul do convento ficasse sob a posse da Câmara, sofrendo posteriormente diversas alterações para poder albergar o Tribunal e as Conservatórias. E mais tarde, em 1878, o antigo refeitório passou a ser uma sala de espetáculos, o Real Teatro de D. Fernando II2.
Na atualidade, apenas a igreja do convento possui o traço original, uma vez que não sofreu alterações significativas ao longo do tempo, o mesmo não aconteceu nas suas dependências, como é o caso da zona claustral que para além das modificações fruto das consequências acima referidas, teve que se adaptar para a construção do museu3.
Assim sendo, iremos nos deter sobretudo na análise do corpo da igreja conventual através da observação em confronto com arquiteturas contemporâneas e contíguas ao nosso objecto de estudo, como também com a tratadística.
Deste modo, dos diversos tratados que circularam em Portugal, como o Tratado de S. Carlos Borromeu, Instruciones Frabricae et Supellectilis Ecclesiasticae de 1577, o Tratado de Vitrúvio, De Architectura Libri Decem, do século I a.C, De Architectura de Libri Quince, de Sebastiano Serlio, que disseminou a serliana, um motivo de Palladio, destacamos o tratado flamengo do arquiteto Hans Vredeman de Vries, Architectura oder Bauung der Antiquen auss dem Vitruvius, de 1577 e o de Wendel Dietterlin4, uma vez que encontramos presença de uma gramática decorativa na fachada e no interior da igreja de influência flamenga, como as cartelas com enrolamentos e pontas de diamante. Este último tratado, possivelmente circulou entre o Norte e Centro de Portugal, fruto de intercâmbios entre artistas.
Assim, pretendemos aferir quais os possíveis arquitetos que terão trabalhado na igreja conventual dos Lóios da Feira e entender sua a linguagem artística.
- Especificidades da Congregação
A congregação vai se desenvolvendo progressivamente e a sua popularidade na sociedade e na corte vai permitir a construção de nove casas religiosas em Portugal. Nomeadamente, a casa em estudo foi a sétima a ser construída.
Neste sentido, a arquitetura elegida para estes espaços teria que permitir a dinâmica da vida religiosa comunitária, uma vez que tinham como propósito alcançar a vida evangélica e comunitária5. Na crónica O Ceo aberto na Terra, o autor descreve que os cónegos azuis “forão os primeiros clérigos seculares viventes em commum”, no reino português6. Além do mais, o Convento dos Lóios de Santa Maria da Feira é um excelente exemplo disso, tendo sido implantado junto da população e perto do Castelo. Dado que, o trabalho da comunidade consistia na pregação, doutrinação, ensino e missionarismo, algumas das casas contruídas para esta congregação como o colégio de Vilar e de Santo Elói de Lisboa, tiveram a função de colégio. Neste sentido, vários autores como António Ferreira Pinto colocam a hipótese de o Conventos dos Lóios da Feira ter tido esta função.
De facto, devido às dificuldades financeiras para finalização das obras do corpo da igreja, no final do século XVII, a Câmara da Feira propõe o assentamento de uma taxa de um real em cada quartilho de vinho vendido na vila. Em troca, os padres teriam que ensinar latim a todos os fregueses que quisessem estudar. Uma grande estratégia por parte da Câmara, remetendo as despesas e encargos da igreja no povo, ao mesmo tempo que estabelecia o ensino na vila. Deste modo, estamos perante o ensino do Convento dos Lóios da Feira, mas não é suficiente para sustentar a hipótese do edifício se tratar de um colégio.
É certo, que o edifício em estudo é organizado por duas portarias e claustro, o que remete para uma organização semelhante a um colégio. No entanto, não existe informação que comprove o ensino neste convento e não é de todo o foco deste artigo.
- A Fundação do Convento da Feira
Existiam duas pequenas ermidas na época, uma no local onde foi construído o convento com o seu orago dedicado ao Espírito Santo, e outra na freguesia de S. Nicolau onde a Congregação esteve instalada numa primeira fase7.
No entanto, os condes da Feira desejavam a construção de um convento para seu benefício perto do castelo, assim como para os seus habitantes da vila. Assim, uma das principais razões que levaram à escolha da Congregação dos Lóios para a construção de um Convento na Feira foi a pertença à congregação por parte de dois dos filhos do Conde – D. Leonis e Rodrigo de Madre Deus. Para além disso, era uma congregação protegida do rei e permitiria a construção de um cemitério próprio para os Condes da Feira. De igual modo, os habitantes da vila poderiam também ter a possibilidade de cura espiritual. Neste sentido, no ano de 1560 é lançada a primeira pedra da igreja, onde outrora estava a Ermida do Espírito Santo8, e em 1566 já estava pronta a habitar9.
Aqui vivião pelos annos de1560 o quarto Conde da Feira D. Diogo Forjaz, & sua mulher a Condeça D. Anna de Meneses, os quaes desejavam ter naquela Villa hum convento de religiosos, em beneficio seu, & de seus vassalos. Seu, porque em quanto vivos terião no convento quem lhe fisesse cõpanhia, & assitencia, & depoes de mórtos terião quem lhe désse sepultura, & lhe rogasse pela alma10.
De acordo com Carlos Ruão era necessário aumentar a monumentalidade da obra e deste modo, em 1580, o conde D. Diogo contrata o mestre Jerónimo Luís para a obra de pedraria da capela-mor. No entanto, com a morte de D. Diogo as obras pouco avançaram, sendo lançada a primeira pedra para a sua construção a 6 de abril de 1618. O mestre pedreiro Jerónimo Luís foi responsável pela edificação da abóbada e do claustro circular do Mosteiro da Serra do Pilar, em Vila Nova de Gaia, projetado por João de Ruão. Com efeito, até este momento estava concluído o arco cruzeiro, mas dada a imponência do desenho da capela-mor foi necessário executar um novo arco, sendo lançada a primeira pedra a 30 de junho de 1625, já na responsabilidade de outro mestre pedreiro, Francisco Carvalho11, oriundo do Porto, sendo substituído após a sua morte pelo mestre Valentim Carvalho, também proveniente do Porto12.
As obras para corpo da igreja permaneciam em atraso por falta de apoios financeiros e para ajudar na progressão da construção, alguns cidadãos tinham a pretensão de dar alguns contributos. De igual modo, o crescimento da comunidade dificultava ainda mais a situação e a necessidade de receber um maior número de rendas era cada vez mais urgente. Assim, em 1623 habitavam apenas quatro religiosos e entre 1639 a 1641 o administrador das obras, Pantaleão de S. Tiago registou o total de nove celas no convento, em que seis delas estavam ocupadas. De igual modo, o mestre padre Jorge São Paulo mencionava que em 1658 estavam dez religiosos a ocupar o convento13.
Por outro lado, a encomenda de missas perpétuas por parte dos fregueses pelas suas almas e dos seus familiares, contribuíram para o acúmulo de alguns rendimentos para a continuidade da comunidade. Posteriormente, em 1693 estava terminado o novo arco cruzeiro, mas uma vez que a congregação estava com escassez de meios financeiros para a continuação das obras solicitaram apoio junto à Câmara Municipal. O apoio foi concedido com a contrapartida de os frades lecionarem aulas de latim à comunidade14. Deste modo, conseguiram não só a colaboração da Câmara Municipal como do poder régio, auferindo-lhes a taxa de um real por cada quartilho de vinho, num período de cinco anos15.
Neste sentido, a construção do corpo da igreja passou a estar à responsabilidade do construtor Domingos Moreira a 3 de outubro de 1692, proveniente de Moreira, na Maia. Este teve como obras a seu cargo o aqueduto do Mosteiro de Stª Clara de Vila do Conde. Por volta de 1705 concluiu-se o coro-alto e o batistério. A fachada apenas possuía a torre norte16, sendo que a torre sul apenas fica concluída em 174317.
- Observação do objeto de estudo: análise arquitetónica e relação entre as formas
Os cónegos azuis foram os primeiros clérigos seculares a viverem em comunidade18 e podemos observar essa característica na escolha do lugar para a implantação deste convento, inserido perto da população e próximo ao Castelo segundo a vontade de D. Diogo Forjaz Pereira.
Assim, a igreja surge implementada geograficamente sobre um ponto alto perto do rossio e próximo do castelo, desafogada de envolventes, destacando a fachada da igreja em relação ao seu entorno. Se a área geográfica de implementação fosse plana, deveria construir-se de forma a ascender à igreja, três ou cinco degraus. Estes princípios estão de acordo com o tratado de S. Carlos Borromeu presentes no capítulo I. De igual modo, a aplicação de princípios das práticas arquitetónicas é recuperada do Renascimento após o concílio de Trento e da tradição greco-romana descrita no tratado de Vitrúvio que refere a construção dos templos em locais elevados – locais limpos, secos, sem imundices, com espaços que permitem a circulação, boa captação de sol, ou seja, boas condições de salubridade para evitar doenças.
Os templos sagrados dos deuses, que se consideram ser a mais alta tutela da cidade, Júpiter, Juno e Minerva, dever-lhes-ão ser distribuídas zonas no lugar mais elevado, de onde se possa observar a maior extensão do recinto fortificado19.
No caso da necessidade da construção de degraus na fachada estes deveriam ser em número ímpar e com medidas que permitam uma subida harmoniosa. Posto que, o terreno apresenta uma desigualdade de cota a igreja em estudo apresenta um número de degraus superior a cinco, através da configuração de uma enorme e majestosa escadaria com a largura idêntica à igreja conventual, composta por dois lanços de escadas duplos e convergentes, estabelecidos por patamares ornamentados que conferem um enquadramento cenográfico e teatral na sua envolvente.
No frontispício, os degraus deverão ser dispostos de tal modo que sejam sempre ímpares: pois como se sobe o primeiro degrau com o pé direito, também este será o primeiro a atingir a parte superior do templo. Sou da opinião de que a altura destes degraus deverá ser definida de modo que não fique maior que cinco sextos do pé nem menos que três quartos; deste modo, a subida não será custosa. Quanto à largura dos degraus, considera-se que não deverá ser inferior a um pé e meio nem superior a dois20.
A parte inferior foi alvo de modificações no entanto, Paulo Roberto Nogueira acredita que os dois lanços divergentes que partem do terceiro patamar assinalam o fim da obra original e começo de algumas variações21 O segundo patamar definido pelo adro da igreja, é constituído por vários sepulcros e por um cruzeiro, formado por uma coluna assenta sobre o soco com capitel coríntio que por sua vez é rematada por uma esfera que suporta a cruz latina. De uma forma geral, a escadaria é ornamentada com pequenos pináculos e elementos curvos.
Nomeadamente, após a subida da escadaria deparamo-nos com a igreja e o corpo monástico anexado a ela. Segundo o tratado de S. Carlos Borromeu, a igreja deveria assemelhar-se a uma ilha, com as suas paredes separadas das paredes dos edifícios envolventes, como casas de habitação22. No entanto, tratando-se de uma igreja conventual, dado a sua natureza funcional possui algumas das suas paredes ligadas às do corpo monástico.
A fachada principal (fig.2) está ladeada por torres sineiras elevadas em relação ao corpo central e sobre o mesmo plano da fachada. De certo por uma questão de regularidade da fachada, posto que compõe o equilíbrio da mesma. No topo do frontão surge o relevo de uma águia, o tetramorfo de S. João Evangelista. De facto, trata-se do único elemento iconográfico presente nesta fachada, uma vez que a Congregação não possuía muitas imagens de santos associadas, sendo a figura principal S. João Evangelista, aquela que denomina a própria Congregação.
Nomeadamente a composição central da fachada é definida por dois corpos revelando uma horizontalidade e um eixo médio vertical que marca o ritmo – a porta rematada com frontão, a grande janela e as seis pilastras interrompidas que ladeiam estes elementos. Estes dois corpos são separados por um entablamento muito simples e depurado de qualquer ornamentação. Por sua vez, esta composição termina com outro entablamento semelhante ao inferior e é rematada através de um grande frontão triangular que confere um sentido plástico e valoriza a fachada, conferindo todo um programa arquitetónico que monumentaliza o acesso ao templo.
Para além disso, ao observarmos atentamente os dois pisos, conseguimos constatar que estes não obedecem ao ideal da ordem arquitetónica concebida pelo Renascimento que defendia a sobreposição de ordens, ou seja, a ordem toscana deveria estar em baixo e a jónica em cima. No entanto, o autor do traço da fachada optou por inverter as ordens, algo inconcebível para os artistas renascentistas que apenas faziam a supressão de uma ordem na sucessão, estando sempre a ordem toscana ou dórica na base, com a finalidade de suportar o piso superior. Neste caso, o autor optou por colocar a ordem mais delicada, a jónica no piso inferior e a mais robusta, a toscana no piso superior. Neste sentido, esta inversão faz-nos colocar desde logo as seguintes questões: O que levou o arquiteto a inverter as ordens? E onde foi encontrar este tipo de solução? – desde logo, se recuarmos até Miguel Ângelo poderemos obter resposta à segunda questão, dado que este ousou romper com quase todos os modelos pré-estipulados, realizando variadas possibilidades de combinações, ao duplicar colunas e inverter capitéis como podemos observar na Biblioteca Laurenciana.
Aliás, é de destacar também os dois relógios presentes nas torres que ladeiam o corpo central da fachada. Estes apresentam uma moldura em rollwerk (fig.4), enrolamentos embelezados de influência nórdica. Curiosamente, o Mosteiro de Grijó, um dos complexos monásticos contíguos ao Convento dos Lóios, apresenta uma solução semelhante no relógio da fachada, em que o possível autor do traço seria Francisco Velasquez23 (fig.3). De igual modo, conseguimos estabelecer as mesmas relações com o tratamento plástico do claustro do Mosteiro da Serra do Pilar (fig.5), a cargo do mestre pedreiro Jerónimo Luís, um dos primeiros mestres a cargo do projeto do Convento dos Lóios da Feira.
De um modo geral, estamos perante uma fachada simples, mas com um desenho arquitetónico interessante, através a inversão das ordens clássicas e da ornamentação dos relógios que remete para a linguagem artística do norte da europa.
No que diz respeito ao interior da igreja, esta apresenta uma planta longitudinal (fig.6) de nave única, com uma composição arquitetónica simétrica, apresentando proporções aproximadas ao corpo humano24. Porém, a igreja em estudo apresenta transepto inscrito, que corresponde apenas a uma pequena fração do braço humano, mas que vai de encontro à própria evolução da arquitetura e necessidade emergente na época, a criação de um espaço amplo, para que os fiéis conseguissem observar todos os acontecimentos que decorriam na capela-mor.
O corpo da igreja divide-se em três tramos: o inicial, onde se situa o coro alto, e os outros dois às capelas laterais, sendo cada um deles definido por largas pilastras toscanas dispostas simetricamente (fig.7). O primeiro tramo que é ocupado em parte pelo coro alto apoia-se num arco inserido na parede da entrada, e num outro abatido aos pés da nave. O restante espaço foi aproveitado através da abertura de portas, sendo que a da direita concede acesso ao claustro.
Nos outros dois tramos, abrem-se entre as pilastras toscanas os arcos das quatro capelas laterais – duas de cada lado. Por sua vez, estes arcos são rematados por um entablamento. As capelas laterais inscrevem-se na planta de forma a que o seu eixo seja perpendicular ao da nave. Estas capelas são comunicantes entre si, através de corredores que servem de confessionários.
Neste sentido, o interior da nave central é animado através da articulação de elementos que se remetem num módulo – capelas laterais, nichos e largas pilastras toscanas, entre as quais as duas centrais parecem também ter nichos na parte superior, mas não possuem qualquer imagem de santos.
É de salientar os dois últimos tramos da igreja que para além das capelas laterais, possuem confessionários relevados em granito por baixo dos nichos do corpo da igreja, inseridos na espessura da parede entre os arcos das capelas laterais, revelando a preocupação do artista em dar funcionalidade às paredes da igreja. Estes confessionários em granito são enobrecidos plasticamente através do enquadramento com formas espirais, volutas que intencionalmente ou não, são trabalhadas de forma diferente, ou seja, uma voluta não é igual à outra.
O transepto é inscrito de acordo com a largura da nave, não excedendo cada um dos seus braços à linha exterior traçada pelas capelas. À semelhança do que acontece nos dois tramos mais avançados da nave, em cada uma das paredes de topo dos braços do transepto abre-se um arco no qual se insere um retábulo, sendo este simetricamente ladeado por duas portas sobrepujadas por janelões. Estas portas são no braço esquerdo falsas, e no direito dão acesso respetivamente à sacristia e ao claustro. O revestimento das paredes do transepto é feito através de um esquema de azulejos 12×12 do século XVII, onde podemos observar o emprego do azul-cobalto e do amarelo antimónio, conferindo um grande efeito plástico através da diagonal.
No entanto, é no transepto que conseguimos mais uma vez detetar relações com o Norte da Europa e com arquiteturas próximas ao nosso objeto de estudo que terão sido construídas em datas aproximadas. Num detalhe quase impercetível, localizado no entablamento do transepto, por de baixo da cornija, surge uma decoração pétrea com formas em ponta de diamante articuladas com formas ovais (fig.8), que revela assimilações da tratadística flamenga, nomeadamete com o tratado de Vrederman de Vries25. Neste sentido, este tipo de decoração encontra-se no friso do entablamento da capela-mor da Igreja da Misericórdia do Porto (fig.9), pelo arquiteto Manuel Luís, por volta de 159026, na parte inferior da cornija da fachada da Igreja da Misericórdia de Aveiro (fig.13), da autoria de Gregório Lourenço e no arco cruzeiro e abóbada da capela-mor da Igreja do Colégio de São Lourenço do Porto.
Além disso, conseguimos perceber outras relações no que diz respeito ao transepto a partir dos caixotões da cobertura da capela-mor da Igreja da Misericórdia do Porto (fig.9), bem como os da cúpula do Mosteiro da Serra do Pilar (fig.10), sob a responsabilidade do mestre pedreiro Jerónimo Luís. Como podemos ver nas figuras 8, 9 e 10, os caixotões de ambas as igrejas apresentam uma solução plástica semelhante sendo os da Igreja da Misericórdia do Porto e do Mosteiro da Serra do Pilar mais exuberantes plasticamente em relação à sobriedade decorativa da igreja em estudo.
O lugar de destaque na arquitetura religiosa em relação aos restantes é sem dúvida a capela-mor, onde a assembleia dos crentes presencia o Mistério da Transubstanciação, criando um cenário celeste no seio dos participantes da eucaristia27. Esta capela pertence à primeira fase da edificação da igreja (fig.14), situa-se no ponto mais alto da igreja, a Este do pórtico, obedecendo às diretrizes de S. Carlos Borromeu28. Esta é retangular com uma cobertura em abóbada de berço organizada por três séries de caixotões irregulares com mármores rosa e negro no seu interior, assente na cornija contínua em toda a igreja, e é ligeiramente mais estreita do que a nave.
Entre estes janelões que conferem uma iluminação abundante29 situam-se os cenotáfios (fig.16), em mármores rosa, branco e negro, rematados através de um frontão triangular – no lado do Evangelho está o cenotáfio do conde D. Manuel Pereira, e no lado da Epistola está D Diogo Forjaz Pereira. Estes cenotáfios por sua vez, possuem algumas semelhanças com o lavatório da sacristia da Igreja da Misericórdia do Porto, pela sua forma e emprego dos mesmos materiais (fig. 15). Nesta sacristia trabalharam: Pantaleão Vieira, João da Rocha, ambos viviam no Porto30 e António Vieira.
A solução de policromia interior da capela-mor do Convento dos Lóios torna o espaço mais enobrecido plasticamente, concedendo uma paleta de cores não só através do mármore presente na cobertura e no entablamento, como do revestimento azulejar do século XVII de padrão azul cobalto e amarelo de antimónio, formando quase que dois tapetes separados por dupla cercadura nas paredes da capela.
Posto isto, tendo em conta todas estas relações facilmente conseguimos perceber as fortes assimilações da via flamenga na arquitetura religiosa do Noroeste, disseminadas pelos tratados de Hans Vrederman de Vries e de Wendel Dietterlin. Tal como Celso Francisco do Santos refere esta via é sentida sobretudo nos acidentes decorativos, como nos obeliscos, pirâmides, cartelas, enrolamentos, pontas de diamante que se revelam na gramática decorativa das fachadas, cúpulas, abóbadas e remates das arquiteturas31.
4.1. Claustro
Em termos simbólicos, o claustro é a alma de todo o conjunto arquitetónico, um local de intensa e austera vida espiritual, que representa o centro da vida monástica através da centralidade dos elementos que o organizam. É um microcosmo e representa a imagem do paraíso, através da criação da cidade sagrada. “O cruzamento dos quatro caminhos, resultantes dos quatro lados dos pontos cardeais apontava o centro do mundo, definido no convento da Feira pelo chafariz32.”
O claustro deste convento é quadrangular (fig.17) e situa-se a sul da igreja, constituído por dois pisos com arcadas assentes sobre pilastras, tornando-o robusto e grandioso. A regularidade do espaço é evidente através das formas simples, das arcadas que pousam sobre gigantes pilastras dóricas que constituem os dois pisos, abandonando a solução mais comum de arcos sobre colunas, ou colunas a sustentar um entablamento direito, substituindo-a pela utilização de pilastras das quais nascem os arcos e arcarias que sustentam a galeria superior, que por fim o remate é feito através de um entablamento simples. O primeiro piso é constituído por uma arcaria de arcos de volta perfeita enquanto que o segundo, o subclaustro é fechado para ter outra funcionalidade no interior, mas possui um conjunto de janelas com varandins.
Neste sentido, o claustro integra um elo de ligação entre os diferentes lugares que constituem o complexo conventual como a zona habitacional – as celas (localizavam-se no piso superior nas alas nascente, poente e sul) – a sala do capítulo (que hoje será os sanitários), o refeitório (que se encontrava na parte sul do claustro, voltado para o castelo), a igreja e outros compartimentos conventuais, permitindo que os religiosos usufruíssem da oração ao ar livre, ao mesmo tempo que as suas galerias funcionavam como um abrigo para os dias quentes de Verão ou chuvosos e frios do Inverno.
O centro do claustro é marcado pelo chafariz de tanque quadrilobado que não é o original, possivelmente seria o que está fixado no final da escadaria junto ao rossio. A água era fornecida pelo conde D. Diogo Forjaz Pereira através da fonte do castelo.
Com efeito, a maioria dos claustros possuíam sepulturas de religiosos, sendo um local privilegiado onde as comunidades monásticas preferiam ser enterradas, permitindo aos monges orar pela alma daqueles que já partiram, como gesto de memória. No entanto, não existe qualquer informação acerca de sepultamentos no claustro em estudo.
Por fim, uma vez que não se trata de uma comunidade monástica fechada, o claustro apresenta portarias que dão acesso exterior, sendo um local para receber visitantes, desde peregrinos, negociantes, hóspedes ou até mesmo mendigos – sobre o ideal de acolher qualquer pessoa que ali chegasse. Assim, o convento dos Lóios da Feira insere-se no modelo organizado nos colégios jesuítas com a integração de duas portarias – a comum e a do carro. A comum virada a sul, direcionada para o castelo, destinava-se em dias de grande afluência para a prática do ministério e das confissões. Uma vez dado o toque das Aves-Marias, o porteiro fechava a porta e atendia as chamadas noturnas como o auxílio de doentes e moribundos. Por sua vez, a porta do carro voltada para o rossio destinava-se ao abastecimento do convento e para acudir espiritualmente os mais necessitados, oferecendo algumas esmolas, e fornecimento de alimentação aos mendigos.
- Considerações Finais
Ao estudarmos a arquitetura não podemos descartar a relação com o sítio, a envolvente e as produções contemporâneas ao objeto de estudo. Neste sentido, uma vez que existiam à época diversos estaleiros nas cidades contíguas ao Convento dos Lóios, como em Grijó, Porto e Aveiro, consideramos a possibilidade de para além dos mestres identificados como intervenientes ao longo do processos de obra do Convento dos Lóios da Feira, como Jerónimo Luís, Francisco Carvalho e Valentim Carvalho, poderá ter havido a participação de outros mestres a trabalhar nas proximidades como Pantaleão Vieira, João da Rocha e António Vieira. Não podemos descartar as semelhanças na forma e materiais entre o lavatório da sacristia da Igreja da Misericórdia do Porto e os sepulcros da capela-mor da Igreja do Conventos dos Lóios de Santa Maria da Feira.
Apesar dos problemas financeiros que o convento sofreu, originando várias interrupções na execução da obra, e provavelmente, alterações no projeto inicial, tendo este que se adaptar consoante os recursos disponíveis, conseguimos perceber que se tratou de um projeto ambicioso. Um traço que revela algumas influências com o Norte da Europa, com um desenho arquitetónico interessante, salientando a composição anticlássica da fachada pela inversão das ordens canónicas e o emprego de materiais nobres, como os mármores e azulejos.
Neste sentido, estas assimilações flamengas só podem ser compreendidas através da dinâmica da cidade do Porto e a sua relação com o Rio Douro, uma vez se trata de um ponto de partida e de chegada, que estabelece ligações com o exterior, fazendo circulação de tratados, permitindo a viagem das formas e conhecimento daquilo que de melhor se fazia pela Europa. Podemos assim constatar, que a cultura arquitetónica internacional era estudada pelos arquitetos postugueses nos séculos XVI a XVIII.
No entanto, ao deparamo-nos com a ausência de dados concretos quanto à autoria do traço, não podemos concluir de facto qual destes mestres pedreiros referidos ao longo deste estudo terão sido responsáveis pela execução do projeto da igreja conventual dos Lóios da Feira. Possivelmente terá sido Jerónimo Luís que traçou o projeto do convento na sua totalidade, tendo posteriormente, Francisco Carvalho e Valentim Carvalho a seguir o projeto inicial, dando assim continuidade ao mesmo, algo que era muito frequente, dado a morosidade e peripécias destas construções. Assim, esta questão terá que ser deixada em aberto, mas acreditamos ter contribuído para esta investigação ao estabelecermos relações com alguns projetos da mesma época, percebendo as apropriações e soluções apresentas ao objeto de estudo.
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[23] Francisco Velasquez é apontado como autor do projeto do Mosteiro de Grijó, datado de 1572.
[24] VITRÚVIO, 2009: livro III, cap. I, 109.
[25] Hans Vredeman de Vries, Architectura oder Bauung der Antiquen auss dem Vitruvius.
[26] Data de conclusão da capela-mor da Igreja da Misericórdia do Porto.
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