Além do Ipiranga: uma história muito mais complexa da Independência*

Por Fábio Ferreira

Professor Associado da Universidade Federal Fluminense e líder do Grupo de Estudos das Trajetórias das Organizações (GESTOR)/CNPq. Doutor em História pelo PPGH/UFF. Mestre em História pelo PPGHIS/UFRJ. Graduado em História pela UFRJ.

 

Normalmente, quando se pensa na independência do Brasil, o senso comum costuma recordar-se da imagem do príncipe regente português Pedro de Bragança às margens do rio Ipiranga (hoje, parte do bairro de mesmo nome da cidade de São Paulo), a proclamar, em 7 de setembro de 1822, “Independência ou Morte”. Em tese, teria sido feita ali a separação de Portugal. Há, portanto, os que creem que, no ato, o Brasil tornou-se uma nação livre e soberana, inclusive essa versão contada ao longo de quase 200 anos foi consolidada junto à sociedade e, hoje, está presente no hino nacional, em livros, museus, monumentos nas praças, nomes de ruas de várias cidades, além de o dia 7 ser o principal feriado cívico nacional. Porém, qual seria a versão “mais complexa” da Independência do Brasil?

 

Em primeiro lugar, a emancipação foi um processo histórico que atravessou vários anos, o que já se constitui um elemento que convida a todos a olharem além do Ipiranga. Ademais, os historiadores devem voltar sua análise aos processos e não aos fatos isolados, como seria fazer se se fixassem unicamente no 7 de setembro.

 

Deve-se considerar ainda que, nesse período, independência podia significar a ruptura completa com Portugal, como ao fim e ao cabo ocorreu, mas também podia ser o estabelecimento de um governo autónomo que não rompesse totalmente com Lisboa, inclusive as mencionadas possibilidades estiveram presentes em projetos políticos da época. Entre muitas aspas, a Independência poderia ser uma proposta de inserção do Brasil na monarquia portuguesa que se assemelhasse à canadense ou à australiana na monarquia inglesa de hoje.

No tocante às identidades dos atores sociais do período, os indivíduos que viviam no Brasil tinham o sentimento de pertencimento à nação portuguesa, sendo que a brasileira sequer existia. Essa foi forjada depois de 1822. Então, os habitantes do Brasil se sentiam portugueses pertencentes à sua região de nascimento, a haver, por exemplo, os portugueses fluminenses (da capitania/província do Rio de Janeiro), os portugueses pernambucanos (Pernambuco), os portugueses riograndenses (da área que é o atual Rio Grande do Sul), etc.

Dito isso, para uma melhor explicação do processo de Independência, deve-se voltar a 1820, quando o sul da Europa viveu uma série de revoluções políticas de cunho liberal com diversas demandas, entre elas a de uma Constituição. Como exemplo, Nápoles, Espanha e Portugal foram palco desses levantes. Ao caso português agrega-se a particularidade que os liberais exigiam o retorno a Lisboa do rei D. João VI, que, desde 1808, vivia no Rio de Janeiro, pois ele e sua corte deixaram Portugal quando Napoleão Bonaparte invadiu a península ibérica, sendo que, apesar de o líder francês ter sido derrotado em 1815, ao monarca interessava-lhe permanecer nas Américas.

Voltando aos constitucionalistas portugueses, seus levantes reverberaram em diversas partes importantes dos territórios da monarquia portuguesa, como, por exemplo, Lisboa, Pará, Bahia e Rio de Janeiro. Nessas circunstâncias, sem o apoio de importantes regiões do Brasil, D. João decidiu voltar a Portugal, embora soubesse que na Europa ele teria seu poder político diminuído em razão dos liberais.

O rei partiu em abril de 1821, deixando no Brasil o seu filho mais velho, D. Pedro, como príncipe regente, o que significou que o primogênito dos Bragança seria responsável pelos assuntos americanos da Casa Real. À altura, na capital portuguesa, já havia se instalado um Congresso, também chamado de Cortes, no qual seus deputados elaboravam una constituição que deveria vigorar em todos os domínios portugueses ao redor do mundo, ou seja, na Europa, África, Ásia e América.

 

Entretanto, ainda que não existisse uma Constituição lusa até outubro de 1822, o governo lisboeta tomou medidas concretas para diminuir o poder político do príncipe Pedro e do Rio de Janeiro. Como exemplo, vários órgãos de governo que foram criados na cidade com a chegada de D. João em 1808 deveriam deixar, segundo as Cortes, de existir no Brasil.

 

Observa-se que, independentemente do seu local de nascimento, ou seja, se no Rio de Janeiro, Porto, Luanda, Goa ou Macau, essa medida desagradava aos poderosos estabelecidos no Novo Mundo, que tinham fechadas oportunidades de cargos e de influência na administração pública. Outra ação foi a exigência de Lisboa de que o príncipe Pedro deveria voltar à Europa, assim como seu pai havia feito meses antes, o que também desagradou a muitos dos portugueses que estavam no Brasil.

 

Desobedecendo às Cortes, em janeiro de 1822, D. Pedro declarou que ia ficar no Brasil, no famoso Dia do Fico. Em sintonia com seu ato político, o príncipe também expulsou do Rio de Janeiro tropas portuguesas fieis a Lisboa, alterou seu ministério e estabeleceu, sem o aval do governo lisboeta, órgão que deveria analisar as decisões das Cortes no que se referisse ao Brasil. Em junho, D. Pedro convocou uma Assembleia, que deveria fazer uma Constituição especifica aos domínios americanos dos Bragança e, ao mesmo tempo, tecia alianças políticas com vários setores sociais das províncias brasileiras, não obstante houvesse segmentos que estivessem presentes no Brasil e fossem fieis às Cortes. Além disso, conhecedor do processo de fragmentação dos vice-reinos espanhóis nas América, o príncipe buscava evitar que o mesmo ocorresse com o Brasil.

 

No segundo semestre de 1822, ocorreram vários fatos importantes, que aumentaram o desgaste das relações entre o Rio de Janeiro e Lisboa. Em agosto, D. Pedro decretou que as forças militares oriundas de Portugal que, porventura, desembarcassem no Brasil sem sua autorização seriam tratadas como inimigas. Igualmente, no citado mês, tornou público seu manifesto às nações estrangeiras onde justificava suas ações à frente do governo fluminense e enviou seus representantes diplomáticos a Londres, Paris e Washington.

 

Também em agosto, o príncipe foi a São Paulo tecer alianças e permaneceu na província até setembro. Nesse contexto, ocorreu o que hoje se compreende como a independência brasileira. Às margens do Ipiranga, à época área entendida como fora da cidade de São Paulo, D. Pedro recebeu cartas do governo do Rio de Janeiro. As epístolas informavam-lhe sobre as novas medidas das Cortes contra seu governo e, então, o príncipe disse aos membros de sua comitiva que estavam definitivamente rotos os enlaces com Portugal e, em seguida, voltou à capital da província. Deve-se destacar que esse fato não foi largamente explorado em 1822.

 

No entanto, nos anos posteriores, se criou uma versão heroica do fato ocorrido em São Paulo. D. Pedro e sua comitiva estariam montados em cavalos (mas, na verdade, eram mulas, pois era o animal que utilizava-se, rotineiramente, no período e na região, para transportar-se) e, quando ele teria lido as missivas, indignado com as medidas de Lisboa, tirara sua espada às margens do Ipiranga e teria gritado “Independência ou morte”, no que foi seguido por todos de sua comitiva.

Deixando a versão ufanista e retornando a 1822, mais especificamente a outubro, há de explorar-se o dia 12, quando D. Pedro foi aclamado imperador do Brasil no Rio de Janeiro, seguindo ritos das monarquias europeias, com o objetivo de pontuar seu governo como continuidade de una tradicional casa real do Velho Mundo. Ademais, a data era o dia do aniversário de D. Pedro e, ao menos em 1822, reverberou muito mais que o 7 de setembro. Ao longo da década de 1820 se compreendia que o Império foi criado em outubro e a data somente saiu do calendário das festas oficiais brasileiras em 1831, ano que, depois de uma grave crise de governabilidade, D. Pedro abdicou do trono brasileiro e retornou a Portugal.

No último mês de 1822, também no Rio de Janeiro, houve a coroação de D. Pedro como Imperador do Brasil. A data escolhida foi 1º de dezembro, dia importante, até o século XXI, para os portugueses, pois é o dia da Independência de Portugal, que, por sua vez, foi feita em 1640 por um antepassado de D. Pedro, o Duque de Bragança. Desejava-se, portanto, associar sua imagem e do seu Império a um passado glorioso no qual os portugueses e os Bragança estivessem envoltos.

Além dos fatos expostos, que contribuem para a compreensão de uma versão processual e mais complexa da independência do Brasil, nas províncias houve reações distintas aos episódios que tiveram o Rio de Janeiro e São Paulo como palco. Como exemplo, em parte significativa da região amazónica, os poderosos locais não aderiram ao projeto imperial. No caso específico do Pará, esse já havia se declarado parte de Portugal, a desvincular-se do Rio de Janeiro, antes mesmo da aclamação ou da coroação de D. Pedro. Salvador foi controlada por militares portugueses fiéis às Cortes até julho de 1823.

No rio da Prata, mais especificamente no território onde hoje é a República Oriental do Uruguai, que, por sua vez, desde 1821 era parte da monarquia portuguesa sob o nome de Estado Cisplatino Oriental, houve divisão interna: a parte das forças militares dos Bragança favoráveis a Lisboa associou-se a uma fração da elite “uruguaia” e, associados, controlaram Montevidéu, tendo sido árduos opositores do projeto do Império. Outra parte dos militares (comandados pelo general português Carlos Federico Lecor) e dos “uruguaios” estabeleceram a sede do poder brasileiro no interior.

Identifica-se, deste modo, que o novo imperador tinha um grande desafio para estender seu poder do Amazonas ao Prata. O grito no Ipiranga ou a aclamação não foram bastante para garantir-lhe o controle de todas as províncias. A isso soma-se que o Império não tinha a quantidade suficiente de militares para submeter todo o Brasil e, para consegui-lo, D. Pedro contratou mercenários franceses, como Labatut, que já havia lutado na América do Sul com Bolívar, e ingleses, como Cochrane, que, anteriormente, lutou no Chile ao lado de O’Higgins e San Martin (respectivamente próceres das independências chilena e argentina).

Embora os muitos conflitos que ocorreram entre forças imperiais e portuguesas, ao longo de 1823, pouco a pouco as resistências ao Império foram caindo. A última praça ocupada por portugueses foi Montevidéu, onde as forças brasileiras adentraram somente em março de 1824. Também nesse ano, D. Pedro outorgou a primeira constituição brasileira e, em 1825, Portugal reconheceu o Brasil como um Estado independente. No entanto, havia, ainda, uma árdua missão para o Império: ordenar a economia brasileira, debilitada pelos acontecimentos políticos; criar uma identidade nacional ao Estado que nasceu sem ser uma nação; e equilibrar-se nos complexos jogos políticos com as províncias imperiais e com os governos vizinhos – basta recordar-se que o primeiro conflito externo do Império iniciou-se em 1825 contra o governo de Buenos Aires pelo controle do “Uruguai”, na chamada Guerra da Cisplatina.

Por fim, ao longo dos anos, o grito do Ipiranga foi ganhando importância e se tornando a principal data cívica brasileira. O que aconteceu em outras partes do Brasil foi sendo esquecido e, hoje, fora dos círculos acadêmicos, poucos conhecem o processo de emancipação e sua complexidade. Ignora-se, por exemplo, que outros episódios além do Ipiranga poderiam ter sido reconhecidos como os da independência brasileira e serem, porventura, celebrados como episódios cívicos nacionais. Porém, esquecimentos e equívocos ocorrem em diversos processos históricos em vários países e cabe aos historiadores a análise e recordarem à sociedade o que foi esquecido, muitas das vezes, por séculos.

 

* A versão original do artigo foi publicada, em espanhol, na edição 655 (agosto de 2022) da revista “Todo Es Historia” (ISSN 0040-8611/IMPRESA, ISSN 2618-4354/DIGITAL) , destinada à divulgação científica, sob o título “Más Allá del Ipiranga: Una Historia Compleja”.

 

Referências

CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

 

FERREIRA, Fábio. O 1808 português e espanhol e os seus desdobramentos na Banda Oriental do Rio da Prata. In: ORTIZ ESCAMILLA, Juan; FRASQUET, Ivana (Org.). Jaquea la corona: la cuestión política en las independencias ibero-americanas. Castelló de la Plana: Universitat Jaume I, 2010.

 

KRAAY, Hendrik. A Invenção do Sete de Setembro, 1822-1831. In: Almanack Braziliense, n°11, mai. 2010. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/alb/article/view/11738/13513

 

NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e constitucionais: a cultura política da independência (1820-1822): Rio de Janeiro: Revan, FAPERJ, 2003.

 

PIMENTA, João Paulo. Independência do Brasil. São Paulo: Contexto, 2022.

 

Por José Nazareno Maciel Junior

Graduado em Ciências Atuariais pela UFC/Mestre em Economia pela UFC

Gerente de Informações Estratégicas e Atuariais na Unimed Fortaleza

Quando olhamos para trás, a história da ciência atuarial nasce na antiga Roma com os ACTUÁRIOS, que eram os secretários do senado, que anotavam o transcurso das sessões (ATAS) e as divulgava ao povo. Posteriormente, o termos passa a estender aos escrivães públicos que tratavam dos registros dos nascimentos e óbitos e no século XVII o termo ATUÁRIO foi utilizado para identificar os pesquisadores que organizavam as tábuas de mortalidade, utilizando-se de recursos estatísticos e matemáticos.

Como já é do nosso conhecimento, o Instituto Brasileiro de Atuária (IBA) define o profissional atuário como sendo: “… o preparado para mensurar e administrar riscos, uma vez que a profissão exige conhecimentos em teorias e aplicações matemáticas, estatística, economia, probabilidade e finanças, transformando-o em um verdadeiro arquiteto financeiro e matemático social capaz de analisar concomitantemente as mudanças financeiras e sociais no mundo.”

Além desta definição acima do IBA, várias outras podem ser encontradas, mas em todas iremos encontrar a palavra “RISCO”. Portanto, em suma, somos gestores de risco (identifica, analisa, administra etc.).

As atividades elementares do atuário são: a) precificação; b) cálculo de reservas; c) modelagem de capital; e d) gerenciamento de riscos corporativos.

E com a necessidade da multidisciplinaridade nos faz levar a ter que conhecer de tudo um pouco:

 

 

 

 

Passando por esta contextualização inicial, vamos olhar agora para o futuro, criemos então uma ponte, destacando assim algumas tendências que podem ser enxergadas.

Vamos lá.

 

 

Além da Previdência, Seguros, Saúde e Capitalização

 

Ainda tem muito trabalho a se fazer na previdência, seguros, saúde suplementar e capitalização. Disso ninguém tem o que discutir, mas esses ramos no longo prazo estarão saturados e não conseguirão mais absorver todos os profissionais.

Então se somos profissionais preparado para mensurar e administrar riscos, qual a razão então de não ampliarmos mais esse campo de atuação? Todos os ramos de atividade possuem seus respectivos níveis de risco que podem ser analisados de forma interna (core business) e externa (mercado). Talvez não envolva diretamente aspectos demográficos e sociais como o seguro (incluindo saúde) e previdência envolvem, mas possuem sim e devem ser mensurados e administrados para evitar perdas desnecessárias e contribuir para o equilíbrio.

Ou seremos profissionais sempre dependentes de regulamentação? E mesmo os mercados que estão já regulamentados, só iremos fazer o que os reguladores exigem? Até quando faremos só o que mandam? Gestão de risco é muito mais amplo e essas lacunas podem ser perfeitamente preenchidas pelos atuários.

 

 

Era Digital

 

Hoje já tem muito atuário trabalhando com Business Intelligence pois diante do conhecimento de banco de dados facilita muito essa interação com as ferramentas. Mas e o Big Data? Já parou para pensar nisso?

Neste contexto, gostaria de abordar dois aspectos: a) com a chegada dos robôs que farão diversos procedimentos até então manuais para a forma automatizada, seja ela em dados estruturados e não estruturados, vejo que nós precisaremos mergulhar mais do que nunca na análise dos resultados, incrementando e muito as respostas; e b) teremos também que investir mais nas metodologia para os modelos preditivos que farão parte das estimativas também reportadas no Big Data.

Além disso, o mundo digital chegou para ficar: já existe operadora de plano de saúde totalmente digital nos EUA, já tem banco contratando gerente digital, vários serviços “uberizados” e segundo os futuristas, as maiores empresas em 2030 serão as escolar online. E onde podemos atuar nesse mundo? Penso em cursos, consultorias de forma online.

 

 

Trate um Gráfico de Distribuição de Probabilidades uma Obra de Arte

 

Chega de ficar só reforçando certeza de um único valor determinístico. Devemos mergulhar também no mundo estocásticos (incluindo variáveis aleatórias dos custos e também das receitas). Quero intensificar aqui a ideia da utilização de modelos estocásticos, pois não podemos ter a pretensão de achar que estamos 100% certos de que um único valor será a melhor estimativa, mesmo diante do teste de consistência. Quando estamos tratando de gestão de riscos, é interessante que esta tese venha a dar lugar aos estudos, incluindo, pelo menos, cenários. Nem que seja apenas para se ter uma ideia da volatilidade para efeito, inclusive, de estudos de solvência.

 

 

O Muro Técnico foi demolido 

 

A verdade é que ainda somos conhecidos, na maioria das vezes, como TÉCNICOS que possuem boa percepção analítica, conhecedores de planilhas eletrônicas e bancos de dados, exclusivamente responsáveis pelo cálculo dos prêmios, das provisões técnicas, da reserva matemática, dentre outros.

O mais importante é que a profissão siga os passos para a visão mais ampla do risco, possibilitando a união da boa técnica com uma percepção mais estratégica. Com a necessidade de: a) ter uma visão sistêmica do negócio/empresa; b) integração com profissionais de outras áreas do conhecimento; e c) ser um profissional multidisciplinar.

Outro ponto fundamental é que o atuário, além de utilizar cálculos, sejam eles determinísticos ou estocásticos, pode utilizar também, dependendo do caso e com a prudência e o bom senso necessários, o feeling (intuição), explorando assim sua subjetividade e experiência da área em que está atuando interagindo os aspectos internos e de mercado. Desta forma amplia os horizontes de atuação e não fica “preso” a uma metodologia, algumas vezes até inexistente para aplicação.

 

 

Todo Mundo Junto e Misturado

 

Muitas vezes isolados, vivemos em um mundo a parte onde a matemática é um dos combustíveis principais, com a cabeça voltada para o raciocínio eminentemente lógico, resumimos muitas vezes as resoluções dos problemas da vida através de fórmulas mágicas ou códigos mirabolantes do tão poderoso e inseparável Excel. Parece até que já nascemos assim!

 

 

Venhamos e convenhamos, a realidade acima existe sim, porém hoje em dia já é notório perceber um avanço no tocante a integração com outras áreas do saber e isso é necessário e fundamental, pois estimula novas ideias/soluções e estabelece um enriquecimento intelectual mútuo, ativando inclusive a subjetividade (coisa ainda distante de nós), além do fato de possibilitar cada vez mais o conhecimento da ciência atuarial pelo outros, corroborando para gestão de risco em sua essência maior. Não esqueçamos: o coletivo que faz a diferença!

 

 

Exemplos Lúdicos

 

A comunicação é outro fator muito importante, possuir clareza e didática para explicar algum estudo realizado é tarefa, muitas vezes difícil, principalmente quando o público não trabalha diretamente com exatas.

Portanto, pare de querer explicar as fórmulas mirabolantes dos livros, as pessoas geralmente não querem saber disso, querem entender os resultados e ponto final.

Faça analogias, dê exemplos lúdicos e ilustrativos, tente transformar a matemática em algo prazeroso, pois muitas pessoas possuem trauma de números.

Abaixo um exemplo comparando as provisões com a margem de solvência na saúde suplementar:

 

 

 

 

 

Tchau Relatórios Imensos 

 

Como assim? Criatividade? Não, sou atuário e não preciso disso. Deixa isso para a área de marketing. Engano seu amigo(a)! Você pode explorar outras metodologias, você pode adaptar as metodologias existentes à realidade da empresa e preste bem atenção! A criatividade pode estar em algo muito simples, um exemplo disso é a forma de apresentação: já tentou adaptar alguma apresentação ou relatório de 200 páginas que ninguém lê para um infográfico em uma página só? É sucesso! Vai por mim!

 

 

Os especialistas mesmo recomendam a ler outros assuntos que não tem nada a ver com a sua área de atuação profissional. Assim quando surgir alguma ideia inovadora esta será o resultado de uma construção mental de partes de vários assuntos. Pense nisso!

 

 

O Lado Relacional

 

Na sua rede de contatos (atuários e não atuários) pode estar reservada possibilidades que, aliada aos seus valores, competência e conhecimento técnico te auxiliem na sua ascensão profissional. Sem contar que um dia, infelizmente você poderá acordar desempregado(a) e aí parte da solução do seu problema estará nela. Além disso, existe um fato notório que quando se está em um certo nível de maturidade profissional, não há mais necessidade de participar de seleções exaustivas, basta uma conversa, muitas vezes informal, com o futuro líder direto, muitas vezes, fruto de uma indicação. E não esqueçamos: o mundo é dinâmico, a vida é cíclica e o Brasil um país majoritariamente relacional.

 

 

Qualitativamente

 

Além das razões óbvias que já sabemos, o que leva um beneficiário ir a uma consulta eletiva? O que leva um indivíduo a não poupar? O que leva uma pessoa a não fazer o seguro do seu carro? O que leva a falta de interesse de um determinado produto que é julgado importante? Juntando esses questionamentos aos meus critérios de curiosidade, encontrei uma disciplina fundamental que estuda aspectos comportamentais do ser humano e que certamente agregará muito ao equilíbrio necessário do Quali-Quanti, a chamada Economia Comportamental.

Isto posto, devemos complementar nossas análises levando em consideração, além do lado da empresa, o lado do cliente (dependendo do ramo, lê-se cliente como segurado ou beneficiário ou participante ativo ou participante assistido ou pensionista, etc.), contemplando assim um mapeamento dos motivos pelos quais levam a praticarem iniciativas/atitudes que geram, em sua essência maior, fatos intrinsecamente ligados aos riscos inerentes ao negócio das empresas e à sociedade como um todo.

Para isso, será necessário passar por uma intensa política conceitual e multidisciplinar, fomentando assim uma base de fatos no nosso cotidiano laboral com vistas a elevar métodos de gestão.

Hoje em dia a maioria das nossas respostas são baseadas pelo lado quantitativo lógico e nem sempre a tomada de decisão deve ser baseada exclusivamente por este lado, mas sim a combinação entre os dois (quali e quanti).

***

Acredito que quase todas ou senão todas já não são novidades para muitos atuários.

De qualquer forma, é o que julgo ser interessante refletirmos juntos para nossa evolução e para que possamos continuar tendo importância no mercado.

Por fim, ressalto que não sou dono da verdade e diante disso, se você deseja discordar e/ou complementar alguma tendência, fique à vontade e deixe um comentário com sua opinião. Ela será bem-vinda e sem dúvidas enriquecerá a nossa visão de futuro.

 

 

 

Fiquemos atentos a tudo.

 

Saiba mais sobre as Ciências Atuariais clicando em: https://revistatemalivre.com/mais/temasatuariais-html/

 

Uma conversa sobre as Ciências Atuariais no Debate Tema Livre:

No bate-papo, saiba mais sobre uma das profissões mais promissoras das últimas décadas, bem como conheça habilidades necessárias para o êxito na carreira e, ainda, seus impactos na sociedade.

 

Ficha técnica: Debate Tema Livre
Edição 02: “Uma conversa sobre as Ciências Atuariais”
Condução: Fábio Ferreira
Convidados (em ordem alfabética): José Nazareno Maciel Junior, Máris Caroline Gosmann, Natalia Moreira de Paula.
Assista ao bate-papo no canal da Revista Tema Livre no YouTube: https://www.youtube.com/revistatemalivre?sub_confirmation=1

 

 

Por Jéssica Alves Fontes

Mestre em Ensino de História no 3.° Ciclo do Ensino Básico e no Ensino Secundário. Licenciada em História da Arte pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Correio electrónico: up201303797@letras.up.pt.

 

 

  1. Introdução

 

Este convento confinado à regra que regulava a Congregação de São João Evangelista é resultado de uma época e meio no qual está inserido. Uma congregação que ao longo do tempo vai adquirindo uma boa imagem e protecionismo por parte da realeza portuguesa e outras figuras ilustres, pelo prestamento de um serviço de excelência nas missões de evangelização, assim como, na administração dos melhores hospitais do país.

 

A escolha desta congregação para o novo convento do Espírito Santo da Feira deve-se ao grande desejo por parte da família Forjaz Pereira, nomeadamente D. Manuel Forjaz Pereira e seu filho, D. Diogo Forjaz Pereira, que tinham como ambição a construção de um convento não só para o seu benefício, como também para habitantes da vila.

 

Embora a questão da encomenda esteja mais do que entendida, as imensas transformações que este convento sofreu ao longo do tempo, levaram consequentemente à ausência de documentação manuscrita referente a quem pertence ao certo o traço do convento, da igreja, bem como o envolvimento de possíveis artistas na sua edificação. “(…) por isso venho escrever da Feira, terra importante, mas pobre em documentos antigos para a sua história, para a história do seu colégio1.”

 

Com efeito, foram várias as circunstâncias que levaram a esta escassez de fontes, como a extinção das Ordens Religiosas em 1834, que fez com que a parte sul do convento ficasse sob a posse da Câmara, sofrendo posteriormente diversas alterações para poder albergar o Tribunal e as Conservatórias. E mais tarde, em 1878, o antigo refeitório passou a ser uma sala de espetáculos, o Real Teatro de D. Fernando II2.

 

Na atualidade, apenas a igreja do convento possui o traço original, uma vez que não sofreu alterações significativas ao longo do tempo, o mesmo não aconteceu nas suas dependências, como é o caso da zona claustral que para além das modificações fruto das consequências acima referidas, teve que se adaptar para a construção do museu3.

 

Assim sendo, iremos nos deter sobretudo na análise do corpo da igreja conventual através da observação em confronto com arquiteturas contemporâneas e contíguas ao nosso objecto de estudo, como também com a tratadística.

 

Deste modo, dos diversos tratados que circularam em Portugal, como o Tratado de S. Carlos Borromeu, Instruciones Frabricae et Supellectilis Ecclesiasticae de 1577, o Tratado de Vitrúvio, De Architectura Libri Decem, do século I a.C, De Architectura de Libri Quince, de Sebastiano Serlio, que disseminou a serliana, um motivo de Palladio, destacamos o tratado flamengo do arquiteto Hans Vredeman de Vries, Architectura oder Bauung der Antiquen auss dem Vitruvius, de 1577 e o de Wendel Dietterlin4, uma vez que encontramos presença de uma gramática decorativa na fachada e no interior da igreja de influência flamenga, como as cartelas com enrolamentos e pontas de diamante. Este último tratado, possivelmente circulou entre o Norte e Centro de Portugal, fruto de intercâmbios entre artistas.

 

Assim, pretendemos aferir quais os possíveis arquitetos que terão trabalhado na igreja conventual dos Lóios da Feira e entender sua a linguagem artística.

 

 

  1. Especificidades da Congregação

 

 

A congregação vai se desenvolvendo progressivamente e a sua popularidade na sociedade e na corte vai permitir a construção de nove casas religiosas em Portugal. Nomeadamente, a casa em estudo foi a sétima a ser construída.

 

Neste sentido, a arquitetura elegida para estes espaços teria que permitir a dinâmica da vida religiosa comunitária, uma vez que tinham como propósito alcançar a vida evangélica e comunitária5. Na crónica O Ceo aberto na Terra, o autor descreve que os cónegos azuis “forão os primeiros clérigos seculares viventes em commum”, no reino português6. Além do mais, o Convento dos Lóios de Santa Maria da Feira é um excelente exemplo disso, tendo sido implantado junto da população e perto do Castelo. Dado que, o trabalho da comunidade consistia na pregação, doutrinação, ensino e missionarismo, algumas das casas contruídas para esta congregação como o colégio de Vilar e de Santo Elói de Lisboa, tiveram a função de colégio. Neste sentido, vários autores como António Ferreira Pinto colocam a hipótese de o Conventos dos Lóios da Feira ter tido esta função.

 

De facto, devido às dificuldades financeiras para finalização das obras do corpo da igreja, no final do século XVII, a Câmara da Feira propõe o assentamento de uma taxa de um real em cada quartilho de vinho vendido na vila. Em troca, os padres teriam que ensinar latim a todos os fregueses que quisessem estudar. Uma grande estratégia por parte da Câmara, remetendo as despesas e encargos da igreja no povo, ao mesmo tempo que estabelecia o ensino na vila. Deste modo, estamos perante o ensino do Convento dos Lóios da Feira, mas não é suficiente para sustentar a hipótese do edifício se tratar de um colégio.

 

É certo, que o edifício em estudo é organizado por duas portarias e claustro, o que remete para uma organização semelhante a um colégio. No entanto, não existe informação que comprove o ensino neste convento e não é de todo o foco deste artigo.

 

 

  1. A Fundação do Convento da Feira

 

 

Existiam duas pequenas ermidas na época, uma no local onde foi construído o convento com o seu orago dedicado ao Espírito Santo, e outra na freguesia de S. Nicolau onde a Congregação esteve instalada numa primeira fase7.

 

No entanto, os condes da Feira desejavam a construção de um convento para seu benefício perto do castelo, assim como para os seus habitantes da vila. Assim, uma das principais razões que levaram à escolha da Congregação dos Lóios para a construção de um Convento na Feira foi a pertença à congregação por parte de dois dos filhos do Conde – D. Leonis e Rodrigo de Madre Deus. Para além disso, era uma congregação protegida do rei e permitiria a construção de um cemitério próprio para os Condes da Feira. De igual modo, os habitantes da vila poderiam também ter a possibilidade de cura espiritual. Neste sentido, no ano de 1560 é lançada a primeira pedra da igreja, onde outrora estava a Ermida do Espírito Santo8, e em 1566 já estava pronta a habitar9.

 

Aqui vivião pelos annos de1560 o quarto Conde da Feira D. Diogo Forjaz, & sua mulher a Condeça D. Anna de Meneses, os quaes desejavam ter naquela Villa hum convento de religiosos, em beneficio seu, & de seus vassalos. Seu, porque em quanto vivos terião no convento quem lhe fisesse cõpanhia, & assitencia, & depoes de mórtos terião quem lhe désse sepultura, & lhe rogasse pela alma10.

 

De acordo com Carlos Ruão era necessário aumentar a monumentalidade da obra e deste modo, em 1580, o conde D. Diogo contrata o mestre Jerónimo Luís para a obra de pedraria da capela-mor. No entanto, com a morte de D. Diogo as obras pouco avançaram, sendo lançada a primeira pedra para a sua construção a 6 de abril de 1618. O mestre pedreiro Jerónimo Luís foi responsável pela edificação da abóbada e do claustro circular do Mosteiro da Serra do Pilar, em Vila Nova de Gaia, projetado por João de Ruão. Com efeito, até este momento estava concluído o arco cruzeiro, mas dada a imponência do desenho da capela-mor foi necessário executar um novo arco, sendo lançada a primeira pedra a 30 de junho de 1625, já na responsabilidade de outro mestre pedreiro, Francisco Carvalho11, oriundo do Porto, sendo substituído após a sua morte pelo mestre Valentim Carvalho, também proveniente do Porto12.

 

As obras para corpo da igreja permaneciam em atraso por falta de apoios financeiros e para ajudar na progressão da construção, alguns cidadãos tinham a pretensão de dar alguns contributos. De igual modo, o crescimento da comunidade dificultava ainda mais a situação e a necessidade de receber um maior número de rendas era cada vez mais urgente. Assim, em 1623 habitavam apenas quatro religiosos e entre 1639 a 1641 o administrador das obras, Pantaleão de S. Tiago registou o total de nove celas no convento, em que seis delas estavam ocupadas. De igual modo, o mestre padre Jorge São Paulo mencionava que em 1658 estavam dez religiosos a ocupar o convento13.

 

Por outro lado, a encomenda de missas perpétuas por parte dos fregueses pelas suas almas e dos seus familiares, contribuíram para o acúmulo de alguns rendimentos para a continuidade da comunidade. Posteriormente, em 1693 estava terminado o novo arco cruzeiro, mas uma vez que a congregação estava com escassez de meios financeiros para a continuação das obras solicitaram apoio junto à Câmara Municipal. O apoio foi concedido com a contrapartida de os frades lecionarem aulas de latim à comunidade14. Deste modo, conseguiram não só a colaboração da Câmara Municipal como do poder régio, auferindo-lhes a taxa de um real por cada quartilho de vinho, num período de cinco anos15.

 

Neste sentido, a construção do corpo da igreja passou a estar à responsabilidade do construtor Domingos Moreira a 3 de outubro de 1692, proveniente de Moreira, na Maia. Este teve como obras a seu cargo o aqueduto do Mosteiro de Stª Clara de Vila do Conde. Por volta de 1705 concluiu-se o coro-alto e o batistério. A fachada apenas possuía a torre norte16, sendo que a torre sul apenas fica concluída em 174317.

 

 

  1. Observação do objeto de estudo: análise arquitetónica e relação entre as formas

 

 

Os cónegos azuis foram os primeiros clérigos seculares a viverem em comunidade18 e podemos observar essa característica na escolha do lugar para a implantação deste convento, inserido perto da população e próximo ao Castelo segundo a vontade de D. Diogo Forjaz Pereira.

 

Assim, a igreja surge implementada geograficamente sobre um ponto alto perto do rossio e próximo do castelo, desafogada de envolventes, destacando a fachada da igreja em relação ao seu entorno. Se a área geográfica de implementação fosse plana, deveria construir-se de forma a ascender à igreja, três ou cinco degraus. Estes princípios estão de acordo com o tratado de S. Carlos Borromeu presentes no capítulo I. De igual modo, a aplicação de princípios das práticas arquitetónicas é recuperada do Renascimento após o concílio de Trento e da tradição greco-romana descrita no tratado de Vitrúvio que refere a construção dos templos em locais elevados – locais limpos, secos, sem imundices, com espaços que permitem a circulação, boa captação de sol, ou seja, boas condições de salubridade para evitar doenças.

 

Os templos sagrados dos deuses, que se consideram ser a mais alta tutela da cidade, Júpiter, Juno e Minerva, dever-lhes-ão ser distribuídas zonas no lugar mais elevado, de onde se possa observar a maior extensão do recinto fortificado19.

 

Fig.1. Fotografia aérea do Convento dos Lóios de Santa Maria da Feira.

No caso da necessidade da construção de degraus na fachada estes deveriam ser em número ímpar e com medidas que permitam uma subida harmoniosa. Posto que, o terreno apresenta uma desigualdade de cota a igreja em estudo apresenta um número de degraus superior a cinco, através da configuração de uma enorme e majestosa escadaria com a largura idêntica à igreja conventual, composta por dois lanços de escadas duplos e convergentes, estabelecidos por patamares ornamentados que conferem um enquadramento cenográfico e teatral na sua envolvente.

 

No frontispício, os degraus deverão ser dispostos de tal modo que sejam sempre ímpares: pois como se sobe o primeiro degrau com o pé direito, também este será o primeiro a atingir a parte superior do templo. Sou da opinião de que a altura destes degraus deverá ser definida de modo que não fique maior que cinco sextos do pé nem menos que três quartos; deste modo, a subida não será custosa. Quanto à largura dos degraus, considera-se que não deverá ser inferior a um pé e meio nem superior a dois20.

 

A parte inferior foi alvo de modificações no entanto, Paulo Roberto Nogueira acredita que os dois lanços divergentes que partem do terceiro patamar assinalam o fim da obra original e começo de algumas variações21 O segundo patamar definido pelo adro da igreja, é constituído por vários sepulcros e por um cruzeiro, formado por uma coluna assenta sobre o soco com capitel coríntio que por sua vez é rematada por uma esfera que suporta a cruz latina. De uma forma geral, a escadaria é ornamentada com pequenos pináculos e elementos curvos.

 

Nomeadamente, após a subida da escadaria deparamo-nos com a igreja e o corpo monástico anexado a ela. Segundo o tratado de S. Carlos Borromeu, a igreja deveria assemelhar-se a uma ilha, com as suas paredes separadas das paredes dos edifícios envolventes, como casas de habitação22. No entanto, tratando-se de uma igreja conventual, dado a sua natureza funcional possui algumas das suas paredes ligadas às do corpo monástico.

 

A fachada principal (fig.2) está ladeada por torres sineiras elevadas em relação ao corpo central e sobre o mesmo plano da fachada. De certo por uma questão de regularidade da fachada, posto que compõe o equilíbrio da mesma. No topo do frontão surge o relevo de uma águia, o tetramorfo de S. João Evangelista. De facto, trata-se do único elemento iconográfico presente nesta fachada, uma vez que a Congregação não possuía muitas imagens de santos associadas, sendo a figura principal S. João Evangelista, aquela que denomina a própria Congregação.

 

Fig.2. Fachada da Igreja do Convento dos Lóios da Feira, 2019. Foto de Jéssica Fontes.

 

Nomeadamente a composição central da fachada é definida por dois corpos revelando uma horizontalidade e um eixo médio vertical que marca o ritmo – a porta rematada com frontão, a grande janela e as seis pilastras interrompidas que ladeiam estes elementos. Estes dois corpos são separados por um entablamento muito simples e depurado de qualquer ornamentação. Por sua vez, esta composição termina com outro entablamento semelhante ao inferior e é rematada através de um grande frontão triangular que confere um sentido plástico e valoriza a fachada, conferindo todo um programa arquitetónico que monumentaliza o acesso ao templo.

 

Para além disso, ao observarmos atentamente os dois pisos, conseguimos constatar que estes não obedecem ao ideal da ordem arquitetónica concebida pelo Renascimento que defendia a sobreposição de ordens, ou seja, a ordem toscana deveria estar em baixo e a jónica em cima. No entanto, o autor do traço da fachada optou por inverter as ordens, algo inconcebível para os artistas renascentistas que apenas faziam a supressão de uma ordem na sucessão, estando sempre a ordem toscana ou dórica na base, com a finalidade de suportar o piso superior. Neste caso, o autor optou por colocar a ordem mais delicada, a jónica no piso inferior e a mais robusta, a toscana no piso superior. Neste sentido, esta inversão faz-nos colocar desde logo as seguintes questões: O que levou o arquiteto a inverter as ordens? E onde foi encontrar este tipo de solução? – desde logo, se recuarmos até Miguel Ângelo poderemos obter resposta à segunda questão, dado que este ousou romper com quase todos os modelos pré-estipulados, realizando variadas possibilidades de combinações, ao duplicar colunas e inverter capitéis como podemos observar na Biblioteca Laurenciana.

 

Aliás, é de destacar também os dois relógios presentes nas torres que ladeiam o corpo central da fachada. Estes apresentam uma moldura em rollwerk (fig.4), enrolamentos embelezados de influência nórdica. Curiosamente, o Mosteiro de Grijó, um dos complexos monásticos contíguos ao Convento dos Lóios, apresenta uma solução semelhante no relógio da fachada, em que o possível autor do traço seria Francisco Velasquez23 (fig.3). De igual modo, conseguimos estabelecer as mesmas relações com o tratamento plástico do claustro do Mosteiro da Serra do Pilar (fig.5), a cargo do mestre pedreiro Jerónimo Luís, um dos primeiros mestres a cargo do projeto do Convento dos Lóios da Feira.

 

Fig.3. Pormenor do relógio da Igreja do Mosteiro de Grijó, 2019. Foto de Manuel Botelho.
Fig.4. Pormenor do relógio da Igreja do Convento dos Lóios da Feira, 2008. Autor desconhecido.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Fig.5. Claustro do Mosteiro da Serra do Pilar, Vila Nova de Gaia. 1998. Foto de Luís Ferreira Alves. Acervo do Sistema de Informação para o Património Arquitetónico.

 

De um modo geral, estamos perante uma fachada simples, mas com um desenho arquitetónico interessante, através a inversão das ordens clássicas e da ornamentação dos relógios que remete para a linguagem artística do norte da europa.

 

No que diz respeito ao interior da igreja, esta apresenta uma planta longitudinal (fig.6) de nave única, com uma composição arquitetónica simétrica, apresentando proporções aproximadas ao corpo humano24. Porém, a igreja em estudo apresenta transepto inscrito, que corresponde apenas a uma pequena fração do braço humano, mas que vai de encontro à própria evolução da arquitetura e necessidade emergente na época, a criação de um espaço amplo, para que os fiéis conseguissem observar todos os acontecimentos que decorriam na capela-mor.

 

Fig.6. Planta do Convento dos Lóios de Santa Maria da Feira. Roberto Carlos Reis.

O corpo da igreja divide-se em três tramos: o inicial, onde se situa o coro alto, e os outros dois às capelas laterais, sendo cada um deles definido por largas pilastras toscanas dispostas simetricamente (fig.7). O primeiro tramo que é ocupado em parte pelo coro alto apoia-se num arco inserido na parede da entrada, e num outro abatido aos pés da nave. O restante espaço foi aproveitado através da abertura de portas, sendo que a da direita concede acesso ao claustro.

 

Nos outros dois tramos, abrem-se entre as pilastras toscanas os arcos das quatro capelas laterais – duas de cada lado. Por sua vez, estes arcos são rematados por um entablamento. As capelas laterais inscrevem-se na planta de forma a que o seu eixo seja perpendicular ao da nave. Estas capelas são comunicantes entre si, através de corredores que servem de confessionários.

 

Neste sentido, o interior da nave central é animado através da articulação de elementos que se remetem num módulo – capelas laterais, nichos e largas pilastras toscanas, entre as quais as duas centrais parecem também ter nichos na parte superior, mas não possuem qualquer imagem de santos.

 

É de salientar os dois últimos tramos da igreja que para além das capelas laterais, possuem confessionários relevados em granito por baixo dos nichos do corpo da igreja, inseridos na espessura da parede entre os arcos das capelas laterais, revelando a preocupação do artista em dar funcionalidade às paredes da igreja. Estes confessionários em granito são enobrecidos plasticamente através do enquadramento com formas espirais, volutas que intencionalmente ou não, são trabalhadas de forma diferente, ou seja, uma voluta não é igual à outra.

 

Fig.7. Nave da Igreja do Convento dos Lóios de Santa Maria da Feira, 2019. Foto de Jéssica Fontes.

O transepto é inscrito de acordo com a largura da nave, não excedendo cada um dos seus braços à linha exterior traçada pelas capelas. À semelhança do que acontece nos dois tramos mais avançados da nave, em cada uma das paredes de topo dos braços do transepto abre-se um arco no qual se insere um retábulo, sendo este simetricamente ladeado por duas portas sobrepujadas por janelões. Estas portas são no braço esquerdo falsas, e no direito dão acesso respetivamente à sacristia e ao claustro. O revestimento das paredes do transepto é feito através de um esquema de azulejos 12×12 do século XVII, onde podemos observar o emprego do azul-cobalto e do amarelo antimónio, conferindo um grande efeito plástico através da diagonal.

 

No entanto, é no transepto que conseguimos mais uma vez detetar relações com o Norte da Europa e com arquiteturas próximas ao nosso objeto de estudo que terão sido construídas em datas aproximadas. Num detalhe quase impercetível, localizado no entablamento do transepto, por de baixo da cornija, surge uma decoração pétrea com formas em ponta de diamante articuladas com formas ovais (fig.8), que revela assimilações da tratadística flamenga, nomeadamete com o tratado de Vrederman de Vries25. Neste sentido, este tipo de decoração encontra-se no friso do entablamento da capela-mor da Igreja da Misericórdia do Porto (fig.9), pelo arquiteto Manuel Luís, por volta de 159026, na parte inferior da cornija da fachada da Igreja da Misericórdia de Aveiro (fig.13), da autoria de Gregório Lourenço e no arco cruzeiro e abóbada da capela-mor da Igreja do Colégio de São Lourenço do Porto.

 

Fig.8. Pormenor dos caixotões na abóbada de berço do transepto do
Convento dos Lóios de Santa Maria da Feira, 2019. Foto de Jéssica Fontes.

 

Além disso, conseguimos perceber outras relações no que diz respeito ao transepto a partir dos caixotões da cobertura da capela-mor da Igreja da Misericórdia do Porto (fig.9), bem como os da cúpula do Mosteiro da Serra do Pilar (fig.10), sob a responsabilidade do mestre pedreiro Jerónimo Luís. Como podemos ver nas figuras 8, 9 e 10, os caixotões de ambas as igrejas apresentam uma solução plástica semelhante sendo os da Igreja da Misericórdia do Porto e do Mosteiro da Serra do Pilar mais exuberantes plasticamente em relação à sobriedade decorativa da igreja em estudo.

 

Fig.9. Pormenor dos caixotões da cobertura da capela-mor da Igreja da Misericórdia do Porto.

 

Fig.10. Cúpula da Igreja do Mosteiro da Serra do Pilar, Vila Nova de Gaia, 1998. Acervo do Sistema de Informação para o Património Arquitetónico

 

Fig.11. Pormenor da cornija do entablamento do transepto da igreja do Convento dos Lóios da Feira, 2019. Foto de Jéssica Fontes.

 

Fig.12. Pormenor do friso do entablamento da capela-mor da Igreja da Misericórdia do Porto, 2019. Foto de Jéssica Fontes.

 

Fig.13. Portal da Igreja da Misericórdia de Aveiro, s.d. Acervo do Sistema de Informação para o Património Arquitetónico.

 

O lugar de destaque na arquitetura religiosa em relação aos restantes é sem dúvida a capela-mor, onde a assembleia dos crentes presencia o Mistério da Transubstanciação, criando um cenário celeste no seio dos participantes da eucaristia27. Esta capela pertence à primeira fase da edificação da igreja (fig.14), situa-se no ponto mais alto da igreja, a Este do pórtico, obedecendo às diretrizes de S. Carlos Borromeu28. Esta é retangular com uma cobertura em abóbada de berço organizada por três séries de caixotões irregulares com mármores rosa e negro no seu interior, assente na cornija contínua em toda a igreja, e é ligeiramente mais estreita do que a nave.

 

Fig.14. Capela-mor da Igreja do Convento dos Lóios de Santa Maria da Feira, 2019. Foto de Jéssica Fontes.

 

Entre estes janelões que conferem uma iluminação abundante29 situam-se os cenotáfios (fig.16), em mármores rosa, branco e negro, rematados através de um frontão triangular – no lado do Evangelho está o cenotáfio do conde D. Manuel Pereira, e no lado da Epistola está D Diogo Forjaz Pereira. Estes cenotáfios por sua vez, possuem algumas semelhanças com o lavatório da sacristia da Igreja da Misericórdia do Porto, pela sua forma e emprego dos mesmos materiais (fig. 15). Nesta sacristia trabalharam: Pantaleão Vieira, João da Rocha, ambos viviam no Porto30 e António Vieira.

 

Fig.15. Lavatório da sacristia da Igreja da Misericórdia do Porto, 2019. Foto de Jéssica Fontes.
Fig. 16. Sepulcro do lado do Evangelho na capela-mor da igreja do Convento dos Lóios da Feira, 2019. Foto de Jéssica Fontes.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A solução de policromia interior da capela-mor do Convento dos Lóios torna o espaço mais enobrecido plasticamente, concedendo uma paleta de cores não só através do mármore presente na cobertura e no entablamento, como do revestimento azulejar do século XVII de padrão azul cobalto e amarelo de antimónio, formando quase que dois tapetes separados por dupla cercadura nas paredes da capela.

Posto isto, tendo em conta todas estas relações facilmente conseguimos perceber as fortes assimilações da via flamenga na arquitetura religiosa do Noroeste, disseminadas pelos tratados de Hans Vrederman de Vries e de Wendel Dietterlin. Tal como Celso Francisco do Santos refere esta via é sentida sobretudo nos acidentes decorativos, como nos obeliscos, pirâmides, cartelas, enrolamentos, pontas de diamante que se revelam na gramática decorativa das fachadas, cúpulas, abóbadas e remates das arquiteturas31.

 

4.1. Claustro

 

Em termos simbólicos, o claustro é a alma de todo o conjunto arquitetónico, um local de intensa e austera vida espiritual, que representa o centro da vida monástica através da centralidade dos elementos que o organizam. É um microcosmo e representa a imagem do paraíso, através da criação da cidade sagrada. “O cruzamento dos quatro caminhos, resultantes dos quatro lados dos pontos cardeais apontava o centro do mundo, definido no convento da Feira pelo chafariz32.”

 

O claustro deste convento é quadrangular (fig.17) e situa-se a sul da igreja, constituído por dois pisos com arcadas assentes sobre pilastras, tornando-o robusto e grandioso. A regularidade do espaço é evidente através das formas simples, das arcadas que pousam sobre gigantes pilastras dóricas que constituem os dois pisos, abandonando a solução mais comum de arcos sobre colunas, ou colunas a sustentar um entablamento direito, substituindo-a pela utilização de pilastras das quais nascem os arcos e arcarias que sustentam a galeria superior, que por fim o remate é feito através de um entablamento simples. O primeiro piso é constituído por uma arcaria de arcos de volta perfeita enquanto que o segundo, o subclaustro é fechado para ter outra funcionalidade no interior, mas possui um conjunto de janelas com varandins.

 

Fig.17. Claustro do Convento dos Lóios da Feira, 2019. Foto de Jéssica Fontes.

 

Neste sentido, o claustro integra um elo de ligação entre os diferentes lugares que constituem o complexo conventual como a zona habitacional – as celas (localizavam-se no piso superior nas alas nascente, poente e sul) – a sala do capítulo (que hoje será os sanitários), o refeitório (que se encontrava na parte sul do claustro, voltado para o castelo), a igreja e outros compartimentos conventuais, permitindo que os religiosos usufruíssem da oração ao ar livre, ao mesmo tempo que as suas galerias funcionavam como um abrigo para os dias quentes de Verão ou chuvosos e frios do Inverno.

 

O centro do claustro é marcado pelo chafariz de tanque quadrilobado que não é o original, possivelmente seria o que está fixado no final da escadaria junto ao rossio. A água era fornecida pelo conde D. Diogo Forjaz Pereira através da fonte do castelo.

 

Com efeito, a maioria dos claustros possuíam sepulturas de religiosos, sendo um local privilegiado onde as comunidades monásticas preferiam ser enterradas, permitindo aos monges orar pela alma daqueles que já partiram, como gesto de memória. No entanto, não existe qualquer informação acerca de sepultamentos no claustro em estudo.

 

Por fim, uma vez que não se trata de uma comunidade monástica fechada, o claustro apresenta portarias que dão acesso exterior, sendo um local para receber visitantes, desde peregrinos, negociantes, hóspedes ou até mesmo mendigos – sobre o ideal de acolher qualquer pessoa que ali chegasse. Assim, o convento dos Lóios da Feira insere-se no modelo organizado nos colégios jesuítas com a integração de duas portarias – a comum e a do carro. A comum virada a sul, direcionada para o castelo, destinava-se em dias de grande afluência para a prática do ministério e das confissões. Uma vez dado o toque das Aves-Marias, o porteiro fechava a porta e atendia as chamadas noturnas como o auxílio de doentes e moribundos. Por sua vez, a porta do carro voltada para o rossio destinava-se ao abastecimento do convento e para acudir espiritualmente os mais necessitados, oferecendo algumas esmolas, e fornecimento de alimentação aos mendigos.

 

 

  1. Considerações Finais

 

Ao estudarmos a arquitetura não podemos descartar a relação com o sítio, a envolvente e as produções contemporâneas ao objeto de estudo. Neste sentido, uma vez que existiam à época diversos estaleiros nas cidades contíguas ao Convento dos Lóios, como em Grijó, Porto e Aveiro, consideramos a possibilidade de para além dos mestres identificados como intervenientes ao longo do processos de obra do Convento dos Lóios da Feira, como Jerónimo Luís, Francisco Carvalho e Valentim Carvalho, poderá ter havido a participação de outros mestres a trabalhar nas proximidades como Pantaleão Vieira, João da Rocha e António Vieira. Não podemos descartar as semelhanças na forma e materiais entre o lavatório da sacristia da Igreja da Misericórdia do Porto e os sepulcros da capela-mor da Igreja do Conventos dos Lóios de Santa Maria da Feira.

 

Apesar dos problemas financeiros que o convento sofreu, originando várias interrupções na execução da obra, e provavelmente, alterações no projeto inicial, tendo este que se adaptar consoante os recursos disponíveis, conseguimos perceber que se tratou de um projeto ambicioso. Um traço que revela algumas influências com o Norte da Europa, com um desenho arquitetónico interessante, salientando a composição anticlássica da fachada pela inversão das ordens canónicas e o emprego de materiais nobres, como os mármores e azulejos.

 

Neste sentido, estas assimilações flamengas só podem ser compreendidas através da dinâmica da cidade do Porto e a sua relação com o Rio Douro, uma vez se trata de um ponto de partida e de chegada, que estabelece ligações com o exterior, fazendo circulação de tratados, permitindo a viagem das formas e conhecimento daquilo que de melhor se fazia pela Europa. Podemos assim constatar, que a cultura arquitetónica internacional era estudada pelos arquitetos postugueses nos séculos XVI a XVIII.

 

No entanto, ao deparamo-nos com a ausência de dados concretos quanto à autoria do traço, não podemos concluir de facto qual destes mestres pedreiros referidos ao longo deste estudo terão sido responsáveis pela execução do projeto da igreja conventual dos Lóios da Feira. Possivelmente terá sido Jerónimo Luís que traçou o projeto do convento na sua totalidade, tendo posteriormente, Francisco Carvalho e Valentim Carvalho a seguir o projeto inicial, dando assim continuidade ao mesmo, algo que era muito frequente, dado a morosidade e peripécias destas construções. Assim, esta questão terá que ser deixada em aberto, mas acreditamos ter contribuído para esta investigação ao estabelecermos relações com alguns projetos da mesma época, percebendo as apropriações e soluções apresentas ao objeto de estudo.

 

 

 

Fontes e Bibliografia

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[1] PINTO, 1938: 5.

[2] DIREÇÃO GERAL DO PATRIMÓNIO CULTURAL (2011) – Mosteiro da Serra do Pilar.

[3] NOGUEIRA, 2007: 238-239.

[4] SANTOS, 1989: 89.

[5] TAVARES, 1999: 2.

[6] NOGUEIRA, 2007: 298.

[7] VECHINA, 2017: 57.

[8] VECHINA, 2017: 118.

[9] NOGUEIRA, 2007: 52-53.

[10] SANTA MARIA, 1697: 534.

[11] RUÃO, 2006:24.

[12] FERREIRA, 1950: 197-200.

[13] TAVARES, 1999: 92.

[14] VECHINA, 2017: 451.

[15] SILVA, 2002: 58-59.

[16] TAVARES, 2009: 99-101.

[17] NOGUEIRA, 2007: 217.

[18] SANTA MARIA, 1697: 228.

[19] VITRÚVIO, 2009: livro I, cap. VII, 54.

[20] VITRÚVIO, 2009: livro III, cap. IV, 119.

[21] NOGUEIRA, 2007: 222.

[22] BORROMEO, 1985: 5.

[23] Francisco Velasquez é apontado como autor do projeto do Mosteiro de Grijó, datado de 1572.

[24] VITRÚVIO, 2009: livro III, cap. I, 109.

[25] Hans Vredeman de Vries, Architectura oder Bauung der Antiquen auss dem Vitruvius.

[26] Data de conclusão da capela-mor da Igreja da Misericórdia do Porto.

[27] NOGUEIRA, 2007: 154.

[28] BORROMEU, 1985: 15.

[29] BORROMEU, 1985: 13.

[30] ALVES, 2014: 255.

[31] SANTOS, 1989: 89.

[32] NOGUEIRA, 2007: 137-138.

Por Helena Wagner Lourenço Ferreira

(Doutoranda no PPGH/UERJ-FFP, mesmo programa no qual a autora defendeu a dissertação “O papel dos partidos políticos nas reformas da previdência de 1998 e 2003“)

 

Construção de um discurso hegemônico

 

Antonio Gramsci ensina que a dominação não está apenas no campo da coerção, ou seja, do uso da violência, mas também se utiliza da produção de consenso, formando ambas, coerção+consenso a hegemonia. Dessa forma, pode-se verificar que a reforma da previdência ocorrida em 1998 houve a utilização de coerção e consenso. Através de um processo de convencimento, feito de maneira processual, a mesma foi aceita pela sociedade, embora tratando-se de retirada de direitos conquistados pois, segundo Cox, “a hegemonia é suficiente para garantir o comportamento submisso da maioria das pessoas durante a maior parte do tempo” (COX, 2007, p.105).

 

Diante disso, Gramsci trabalha com a ideia de Estado Ampliado, ou seja, sociedade civil mais sociedade política, isto é, hegemonia revestida de coerção, não identificando, portanto, o Estado apenas como um aparelho repressivo. Assim, a hegemonia não é construída só a partir do consenso, mas também a partir da coerção. Coutinho explica

 

O Estado em sentido amplo, “com novas determinações”, comporta duas esferas principais: a sociedade política (que Gramsci também chama de “Estado em sentido estrito” ou de “Estado-coerção”), que é formada pelo conjunto dos mecanismos através dos quais a classe dominante detém o monopólio legal da repressão e da violência […] e a sociedade civil, formada precisamente pelo conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e/ou difusão das ideologias, compreendendo o sistema escolar, as igrejas, os partidos políticos, os sindicatos, as organizações profissionais, a organização material da cultura (revistas, jornais, editoras, meios de comunicação de massa), etc (COUTINHO, 1999, p. 76 e 77).

 

No intuito de construir a hegemonia, os partidos políticos têm o papel de moldarem as opiniões do proletariado, formando uma vontade coletiva, os fazendo crer que será melhor para eles apoiar aquilo que os partidos querem, ainda que seja a diminuição dos seus direitos conquistados pela Constituição do Brasil de 1988. De acordo com Marinho,

 

Ao partido caberá a “formação de uma vontade coletiva nacional-popular,da qual (…) é ao mesmo tempo o organizador e expressão ativa e atuante” e também a missão de preparar a “reforma intelectual e moral” (MARINHO, 2006, p. 58)

 

Essas ideias não são revolucionárias, mas têm origem no país que estabelece a hegemonia, conforme afirmado por Cox

 

o grupo portador de novas idéias não é um grupo social autóctone ativamente engajado em construir uma nova base econômica com uma nova estrutura de relações sociais. É um estrato intelectual que aproveita idéias originadas de uma revolução econômica e social ocorrida anteriormente no estrangeiro […] em geral, as instituições e regras internacionais se originam do Estado que estabalece a hegemonia (COX, p. 115 e 119)

 

Neto também corrobora esse entendimento

 

[…] a imposição para a adoção da mesma cartilha [neoliberal] veio quase sempre de fora. Mas, encontrou no interior das nações lideranças classistas dispostas a adotar pontos do receituário neoliberal que se adequavam aos seus interesses. Este foi o caso do Brasil (ALMEIDA, 2012, p. 144)

 

Dessa forma, aos poucos, a classe operária passa a ser a favor de privatizações, neoliberalismo, reformas tributárias, trabalhistas, previdenciárias, sem perceber que, na verdade, as mudanças prejudicam a sua classe, interessando, apenas, à classe dominante. De acordo com Gramsci,

 

As ideias e opiniões não “nascem” espontanemanete no cérebro de cada indivíduo: tiveram um centro de formação, de irradiação, de difusão, de persuasão, um grupo de homens ou inclusive uma individualidade que as elaborou e apresentou sob a forma política de atualidade (GRAMSCI, 1989, p. 88).

 

Segundo esse autor, o convencimento da sociedade a algo se completa através do trabalho dos “aparelhos privados de hegemonia”. Ou seja, utilização de jornais, revistas, escolas, que realizam uma reforma intelectual na população, fazendo com que esta passe a querer aquilo que esses aparelhos desejam. Pois,

 

a elaboração nacional unitária de uma consciência coletiva homogênea requer múltiplas condições e iniciativas. A difusão, por um centro homogêneo, de um modo de pensar e de agir homogêneo é a condição principal […] (GRAMSCI, 2001, p. 205)

 

Em que pese esses veículos se apresentarem como “neutros”, na verdade eles funcionam como partidos, não no sentindo stricto da palavra, mas no sentido lato de “ter um lado”, não sendo imparcial, mas trabalhando para convencer o interlocutor. Assim, Marinho declara que

 

Antonio Gramsci distingue duas formas de partido: o político e o ideológico. O partido ideológico está dentro do conjunto dos aparelhos privados de hegemonia – imprensa, círculos, associações, clubes. O partido tende a transformar cada indivíduo em intelectual, mais especificamente em dirigente, ou seja, intelectual capaz de desempenhar sua “função diretiva e organizativa, isto é, educativa ou intelectual” (MARINHO, 2006, p. 69)

 

A esse respeito, Coutinho conceitua “aparelhos privados de hegemonia” como “organismos de participação política aos quais se adere voluntariamente (e, por isso, “privados”) e que não se caracterizam pelo uso da repressão” (COUTINHO, 1999, p. 76). Ou seja, são privados, mas são voltadas ao interesse público, se dirigindo a este, possuindo função pública, se tornando um formador de opinião.

 

Esses aparelhos declaram que se, por exemplo, o neoliberalismo e as reformas previdenciárias forem implementadas, haverá crescimento econômico, combate à miséria, progresso, os recursos remanescentes serão distribuídos para outras áreas, como saúde e educação, porque a sua finalidade é moldar na sociedade a opinião de que a reforma da previdência, por exemplo, é boa e necessária. Pois,

 

[…] sua finalidade é modificar a opinião média de uma determinada sociedade, criticando, sugerindo, ironizando, corrigindo, renovando e, em última instância, introduzindo “novos lugares-comuns” (GRAMSCI, 2001, p. 208)

 

Fernando Henrique Cardoso, afirmou

 

A parceria com a iniciativa privada na infra-estrutura econômica abre espaço para que o Estado invista mais naquilo que é essencial:  em saúde, em educação, em cultura, em segurança. Em suma, para que o Brasil invista mais no seu povo […] (CARDOSO, 1994, p. 21)

 

E, em seu discurso de posse, em 1995 declarou a necessidade da utilização dos aparelhos privados de hegemonia,

 

esta verdadeira revolução social e de mentalidade só irá acontecer com o concurso da sociedade […] precisamos costurar novas formas de participação da sociedade no processo das mudanças. Parte fundamental dessa tomada de consciência, dessa reivindicação cidadã e dessa mobilização vai depender dos meios de comunicação de massa (CARDOSO, 1995, p. 23)

 

E, diante desse trabalho, aos poucos, os cidadãos vão se convencendo do discurso que a classe dominante quer, atuando como uma “massa de manobra”. De acordo com Gramsci,

 

A massa é simplesmente de “manobra” e é “conquistada” com pregações morais, estímulos sentimentais, mitos messiânicos de expectativa de idades fabulosas, nas quais todas as contradições e misérias do presente serão automaticamente resolvidas e sanadas (GRAMSCI, 1989, p. 24)

 

Como já exposto, os jornais são aparelhos privados de hegemonia, atuando para a construção da mentalidade do proletariado de que a reforma da previdência se fazia necessária e urgente. No entanto, isso não impede que o historiador problematize os fatos e vários ângulos da notícia, podendo, esses periódicos serem utilizados como fontes de pesquisa. Por essa razão, algumas reportagens da Folha de São Paulo serão utilizadas no presente trabalho.

 

O PSDB, através do então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, atuou como um verdadeiro partido político, sendo líder da construção do discurso hegemônico pró-neoliberalismo, que culminou em privatizações e, também, na reforma da previdência iniciada em 1995. Durante toda a sua campanha eleitoral, o assunto era o orçamento apertado, o desequilíbrio financeiro do setor público, falência do modelo previdenciário, necessidade de diversas reformas constitucionais, disseminando o medo, levando a população a crer que se não fossem realizadas mudanças urgentes na Constituição não haveria dinheiro para pagar aposentadoria, inexistiria possibilidade de aumento do salário mínimo, etc. Em seu discurso de posse FHC declarou

 

Ao escolher a mim para sucedê-lo [Itamar Franco], a maioria absoluta dos brasileiros fez uma opção pela continuidade do Plano Real, e pelas reformas estruturais necessárias para afastar de uma vez por todas o fantasma da inflação. A isto eu me dedicarei com toda a energia, como presidente […]

o movimento por reformas que eu represento não é contra ninguém. Não quer dividir a Nação. Quer uni-la em torno da perspectiva de um amanhã melhor para todos.

 

Ainda no mesmo discurso, a questão do convencimento consta também na fala de FHC:

 

buscando sempre os caminhos do diálogo e do convencimento […] temos o apoio da sociedade para mudar (CARDOSO, 1995, p. 13)

 

E, em outro discurso, fica clara a disseminação de que se não houver reforma constitucional haverá o desequilíbrio do sistema e impossibilidade de pagamentos e aumento do salário mínimo, causando medo na população, convencendo-na da necessidade das mudanças:

 

O Fundo Social de Emergência […] é um arranjo transitório […] se ele não for substituído por medidas permanentes, o precário equilíbrio fiscal – ou o “desequilibrio controlado” como diz o ministro Sérgio Cutollo sobre as contas da Previdência – dará lugar a um desequilíbrio aberto já em 96 […] Nem há como pensar em aumento real do salário mínimo enquanto o valor dos benefícios previdenciários estiver vinculado a ele (CARDOSO, 1994, p. 24 e 30)

 

No entanto, na contramão da argumentação presidencial, o Tribunal de Contas da União (TCU) realizou auditoria nas contas da previdência e em abril de 1995 declarou, através de relatório, que em 1994 a previdência não teve déficit, mas sim, um superávit de R$ 1,8 bilhão de reais e ainda que “o INSS vem tendo superávit de caixa nos últimos três anos”( O Globo, 18. abr. 1995, p. 5). Após esse relatório, o ministro da previdência, Reinhold Stephanes (PFL), informou que esse valor é considerado reserva de caixa(Ibid, 1995, p. 5). Ou seja, em nenhum momento o ministro confrontou a informação trazida pelo TCU, o que leva a crer que de fato havia superávit e não déficit no sistema em questão, ao menos em 1994, permitindo-se, portanto, concluir a respeito da ausência de necessidade da reforma.

 

E  ainda, apesar do aumento do salário mínimo e, consequentemente, a elevação do valor das aposentadorias e pensões, o secretário-executivo da Previdência, Luciano Oliva, declarou que a Previdência Social terá superávit em 1995 e não déficit (O Globo, 31mai. 1995, p. 7), o que, mais uma vez, corrobora o relatório do TCU. Tudo leva a crer que FHC assumiu o poder Executivo sem déficit no sistema previdenciário, sem necessidade de reforma, mas devido à imposição da construção da hegemonia neoliberal, realizou a mudança no sistema previdenciário, prejudicando a classe dominada, ou seja, a classe mais desfavorecida, como os trabalhadores.

 

Discurso hegemônico pró-neoliberalismo em âmbito internacional

 

A construção de um discurso hegemônico pró-neoliberalismo não ocorreu apenas em âmbito nacional, mas também a nível internacional. As organizações multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial também são utilizadas como aparelhos privados de hegemonia, sendo usados pelos Estados Unidos para que os países subalternos implantassem a nova ordem internacional. Dessa forma, nas décadas de 1950 a 1980, os países da América Latina se desenvolviam através de financiamento a juros baixos. No entanto, tendo em vista a segunda crise do petróleo, ocorrida em 1979, houve o aumento dos juros impostos pelo FED (Banco Central dos Estados Unidos), como uma política de defesa do dólar, que foi acompanhado por diversos outros países, como a Inglaterra.

 

Devido ao aumento dos juros, os países em desenvolvimento que haviam realizado empréstimos tiveram dificuldades para honrar com os seus pagamentos, ocorrendo aumento da inflação, queda de renda, aumento do desemprego e, em 1982, o México declarou moratória. Ou seja, estava-se diante da chamada “crise da dívida externa”. Belluzzo e Galipolo afirmam:

 

Em Belgrado, na reunião do FMI em 1979, o presidente do FED – o Banco Central americano – Paul Volcker, deixou os europeus falando sozinhos, voltou para os Estados Unidos e deflagrou o famoso choque de juros de outubro de 1979, alçado até 20% em abril de 1980 e provocando uma quebradeira geral, sobretudo dos endividados, como o Brasil (BELUZZO, 2017, p. 27)

 

Diante desse cenário, os países recorreram a empréstimos junto ao FMI (instituição pública, mantida através do financiamento e voto de seus países membros, onde apenas os Estados Unidos tem poder de veto, dando a este país extrema vantagem diante dos outros).  Quanto a isso Stiglitz expõe que,

 

O FMI é uma instituição pública, mantida com dinheiro fornecido pelos contribuintes do mundo todo. É importante lembrar disso porque o Fundo não se reporta diretamente nem aos cidadãos que o financiam nem àqueles cuja vida ele afeta. Em vez disso, reporta-se aos ministros da fazenda e aos bancos centrais dos governos do mundo […] mas as principais nações desenvolvidas comandam o espetáculo, sendo que somente um país, os estados Unidos, tem poder de veto (STIGLITZ, 2003, p. 39)

 

Esses empréstimos vinham acompanhados de exigência do cumprimento de algumas condições, como ajuste fiscal, diminuição da máquina do Estado, privatizações e, segundo o referido autor, quem “não seguir as regras do jogo, pode ser excluído do sistema de crédito internacional” (SCHWARTZ, 2008, P. 257), não permitindo ao país receptor da ajuda financeira governar a sua nação implantando as medidas que ache cabíveis. Em vez disso, a política econômica a ser colocada em prática já está pré-determinada pela hegemonia do capital financeiro. Dessa forma, o FMI foi usado como uma forma de universalizar o discurso hegemônico e impor o modelo econômico neoliberal aos países endividados. Verifica-se que

 

No nível exclusivo da política externa, as grandes potências têm uma liberdade relativa de determinar suas políticas externas em resposta a interesses nacionais; as potências menores têm menos autonomia. A vida econômica das nações subordinadas é invadida pela vida econômica de nações poderosas […] o Estado dominante encarrega-se de garantir a aquiescencia de outros Estados de acordo com uma hierarquia de poderes na interior da estrutura de hegemonia entre os Estados (COX, 2007, p. 114 e 120)

 

Pontua-se, ainda, que em 1989 ocorreu o Consenso de Washington que consistiu em um seminário com representantes de instituições financeiras como o FMI, Banco Mundial e o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, no intuito de “ajudar” a economia dos países em desenvolvimento, para que estes conseguissem arcar com os seus compromissos financeiros. Ou seja, na verdade, o intuito da reuinão foi impedir que os bancos privados recebessem um calote e o sistema financeiro internacional sofresse prejuízo. Nessa encontro, ficou determinado que os países ajudados financeiramente deveriam implementar dez medidas: disciplina fiscal, redução dos gastos públicos, reforma tributária, determinação de juros e câmbio pelo mercado, liberalização do comércio, investimento estrangeiro direto sem nenhuma restrição, privatização das empresas estatais, desregulamentação e respeito à propriedade intelectual. A respeito do assunto Rafael Vaz da Motta Brandão afirma que

 

[…] o congresso realizado na capital dos EUA, permitiu a elaboração de um conjunto de medidas neoliberais que deveriam ser seguidas pelos países da América Latina em troca da continuidade do financiamento por parte das agências e organismos internacionais (FMI e Banco Mundial). A esse conjunto de medidas deu-se o nome de “consenso de Washington”. Basicamente, podemos afirmar que o consenso de Washington fazia pate de amplo conjunto de reformas neoliberais que estava centrado na desregulação dos mercados, na abertura comercial, na liberalização dos fluxos de capitais, em uma rigorosa política monetária e fiscal e, fundamentalmente, na redução do papel do Estado nos países latino-americanos (BRANDÃO, 2013, p. 61).

 

Verifica-se que as “orientações”, em termos práticos, não passavam de verdadeiras imposições, construindo-se um discurso hegemônico mundial a favor de contrarreformas, ou seja, mudanças contrárias aos interesses da classe trabalhadora, transformando esse padrão em um modelo a ser imposto aos países latino-americanos. A esse respeito Cox afirma

 

[…] uma hegemonia mundial é, em seus primórdios, uma expansão para o exterior da hegemonia interna (nacional) estabelecida por uma classe social dominante. As instituições econômicas e sociais, a cultura e a tecnologia associadas a essa hegemonia nacional tornam-se modelos a serem imitados no exterior. Essa hegemonia expansiva é imposta aos países mais periféricos como uma revolução passiva (COX, 2007, p. 118)

 

Vale ressaltar que, segundo Stigliz, essas instituições são controladas pelos interesses dos países industrializados mais ricos do mundo, onde opera a hegemonia do capital financeiro, não representando, portanto, as pretensões dos países que são obrigados a realizarem as reformas estruturais em troca de benefício financeiro. Nas palavras de Stiglitz:

 

As instituições são controladas não só pelos países industrializados mais ricos do mundo, mas também pelos interesses comerciais e financeiros desses países […] embora quase todas as atividades atuais do FMI e do Banco Mundial sejam no mundo em desenvolvimento (com certeza, todas relativas a empréstimos), elas são conduzidas por representantes das nações industrializadas (por acordo tácito ou de praxe, o diretor do FMI é sempre europeu e o diretor do Banco Mundial, norte-americano). Eles são escolhidos a portas fechadas e nunca foi considerado pré-requisito  que esse profissional tenha qualquer experiência no mundo em desenvolvimento. As instituições não são representativas das nações a que servem […] A instituição, na verdade, não tem a pretensão de ser uma especialista em desenvolvimento STIGLITZ, 2003, p. 46 e 63)

 

Desta forma, verifica-se que os Estados Unidos, utilizando essas organizações como instrumento de poder, como meio de disseminação de hegemonia, determina a política que será implantada nos outros países, que, juntamente com governos classistas, facilita a imposição da hegemonia que os Estados Unidos quer. Segundo Cox

 

As instituições internacionais também desempenham um papel ideológico. Elas ajudam a definir diretrizes políticas para os Estados e a legitimar certas instituições e práticas no plano nacional, refletindo orientações favoráveis às forças sociais e econômicas dominantes (COX, 2007, p. 120)

 

Diante disso, é notória a rendição do Brasil a essas instituições financeiras, basta verificar a quantidade de empréstimos que o então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, conseguiu junto ao FMI. Segundo o jornal Folha de São Paulo

 

FHC fechou três acordos com o FMI […]Durante o governo Fernando Henrique Cardoso, foram fechados outros dois acordos com o FMI […] o primeiro, foi fechado em novembro de 1998 […] o acordo fechado em novembro de 1998 previa metas de ajuste fiscal até o final de 2001. Foram definidas metas de superávits primários (receitas menos despesas sem incluir despesas com juros) a cada trimestre e todas foram cumpridas. A cada revisão do acordo, feita pela missão técnica do FMI, o país tinha direito a um novo saque dos recursos disponibilizados. O Brasil não chegou a sacar todos os recursos a que tinha direito nesse acordo. Apesar disso, em setembro de 2001[…] as turbulências do mercado internacional […] forçaram o governo brasileiro a assinar um novo acordo com o Fundo. Esse novo acordo […] cancelou o crédito restante do acordo de 1998 […] o governo brasileiro teve que recorrer ao FMI em junho [do ano de 2002] (Folha de São Paulo, 07 ago. 2002).

 

Após emprestar o dinheiro e definir as metas, o FMI realiza visitas para verificar se estas estão sendo cumpridas. É possível perceber que todas as medidas impostas pelo Fundo foram cumpridas durante o governo mencionado. Se elas não haviam sido satisfeitas, não seria viável os recebimentos posteriores, pois “se um país não puder apresentar um número mínimo de parâmetros, o FMI suspende a ajuda e, geralmente quando o faz, outros doadores também o fazem” (STIGLITZ, 2003, p. 56).  Além disso, segundo Brandão, “o maior doador da campanha de FHC em 1998 foi o grupo Itaú” (BRANDÃO, 2003, p. 107), demonstrando como o governo brasileiro estava “jogando o jogo” dos interesses dos bancos e do sistema financeiro internacional, não governando conforme os interesses da população, se permitindo ser refém da imposição do discurso hegemônico pró-neoliberalismo.

 

Ao se construir o discurso pró-neoliberalismo, no século XX, as promessas eram de crescimento econômico, progresso, combate à miséria, mas não foram cumpridas. O que se viu em diversos países foi aumento do desemprego, crises financeiras cada vez mais frequentes, elevação da pobreza, conforme apontado por Stigliz.

 

Pode-se até considerar que o neoliberalismo foi bem sucedido no que diz respeito à redução da inflação, trazendo uma estabilidade macroeconômica, de uma maneira geral, aos países que o implementaram. Contudo, o preço que a sociedade paga por esse benefício é bem caro, pois, o resultado dessas implementações de medidas de caráter liberal tem sido retirada de direitos, através de contrarreformas tributárias, trabalhistas, previdenciárias, privatizações, aumento do desemprego, desigualdade, pobreza, caos político e social, recessão, redução de gastos sociais, segundo Pires. No entanto, nada disso atinge negativamente o sistema financeiro porque,

 

Partindo do pressuposto de que só o capital concentrado cria riquezas, isto é, aumento de capital significa investimentos, o desemprego, ou melhor, a taxa natural de desemprego, que faz diminuir os salários, garante maior taxa de lucro e, portanto, maior acumulação de capital. Desta forma, o desemprego não é uma consequência indesejada da economia neoliberal, mas um de seus componentes estratégicos (PIRES, 1999, p. 43).

 

E Varoufakis completa

 

É como se as sociedades capitalistas fossem desenhadas para gerar crises periódicas, que vão piorando na medida em que retiram o trabalho humano do processo de produção e o pensamento crítico do debate público (VAROUFAKIS, 2017, p. 48).

 

Conclusão

 

Diante do exposto, verifica-se que Gramsci entende que o discurso hegemônico é construído através de coerção e consenso. Através da atuação dos partidos políticos, reafirmados pela utilização dos aparelhos privados de hegemonia, ocorre uma reforma intelectual na classe subalterna e esta, por sua vez, passa a querer aquilo que a classe dominante deseja, se comportando como uma massa de manobra.

 

Dessa forma, a classe dominada passa a ser a favor de privatizações, contrarreformas, neoliberalismo, etc, sem perceber que essas mudanças só os prejudicam, pois retiram direitos consagrados na Constituição, ocasionando aumento do desemprego e da pobreza, por exemplo. Nesse contexto, no caso brasileiro, verifica-se que a reforma da previdência de 1998, durante o governo de FHC foi consequência da construção do discurso hegemônico pró-neoliberalismo.

 

A construção da hegemonia não se dá apenas no campo nacional, mas também em âmbito internacional. Através do uso das instituições multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, os países em desenvolvimento se vêem obrigados a implantar a nova ordem internacional. Pois, ao solicitarem empréstimos a essas organizações, são obrigados a cumprirem diversas exigências que culmina na retirada de direitos da sociedade através de contrarreformas, privatizações, diminuição da máquina do Estado, entre outras de caráter liberal.

 

Diante da quantidade de empréstimo que FHC conseguiu com o FMI durante o seu governo, bem como por ter sido um banco o maior doador da sua campanha, é indubitável sua rendição à dominação da hegemonia do capital financeiro, demonstrando que a reforma previdenciária realizada durante o seu governo não passou de mais uma exigência do grande capital e da construção da hegemonia pró-neoliberal em âmbito internacional que não encontrou resistência durante o seu governo.

 

Referências bibliográficas

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VAROUFAKIS, Yanis. O minotauro global: a verdadeira origem da crise financeira e o futuro da economia. São Paulo: Editora autonomia literária, 2017.

Por Sonia Rosa Tedeschi

Doctora en Historia por la Universidad Pablo de Olavide (Sevilla, España). Profesional Principal del Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas. Docente Investigadora de la Facultad de Humanidades y Ciencias, Universidad Nacional del Litoral. Vice Directora del Centro de Investigaciones en Estudios Culturales, Educativos, Históricos y Comunicacionales, FHUC, UNL, República Argentina. Coordinadora General del Comité Académico Historia Regiones y Fronteras, AUGM.

E-mail: rnsoniat@santafe-conicet.gov.ar

 

Introducción

La disciplina Historia tiene un papel relevante en la construcción de las identidades nacional y regional. Desde su profesionalización ha intervenido en esta construcción a través de distintas instituciones, actores sociales y mecanismos relacionados con la producción de conocimiento histórico, la relación entre academia y política, el diálogo y la discusión crítica con la literatura y las manifestaciones artísticas, la enseñanza en los distintos niveles educativos, la divulgación, entre otros. El problema que nos convoca hoy a la reflexión permite un abordaje variado desde distintos ángulos y ejes temáticos. Aprovechando la circunstancia reciente del Bicentenario de la Independencia de las Provincias Unidas en Sudamérica declarada el 9 de julio de 1816, optamos por abordar ese problema a través de las conmemoraciones en sus formas de evocación, las cambiantes asignaciones de sentido, las disputas por la(s) memoria(s). En el presente ensayo, el campo de aplicación de este ejercicio es, principalmente, la conmemoración del Centenario de esa Independencia. En el desarrollo nos centramos en algunas ideas y comprobaciones que refieren a aspectos históricos, políticos, culturales, materiales, simbólicos, marcados por la lucha de intereses e identidades de distinta naturaleza patentes en las celebraciones oficiales que se organizaron en torno a tan importante acontecimiento. Luego, introducimos algunos elementos muy generales correspondientes a las celebraciones del Centenario de la Independencia del Brasil en 1922, en función del examen del caso argentino. Ponderamos las ventajas heurísticas de una perspectiva comparada de tipo asimétrico, solo esbozada en este ensayo, y que pretendemos sistematizar y profundizar en un avance futuro a fin de evaluar mejor los matices entre estas dos experiencias históricas en los inicios del siglo XX

 

Conmemorar: sentidos, usos, representaciones, disputas.
Los procesos de independencia que se evocan en las conmemoraciones centenarias presentan una extrema complejidad en su desarrollo; fueron tiempos de gran conmoción social, donde se mezclaron sueños, tragedias y grandes desafíos. Procesos históricos, hechos, actores sociales… ¿Cómo se los recuerda? ¿Cómo se convoca a esa memoria? ¿Cuáles son los marcos sociales que orientan la memoria del grupo? Partiendo del concepto de Maurice Halbwachs y de su reelaboración hecha por el antropólogo Joel Candau, reconocemos a esos marcos como portadores de la visión del mundo y la representación general de la sociedad, de sus necesidades y valores los que, en un enfoque comparativo, revelan las peculiaridades de cada matriz cultural (CANDAU, 2006, p. 65-68). En cada conmemoración el pasado recobra su sentido activo, es un momento de evocación, de efervescencia de sentimientos colectivos relacionados con la pertenencia y con las identidades. Los lugares de memoria y las representaciones en su más amplio espectro recobran su poder de movilizar a las memorias sociales y dar nuevos sentidos a lo que se recuerda. Pero esas conmemoraciones no son para nada ingenuas sino que plantean distintos móviles, intencionalidades, intereses, usos políticos, la(s) memoria (s) son selectivas, se discuten y disputan. Bajo sus fastos suelen esconderse o disimularse graves situaciones sociales, se exageran algunos logros de los gobiernos, se muestran versiones idílicas de esos hechos o de esos personajes; las figuras de los héroes patrios, los héroes de bronce, las conductas ejemplares aparecen fortalecidas. (JELIN, 2002, p. 39-44). En sus representaciones festivas, con mayor o menor rigor histórico, emerge claramente una memoria oficial que se instala desde el Estado coincidente o no con las memorias individuales y las colectivas. En este sentido no hay una memoria sino varias, memorias de vieja generación y de nueva generación, memorias del poder y memorias del pueblo.

 

Los rituales cívicos que interesan en este ensayo, Argentina 1916 y Brasil 1922, fueron momentos culminantes de una cadena de celebraciones que tenía antecedentes ya en el siglo anterior. Una cadena formada por eslabones de una memoria oficial reforzada, entre otras razones, por la gran afluencia inmigratoria extranjera especialmente estimulada por los gobiernos desde mediados del XIX que, con su presencia, demandas y acciones organizadas parecía hacer temblar los pilares de las tradiciones nativas y la nacionalidad. En efecto, los inmigrantes fundaron sus propias instituciones celebrando las fechas patrias de sus países de origen con fiestas, erección de monumentos y despliegue de símbolos; las asociaciones étnicas y la prensa planificaron acciones de preservación cultural y lingüística y hasta con aspiraciones, en ciertos casos, de participación política. Así, estas culturas diferenciadas fueron percibidas como una potencial amenaza tanto para las nacionalidades argentina y brasilera en construcción como para ciertas identidades locales y regionales de más larga data (BERTONI, 1992, p. 77-80. SANTORO de CONSTANTINO, 2007, p. 61-63). Podemos dar dos ejemplos de la respuesta generada a fines del siglo XIX ante esta percepción, conectados por la literatura, la historia y la tradición y en distintas escalas: nacional y regional. En Argentina, el poema Martín Fierro de José Hernández fue publicado en 1872; el protagonista central es un gaucho. Los intelectuales Ricardo Rojas y Leopoldo Lugones rescataron este poema y lo elevaron a la categoría de épica fundante de la nacionalidad argentina. Fierro fue caracterizado como “refugio de virtudes definitorias de nuestro ser nacional y depositadas en un pasado del cual el inmigrante quedaba excluido”. La creación de este mito de significación colectiva pretendió defender a la “argentinidad”, como conciencia e ideal de un pueblo nuevo que se encontraba en formación, del peligro de disolución que traía aquella oleada extranjera. (ROJAS, 1922, p. 13; GRAMUGLIO, SARLO, 1980, p. 15-19). En cuanto al Brasil, la investigación de María Medianeira Padoin sobre la identidad regional en el extremo sur brasilero y en el Uruguay plantea la construcción de la figura del gaúcho como arquetipo de identidad de la pampa riograndense. Esta fue una respuesta de la elite intelectual y política local que se veía desafiada por la colonización europea, instalada en las áreas serranas del Estado de Río Grande del Sur. (PADOIN, 1997, p. 104-107)

 

Argentina, 1916.
El calendario cívico argentino está marcado por las fechas patrias de la revolución del 25 de mayo de 1810 y la declaración de la Independencia el 9 de julio de 1816. En sus recordaciones anuales, es muy difícil erradicar de la sociedad la idea de fechas estancas y con escasa relación. En nuestras intervenciones académicas y de divulgación reforzamos la necesidad de articularlas y analizarlas en conjunto, considerando incluso los acontecimientos previos que fueron preparando el terreno para se produzcan revoluciones a favor de derechos locales, como la vacancia del poder real por la prisión del rey español Fernando VII a manos de los franceses. En 1810, la Junta revolucionaria en Buenos Aires asumió el derecho al autogobierno, pero sin romper aún los lazos con España. Esa Revolución de Mayo habilitó el planteo de independencia, que se concretó seis años después a través de un acto jurídico realizado en el marco del Congreso General Constituyente reunido en Tucumán. Revolución e Independencia, como hechos y procesos, estuvieron contenidos en una década que trajo vertiginosos cambios, profundizó viejas diferencias y agregó nuevas tensiones. Podemos mencionar ciertos rasgos políticos transformadores en esos diez años, los que continuaron incidiendo fuertemente en la historia pos independiente: -las disputas en distintos escenarios entre centralismo, autonomismo, unión confederal; -los gobiernos centrales con sede en Buenos Aires y su imposición de obediencia al resto de las ciudades ex virreinales por la vía militar; un incremento y ampliación de la participación en la vida política; cierta maduración de un lenguaje político de corte liberal que coexistía con viejos principios ordenadores de la convivencia social; -la necesidad de regular la vida social y política a través de constituciones.

 

La declaración de independencia es un hecho histórico central contextualizado en ese proceso revolucionario rioplatense por lo cual no podemos desagregarla del mismo pero tampoco de las otras revoluciones hispanoamericanas y su dimensión atlántica. Cabe preguntarse ¿Cuál es el sujeto colectivo que se pronunció por la Independencia? Hablamos de la independencia Argentina, cuando en ese tiempo no estaban constituidos el Estado y la Nación tal como los conocemos hoy. Los diputados reunidos en Tucumán representaban a las Provincias Unidas en Sudamérica, un conjunto de pueblos, antiguas villas y ciudades ex – virreinales, situados en el litoral y el interior rioplatense sumando también a Mizque, Charcas y Chichas en el Alto Perú, conformando todo un territorio muy amplio. En esos tiempos no existía una visión acotada de la independencia, sino que estamos ante un acto jurídico que abría las posibilidades de sumarse a todos aquellos pueblos que ponderaran a la declaración como una herramienta legítima para emanciparse del dominio español. De ese conjunto las provincias reunidas en la Liga de los Pueblos Libres, liderada por José Artigas, no participaron del Congreso por considerarlo útil al proyecto al cual se oponían: el centralismo porteño. Esta asociación política sostenía un proyecto alternativo, también partidario de la independencia de España, basado en principios de soberanía de los pueblos, libertad e igualdad y en una visión más amplia, su reunión en un sistema constitucional confederal de rasgos republicanos. (CHIARAMONTE, 1997, p. 155-159; p. 165-169. FREGA, 2007, p. 194-212)

 

Pero más allá de los discursos, la independencia necesitaba de la guerra: “La guerra nos es del todo necesaria”1 , así lo manifestó el gobierno revolucionario entendiendo que la suerte del nuevo régimen se jugaba en los campos de batalla, había que formar ejércitos competentes y definir las campañas armadas contra los españoles, plan en el que José de San Martín tuvo una actuación central en Cuyo, Chile y Perú y a quien se lo recuerda más por su éxitos militares que por su faceta política, sus ideas libertarias y su profunda convicción independentista.

 

¿Cómo se conmemoró ese proceso independentista en Argentina? En Buenos Aires, los festejos por los 100 años de la revolución de mayo, 1910, fueron realmente fastuosos con la intención de mostrar la prosperidad del país y las ventajas de invertir en él pero también de celebrarse a sí misma como una urbe moderna y pujante. En contraste, los actos organizados en 1916 fueron mucho más sobrios. La llamada Gran Guerra, que se desarrollaba principalmente en Europa, tuvo impacto negativo en la economía argentina: interrupciones de circuitos comerciales y del capital europeo con fuerte impacto en las actividades económicas internas. Las elecciones de abril habían consagrado a Hipólito Irigoyen del partido Unión Cívica Radical, mediante la novedad del voto universal, secreto y obligatorio; un triunfo de un partido con representación de clases medias y populares que desplazaba al régimen conservador en el poder desde 1880. Esos fuertes cambios políticos se dieron en medio de un clima social agitado por el desempleo, el alza del costo de vida y la reducción de salarios, que abrió un ciclo de grandes huelgas durante todo el gobierno de Irigoyen. Hechos y procesos situados en un espectro ideológico marcado por el positivismo, las corrientes de libre pensamiento, el anarquismo, el hispanismo (LOBATO, 2000).

 

¿Cuáles fueron las características de la organización, festejos y eventos? La partida presupuestaria de gastos fue poco abultada y se destinó a la realización de actos públicos de distinta relevancia, de Congresos Americanos sobre Niñez, Bibliografía e Historia, el de Ciencias Sociales en Tucumán, la publicación de las Actas secretas del Congreso de Tucumán, la Exposición Internacional de Ganadería, entre otros. En la semana central de la conmemoración, la llegada de representantes extranjeros, que venían en su mayoría de países vecinos, fue escasa. La Gran Guerra que iba por su tercer año impidió que se repitiera la gran concurrencia de embajadores europeos de 1910. Una línea de buques de las armadas de Brasil y el Uruguay rindió su homenaje, se incluyeron desfiles cívicos militares y adornos alegóricos en el espacio público. Pero, no todo era fiesta. El mismo día 9 de Julio, se frustró un atentado contra la vida del Presidente Victorino de la Plaza en el palco de la Plaza de Mayo; el atacante que se identificó como anarquista fue apresado. La situación de agitación social y el peligro de posibles ataques anarquistas fueron factores que hicieron incrementar las medidas preventivas y de vigilancia oficial, tanto en los preparativos como durante los actos centrales: las movilizaciones masivas debían estar bien controladas.

 

La palidez con que Buenos Aires afrontaría estos festejos fue tempranamente percibida en la ciudad donde se declaró la Independencia en 1816, Tucumán. En 1915, autoridades y círculos políticos e intelectuales prepararon un plan propio solventado prácticamente por el gobierno provincial y la ciudadanía. Pese a la crisis de los ingenios azucareros y las tensiones sociales, el plan fue impulsado disputándole la centralidad a la Capital porteña. En sus fundamentos se resaltaba la importancia de la región del Tucumán en la épica libertadora y el valor del Congreso independentista. Según la investigación de Soledad Martínez Zuccardi, las representaciones más poderosas de Tucumán para ese entonces eran, además, la de un jardín edénico, de naturaleza y geografía prodigiosas, cuna de la libertad y la independencia, provincia pujante, ciudad culta; esas imágenes no eran producto de una creación antojadiza y casual sino que poseían un carácter estratégico en relación con el proyecto modernizador pensado y desarrollado por aquellos círculos del poder y la cultura (2015, p. 67).

 

Los intelectuales tucumanos que le dieron argumentos y sustento al plan conmemorativo eran, en su mayoría, miembros de la llamada Generación del Centenario –Ernesto Padilla por entonces Gobernador de la provincia, también Miguel Lillo, Alberto Rougés, Juan B. Terán- que se reunían habitualmente en la Sociedad Sarmiento. Esta constituía un espacio cultural entre la literatura y la historiografía, dedicado a producciones de historia local y provincial y a promover los estudios superiores; uno de sus logros máximos había sido la creación de la Universidad de Tucumán en 1914. Según los discursos de esos intelectuales, la sociedad tucumana conservaba la tradición hispánica encarnada en el linaje de las clases dirigentes y del pasado de la provincia; el progreso económico del Norte no había mellado los auténticos valores patrióticos que eran reservorio moral en tiempos de crisis (PERILLI, 2010; MARTÍNEZ ZUCCARDI, 2015) Así lo reconocían, desde hacía tres décadas, las peregrinaciones patrióticas a la Casa histórica donde se había producido la jura: ese lugar de memoria, culto y veneración de los llamados Padres de la libertad había adquirido carácter sagrado y religioso. Año tras año, nutridas delegaciones de jóvenes estudiantes provenientes de centros universitarios, predominantemente de Buenos Aires y de Córdoba, llegaban a la Casa dejando placas y medallas recordatorias. (LACABERA, 1916, p. 352-358). Esa cultura de moral cívica y tradición patriótica le daba una impronta propia a la región y por tanto, había que aprovechar la conmemoración para exhibirla. De este modo, se apuntaló un proyecto intelectual y cultural con la creación de instituciones educativas, organización de archivos, edición de colecciones documentales y antologías poéticas, recopilación de tradiciones orales y folklóricas, además de una serie de actos y representaciones coincidentes con el 9 de Julio.

 

La tensión Nación – provincias venía manifestándose desde 1890 en varios aspectos: levantamientos y rebeliones armadas radicales contra el régimen conservador nacional, intervenciones federales y estado de sitio en las provincias díscolas, desigual distribución regional de la riqueza, entre otros. La turbulencia de estas relaciones se prolongó en los inicios del siglo XX, pero en la circunstancia del Centenario de la independencia, por sobre los enfrentamientos y disidencias, había que mostrar que las provincias también habían contribuido a la construcción del Estado y al progreso de la Nación. En este sentido, marchaban las historiografías locales y regionales marcando diferencias con una llamada historia nacional argentina que comenzó a perfilarse en el último tercio del siglo XIX. Esta historia asumía naturalmente la delimitación territorial del Estado soberano como algo dado ya desde los orígenes coloniales, estaba generalmente vertebrada en los acontecimientos ocurridos en Buenos Aires y solo le daba a esos aportes locales y regionales un lugar marginal y apenas sumario. La línea del tiempo de la revolución, la independencia y la organización nacional se llenaba prácticamente con los sucesos porteños, sucesos dotados de centralidad a los que los otros grupos sociales más allá del puerto se acomodaban, reaccionaban, aceptaban o resistían. Es decir que se trasvasaba ese proceso histórico en el largo siglo XIX a toda la Nación, tanto en sus características como en sus repercusiones y esto no parecía admisible para estos círculos políticos e intelectuales (QUIÑONES, 2009, p. 5-18). A esa tarea historiográfica se sumaron obras que, por fuera de la estricta disciplina histórica, tenían similares objetivos a esas historiografías locales y regionales. El Álbum de la Provincia de Tucumán en el Primer Centenario de la Independencia argentina fue publicado en 1916 bajo la dirección de Alberto Lacabera. En una elocuente Introducción, Lacabera consideró a Tucumán como predilecta de la Naturaleza y de la Historia y por ello, predestinada a todos los éxitos y a todas las conquistas. El libro está atravesado por una aclamación del civismo, el patriotismo y la gloria del pueblo tucumano. El progreso económico y el nivel de educación son aspectos bien destacados en una provincia que ya no se veía como la aldea que había descrito treinta años antes el intelectual francés Paul Groussac, en su célebre Memoria histórica del Tucumán (LACABERA, 1916; PERILLI, 2010). En cuanto a las representaciones sociales, la presencia indígena tuvo un reconocimiento en algunas de sus manifestaciones prehispánicas sin incluirlas específicamente en esa caracterización exaltada de principios del siglo XX.

 

En la provincia litoraleña de Santa Fe las características de los actos festivos, publicados en el Diario Santa Fe2, dan cuenta de la trama organizativa montada casi exclusivamente en la administración pública y los representantes políticos, que acapararon los discursos y los palcos. La escuela y el ejército aparecieron como genuinos ámbitos de tradición patria. La Iglesia también tuvo participación activa; aún en medio del debate entre católicos y anticlericales, mantuvo su Te Deum como expresión de ofrenda de la independencia a Dios, dando al hecho un significado que iba más allá de la autoridad y el poder de los hombres. La Comisión de festejos incluyó un programa de banquetes y cenas de gala en los más conspicuos clubes sociales de la ciudad. Sin embargo, la crítica situación social le obligó a contemplar otras acciones más ligadas a la beneficencia y a la prevención de posibles convulsiones sociales: entrega de pan, carne y ropa a los pobres; visitas a las cárceles públicas para repartir comida a los presos; conmutación de penas por parte del Gobernador.

 

Las escuelas públicas y colegios católicos fueron sede de actividades culturales muy diversas: asambleas patrióticas, encuentros musicales, representaciones de distintos géneros teatrales, reuniones literarias y declamaciones. A propósito de estas últimas expresiones, las poesías declamadas en los actos del 9 de julio de 1916 pusieron énfasis en la importancia de los triunfos militares que hicieron posible la independencia, destacando por ejemplo las primeras acciones exitosas de José de San Martín contra los españoles en la costa santafesina del Paraná, 1813. Así, de manera indirecta, Santa Fe –que no había asistido al Congreso de Tucumán por integrar la Liga de los Pueblos Libres- pretendía ganarse un lugar en esa historia, ser parte, no quedar fuera de la gloria.

 

Contemporáneamente a la publicación de Lacabera, Santa Fe produjo su propia obra magna: “La provincia de Santa Fe en el primer Centenario de la Independencia Argentina, 1816 – 1916” dirigida por Eduardo Güidotti Villafañe y con la participación entre otros, de Miguel Pereyra, Salvador Caputto –fundador de los diarios La Palabra y El Litoral- y el reconocido historiador local Ramón Lassaga (GÜIDOTTI VILLAFAÑE, 1917?) Los rasgos sobresalientes de sus redactores nos revelan sus formas de iniciación académica y cultural, el grado de profesionalización e influencias ideológicas: formación en la Academia de los Jesuitas y en la Universidad de Santa Fe, representación de una nueva intelectualidad que combina periodista – escritor – historiador, militancia en las filas de la Unión Cívica Radical triunfante en las urnas y en ciertos momentos rozando la prédica anarquista, adhesión prácticamente acrítica a los postulados hispanistas donde se rastreaba la herencia española para revalorizarla como raíz de tradición. Junto a esta afirmación hispanista se filtraba otra, la de Santa Fe como pionera en la organización de las colonias agrícolas habitadas por inmigrantes europeos desde 1856. Es decir que la identidad santafesina se amalgamaba entre españoles fundadores, caudillos federales que lucharon contra el centralismo porteño y hombres y mujeres llegados desde Europa que cambiaron la configuración de la pampa. Ahora era la pampa gringa, poblada de brazos generosos y laboriosos; un imaginario reproducido por círculos de historiadores, poetas y literatos que aún hoy es posible percibirlo.

 

Considerada una Summa histórica de Santa Fe, el voluminoso libro se abre con una sinopsis del periodismo en Argentina y sigue con capítulos de excelente escritura, factura informativa y estética, incorporando una gran cantidad de fotografías, al igual que el de Lacabera. Los editores tuvieron en cuenta el valor histórico de las imágenes y la importancia de la cultura visual para fortalecer la identidad, incitar a la sensibilidad y a la empatía con esa historia, mover las emociones en torno a la pertenencia. Los capítulos del libro se ocupan en resaltar la rica historia de la provincia, las biografías de gobernadores, la evolución de la estructura político institucional, educativa y científica con sus logros más importantes. La información geográfica y estadística se recopila y presenta en textos, cuadros, mapas y planos departamentales de gran precisión para la época. La monografía económica ocupa un lugar central enlazando una naturaleza pródiga y generosa con la acción humana que fue artífice del progreso en base a la ganadería, la agricultura, la industria y los nuevos sistemas de comunicación. Pero sobre todo la obra resalta los valores patrióticos y el credo constitucional santafesino en términos de profesión de fe.

 

Brasil, 1922.
A fin de reunir elementos que nos permitan una perspectiva comparada en la construcción de identidades en contextos centenarios, exponemos aquí algunos resultados desde una investigación básicamente bibliográfica sobre la conmemoración de los 100 años del Grito de Ipiranga ocurrido 7 de setiembre de 1822 (FERNÁNDEZ BRAVO, 2007; LEDEZMA MENESES, 2007; PERES COSTA, 2005). Ese día, en el que se declaró al Brasil independiente de Portugal, suscitó fuertes controversias acerca de su definición como fecha fundadora de la nacionalidad brasilera: ¿Era el 7 de setiembre? ¿O era el 7 de abril con la abdicación de Pedro I y el inicio de un nuevo rumbo en 1831? ¿El 21 de abril rememorando la ejecución en 1792 de Tiradentes, el líder de la Inconfidência Mineira? Quizás el 15 de noviembre era más pertinente, con el fin el Imperio y la instauración de la República en 1889.

 

Hacia 1922 el gobierno de Epitácio Pessoa enfrentaba una situación crítica por diferendos limítrofes estaduales de antigua data y desigualdades regionales, muy notorias por cierto entre el sur más rico y el nordeste empobrecido, que alimentaban la posibilidad de desintegración de los Estados Unidos del Brasil.3 Había que frenar estos conflictos, lograr acuerdos y procurar un desarrollo más equilibrado en su extenso territorio, es por eso que Pessoa convocó a los jefes políticos más importantes para definir un plan que diera solución a estos problemas pero sobre todo alcanzar una unidad nacional en el estricto sentido simbólico: el Centenario de la Independencia era la oportunidad perfecta. Para eso había que trabajar en la unificación de fechas y acontecimientos en una trama que recogiera la memoria monárquica y la memoria republicana tratando de disolver así sus peligrosas diferencias. Políticos, escritores e historiadores se involucraron en este proyecto unificador con intervenciones para nada homogéneas, entre ellos los agrupados en los Institutos Histórico-Geográficos con numerosos estudios sobre la historia patria. Wilma Peres Costa observa que las visiones de la formación de la nación y la brasilidad estribaban, ya en la segunda mitad del siglo XIX, en bases diferentes: una que la miraba desde el aparato del estado imperial y luego republicano y otra, montada en un distinto lugar social: en los hombres y mujeres anónimos situados en la geografía profunda que se rebelaban contra las órdenes metropolitanas (2005, p. 65). El proyecto unificador de Pessoa se situó en una renovación de los idearios con fuerte matriz modernista que tomaban distintas posturas: defendiendo o discutiendo aquellas voces que desde distintos Estados reivindicaban otros sucesos no coincidentes con el Grito de Ipiranga alegando que poseían fundamentos más sólidos de la nacionalidad brasilera: poner en cuestionamiento al Grito de Ipiranga era resistir el papel central que se había adjudicado Río de Janeiro y posteriormente la emergente Sao Paulo, en la construcción de esa nacionalidad. De acuerdo a lo investigado por Gerson Ledezma Meneses, distintos Estados confrontaban sus propios lugares, fechas y acontecimientos como momentos preferentes y relevantes de su historia. Pernambuco, por ejemplo, destacó sus viejas luchas contra la colonización holandesa y contra la corona portuguesa, resaltando la revolución de 1817 y las revueltas independentistas de 1824. Mato Grosso recuperó su pasado bandeirante por el que fue posible la expansión de las fronteras de la América portuguesa: en el imaginario local el avance y conquista del sertão como lugar agreste, salvaje y lleno de peligros lo dotaba de reserva moral y natural, cuna de la brasilidad. Por último, en Bahía no se reconoció el 7 de setiembre como día de la independencia; allí se prepararon para el 2 de julio de 1923 con la evocación centenaria en términos de epopeya: la expulsión definitiva de los portugueses que selló con sangre bahiana la independencia brasilera, ellos exaltarían a sus propios héroes locales eclipsando a los grandes nombres de la memoria oficial carioca (2007, p. 397-418)4.

 

Una estrategia oficial para enlazar a monárquicos y republicanos fue mostrar a Pedro I como el emperador que tuvo la valentía de declarar la independencia y a la vez reforzar la figura de José Bonifacio de Andrada e Silva como mentor de la Independencia y Padre de la Nación brasilera que se venía sosteniendo desde fines del siglo XIX. Bonifacio, un intelectual formado en Coimbra, autor de escritos independentistas, fue presentado como defensor del orden, líder providencial y héroe republicano. Las placas, medallas y monedas acuñadas, y la construcción de estatuas de Pedro y Bonifacio representaron la materialidad de una memoria unificada que se quería implantar.

 

En 1922 se inauguró la Exposición Internacional en Río de Janeiro, con un despliegue de pabellones dedicados al Brasil y sus adelantos sociales, educativos, de industria, agricultura y comercio, etc. Otros países europeos y latinoamericanos fueron incluidos para que instalaran sus propias muestras. Según Álvaro Fernández Bravo, el Livro de Ouro, publicado en Río de Janeiro en ese año, muestra un recorrido pormenorizado de los adelantos en educación, cultura, filosofía, política, economía, agregando pruebas estadísticas del progreso. Las referencias a la exhuberancia y riqueza de la naturaleza nos remiten a las mismas que se presentan en los libros de Tucumán y Santa Fe: tierra pródiga, fértil, generosa. Ese libro marca una diferencia con los publicados en Argentina pues contenía material de propaganda para atraer capitales privados en una sociedad que reforzaba el sello cosmopolita y la potencia de sus lazos con el mercado mundial. En él las evidencias tangibles del progreso se describen como “expressão da energia constructora de uma raça nova”, los logros son atribuidos a la nación en su conjunto y propios de la pujante República, esas evidencias quieren contestar a las acusaciones de pobreza y atraso que pesaban sobre el Brasil, pero ¿quienes son los excluidos de tamaño relato de proeza nacional? Para edificar la Exposición se desplazó a la población marginal del centro de Río hacia la periferia oculta. Intelectuales como Lima Barreto criticaron la ostentación no solo por innecesaria y costosa sino porque excluía al pueblo de la fiesta con una intención manifiesta de invisibilizarlo públicamente. Similar intención se percibió en el Livro de Ouro con respecto a la cultura africana y el pasado esclavista: en sus páginas están totalmente ausentes. (2006, p. 5-14).

 

 

CONSIDERACIONES FINALES

En este punto se abren más preguntas que conclusiones pues este análisis parcial no nos habilita a hacer generalizaciones ni afirmaciones rotundas. Sin embargo, podríamos decir que estas conmemoraciones centenarias, desarrolladas en marcos conflictivos e inestables, tuvieron un afán celebratorio que aportaba a la creación de una identidad nacional e intentaba mostrar fortaleza institucional, regeneración política, economía floreciente, prosperidad cultural. El espacio público fue ocupado por las elites y una masa popular participante en programas de actividades bien pautados y que, en las capitales y centros urbanos, sumaron fuertes dispositivos de seguridad: incluir al pueblo pero bajo control.

 

Por otra parte, la cultura material de los Centenarios, expuesta en los libros, exposiciones, monumentos, construcciones alegóricas y estatuas provocaron reacciones opuestas: los que se deslumbraban con el cambio de las fisonomías urbanas y los que criticaban estas expresiones materiales por ser fuentes de derroche y frivolidad pero más aún: por ser la visión fragmentada de la nación auténtica. Los libros conmemorativos editados en Tucumán y Santa Fe y el Livro de Ouro brasilero son muestras palpables de la autovaloración exaltada sobre las bases materiales y el progreso que querían mostrar al interior y al mundo, con esporádicas menciones o ausencias para nada ingenuas de expresiones culturales ligadas a los indígenas y a los africanos esclavizados. Historias ocultas del pasado y exclusión de estos grupos étnicos en esa autovaloración, producto de olvidos deliberados o inconcientes.

 

Las conmemoraciones Centenarias de Independencia que analizamos son evidencias del carácter selectivo de las memorias e involucran a las identidades en un ejercicio contrapuesto de lucha, debate y negociación en diversos campos como el espacio público, los discursos políticos, historiográficos y literarios, los símbolos, las representaciones materiales. Campos donde emergen las tensiones identitarias con algunas distinciones teniendo en cuenta lo limitado de los casos planteados: -provincias y regiones argentinas en tensión contra el centro porteño de Buenos Aires pero reforzando la celebración de una fecha indiscutible y buscando un lugar en la Nación; -el interior profundo, estigmatizado del Brasil en oposición al litoral y los centros urbanos de Río de Janeiro y Sao Paulo que miran hacia el Atlántico en una deliberada ignorancia del resto, hace hincapié en la forja de una identidad local y resiste al proyecto de Pessoa sobre la nacionalidad brasilera unificada.
La memoria social se encuentra en permanente construcción. El concepto de nacionalidad, una cuestión central en los centenarios analizados, se encuadra dentro de esa misma afirmación, es revisado, ampliado o restringido según ciertas circunstancias e intereses, se encuentra en apelación constante. Las conmemoraciones de hechos y procesos históricos significativos para una sociedad -en particular las “números redondos” como aniversarios, centenarios, bicentenarios- constituyen campos de observación privilegiados para ponernos de cara a la complejidad de sus andamiajes y tratar de desentrañarlos, entenderlos, interpretarlos, realizar balances e intentar proyecciones, desde cada presente que rememora. La Historia debe aportar más conocimiento y más densidad a esos procesos y al mismo tiempo, tener la capacidad de transmitirlos adecuada y eficazmente por fuera del ámbito académico. En fin, una Historia profesional y comprometida que contraste con el mero uso político-ideológico y coyuntural habitualmente presente en las conmemoraciones y abra a reflexiones y prácticas sociales más profundas.

 

Notas

* Trabajo basado en la exposición presentada en la Mesa Redonda ““História e a construção das identidades nacional e regional”, I Congresso Internacional de História: Poder, Cultura e Fronteiras. Universidade Federal de Santa María, Santa María, Rio Grande do Sul, Brasil. 2016. Una instancia académica que tuve el placer de compartir con tres distinguidos colegas: Dra. Ana Frega, Dra. María Luisa Soux, Dr. Luiz Carlos Villalta. Una versión del mismo fue publicada como capítulo del libro I Congresso Internacional de História, Santa María (RGS, Brasil): Editora FACOS UFSM y CAPES, 2017, ISBN 978 85 8384 0480.

01 – «Orden del día de la Junta, 6 de septiembre de 1811», en Maillé, Augusto (comp.), La revolución de Mayo a través de los impresos de la época. Primera serie 1809 – 1815, vol. 1. Buenos Aires: Comisión Nacional Ejecutiva del 150º aniversario de la revolución de Mayo, 1965, p. 473. Citado en Rabinovich, Alejandro Obedecer y comandar: La formación de un Cuerpo de Oficiales en los ejércitos del Río de la Plata 1810-1820. Revista Estudios Sociales, Vol. 41, Santa Fe: Ediciones UNL, 1er. Semestre 2011, p. 42. Disponible en: https://bibliotecavirtual.unl.edu.ar/publicaciones/index.php/EstudiosSociales/issue/view/264
Acceso: 2 noviembre 2016.

02 – Diario Santa Fe, 9 de julio de 1916. Disponible en:
http://www.santafe.gov.ar/hemerotecadigital/diario/7948/?page=1 Acceso: 30 octubre 2016.
Para un análisis pormenorizado de estos diferendos y desigualdades Cf. Ferreira Santos, Julio César. As questões de limites interestaduais do Brasil: transição política e instabilidade do território nacional na Primeira República (1889-1930) – O caso do Contestado. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. Universidad de Barcelona, Vol. X, núm 218 (17), 2006. Disponible en: http://www.ub.edu/geocrit/sn/sn-218-17.htm. Acceso: 2 noviembre 2016.

03 – Para un análisis pormenorizado de estos diferendos y desigualdades Cf. Ferreira Santos, Julio César. As questões de limites interestaduais do Brasil: transição política e instabilidade do território nacional na Primeira República (1889-1930) – O caso do Contestado. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. Universidad de Barcelona, Vol. X, núm 218 (17), 2006. Disponible en: http://www.ub.edu/geocrit/sn/sn-218-17.htm. Acceso: 2 noviembre 2016.

04 – En este trabajo, Gerson Ledezma Meneses nos informa que en su tesis doctoral: Festa e forças profundas na comemoração do I Centenário da Independência na América Latina (estudos comparativos entre Colômbia, Brasil, Chile y Argentina), Universidad de Brasilia, 2000, ha analizado la conmemoración del centenario de independencia también en otros estados brasileros: São Luiz do Maranhão, Acre, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, São Paulo y Río de Janeiro. P. 388.

 

 

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Por Fábio Ferreira

Fatos precursores à instalação do Congresso Cisplatino

Com o processo de emancipação do Vice Reino do Rio da Prata, o território que hoje corresponde à República do Uruguai, designada à época como Banda Oriental, mergulhou em uma árdua guerra civil, que levou à destruição de sua economia e à instabilidade política. A partir de 1811, quando José Gervásio Artigas rompeu com a Espanha e iniciaram-se os conflitos armados em solo oriental, Montevidéu foi controlada, no curto período de seis anos, por governos submetidos aos espanhóis, aos portenhos, às forças revolucionárias de Artigas e aos portugueses.
No que refere-se à presença lusa na Banda Oriental, observa-se que D. João organizou duas expedições militares para conquistar este território. A primeira ocorreu em 1811, no entanto, por pressões da Inglaterra e pela oposição de segmentos locais, o príncipe regente retirou, em 1812, suas forças do Prata. Porém, em 1815, D. João iniciou a organização de nova expedição para conquistar a antiga área de dominação espanhola. Para liderar a segunda invasão foi escolhido o general português Carlos Frederico Lecor, veterano das guerras napoleônicas. Lecor ocupou pacificamente Montevidéu em 20 de janeiro de 1817, após negociações com o Cabildo da cidade.
Uma vez no poder, o general continuou negociando e compondo politicamente com elementos da sociedade oriental, além de agir no sentido de enraizar a presença portuguesa na região. Como exemplo, durante a gestão lusa houve a concessão de títulos, condecorações e promoções na administração pública a segmentos da sociedade oriental, bem como vários casamentos de militares das forças joaninas com mulheres orientais, sendo que o próprio Lecor casou-se com Rosa Maria Josefa Herrera de Basavilbaso, em 1818. Neste mesmo ano, o general tornou-se, pelas mãos de D. João VI, Barão da Laguna.
Sobre a adesão dos orientais, Lecor trouxe para a sua órbita figuras locais de projeção, sendo que, muitos deles, anteriormente, foram coligados aos espanhóis, aos artiguistas e, futuramente, com a independência do Uruguai, permaneceram em posições de destaque na recém-nascida república. Mesmo com as diversas mudanças na conjuntura platina, vários elementos orientais conseguiram estar sempre atuando com relativa significância no jogo político local, ainda que a Banda Oriental fosse controlada por forças tão díspares, como, por exemplo, as de Artigas e as de Lecor.
Dos orientais aliançados ao general português e que tiveram destaque em outros momentos da história oriental, como o Congresso Cisplatino, podem ser citados Fructuoso Rivera, líder de milícias no interior da província e, a partir de 1830, presidente do Uruguai; o padre Dámaso Antonio Larrañaga, que compunha o Cabildo que negociou a entrada de Lecor em Montevidéu, além de ter sido eleito senador para representar a Cisplatina no Rio de Janeiro; Francisco Llambí, jurisconsulto e cabildante em 1817 e, após a independência oriental, ministro da república; o fazendeiro Tomás García de Zúñiga, que pelas mãos do Império do Brasil tornou-se Barão de la Calera; Juan José Durán, membro do Cabildo de 1817; e Jerónimo Pio Bianqui, igualmente cabildante à época da ocupação.
Em 1821, a continuidade da ocupação lusa das terras orientais encontrou-se ameaçada. A Revolução Liberal do Porto – que teve, também, adeptos nos domínios americanos dos Bragança, inclusive em Montevidéu, através de tropas de Lecor – alçou ao cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros e Guerra Silvestre Pinheiro Ferreira, opositor à permanência portuguesa no Prata. Por esta razão, em um dos seus últimos atos no Rio de Janeiro, em 16 de abril de 1821, dez dias antes de retornar definitivamente a Portugal, o monarca ordenou que Lecor realizasse em Montevidéu um congresso inspirado nas Cortes de Lisboa para que a sociedade local decidisse o seu futuro.
Como os interesses de Lecor e dos seus aliados eram pela permanência dos portugueses na região platina, agiram, o general e o estancieiro Juan José Durán, chefe político da província à época, no sentido de que o referido congresso votasse pela incorporação da Banda Oriental ao cetro joanino.
No que refere-se ao contexto oriental, a ordem para a realização do Congresso foi expedida depois de vários anos de conflitos armados que devastaram a Banda Oriental, destruição esta que foi registrada por vários contemporâneos à ocupação de Lecor, como, por exemplo, Saint-Hilaire , Emeric Essex Vidal e Breckenridge . Assim, à época da designação do Congresso, a sociedade oriental vivia relativa paz, conseguindo, inclusive, alguma recuperação econômica e, além disto, interessava a orientais ligados ao setor produtivo a união à Coroa lusa, por esta acenar com perspectivas como a da realização de transações comerciais com os seus vastos domínios, fatores que fortaleciam politicamente o projeto da incorporação ao Reino Unido português.
Deste modo, diante do exposto, qual o posicionamento dos congressistas frente à missão de decidir (ou legitimar o já acertado nos bastidores políticos) o futuro oriental? Seguir com a Casa de Bragança ou abandoná-la? Qual a argumentação escolhida pelos deputados para legitimarem suas escolhas? Enfim, uma multiplicidade de questionamentos podem ser feitos em relação ao Congresso Cisplatino e, no item a seguir, serão demonstrados e analisados alguns deles.

O Congresso Cisplatino e a atuação dos parlamentares orientais

Para a reconstituição das reuniões do Congresso Cisplatino utiliza-se como fonte no presente artigo as suas atas, que encontram-se em Montevidéu, no Archivo General de la Nación. O conjunto documental é manuscrito em espanhol, composto de oitenta páginas, onde estão distribuídas as suas dezenove atas. Além disto, estes documentos apresentam as listagens e assinaturas dos deputados que estiveram presentes nas sessões, os seus discursos, as propostas e votações em questão, que perpassam da mesa diretiva até a decisão pela incorporação ao Reino Unido português, dentre outros elementos.
Sobre as amplas possibilidades analíticas que este conjunto documental oferece, o contato do historiador com a ata de cada sessão fornece-lhe valiosos dados acerca de vários aspectos da sociedade oriental de então. Como exemplo, através das atas identifica-se a boa aceitação que a ocupação portuguesa tinha junto a uma parcela dos segmentos dominantes da sociedade oriental. Igualmente, verifica-se a exclusão das camadas populares do congresso, o temor dos congressistas de que surgisse no território oriental uma nova liderança revolucionária como a de Artigas, além de uma série de aspectos políticos, econômicos e sociais da época.
Expostas as questões acima, as atas demonstram que o Congresso iniciou-se no dia 15 de julho de 1821, contando com doze deputados, e não dezoito conforme estipulado inicialmente. Como congressistas, estiveram na seção de abertura
Juan José Durán, Diputado por parte de esta Capital [Montevidéu], Presidente en esta Junta, como Gefe político de la Província: el Sor. Cura y Vicario D.or D. Dámaso Antonio Larrañaga, y el Sor. D. Tomás Garcia de Zúñiga también Diputados por esta Ciudad, así como su Síndico procurador general D. Gerónimo Pío Bianqui – el Sor. D. Fructuoso Rivera, y el Sor D.or D. Francisco Llambí, Diputado por el vecindario de extramuros – el Sor D. Luis Pérez, Diputado por el Departamento de S. José – el Sor D. José Alagón, Diputado por el de la Colonia del Sacramento – el Sor D. Romualdo Gimeno, diputado p.r el de Maldonado el Sor D. Loreto de Gomenzoro, Diputado por Mercedes como su Alcalde territorial: el Sor D. Vizente Gallegos, que lo es de Soriano y D. Manuel Lagos, del Cerro-Largo […]
Posteriormente, outros deputados apresentaram-se: no dia 16, Mateo Visillac, representante de Colônia do Sacramento e, no dia 18, Alejandro Chucarro, deputado pela vila de Guadalupe, Salvador García, síndico suplente da mesma localidade, Manuel Antonio Silva, síndico de Maldonado e Romualdo Gimeno, também deputado por Maldonado.
Mesmo com o atraso desses congressistas, elegeu-se a mesa diretiva a 15 de julho. Como presidente foi eleito Durán, como vice-presidente, Larrañaga, e como secretário, Llambí. Assim, os primeiros aliados que Lecor conquistou na Banda Oriental estiveram no comando do Congresso.
No segundo dia, a ameaça bélica que circundava os orientais já se fez presente através da seguinte mensagem que Lecor enviou aos congressistas, e que consta da ata da reunião do referido dia:
Señores del Muy Honorable Congreso extraordinario de esta Provincia= S.M. El Rey del reyno unido de Portugal, Brasil y Algarbes, ha tomado en consideración las repetidas instancias, que han elevado á su real Presencia, Autoridades muy respetables de esta Provincia, solicitando su incorporación á la Monarquía Portuguesa, como el único recurso que en medio de tan funestas circuntancias, puede salvar el País de los males de la guerra y de los horrores de la Anarquía. – Y deseando S.M. proceder en un asunto tan delicado con la circunspección q.e corresponde á la Dignidad de su Augusta persona, á la liberalidad, de sus principios, y al decoro de la Nación Portuguesa, ha determinado en la sabiduría de sus Consejos, que esta Provincia, representada en el Congreso extraordinario de sus Diputados, delibere y sancione en este negocio, con plena y absoluta libertad, lo que crea más útil y conveniente á la felicidad y verdaderos intereses de los pueblos que la constituyen. – Si el Muy Honorable Congreso tubiere á bien decretar la incorporación a la Monarquía Portuguesa, Yo me hallo autorizado por el Rey p.a continuar en el mando y sostener con el Ejército el órden interior y la seguridad exterior bajo el imperio de las Leyes. Pero si el Muy Honorable Congreso estimase más ventajoso á la felicidad de los pueblos incorporar la Provincia á otros estados ó librar sus destinos á la formación de un Gob.o independiente, solo espero sus decisiones para prepararme á la evacuación de este territorio en paz y amistad conforme á las órdenes Soberanas – La grandeza del asunto me excusa recomendarlo á la Sabiduría del Muy Honorable Congreso: todos esperan que la felicidad de la Provincia será la guía de sus acuerdos en tan difiiles circunstancias = Montevideo y julio diez y seis de mil ochocientos veinteuno = A los S.S. de Muy Honorable Congreso de esta Provincia = Barón de la Laguna [Lecor]=

Na mensagem de Lecor verifica-se a afirmação do general sobre a existência de autoridades locais que anelavam a união com a monarquia portuguesa, a vincular, ainda, em sua escrita, este desejo à manutenção da ordem e à salvação do território oriental. Associava-se, então, a manutenção da paz à permanência dos portugueses na região, estando o temor à possibilidade do retorno aos conflitos bélicos presente em diversas reuniões do Congresso.
Na sessão do dia 18 foi colocada em discussão pelo presidente, Juan José Durán, a questão da incorporação propriamente dita:
[…] se propuso por el Sor Presidente, como el punto principal p.a que había sido reunido este Congreso – si segun el presente estado de las circunstancias del Pais, convendría la incorporacion de esta Provincia á la Monarquía Portuguesa, y sobre que bases o condiciones; ó si por el contrario le sería más ventajoso constituirse independiente ó unirse á cualquiera otro Gobierno, evacuando el territorio las tropas de S.M.F.
O contato com as atas permite ao pesquisador identificar que Bianqui, Llambí e Larrañaga foram os únicos deputados que discursaram, sendo favoráveis à anexação à coroa bragantina, expondo os seus argumentos sempre fazendo menção à guerra. Neste conjunto documental podemos verificar que em sua fala Bianqui afirmou que transformar a província em um Estado era, no âmbito político, impossível. O deputado acrescentou que para sustentar a independência necessitavam-se de meios, no entanto, o território oriental não possuía população nem recursos para que fosse governado pacificamente. Os orientais não teriam como impedir uma guerra civil, nem ataques externos, nem como conquistar o respeito das outras nações, além de que haveria a emigração dos capitalistas, voltando, assim, a Banda Oriental, a ser o “teatro da anarquia” e “a presa de um ambicioso atrevido”.
Observa-se que Bianqui utilizou o temor existente no imaginário oriental do retorno aos conflitos em sua argumentação, pois se este medo não fosse presente, não haveria razão do congressista ter enfatizado a possibilidade do retorno ao “caos”, nem mencionaria a possibilidade do surgimento de “um ambicioso atrevido”, aludindo, provavelmente, a um possível aparecimento de alguma outra liderança revolucionária como a de Artigas. A ameaça bélica, independentemente de existir ou não, independente do congressista acreditar nela ou não, estava a ser trabalhada intencionalmente em seu discurso no Congresso Cisplatino, afinal as cicatrizes dos conflitos armados da década anterior permaneciam abertas e o território oriental continuava circundado por uma gama de províncias que ainda viviam os horrores das guerras desencadeadas desde a Revolução de Maio.
Bianqui, ao anular a possibilidade da Banda Oriental em constituir-se estado autônomo, apontava, em seguida, a necessidade de incorporar-se a outro estado, excluindo Buenos Aires e Entre Rios em função de seus respectivos conflitos internos. A Espanha também foi descartada, pois segundo o deputado oriental, os pueblos já haviam votado contra ela e que Madri foi incapaz de manter a paz na província. Deste modo, para o congressista, não havia outra opção que não fosse a incorporação à monarquia portuguesa sob uma constituição liberal. Com a manutenção do poder luso, dizia o deputado, impossibilitar-se-ia a anarquia, o setor produtivo continuaria as suas atividades, sendo, assim, restituídos os anos de prejuízos, e os “arruaceiros” teriam que dedicar-se ao trabalho ou então sofrer com o rigor das leis.
As atas também mostram ao pesquisador que, em seguida, Llambí discursou. Ele alertou sobre a alta probabilidade de que com a saída das tropas de Lecor o território oriental viesse a sofrer novas invasões ou, então, mergulharia em uma guerra civil. Sem entrar no mérito se a análise deste parlamentar foi ou não exagerada, ela insere-se perfeitamente no contexto social da Banda Oriental. Por exemplo, mesmo não estando, no momento do Congresso, em armas contra Lecor e os seus aliados, o governo de coalização luso-oriental não poderia confiar totalmente em elementos como Juan António Lavalleja e a família Oribe – apesar de terem existido diálogos e aproximações, ao longo da gestão do general, entre estes diversos atores políticos, não se pode ignorar que os Oribe e Lavalleja iniciaram, em 1825, uma guerra civil contra Lecor e o seu grupo político. Além disto, em relação ao âmbito externo à província, o contato com uma gama de documentos da administração Lecor mostram que os governos limítrofes tinham o interesse de controlar a Banda Oriental e chegaram a elaborar projetos para ocupá-la.
Seguindo com a fala de Llambí, este retomou, corroborando com Bianqui, os conflitos que a Banda Oriental sofreu nos anos anteriores, a afirmar, inclusive, que mais da metade da população foi dizimada, bem como as suas riquezas, e que os orientais perderam o pouco armamento que tinham. Supondo eventuais exageros, inclusive para justificar o seu voto e legitimar a permanência lusa, identifica-se, mais uma vez, a ida aos anos de guerra, traumatizantes e sempre associados a uma gigantesca destruição – o que, por outro lado, não é contrário a outras fontes, como os supracitados relatos dos viajantes da época. Igualmente, detecta-se a ideia de que estes anos foram tão devastadores que a Banda Oriental ainda carregava os pesados danos destes conflitos que duraram praticamente uma década. Portanto, ao desenvolver a sua argumentação neste sentido, provavelmente o parlamentar o fazia por haver público receptor, “terreno fértil” para suas ideias, e que provavelmente não haveria quem se lhe opusesse (ou se o houvesse seria facilmente rebatido).
Llambí também apontou a devastação que a província encontrava-se e utilizou-se desta situação para argumentar a incapacidade desta tornar-se independente, e retomou a questão da estabilidade, já levantada no Congresso: “[…] Un Gobierno independiente pues entre nosotros, sería tan insubsistente, como lo es, el del que no puede ni tiene medios necesarios para sentar las primeras bases de su estabilidad.”
A possibilidade da incorporação a outros estados também foi abordada por Llambí. O congressista listou a Espanha, Buenos Aires, Entre Rios e o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Castela foi descartada por razões como a distância, a sua impossibilidade de resolver as mazelas orientais e, ainda, porque levaria a conflitos armados no interior da província entre seus partidários e seus antagonistas. As guerras em que Buenos Aires e Entre Rios estavam envolvidas impossibilitavam, nas palavras de Llambí, a união da Banda Oriental a estes estados. Assim, o deputado expunha que “A cualquier parte que vuelvo la vista me veo amenazado de los efectos de esta [a guerra]; y si à todos se les presenta con el horroroso aspecto que á mí, ningún mal deberémos temer tanto como él.”
Llambi ainda afirmou que, de fato, a Banda Oriental estava em poder das tropas portuguesas, o que não se podia evitar, e que qualquer resolução dos orientais, por melhor que fosse, podia ser destruída por alguém que pudesse agrupar um pequeno número de combatentes. O aventurar-se nestas contingências seria uma imprudência que os congressistas teriam que responder eternamente aos pueblos.
Identifica-se no discurso de Llambí uma forte dose de pragmatismo ao destacar a fragilidade da província para sustentar-se independente. Se Llambí acreditava em sua argumentação, ou se a mesma foi um meio de justificar o seu voto e de congregar partidários em torno da opção acordada com Lecor, ou simplesmente uma mera encenação, não é o objetivo do presente artigo. Importante é detectar a constante utilização do temor do retorno aos conflitos armados e que o discurso do deputado é um meio para o historiador identificar que a sociedade oriental à época tinha o seu imaginário temeroso no que refere-se às guerras em seu território.
Após a fala de Llambí, conforme constata-se nas atas, Larrañaga foi o deputado que discursou, demonstrando uma posição pragmática e o rechaço em relação à guerra, revelando também uma espécie de trauma no que refere-se aos conflitos armados. Larrañaga afirmou que os orientais encontravam-se, desde 1814, abandonados pela Espanha. Buenos Aires e as demais províncias platinas fizeram o mesmo, deixando a Banda Oriental sozinha em uma guerra muito superior às suas forças e, por esta razão, o religioso anulou qualquer ligação do território com as províncias limítrofes e com a Madri. Assim, detecta-se que a questão dos conflitos bélicos estava presente na argumentação de mais um dos congressistas.
Outro ponto a se observar é que Larrañaga afirmou que após dez anos de revolução, a província estava distante do ponto de partida e que o dever dos congressistas era conservar o que restou do seu aniquilamento e, caso o conseguissem, seriam, então, verdadeiros patriotas. Pragmaticamente, Larrañaga conclamou os deputados a afastarem a guerra e a desfrutarem da paz e da tranquilidade através da união da província à monarquia portuguesa. No entanto, esta união seria sob determinadas condições: o padre defendeu a autonomia da Banda Oriental, propondo que esta fosse considerada como um estado separado, conservando-se, por exemplo, as suas leis e autoridades no conjunto do Império português.
Da mesma forma que os outros deputados, o contato com a ata da sessão que discutiu a anexação permite afirmar que Larrañaga utilizava a possibilidade do retorno à guerra como legitimadora da opção pela permanência dos portugueses na Banda Oriental e, depois do seu discurso, acordava-se a incorporação do território oriental ao Reino Unido português:
Entónces por una aclamacion general los S.S. Diputados dijeron: Este es el único medio de salvar la Provincia; y en el presente estado à ninguno pueden ocultàrse las ventajas que se seguiran de la Incorporac.n bajo condiciones que aseguren la libertad civil […] En este estado, declaràndose suficientemente discutido el punto, acordaron la necesidad de incorporar esta Provincia, al Reyno Unido de Portugal, Brasil y Algarbes, Constitucional, y bajo la precisa circuntancia de que sean admitidas las condiciones que se propondrán y acordarán por el mismo Congreso en sus ulteriores sesiones, como bases principales y esenciales de este acto […]
Assim, no dia 18 de julho de 1821, os congressistas votaram, unanimemente, pela incorporação de Montevidéu e sua campanha ao Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.
Sucintamente, menciona-se que o conjunto das atas também mostra que, no dia 23, denominou-se a província recém anexada de Estado Cisplatino Oriental, e que nesta data decidiu-se que os cisplatinos teriam representação no Congresso Nacional em Lisboa. No dia 31, segundo a documentação, Lecor aceitou a anexação em nome de D. João VI, sendo que no quinto dia de agosto ocorreu o juramento da mesma, comparecendo Lecor, os congressistas, e todas as autoridades e funcionários de Montevidéu. No dia 8 houve a dissolução do Congresso e suas últimas ordens foram no sentido de enviar cópia das atas a Lecor, para informar ao rei e as cortes de Lisboa dos acontecimentos platinos.
Era mantida, assim, a estrutura de poder iniciada em 1817, aquando da ocupação de Montevidéu por Lecor, porém, a partir de 1821, legitimada não pelo Cabildo, organismo político-administrativo de âmbito municipal, mas por um Congresso representante de toda a província, que, a seu turno, encaixava-se nos moldes liberais, doutrina em voga e ascensão nos quadros do Império bragantino, que vivia a lenta agonia do Antigo Regime português.

Conclusão

Deste modo, conclui-se que o temor em relação ao retorno à guerra foi utilizado pelos congressistas para defenderem a incorporação à monarquia portuguesa e para legitimar a permanência da ocupação liderada por Lecor, sendo as atas importantes fontes para reconstituir o discurso dos deputados, seus argumentos para a criação do Estado Cisplatino Oriental e para analisar o temor existente na sociedade local no que refere-se à possibilidade do retorno aos conflitos bélicos.
Provavelmente, inseridos com sucesso na coalização luso-oriental, os deputados orientais utilizaram no Congresso a argumentação do retorno aos conflitos bélicos pelos seus interesses pessoais (e dos grupamentos que eles estavam vinculados) em incorporar a Banda Oriental à monarquia portuguesa. Bianqui, Llambi e Larrañaga empregaram argumentos plausíveis para respaldarem seus discursos, pois estavam inseridos em uma sociedade duramente marcada pelos anos de conflitos e com seu imaginário temeroso no que referia-se ao retorno das guerras. Além disto, não se pode ignorar que a ameaça bélica era um risco eminente não só para a Banda Oriental, mas para toda a região do Prata, visto os combates militares que as províncias limítrofes estavam mergulhadas, ratificando o quão plausível era a argumentação dos congressistas.
Assim, o discurso enfatizando as antagônicas e concretas possibilidades de guerra e de paz que desenhavam-se diante dos orientais, associadas à concreta recuperação do setor produtivo durante a ocupação lusa foi, sem dúvida, altamente persuasivo e influenciador da anexação à coroa portuguesa, em especial em um contexto social em que a população sofreu por longos anos em virtude de questões bélicas e da destruição da província.
Outro ponto é que mesmo que a participação popular tenha sido vedada no Congresso, sendo este constituído por membros dos segmentos dominantes, provavelmente, o que foi discutido em suas reuniões teve repercussão junto à sociedade oriental, criando, portanto, junto à população oriental argumentos favoráveis à atitude dos congressistas de anexarem o território oriental à monarquia portuguesa. Com os discursos dos deputados ecoando pela Banda Oriental, é provável que estes agregariam partidários e defensores de suas ações por eles terem sido importantes agentes que afastaram a guerra da traumatizada e exaurida província.
Sendo assim, a manutenção do poder português acenava ser, ao menos nos idos de 1821, a solução mais conciliatória e a menos conflituosa para a sociedade oriental e para os grupamentos locais mais destacados, representados no Congresso Cisplatino e partícipes da coalizão luso-oriental. No entanto, a opção dos orientais pela incorporação ao Reino Unido português não os livrou de novas guerras. Com a independência do Brasil, a pública adesão de Lecor ao Império e a fidelidade de parte de suas tropas a Lisboa fez com que conflitos bélicos fossem novamente estabelecidos em terras orientais, tendo, por fim, a situação oriental agravado-se após 1825, quando eclodiu a Guerra da Cisplatina.
Finalizando, o Congresso Cisplatino veio a mudar o destino oriental, pois uniu legalmente este território à Coroa de Bragança, oficializando, portanto, a ocupação lusa. Ademais, interferiu na geopolítica platina, mantendo territorialmente Portugal e, depois, o Brasil, no Prata, diretamente vinculados aos assuntos desta região, tendo que lidar com as constantes oposições e mudanças políticas características das províncias limítrofes à época. Agrega-se ainda que o resultado do Congresso, que levou à permanência de portugueses e brasileiros no território oriental, foi fato crucial para a eclosão da Guerra da Cisplatina, logo para a criação da República Oriental do Uruguai tal como os fatos se desencadearam no reinado de D. Pedro I.

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Maria de Lourdes Vaz Sppezapria Dias (UFRJ)

RESUMO:

              Em construções proverbiais justapostas como “Vão os anéis, ficam os dedos” e “Farinha pouca, meu pirão primeiro”, destaca-se a relação circunstancial que delas emerge. Por isso, defende-se a ocorrência da articulação hipotática, ou circunstancial, entre as suas partes constituintes. Mesmo existindo mais de uma inferência circunstancial e relações implícitas fora do contexto de uso, mostra-se como ele determina a inferência predominante que emerge de provérbios justapostos. Consideraram-se trabalhos funcionalistas como os de HOPPER & TRAUGOTT (1993), MATHIESSEN & THOMPSON (1998); C. LEHMANM (1988, 1989) e LANGACKER (1991), que rompem com a visão dicotômica de coordenação e subordinação. Adota-se, ainda, o continuum de HOPPER & TRAUGOTT (1993), que contempla a parataxe, a hipotaxe, e a subordinação entre as partes.  Observou-se, então, que a hipotaxe ocorre tanto entre cláusulas plenas – “Vão-se os anéis, ficam-se os dedos”–, como entre sintagmas nominais – “Farinha pouca, meu pirão primeiro”, e que ela independe do conectivo formal. A análise dos textos do corpus objetiva: i) observar a hipotaxe na articulação discursiva; ii) comprovar a relação circunstancial independente do conectivo; iii) mostrar a ocorrência da hipotaxe entre cláusulas e entre sintagmas nominais.

PALAVRAS-CHAVE:

construções proverbiais – articulação hipotática – justaposição –  inferência.

Introdução

O tipo de combinação de cláusulas existente em construções proverbiais justapostas já foi apontado por DECAT (2001:105). Embora não se aprofundando nesse aspecto, a autora observa que a Gramática Tradicional não abarca satisfatoriamente a relação adverbial que emerge em estruturas do tipo “Casa de ferreiro, espeto de pau” e “De graça até injeção na língua”. Porém, observa-se que tal fato se dá pela análise tradicional se manter apenas no nível sentencial, além de só contemplar os casos em que as estruturas constituam cláusulas plenas, isto é, em que apresentem verbo.

Para aprofundar um pouco mais a proposta de DECAT (2001:105), pensamos nas paráfrases “Embora a casa seja de ferreiro, o espeto é de pau” e “Se for de graça, aceito até injeção na língua”, as quais tornam possível observar as relações circunstanciais de concessão e de condicionalidade, respectivamente, implícitas nas construções antes apresentadas.

Como tratar, então, tais estruturas? Haveria outro tipo de relação circunstancial entre elas que não somente a condicional e a concessiva?

O processo já estabelecido para se tratar as cláusulas que apresentam entre si relações circunstanciais é a subordinação adverbial. Porém, por esta pressupor total dependência entre as cláusulas e por entendermos que nas construções proverbiais prototípicas deste trabalho o que ocorre é a interdependência entre as partes, consideramos, então, a existência da relação hipotática, ou somente hipotaxe, (em vez de subordinação adverbial) entre as unidades constituintes das construções proverbiais justapostas.

Nosso posicionamento baseia-se em HOPPER & TRAUGOTT (1993:170), quando eles observam que estudos de base funcionalista, como os de MATHIESSEN & THOMPSON (1998); C. LEHMANM (1998, 1989) e LANGACKER (1991), rompem com a visão dicotômica de coordenação e subordinação e adotam a noção de um continuum para a combinação de cláusulas, a saber:

  1. Parataxe – independência relativa entre as cláusulas, em que o vínculo das orações depende apenas do sentido;
  2. Hipotaxe – interdependência entre as cláusulas, em que há uma cláusula núcleo e uma ou mais cláusulas (margens) que não podem figurar sozinhas no discurso e, por isso, são relativamente dependentes;
  3. Subordinação ou encaixamento – total dependência entre as cláusulas em relação ao núcleo.

Assim, ao se estabelecer estes três tipos de arranjos, redefine-se a terminologia de duas tradições distintas: a coordenação e a subordinação.

Observamos, ainda, que pelo fato das construções proverbiais analisadas se apresentarem sem conectivos entre as suas unidades, tradicionalmente seriam tratadas como casos simples de justaposição – procedimento inerente à subordinação e à coordenação. Contudo, sob o enfoque da análise funcionalista, propomos a justaposição como a forma pela qual se dá a relação hipotática nas construções em que a relação de circunstância é percebida por processos inferenciais, sem a presença do conectivo formal (Cf. HOPPER & TRAUGOTT, 1993:172).

Tal perspectiva foi aplicada a construções específicas do tipo provérbios e máximas populares, todas justapostas, a fim de comprovar a relação circunstancial que delas emerge no contexto discursivo. Além desses pressupostos teóricos, recorremos, ainda, aos estudos sobre gêneros textuais para maior aprofundamento das características dos provérbios e máximas populares e suas especificidades, uma vez que a noção de gênero considera o texto como unidade enunciativo-discursiva nas diversas práticas sociais. Os textos que compõem o corpus desta pesquisa foram detalhadamente descritos em DIAS (2009), juntamente com o estudo dos casos.

Por último, optamos pelos termos “parte” ou “unidade” em substituição a “cláusula”. Isso se dá devido ao fato de nosso trabalho ir além da análise de construções que apresentem verbos (cláusulas plenas), sendo analisadas, também, construções constituídas de sintagmas nominais.

Hipotaxe: uma visão funcionalista para a subordinação adverbial

No continuum de HOPPER & TRAUGOTT (1993) antes citado, a subordinação pressupõe dependência e encaixamento, a parataxe pressupõe não-dependência e não-encaixamento, e a hipotaxe – processo considerado neste estudo – pressupõe dependência, mas não-encaixamento sintático. Dessa forma, uma parte subordinada pressupõe encaixamento sintático em outra, enquanto que na articulação hipotática não há dependência, mas interdependência sintática entre as partes de uma construção, conforme postulam MATHIESSEN & THOMPSON (1988:283): “Embora as cláusulas (partes) sejam interdependentes e sustentem, de algum modo, uma relação hierárquica entre si, nada justifica que uma seja parte da outra” (tradução e grifo nossos).

A interdependência entre as unidades constituintes dos provérbios justapostos, então, não estabelece uma relação subordinada, pois uma não é parte da outra. Assim, em “Casa de ferreiro, espeto de pau”, não poderíamos considerar a existência de subordinação por suas partes não se constituírem estruturas que sejam partes sintáticas uma da outra, visto que há uma dependência semântica que as faz interdependentes entre si.

MATTHIESSEN E THOMPSON (1988) buscam, dessa forma, uma interpretação gramatical para a articulação entre partes que tenha sentido funcional no discurso. Para eles, o grau de interdependência também se dá no nível das funções discursivas, pois as relações de causa, condição, concessão, etc. são relações retóricas que ocorrem em quaisquer partes de um texto.

Em concordância com a proposta de MATTHIESSEN E THOMPSON (1988), DECAT (2001:140) também vê a articulação hipotática como uma opção organizacional do discurso, em que importa mais o tipo de proposição relacional (inferência) que emerge da articulação de cláusulas, que o conector formal entre elas. A inferência predominante, então, só se define no nível do discurso, pois é a função discursiva que irá definir a relação de partes hipotáticas, podendo, inclusive, o tipo de proposição relacional determinar a ordem do satélite circunstancial em relação ao núcleo.

Do ponto de vista pragmático, as construções que expressam circunstância cumprem a função de informar, podendo, ainda, ser utilizadas para influenciar o comportamento do receptor, com função tanto assertiva quanto diretiva. No processo de produção-interpretação, a forma linguística fornece as orientações para a interpretação realizada pelo falante/ouvinte, confirmando que o significante é uma pista para a construção de sentido (FAUCONNIER, 1994).

Partindo do pressuposto de que serão as intenções de comunicação que irão determinar a escolha por uma ou outra estrutura da língua em determinada situação, TOMASELLO (2003:233) afirma que “as escolhas são determinadas em grande medida pela avaliação que o falante faz das necessidades comunicativas do ouvinte e do que ajudaria a lograr o intento comunicativo (…) e a partir de qual ponto de vista é necessário para a comunicação bem-sucedida e efetiva”.

Assim, pensando no papel funcional-discursivo das construções proverbiais justapostas de caráter circunstancial e na tentativa de melhor exemplificar o tipo de proposição relacional (inferência) que emerge da articulação de suas unidades, propomos observar os seguintes casos de uso da fórmula fixa. Ressaltamos que estes atendem, em seu significado original, à relação de significado título-conteúdo textual:

(1) CASA DE FERREIRO, ESPETO DE PAU

Confissão de traficante numa delegacia: “Filha minha não usa droga. Se um traficante abordar alguma das minhas filhas, eu mato ele”. Declaração de traficante preso nesta quinta-feira, no Paraná. Elnício da Silva Lima, 52 anos, pai de três filhas, flagrado em casa com 700 gramas de maconha e 82 pedras de crack.

http://jovempan.uol.com.br/jp/campanhas3

(2) CASA DE FERREIRO, ESPETO DE PAU

A patricinha Paris Hilton, acostumada a viver sempre cercada de todo luxo que o dinheiro pode comprar, viveu uma situação atípica em sua visita à Inglaterra. Como todo mundo sabe, ela é herdeira de uma das maiores redes de hotéis cinco estrelas do mundo, mas se hospedou com o namorado Benji Madden no Lord Nelson, humilde estabelecimento de duas estrelas de Liverpool…

http://chiclette.com.br/noticias/2702-Casa-de-ferreiro-espeto-de-pau

(3) CABEÇA VAZIA

Jáder oferece trabalho a Joana

Cabeça vazia, oficina do diabo. Esse velho ditado, que nossas mães e avós costumam repetir à exaustão, como um mantra, sempre na boa intenção de nos manter ocupados com coisas úteis e afastados das tentações mundanas, serve perfeitamente a Joana, nesse momento de aflição e dúvida. Não que ela não tenha com que ocupar a cabeça. A lembrança da safadeza de Umberto ainda lateja como uma enxaqueca insuportável. E tem mais. Tem o casamento da irmã com aquele mauricinho, o pedido de demissão do pai, a futilidade da mãe, a falta de emprego… Ah, e claro, tem a dívida com a joalheria que ela ainda não sabe como quitar. Como vêem, o que não falta é preocupação pra cabeça dela.

http://www.sedes.org.br/Departamentos/Formacao_Psicanalise/cabeca_vazia.htm

Observamos que, em geral, o emprego no título de forma inusitada, pode ser justificado pela retórica aristotélica, segundo a qual essa estratégia permite chamar a atenção do interlocutor, pois os provérbios encerram idéias comuns, consensuais, sendo uma referência coletiva e antiga partilhada com o leitor para, só então, apresentar a nova idéia contida no texto, despertando o interesse para temas já partilhados pela comunidade linguística.

Quando usados na conclusão do texto, afirma LYSARDO-DIAS (2001) que eles exerceriam uma função parecida com a das fábulas infantis, isto é, fornecendo um caráter moralizante.

Portanto, o uso de provérbios apresentou-se produtivo nos casos acima, pois suas características particulares atendem, perfeitamente, à função discursiva a que foram propostas.

Revisitando conceitos: a justaposição hipotática

Tradicionalmente, a justaposição constitui apenas um procedimento inerente à subordinação e à coordenação quando estas se dão sem a presença de conectivos, definição que contempla somente o modo como as orações se ligam dentro dos dois processos sintáticos, apresentando para a justaposição uma visão que se aplica à forma e não ao processo sintático de estruturação em si, sem também considerar a relação semântica entre elas.

Contudo, OITICICA (1952), em período anterior à NGB, já dava à justaposição o status de processo de composição do período, ao lado da subordinação, da coordenação e, ainda, da correlação. Também NEY (1955:62) já afirmava que na justaposição há declaratividade total, sem conectivo, mas com dependência no sentido.

Em estudos mais atuais, HOPPER & TRAUGOTT (1993) afirmam que a justaposição representa uma relação hipotática implícita, pois seu elo está implícito, carecendo dos processos inferenciais para que este elo se forme.

Com vistas à relação que existe entre unidades que se articulam entre si, MANN & THOMPSON (1983 e 1985) e THOMPSON & MANN (1987) trabalham com a noção de proposições implícitas – a que chamam de proposições relacionais – que constituem inferências que emergem da articulação de partes e servem para relacionar duas partes, quer estejam, ou não, adjacentes, podendo servir de base para outras inferências.

Logo, não se trata de relações explicitadas por um conectivo conjuntivo (nos termos de DECAT, 2001:121), pois o significado da inferência pode não ser explicitado mesmo com a presença deste. Para THOMPSON E MANN (1987), então, a maneira como as cláusulas se articulam é um reflexo da organização discursiva como um todo, pois entre elas estariam as mesmas relações presentes na totalidade do discurso, como antes exemplificado em (1), (2) e (3).

Assim, para DECAT (2001:122), fica clara a diferença de proposição relacional entre os casos que se seguem, por exemplo, em que (4) aponta para uma relação de condição, conforme sua paráfrase: “Eu levava uns travesseirinhos caso não tivesse ônibus leito.”, enquanto (5) é exclusivamente temporal: “Quando eu fui falar, eu já estava empregado”. Seguem os exemplos da autora.

(4)…claro que eu levava uns travesseirinhos quando não tinha LEIto ônibus LEIto…essas coisas (NDO4F,15,272-274)

Paráfrase: Eu levava uns travesseirinhos caso não tivesse ônibus leito.

(5) Então quando eu fui falar eu já tinha…já tava empregado (NDO3M,12,428-430)

Paráfrase: Quando eu fui falar, eu já estava empregado.

A análise tradicional da conjunção, portanto, não é suficiente para a decisão de qual das inferências é predominante, pois isso só se dá no nível do discurso. Dessa forma, a perda da carga lexical por parte do conectivo conjuntivo vem não só corroborar a postulação de que a relação adverbial é dada pela proposição relacional que emerge entre as cláusulas, como também reforçar a relevância de uma análise que leve em conta tais inferências (cf.DECAT 2001:123-124).

Além disso, mesmo nos casos em que não é possível recuperar o conectivo, isso não impede que a relação adverbial se dê na articulação das cláusulas, conforme exemplifica DECAT (2001:133) em (6) e (7):

(6) aí eu deitei…eh apaguei a luz… acabei de estudar apaguei a luz (NDO8F,30,1144-1145)

Paráfrase: Quando acabei de estudar, apaguei a luz.

(7) tinha que ter um assunto qualquer e eu peguei esse (NDO7M,19,692-696)

Paráfrase: Porque tinha que ter um assunto, eu peguei esse.

Logo, a ausência do conectivo não desfaz a relação circunstancial de tempo existente em (6), demonstrada pela paráfrase: Quando acabei de estudar, apaguei a luz, nem a relação circunstancial de causa que emerge em (7), o que se confirma pela paráfrase: Porque tinha que ter um assunto, eu peguei esse. Importa, então, o tipo de proposição que emerge da articulação, e não a marca lexical dessa relação, pois o reconhecimento da relação hipotática se dá mesmo com a ausência do conectivo conjuntivo. Portanto, se importa o tipo de proposição emergente e não necessariamente a presença do conectivo conjuntivo para que se determine a inferência predominante na articulação hipotática, então, as proposições existem independentemente do item lexical, confirmando, assim, uma relação hipotática (adverbial) por justaposição (cf. DECAT, 2001:131).

Assim, na abordagem funcionalista, a justaposição seria uma forma de articulação de partes em que há uma relação inferencial entre seus núcleos, e não apenas como um processo formal sem a presença de conectores. Isso equivaleria a dizer que a relação entre as partes é explicitada sem conectivos, constituindo, então, uma relação entre dois ou mais núcleos próximos um ao outro, cuja relação semântica entre eles é dada por inferência (HOPPER & TRAUGOTT,1993:172).

Construções proverbiais: unidade informacional e fórmulas fixas

Para LAKOFF (1987: 467), a construção gramatical é “um par forma-sentido (F, S), onde F é um conjunto de condições da forma sintática e fonológica e S é um conjunto de condições de significado e uso”. Assim, as construções seriam as estruturas de sintagmas estabilizados, como, por exemplo, lexemas e expressões idiomáticas, segundo estudos de LAKOFF (1987); FILLMORE (1979) e LANGACKER (1987).

Nas construções proverbiais justapostas, têm-se lexias de leitura fixa, ou fórmulas fixas, nos termos de Tagnin (1989, apud RIBEIRO, 2007:55), isto é, expressões pré-fabricadas que são unidades linguísticas sintática, semântica e pragmaticamente convencionalizadas. As fórmulas fixas são abordadas, então, em três níveis: sintático, semântico e pragmático.

Segundo RIBEIRO (2007:55-56), no nível sintático, a convenção dessas fórmulas se dá em termos de configuração formal, o que se refere à consagração em termos de combinação e de ordem. Para ilustrar, a autora sugere a associação “Ter a faca e o queijo na mão”, que já sendo consagrada pelo uso, não admite a substituição de um dos termos da construção por um vocábulo de significado semelhante, como, por exemplo: “Ter o talher e o queijo na mão”. Por sua vez, a ordem também resulta de convenção quando parece estranho dizer: “Ter o queijo e a faca na mão”.

Analisando as fórmulas fixas pelo aspecto semântico, RIBEIRO (2007) destaca que estas são atravessadas pelo fator convencionalização, tendo em vista serem expressões cujo significado não pode ser extraído da soma da significação de suas partes. Assim, evidencia-se que não há uma relação motivada entre, por exemplo, a já citada expressão “Ter a faca e o queijo na mão” e seu significado “dominar a situação”. A autora ainda ressalta que pode ser fruto de convenção o significado suscitado a partir de imagem instaurada por uma fórmula fixa, que seria o caso de “pôr água na fervura”, cuja imagem denomina “apaziguar os ânimos”.

Quanto ao nível pragmático, tais expressões são enunciadas para instaurarem comentários circunscritos a determinada situação. Mesmo fora de contexto, os enunciados cristalizados recriam a situação em que estão inseridos. Por exemplo, a frase “Roupa suja lava-se em casa” denominaria para o interlocutor que há uma pessoa alertando a outra sobre a qualidade da “discrição” (cf. RIBEIRO (2007:55-56).

Portanto, de modo geral, os provérbios populares exemplificam o que a autora aponta como unidades linguísticas convencionais ou fórmulas fixas.

A articulação hipotática por justaposição no discurso

Na tentativa de exemplificar tudo o que foi exposto antes, apresentam-se, a seguir, quatro trechos de textos integrantes do corpus deste trabalho, os quais exemplificam a articulação hipotática no discurso, cujo valor semântico da construção justaposta é dado por inferência.

Neste primeiro caso, há uma proposição relacional concessiva entre a informação ‘velha’– que ainda não tinha subido ao lugar mais alto do pódio este ano –, e a informação ‘nova’ – foi beneficiado justamente pelo azar de um dos favoritos da prova –, que emerge da própria articulação discursiva.

(8) UM DIA DA CAÇA, OUTRO DO CAÇADOR

(Embora um dia seja da caça, o outro é do caçador)

O que acharam do GP do Canadá? Se alguém pensou na palavra “inesperado”, pensamos juntos! Esse foi o circuito que posso chamar de o “circuito da redenção”. (…)  Kubica, que ainda não tinha subido ao lugar mais alto do pódio este ano, foi beneficiado justamente pelo azar de um dos favoritos da prova.(…)

http://www.jblog.com.br/formula1.php?itemid=8814 (grifo nosso)

Assim, é possível observar que a relação hipotática concessiva evidenciada na paráfrase da construção proverbial que dá título ao texto se repete na própria estrutura discursiva. Isso equivale a dizer que as combinações do tipo circunstancial se fazem não apenas no nível do conteúdo, mas também no nível proposicional e no conversacional (cf. MOURA NEVES, 2006:236).

Por sua vez, Traugott (1985, apud MOURA NEVES, 2006:234) afirma que as estruturas hipotáticas temporais antepostas servem de moldura para o conjunto de conhecimentos que se apresentam na parte nuclear. É possível observar tal fenômeno no exemplo que se segue.

(9) FAZ A FAMA, DEITA NA CAMA

(Logo que fizer a fama, deita na cama.)

(…) Esse ditado diz de maneira muito clara que: “é importante trabalhar duro no começo da carreira, e você deve continuar assim até que as pessoas reparem que você trabalha duro e é eficiente. A partir desse momento, ou seja, tão logo você receba o carimbo de trabalhador e eficiente, você pode relaxar” (…) (grifo nosso).

http://bdadolfo.blogspot.com/2007/11/faz-fama-e-deita-na-cama.html

Portanto, uma vez que a parte temporal esteja anteposta na construção proverbial usada no título, esta servirá de guia para a sequência temporal da estruturação discursiva e de moldura para a estrutura nuclear posposta: quando se faz a fama – “você deve continuar assim até que as pessoas reparem que você trabalha duro e é eficiente” –, usufrui-se dela – “tão logo você receba o carimbo de trabalhador e eficiente, você pode relaxar”.

Com relação às concessivas, Danon-Boileau et al. (1991, apud MOURA NEVES, 2006:235) atribuem maior integração discursiva e menor integração sintática aos segmentos que atuam como tópico nas construções hipotáticas. A concessão é tida como essencialmente dialógica e é expressa canonicamente quando o segmento concessivo vem anteposto.

Tal afirmação se aplica ao próximo exemplo, em que se utiliza a construção prototípica deste trabalho. Tem-se a estrutura concessiva anteposta na construção proverbial também anteposta pelo valor inferencial que relaciona título e texto: casa de ferreiro – “confissão de traficante” –, com espeto de pau – “Se um traficante abordar alguma das minhas filhas, eu mato ele”.

(10) CASA DE FERREIRO, ESPETO DE PAU

(Embora a casa seja de ferreiro, o espeto é de pau.)

Confissão de traficante numa delegacia: “Filha minha não usa droga. ‘Se um traficante abordar alguma das minhas filhas, eu mato ele’“. Declaração de traficante preso nesta quinta-feira, no Paraná. Elnício da Silva Lima, 52 anos, pai de três filhas, flagrado em casa com 700 gramas de maconha e 82 pedras de crack. (Grifo nosso)

http://jovempan.uol.com.br/jp/campanhas3

Assim, como tópico, a integração da cláusula concessiva se estabelece mais pela função discursiva que pela sintática.

Quanto à posição inicial ou final das unidades causais, MATTHIESSEN & THOMPSON (1988:306-307) mostram que a posição inicial tende a ter uma função discursiva de orientador, para o leitor, de uma parte principal da mensagem, enquanto que a posição final é menos comum para elementos com função de organizadores do discurso. É possível observar essa estrutura no trecho a seguir. A parte causal orienta o leitor para a parte principal do texto – “A morte de Arafat poderá ser um começo, um fim, ou uma continuação” –, levando a nova extensão que contém a possível “solução” para o problema apresentado na cláusula anteposta – “Depende de Ariel Sharon” (…).

(11) REI MORTO, REI POSTO

(Porque o rei está morto, outro rei assume.)

A morte de Arafat poderá ser um começo, um fim, ou uma continuação. Depende de Ariel Sharon (…). Hoje, sem Arafat nem líder que possa substituí-lo, dependerá única e exclusivamente do pragmatismo que puder explicitar e fazer gala o governo Sharon, que a morte de Arafat seja o fim de uma era manchada de sangue ou a continuação incrementada da violência atual.(…)                                                    http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2004/11/294496.shtml

Considerações finais

Pela tradição gramatical, a subordinação adverbial é o processo de combinação que ocorre entre as orações que apresentam relação circunstancial entre si, mas tal conceito não contempla a relação que emerge implicitamente nas construções proverbiais do tipo “Casa de ferreiro, espeto de pau” (DECAT, 2001). A análise estruturalista apenas aborda o nível da sentença e somente considera os casos de orações constituídas de verbos, o que não inclui o caso analisado.

O rompimento com a visão dicotômica de coordenação e subordinação pelo continuum de HOPPER & TRAUGOTT (1993) nos possibilitou adotar o conceito de hipotaxe como o tipo de articulação existente nas construções em que a relação entre suas unidades informacionais (CHAFE, 1988) se dá pela relação circunstancial implícita entre elas.

Também a articulação hipotática que emerge entre as unidades das construções constantes em nosso corpus independem da presença de algum conectivo formal, são justapostas, ou seja, há uma relação inferencial entre seus núcleos, o que nos remete à própria organização discursiva como um processo de produção-interpretação, visto que “a forma linguística fornece as orientações para a interpretação realizada pelo falante/ouvinte, confirmando que o significante é uma pista para a construção de sentido” (FAUCONNIER, 1994).

  Segundo RODRIGUES; SANTOS e MATOS (2006), uma cláusula adverbial, além de uma função gramatical, tem uma função discursiva, “considerando que a combinação de partes envolve o aspecto da organização do discurso. É, pois, esse contexto discursivo que orienta o conteúdo semântico mais relevante de uma preposição/locução prepositiva na cláusula justaposta”.

            Portanto, no caso das construções proverbiais justapostas, para as quais tomamos como prototípica “Casa de ferreiro, espeto de pau”, reconhecemos a hipotaxe adverbial por justaposição (cf. DECAT, 2001:134) como o processo pelo qual se dá a combinação entre as unidades que as constituem. Entendemos, ainda, que é o papel discursivo que irá determinar o uso dessas construções em determinada situação por ser esse um papel do próprio gênero textual provérbios. Tal gênero, além do conteúdo moralizante, constitui enunciados de aplicação universal de uso exclusivamente nas relações sociais.

Referências bibliográficas

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Artigo de Carlos Barros

Universidade de Santiago de Compostela

Galícia, Espanha

www.cbarros.com

Que o norte de Portugal e Galicia teñan unha historia común ata o século XII, non é algo que se poida esquecer ó estudiarmos as relacións posteriores entre as dúas bandas do río Miño. Dentro das “diversas alternativas no processo de formaçôes nacionais da Península”, estaba, no século XII, a “consolidaçâo de um reino de Galiza que englobasse também Portugal”, se ben dos acontecementos soamente resultou a independencia política da Galicia bracarense1. Atrás quedaban séculos de interrelación e de convivencia social desde o río Douro ata o mar Cantábrico, que acadaron a súa máxima expresión na conformación da lingua galego-portuguesa, feito demostrativo de como, baixo o marco político do reino altomedieval de Galicia, existía unha realidade social homoxénea; a ruptura, que encomeza en 1128, de primeiras non afecta, na mesma medida que no político, ó tecido social e cultural que vinculaba as dúas partes da gran Galicia.

De aí que a fronteira Galicia / Portugal teña características distintas da fronteira Castela-Léon / Portugal. No enfrontamento que dá orixe a Portugal, e despois, na loita pola hexemonía peninsular, os protagonistas son as monarquías de Castela-Léon e Portugal; ó reino de Galicia atínxelle a conflictividade política e armada con Portugal de xeito indirecto, como parte integrante da Coroa de Castela. Queremos dicir que o pasado nacional común, e mailo carácter periférico de Galicia2 e do norte de Portugal3, verbo dos respectivos centros do poder político, fan particularmente permeable a fronteira medieval galaico-miñota. De feito, en tódalas guerras que implicaron a Portugal e Castela nos séculos XIV e XV (abano temporal deste traballo), desenvólvese un poderoso bando portugués nas terras de Galicia: 1366-1371, en favor de Pedro I e de Fernando de Castro; 1386-1387, en favor do duque de Lancaster; 1475-1476, en favor de dona Juana e de Pedro Álvarez de Soutomaior. A pervivencia dunha Galicia nobiliaria, e incluso urbana, pro-Portugal é indicativa, segundo o noso entender, dunha especial fluidez das relacións sociais, ó longo da Idade Media, entre Galicia e Portugal. En conclusión: a continuidade dos vínculos galego-portugueses vese favorecida pola inestabilidade e febleza das monarquías peninsulares, logo da secesión do século XII.

Entre dous Reis

Afonso Henriques ocupa militarmente o sur de Galicia varias veces, entre 1130 e 1169, pero neste último ano, feito prisioneiro por Fernando II de León en Badajoz, cede definitivamente Tui, as terras de Toroño e da Limia, á Coroa de León e Castela4. Houbo nobres galegos que colaboraron abertamente con este primeiro Rei de Portugal, como os condes de Toroño e da Limia en 11375. Fernando II desposeeu ó pro-portugués bispo de Tui cando reconquistou a cidade en 11696. Teñamos en conta que as terras meridionais de Galicia, reivindicadas por Afonso Henriques como herdanza da súa nai D.0 Teresa7, estiveran integradas durante séculos, xunto co condado portucalense, cando o río Miño non era fronteira, no convento xurídico bracarense8, o cal facilitou sen dúbida unhas relacións que viñan a ser máis distantes e difíciles co norte de Galicia, o antigo convento lucense. En realidade, a nobreza portuguesa que arrodea a Afonso Henriques rompe con Rei de León e tamén cos grandes señores da Galicia lucense: o conde Fernando Pérez de Traba9 e, sinaladamente, o arcebispo de Santiago, Diego Xelmírez10. Quérese dicir que a liña de demarcación galego-portuguesa fixada en 1169, despois de corenta anos de pugnas, é así mesmo unha consecuencia dos feitos militares que enfrontaron ós grandes señores galegos entre si, segundo foran da parcialidade do Rei de Castela ou do Rei de Portugal, primeiros protagonistas polo tanto dos combates pola soberanía de Galicia. Non parece que a xente común participara de seu nesas loitas fronteirizas11.

Ata 1169, a inestabilidade e o cambio de dominio, fan das dúas marxes do Miño unha marca, unha rexión de fronteira máis que unha liña definida e estable. Despois de 1169 temos fixado, no fundamental, o que vai ser o límite xurídico-político entre Galicia e Portugal ata hoxe en día; separa a provincia de Pontevedra de Minho, e a de Ourense de Minho e de Trás-os-Montes. Agora ben, as fronteiras dos países son froito da historia máis que da natureza12. As fronteiras naturais coadxuvan grandemente a precisar os lindeiros políticos, tal é o caso do río Miño, responsable da nitidez da liña divisoria Pontevedra / Minho, mentres que a zona do alto Limia e de Trás-os-Montes préstase a unha maior vaguidade13. Como fronteira estratéxica, o río Miño era decisivo: os grandes centros do condado portucalense no século XII -Braga, Guimarâes, Porto- ficaban Entre Douro e Minho14, compréndese logo a teimosía do primeiro rei de Portugal por controlar a cidade de Tui e levar a fronteira alén do Miño.

A fronteira galego-portuguesa de finais do século XII tiña como obxecto delimitar as soberanías dos dous Reis no noroeste peninsular. Coidamos que a poboación de ámbalas beiras do río Miño, unha vez estabilizada a fronteira política, poucas dúbidas podía ter respecto da xurisdicción real que llelos correspondía15. Na Francia e na Italia do século XII, os habitantes coñecían tamén as fronteiras públicas coa mesma claridade que as fronteiras diocesanas16; outra cousa ben diferente é a importancia práctica que daquela lle podían dar os galego-portugueses ó feito do afastamento xurisdiccional entre dous Reis. Somos sabedores de que a fronteira política recen estreada non afectaba ás fronteiras eclesíasticas17, as cales durante máis de douscentos anos non teñen para nada en conta a liña de demarcación entre os dous estados.

O que si afecta a formación da fronteira política é ó sistema de fortalezas. Que a liña divisoria permanece insegura, dubidosa, vese na liña que une os lugares fortificados seguindo un trazado irregular, que semella ás veces uns dentes de serra. A estabilización do límite entre os poderes monárquicos, o paso dunha franxa a unha liña de demarcación, conduce a unha liña defensiva continua que dobra a fronteira política18. Con todo, nas beiras do río Miño, a fortificación medieval non acada as mesmas proporcións que no século XVII19, nin se dan claramente as características de despoboación e adicación militar dos lugares de fronteira, que obrigaban ós agresores a internarse no territorio contrario na procura dunha acción militar decisiva, como acontecía na fronteira Portugal / Léon-Castela20.

A fronteira entre monarquías medievais incide pouco no tecido social; a súa debilidade garda relación coa febleza do poder real naquel tempo. Así se explica que os señores actúen a miúdo coma si fosen súbditos de dous Reis: igrexas e mosteiros galegos mantiñan relación e recibían donacións indistintamente do Rei de Castela e do Rei de Portugal21, e o propio vínculo vasalático contemplaba a posibilidade de cambiar de señor, mesmo se é o Rei22; prácticas que se daban maiormente nos señoríos que estaban preto da fronteira.

Doutra banda, os reis cultivaban unha política de atracción cara ós cabaleiros ‘estranxeiros’ co obxectivo de organizaren o seu propio bando no lado contrario: nas guerras dos séculos XIV e XV funcionaron bandos portugueses nos reinos de Castela e León, e bandos casteláns no reino de Portugal. Entrementres a fronteira non se moderniza, sobrevive a idea feudal de negociar a fidelidade co Rei que mellor lles favorecese, mesmo por parte das comunidades populares de fronteira23. En 1462, o Rei de Portugal, Afonso V, visita ó Miño, concedendo cartas de privilexios ás localidades fronteirizas galegas que o solicitaron por ante el24.

O carácter superestructural da fronteira medieval, certa provisionalidade consubstancial que por forza tiña que influír nas mentalidades colectivas, resultan reforzados ó considerarmos que ós límites entre Castela e Portugal son, no século XIV e XV, reversibles, sobre todo no tocante a Galicia25.

A batalla pola hexemonía peninsular, principiada en 1356 e anovada en 1474, a quebra primeiro en Aljubarrota (1385) do hexemonismo castelán e logo do hexemonismo portugués en Toro (1476)26, de maneira que as cousas quedaron como estaban, axudaron a manter, a finais da Idade Media, a medievalidade da fronteira galaico-miñota, é dicir, a mobilidade social e cultural entrámbalas partes da Galicia altomedieval.

Fronteira medieval, fronteira aberta

“Vivan los dos reyes, moitos anos”, dicían con altas voces as testemuñas de vista presentes cando veciños de Meaus, na raia de Portugal en Ourense, querendo construíren unha casa en terreo mixto, repartían así: “de aquí para allí (y va caminando), por el Rey de Castela; de esta parte a esta, por el Rey de Portugal”27. Este couto mixto, baseado en privilexios dos dous Reis que permitían -a pesar da existencia da aduana- comprar e vender nas feiras de ambos reinos sen pagar impostos, é unha clara reminiscencia medieval: unha pervivencia de longa duración, na conducta e na memoria colectiva, dos hábitos fronteirizos propios da Idade Media. En 1864, os gobernos de España e Portugal -a iniciativa de Isabel II- deron cabo desa situación de privilexio delimitando de novo a fronteira, non deberon logralo totalmente xa que tiveron que volver sobre o asunto en 1866 e en 189628. O problema, obviamente, non era tanto político, de trazar ben a raia afastadora, coma de mentalidades colectivas.

Unha cousa é a fronteira política e outra ben distinta a fronteira mental. Dito de outra forma: a fronteira política medieval non é, socialmente, unha fronteira completa, mental e social, tal como a entendemos hoxe. Vexamos outro exemplo. Tocante ó exercicio da xustiza, o concello de Ourense29 quere obrigar, en 1434, a uns veciños de San Martiño de Presqueira (Baños de Molgas), a devolveren o trigo que roubaran en Ponte Ambía a uns portugueses de Vinhais30; e, en 1441, saen de novo os de concello na defensa duns veciños de Portugal que foran agraviados polos señores ourensáns, Pedro Díaz de Cadórniga e Martín Sánchez, opoñéndose a que os cidadáns mercasen o gando roubado por aqueles na súa acción de represalia no país veciño31.

Por tanto, para a cidade das Burgas, os de Portugal tiñan os mesmos dereitos que os naturais de Galicia, con independencia de que os delictos se cometeran dun ou doutro lado da fronteira, actuaban como se esta non existira. Sen embargo, a existencia de legalidades separadas )podía ser algo ignoto para os letrados e dirixentes de Ourense? A fronteira legal, xurídica, vén ser consecuencia directa da fronteira política entre as xurisdiccións dos Reis, quen na Baixa Idade Media pasan a crear a lei, tentando así o dereito estatal impoñerse ó dereito consuetudinario; isto trae consigo, no caso de nos ocupa, a esixencia dunha política de extradicións entre os Estados, de xeito que cada un, coa colaboración do outro, puidera punir os delictos perpetrados no seu ámbito; ou sexa, trátase de desenvolver -a finais da Idade Media- a fronteira política como unha fronteira plena, mental e xurídica, po medio da xustiza pública.

En 1499, os Reis Católicos confirman mediante provisión un acordo con Portugal, para a mutua extradición de malfeitores, que negociara o alcalde maior de Audiencia de Galicia32. No século XV coñecíase ben a existencia da fronteira legal porque os malfeitores ben que se aproveitaban diso: estaba xeneralizado a costume de traspasaren a fronteira Galicia / Portugal para fuxiren das responsabilidades penais. Unha proba máis do pouco valor que, na época medieval, a xente lle daba ás fronteiras, se cadra porque había moitas. Tampouco a lei servía demasiado. E voltamos ó problema de fondo: a debilidade política do Estado feudal e a forza das relacións de mentalidade.

José Marques investigou as relacións galaico-miñotas a finais da Idade Media33, concluíndo que na “vida real das populaçôes” as relacións eran intensas e cordiais. A saber, a xente vivía coma se non houbese fronteira. Adoitaban os galegos facer casamentos en Portugal34, botar a pacer o gando en Portugal35, ordenar sacerdotes en Portugal36, e viceversa. Pero o gran problema dos Reis eran as relacións comerciais: precisaban cada vez máis transformaren a feble fronteira política nunha fronteira económica. En 1455, Afonso V diríxese ó marqués de Valença e ó conde de Ourém para que puxeran gardas fiscais que impedisen a entrada en Portugal de mercadorías prohibidas -gando, cabalos, armas, moedas-; en cambio, en 1462, o mesmo Afonso V concede cartas de vecindade ás vilas galegas fronteirizas – A Guarda, Tui, …- para que poidan comprar e vender nas feiras de Camiña, Valença, …, sen pagar tributos, como se fosen portugueses, contradicindo polo tanto a política real de pechar a fronteira por necesidades fiscais e económicas37. Sen dúbida algunha, é a maior ou menor efectividade da aduana económica o que da a medida da implantación dunha fronteira nun sentido moderno, actual, orientación que segundo vemos se manifesta contradictoriamente a mediados do século XV.

A pesar de Aljubarrota, e das feridas da guerra de sucesión (1474-1476), en 1485, o concello de Valença chega a un acordo con Tui e o seu bispo, “compre a aboa vezinages de uns e dos outros”, sobre a cuestión das barcas de pasaxe, de maneira que o ‘estrageyro’, viña ser o que non era veciño nin de Valença nin de Tui38.

Saussure dicía que “personas que no se comprenden es que hablan lenguas distintas”39; pois ben, no século XV, os galegos e os portugueses do norte falaban, e mesmo escribían, practicamente a mesma lingua40. Nun preito de principios do século XVI, arguméntase que o testamento de Maior de Soutomaior era falso porque estaba parcialmente escrito en castelán “y la dicha Doña Maior no sabia hablar castellano sino gallego cerrado por ser vezina e natural deste reyno de galicia y el escrivano de quien sonava estar signado ansi mismo era gallego y no savia hablar castellano”; máis adiante lemos que a tal Dona Maior “vivia en el reino de Portugal”41.

Tamén na fronteira Castela / Portugal, máis militar e menos comercial, sen o pasado nacional común que vinculaba as marxes do Miño, podemos dicir que a fronteira medieval é unha fronteira flexible42. Fóra dos períodos de guerra, mesmo os lugares da fronteira peninsular co Islam eran a cotío centros de convivencia entre mouros e cristiáns43, pese a tratarse da fronteira que dividía dúas formacións económico-sociais44. Por último, a fronteira propiamente feudal, que ten como función separar os señoríos entre si, tamén se caracteriza pola súa permeabilidade45.

Realmente, hai datos abondo para que algúns autores se teñan preguntado se existe en verdade a fronteira na Idade Media46. Dende logo a resposta é non se o que temos na cabeza é o concepto moderno de fronteira. Tampouco se supera a contradicción, entre a idea actual de fronteira e a realidade medieval, aplicando a noción moderna pero apostilando que nas fronteiras medievais non hai liñas de demarcación precisas, porque haber hainas. Se, por veces, a fronteira medieval semella espacialmente confusa, vaga, indecisa, é, en todo caso, porque é basicamente unha fronteira aberta, vista e sentida no imaxinario colectivo -nunca mellor dito; por definición trátase de unha liña inventada, que cómpre imaxinarmos- coma un lintel dunha porta aberta, mentres que nos representamos a fronteira moderna coma unha porta fechada á que debemos chamar se queremos entrar.

A especificidade da fronteira medieval, fendedura espacial que corta ben poucas cousas no corpo social, vén da especificidade da distribución de poderes na sociedade feudal. Os señoríos -e as cidades- porfiaban de tal xeito coa realeza polo control do espacio social, que as fronteiras e alfándegas que xeraban tiñan tanta ou máis importancia que as estatais, sobre todo no tocante á vida económica, ós vínculos de vasalaxe, ó sistema de fortalezas; a potencia e agresividade dos poderes señoriais, e os seus dereitos de paso na Galicia baixomedieval, gardan relación directa coa debilidade do poder monárquico e das súas fronteiras. A multiplicidade e a forza das fronteiras interiores debilitaba as exteriores, que no eido mercantil favorecían -como vimos- o libre tránsito en maior grado que o adoito dentro de cada reino, cuestión esta particularmente certa en toda a fronteira Coroa de Castela / Coroa de Portugal, caracterizada por unha grande liberalidade aduaneira; de feito os ingresos fiscais de Rei en Galicia viñan principalmente dos gravames sobre o tráfico de mercancías no interior e nos portos de mar, se ben na práctica eran os señores quen usurpaban estas cuantiosas rendas reais47.

Como na raia de Portugal non había demasiados impostos reais que usurpar, nin dereitos abusivos de portádego que os señores das fortalezas puidesen impoñer, para os galegos viña sendo unha fronteira máis libre que os límites xurisidicionais de cada señorío, de cada fortaleza, pois era no interior do reino onde sufrían, os bens e as persoas, os maiores agravios e limitacións na súa mobilidade48. Cinco anos antes da revolución irmandiña, Afonso V soubo captar o grande abalamento en que os galegos fronteirizos tiñan a liberdade de paso a Portugal, ata o punto de prexudicar como xa dixemos os intereses comerciais xerais49, legalizando o contrabando; dando cartas colectivas de vecindade50 ás poboacións da antiga Galicia bracarense, o Rei de Portugal deixaba sen efecto a fronteira, amosando ó cabo a súa vontade reintegracionista respecto das comarcas ó norte do Miño, o que manifesta claramente en 1476 con motivo de la guerra de sucesión.

Peche de fronteiras, inimistades colectivas

No século XV a idea de reino de Galicia, ou de Portugal, equivale á idea de señorío de Galicia, ou de Portugal51: as entidades nacionais e/ou estatais imaxínanse, pois, coma grandes señoríos. Febvre escribiu que para tal tipo de estado tal tipo de fronteira, e como na Idade Media o estado distinguíase mal das outras formas de sociedade, tampouco as fronteiras estatais tiñan moita máis importancia que os límites entre as soberanías particulares52, a miúdo incluso menos. Superpoñíanse sen cadrar as fronteiras señoriais, eclesiásticas e políticas; e as fronteiras do Rei non eran das que máis incidían na vida cotidiá da poboación.

A transición á modernidade vai significar a emerxencia do Estado e o peche, en diverso grao e de diversa forma, das fronteiras medievais. Da concepción medieval das fronteiras como un sistema de pontes baixo as cales vemos correr un continuum social e cultural, pasamos a un proceso de concentración da soberanía e de homoxeneización do espacio que entraña: a fin das aduanas señoriais interiores53, a nacionalización das xurisdiccións e señoríos eclesiásticos, e o control comercial, fiscal, xudicial, cultural, das fronteiras entre os Estados54.

A finais da Idade Media, na fronteira galego-portuguesa se manteñen relacións intensas de boa vecindade, pero tamén se ergue unha fronteira moral55 que co tempo haberá de callar, estragándose en boa medida as relacións tradicionais, deica hoxe56.

No contexto das guerras pola hexemonía peninsular entre Castela e Portugal, na segunda metade do século XIV e na segunda metade do século XV, constitúense no reino de Galicia sendos partidos: un pro-Portugal e o outro pro-Castela, o segundo rematará por se impoñer nas dúas guerras civís. Síntoma do grao acadado pola polarización mental, mesmo nos medios populares, son os alcumes e insultos que principian a dirixirse entre si galegos e portugueses; verbas aldraxantes que reflictan sentimentos colectivos de mutua hostilidade tributarios, en última instancia, de vastos procesos de recomposición estatal e social.

Logo de 1385, Joâo I animou ós cóengos rebeldes -partidarios do Papa de Roma, igual que Portugal- ó bispo de Tui, que era, o mesmo que Castela, da obediencia do Papa de Avignon. A mazá da discordia eran as propiedades do bispado de Tui en Portugal, entre o río Miño e o río Limia, que ó cabo remataron por ficaren en Portugal, no cadro da nova política de nacionalización das xurisdiccións eclesiásticas. Os tudenses chamaban chamorros ós de Valença, onde se foran a vivir os rebeldes cóengos para elixir un novo bispo de Tui aliñado con Roma, e polo tanto con Portugal. Aínda en 1424, o cabido de Tui require ó concello para que non deixe entrar na vila ós rebeldes excomungados de Valença, debendo prendelos “asi clerigo como leygo”57. Máis enriba fixemos notar como, sesenta anos despois, as relacións Valença-Tui tiñan recobrada a súa cordialidade. Pero o alcume ficou nada menos que ata o primeiro tercio do século XX58.

Chamorro significaba ter o pelo corto e a barba rapada, moda propagada en Portugal a partir do rei Fernando (1367-1383), e que valeu para que os casteláns llo puxeran de mal nome ós portugueses, “ressentidos de batalha de Aljubarrota, donde os poucos que puderam fugir, levaram eternos motivos de chorar”59. Fernâo Lopes pon en boca do derrotado Juan I de Castela: “Fuyo de chamorros …”, o que viña a ser unha grande “deshomrra”60. A verdade é que a voz chamorro (o que “tiene la cabeza esquilada”) podía asumir connotacións ben pexorativas: “corto de haberes, pobre, vil”61. A relación entre andar co pelo corto e o seu sentido aldraxante é máis que probable que estea na identificación simbólica da falta de cabelo coa servidume e a minusvalía62. Xa temos, logo, a fronteira moral erguida.

Vaiamos agora do tempo de Aljubarrota ó tempo de Toro. Durante a guerra de sucesión, un século escaso despois de Aljubarrota, os galegos e os portugueses daranse tanto xeito en deshonrarse reciprocamente que ditas habilidades pronto terán aplicación militar. Os homes do arcebispo Fonseca, e do conde de Monterrei, provocaron ós portugueses de Pedro Álvarez de Soutomaior chamándolles “sebosos, cabrones, que no eran buenos para nada sino para comer bofes de vaca”; e, asemade, os portugueses “arremetieron a los enemigos diciendo: `Esperad, ladrones gallegos, páparos, torrezneyros'”; o de Soutomaior non puido evitar que ós seus homes caeran na celada que os do bando dos Reis Católicos lles tiñan preparada, tal era a forza provocadora dos agravios verbais: foron mortos ou presos cento cincuenta portugueses, defensores da causa de Afonso V, partidario da reintegración de Galicia en Portugal.

Temos dúbidas de que o peche das fronteiras medievais fora posible, e completo, sen esta contribución das inimistades nacionais propias da modernidade. Ningunha medida fiscal ou burocrática lograría, quizais, mellores resultados, que esta difusión de mentalidades nacionais refractarias, á hora de afastar á xente dunha secular convivencia e trato internacional; de aí o interese actual por investigarmos as mentalidades de fronteira, sobre todo se consideramos que -(ironía da historia!-, logo de cincocentos anos, recobramos a fronteira aberta entre España e Portugal no contexto da Unión Europea.

Dixemos que a cada tipo de sociedade e de Estado corresponde, en liñas xerais, un tipo de fronteira; valería dicir, así mesmo, que a cada tipo de fronteira pertence un tipo de autoconciencia nacional. Por conseguinte, o fenómeno do peche da fronteira medieval, )non vai parello coa tendencia moderna a expresar o coñecemento colectivo da propia identidade de forma negativa, contra as comunidades veciñas?

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Notas

1 – José MATTOSO, O essencial sobre a formaçâo da nacionalidade, Lisboa, 1985, pp. 39-40.

2 – Conforme nos achegamos ós tempos modernos, fanse máis longas as ausencias dos Reis de Castela e León no cada vez máis lonxano reino de Galicia, Mentalidad xusticiera, pp. 27-29.

3 – Humberto BAQUERO MORENO, ‘Areas de conflicto na fronteira galaico-minhota no fim da Idade Media’, II Colóquio galaico-minhoto, I, p. 54.

4 – Pascual GALINDO ROMEO, Tuy en la Baja Edad Media (siglos XII-XV), Madrid, , 1923, pp. 21-24; Alexandre HERCULANO, História de Portugal, I, Amadora, 1980, pp. 401-403, 407-408, 413-421, 437-438, 559-566.

5 – Alexandre HERCULANO, op. cit., pp. 413-415; Benito VICETTO, Historia de Galicia (1872), Lugo, 1979, pp. 106-111; José MATTOSO, Identificação de um país, I, Lisboa, 1985, p. 187.

6 – Pascual GALINDO ROMEO, op. cit., p. 24.

7 – Alexandre HERCULANO, op. cit., p. 401.

8 – Alexandre RODRÍGUEZ COLMENERO, Galicia meridional romana, Bilbao, 1977, pp. 14 ss.

9 – Alexandre HERCULANO, op. cit., pp. 373 ss.

10 – Entre 1124 e 1131, sucédense os problemas pola legacía e a xurisdicción eclesiástica co arcebispo de Braga e co bispo de Coimbra, Historia Compostelana, ed. de José CAMPELO, Santiago, 1950, pp. 358, 394, 434-435, 458; Xelmírez acompaña, en 1127, co seu exército a Alfonso VII contra os portugueses, idem, pp. 397-398; en 1137, contribúe con dous mil soldos a que o emperador de León recupere Tui, de novo conquistada por Afonso Henriques, e disponse a xuntar outro exército, idem, p. 508.

11 – Consta que Xelmírez, en 1127, obligó a los compostelanos, parte con ruegos, parte por la fuerza, a seguirle en aquella expedición, Historia Compostelana, p. 398.

12 – Lucien FEBVRE, ‘Frontière: le mot et la notion’, Por une histoire à part entière, Paris, 1962, p. 21.

13 – José MATTOSO, Identificaçâo de um país, pp. 194-195; en 1418, ten lugar un acto notarial na terra da Limia, para marcar e divisar en o termo entre Portugal e Galiza con homes bos dambos dos Reinos en esta maneira, resultando uns lindeiros precisos, a raia de Portugal, baseados en puntos de referencia da paisaxe, publica José Ramón FERNÁNDEZ OXEA (ed.), Descripción de los Estados de la Casa de Monterrey en Galicia, por D. Pedro González de Ulloa (1777), Santiago, 1950, pp. 92-99.

14 – Joaquim VERISSIMO SERRÃO, História de Portugal, I, Póvoa de Varzim, 1978 (2.0 ed.), pp. 87-88.

15 – Na Corte de Castela, séculos despois, por contra, seguían algúns sen veren claro onde remataba Galicia e onde empezaba Portugal, por iso escribía o cronista que, en 1372, avian tomado un logar de Galicia que dicen Viana, Crónica del rey Enrique II, BAE, n1 68, Madrid, 1953, p. 14.

16 – Rita COSTA GOMES, ‘Sobre as fronteiras medievais: A Beira’, Revista de História Económica e Social, n1 21, 1987, pp. 58-59; a fronteira do río Miño malamente pode considerarse imprecisa como di Roger Dion, e só referenciable por medio de castelos e poboacións fortes, segundo Herculano (ibídem), anque tales afirmacións sexan correctas para o período anterior a 1169.

17 – José MATOSSO, Identificaçâo de um país, II, pp. 194-195.

18 – Lucien FEBVRE, op. cit., pp. 22-23.

19 – Jaime GARRIDO RODRÍGUEZ, Fortalezas de la antigua provincia de Tuy, Pontevedra, 1987, p. 250; A.H. OLIVEIRA MARQUES, Portugal na crise dos séculos XIV e XV, Lisboa, 1987, p. 347.

20 – José Luis MARTÍN MARTÍN,’Notas sobre la frontera medieval entre Portugal y Castilla’, 1383-1385 e a Crise Geral dos Séculos XIV/XV. Jornadas de História Medieval. Actas, Lisboa, 1985, pp. 156-157.

21 – Ermelindo PORTELA SILVA, La Región del Obispado de Tuy en los siglos XII a XV, Santiago, 1976, pp. 244 ss.; véxanse cartas reales portuguesas a prol do mosteiro de Oia, dos anos 1340-1455, en Luis SÁNCHEZ BELDA, Documentos reales de la Edad Media referentes a Galicia, Madrid, 1953, pp. 462, 465, 533, 538, 539, 543, 559, 560, 565.

22 – De Paio Sorred, cabeza da linaxe dos Soutomaior de Galicia, di o xenealoxista: tan buen Cavallero como otro qualquier de su tiempo, preciado tanto de los Reyes, i altos señores, que cada uno le queria consigo, Nobiliario del Conde de Barcelos, Madrid, 1646, p. 381.

23 – José MATTOSO, Identificaçâo…, II, p. 195.

24 – José MARQUES, Acçâo governativa de D. Afonso V durante a visita ao Minho, em 1462, Braga, 1984.

25 – En 1476, despois da súa victoria na batalla de Toro, Afonso V propón -sen resultado- ós Reis Católicos, dentro do tratado de paz, que, polos dereitos que como esposo da filla de Enrique IV tinha nos Regnos de Castella, lhe soltassem liuremente algua parte do senhorio della, e que esta seria ho regno de Galiza com todos seus termos, Crónica do Príncipe D. Joâo de Damiâo de Góis, ed. de Graça ALMEIDA RODRIGUES, Lisboa, 1977, p. 128.

26 – A. H. OLIVEIRA MARQUES, Portugal na crise dos séculos XIV e XV, p. 317.

27 – Descripción de los Estados de la Casa de Monterrey en Galicia, pp. 180-181.

28 – ibídem.

29 – O seu afastamento da liña fronteiriza fai máis representativa do conxunto dos galegos a mentalidade ó respecto dos burgueses ourensáns.

30 – Publica Xesús FERRO COUSELO, A vida e a fala dos devanceiros. Escolma de documentos en galego dos séculos XIII ao XVI, II, Vigo, 1967, pp. 258-259.

31 – ídem, pp. 271-272.

32 – Archivo General de Simancas, Cámara de Castilla, leg. 2763, fol. 28 ss.

33 – José MARQUES, Relaçôes económicas do norte de Portugal com o reino de Castela, no século XV, Braga, 1978; Relacôes galaico-bracarenses, no século XV, segundo as matrículas de ordens do Arquivo Distrital de Braga, Ponte de Limia, 1981; Acçâo governativa de D. Afonso V durante a visita ao Minho, em 1462, Braga, 1984; O mosteiro de Oia e a granja da Silva no contexto das relaçôes luso-castelanhas dos séculos XIV-XV, Porto, 1985; Cartas inéditas de D. Joâo I do Arquivo Histórico Nacional de Madrid, Braga, 1985.

34 – José MARQUES, Relaçôes económicas…, pp. 12, 14, 16, 48.

35 – José MARQUES, ídem, p. 14.

36 – Fenómeno indicativo de unha forte relación informativa, José MARQUES, Relaçôes galaico-bracarenses…, p. 342

37 – José MARQUES, Relaçôes económicas …; Acçâo governativa …; é moi posible que o interese do Rei de Portugal en manter boas relacións co reino de Galicia -e internamente coa rexión do Minho- teña que ver a política, manifestada catorze anos despois, de integrar a Galicia no reino de Portugal (véxase a nota 25).

38 – ACT, Libro Becerro, I, fol. 244-245, publ. Ernesto IGLESIAS ALMEIDA, Los antiguos “portos” de Tuy y las barcas de pasaje a Portugal, Apéndice, doc. n1 2.

39 – Ferdinand de SAUSSURE, Curso de Lingüística general, Madrid, Akal, 1980, p. 269.

40 – Véxanse, por exemplo, os documentos portugueses mentados nas notas 30 e 38; tamén Henrique CHAO ESPINA, “Algumas diferenças entre o Galego e o Português”, Bracara Augusta, n1 59-62, 1971-1972, pp. 238-248.

41 – Memorial ajustado del pleito Teresa de Soutomaior / García Sarmiento sobre la fortaleza de Fornelos, Biblioteca Museo de Pontevedra, Colección Solla, caixa 60, fols. 9, 10, 55.

42 – José Luis MARTÍN MARTÍN, “Notas sobre la frontera medieval entre Portugal y Castilla”, 1383/1385…, pp. 155, 157, 158; J. MARQUES, Relaçôes económicas …, pp. 17, 18, 39.

43 – Angus MACKAY, La España de la Edad Media. Desde la frontera hastal el Imperio (1000-1500), Madrid, Cátedra, 1985, pp. 214-222.

44 – Reyna Pastor, Del islam al cristianismo. En las fronteras de dos formaciones económico-sociales, Barcelona, Península, 1985, pp. 9-17.

45 – P. PEYVEL, “Structures féodales et frontières médiévales: l’exemple de la zone de contact entre Forez et Bourbonnais aux XIIIe et XIVe siècles”, Le Moyen Age, 1, 1987, pp. 80 ss.

46 – José Antonio MARAVALL, Estado moderno y mentalidad social (siglos XV a XVII), I, Madrid, 1972, p. 121; P. PEYVEL, op. cit., p. 51; R. COSTA GOMES, op. cit., pp. 57-58, 61.

47 – Miguel Ángel LADERO QUESADA, La Hacienda Real de Castilla en el siglo XV, La Laguna, 1973, pp. 80, 119-125.

48 – Mentalidad justiciera, pp. 127 ss.

49 – Miguel Ángel LADERO, op. cit., p. 120.

50 – José MARQUES, Relaçôes económicas …; Acçâo governativa …

51 – Véxanse os documentos citados nas notas 30 e 31.

52 – Lucien FEBVRE, op. cit., p. 18.

53 – José Antonio MARAVALL, op. cit., pp. 129-132.

54 – José Luis Martín Martín estudiou o paso dunha fronteira flexible entre Portugal e Castela a unha fronteira ríxida, particularmente despois dos feitos de 1383-1385, en “Notas sobre la frontera medieval entre Portugal y Castilla”, 1383/1385…

55 – Lucien FEBVRE, op. cit., p. 19.

56 – Para os tempos máis recentes, véxase Ramón VILLARES, “As relacións da Galiza con Portugal na época contemporánea”, Grial, n1 81, 1983, pp. 301-314.

57 – Pascual GALINDO ROMEO, op. cit., p. 55.

58 – En la comarca norte de Galicia aún hace pocos años se daba este nombre a los gallegos de la raya del Miño, Boletín de la Comisión de Monumentos de Orense, XII, 1939-1940, p. 235.

59 – Joaquim de SANTA ROSA de VITERBO, Elucidário das palavras, termos e frases, II, Porto-Lisboa, 1966, p. 93; A.H. OLIVEIRA MARQUES, A Sociedade medieval portuguesa, Lisboa, 1981, p. 61.

60 – Fernâo LOPES, Crónica de D. João I, II, Porto-Lisboa, 1983, pp. 110, 157.

61 – Joan COROMINAS, Diccionario crítico etimologico castellano e hispánico, II, Madrid, 1984, p. 320.

62 – Joaquin de SANTA ROSA, op. cit., pp. 55-56.

 

 

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Artigo de Ana Paula Pereira Costa1 Doutoranda em História Social pelo PPGHIS/UFRJ

Introdução

Não obstante alguns autores enfatizarem a importância das organizações militares para a Coroa portuguesa, seja enquanto força coercitiva seja enquanto força administrativa, o interesse pela história militar no Brasil colonial tem-se mostrado bastante reduzido2. Boa parte da historiografia que trata do período colonial destaca a relevância das forças militares para a Coroa na administração dos domínios ultramarinos visto que normatizavam a população a fim de enquadrá-la em uma ordem que permitisse o bom funcionamento da sociedade colonial3.

A estrutura militar lusitana, que se transferiu para o Brasil, se dividia em três tipos específicos de força: os Corpos Regulares (conhecidos também por Tropa Paga ou de Linha), as Milícias ou Corpo de Auxiliares e as Ordenanças ou Corpos Irregulares. Os Corpos Regulares, criados em 1640 em Portugal, constituíam-se no exército “profissional” português, sendo a única força paga pela Fazenda Real. Essa força organizava-se em terços e companhias, cujo comando pertencia a fidalgos de nomeação real. Cada terço era dirigido por um mestre-de-campo e seus membros estavam sujeitos a regulamentos disciplinares. Teoricamente, dedicar-se-iam exclusivamente às atividades militares. Seriam mantidos sempre em armas, exercitados e disciplinados4.

As Milícias ou Corpos de Auxiliares, criados em Portugal em 1641, eram de serviço não remunerado e obrigatório para os civis constituindo-se em forças deslocáveis que prestavam serviço de apoio às Tropas Pagas. Organizavam-se em terços e companhias, sendo seu enquadramento feito em bases territoriais, junto à população civil. Os Corpos de Auxiliares eram armados, exercitados e disciplinados, não somente para operar com a Tropa Regular, mas também para substituí-la quando aquela fosse chamada para fora de seu território. Esta força era composta por homens aptos para o serviço militar, já que eram “treinados” para tanto e que sempre eram mobilizados em caso de necessidade bélica. Entretanto, não ficavam ligados permanentemente à função militar como ocorre nas Tropas Regulares. Sua hierarquia se organizava da seguinte forma: mestres-de-campo, coronéis, sargento-mores, tenentes-coronéis, capitães, tenentes, alferes, sargentos, furriéis, cabos-de-esquadra, porta-estandartes e tambor. Deve-se observar que o título de Mestre de Campo era atribuído ao comandante de Terço de Infantaria, enquanto o título de Coronel era atribuído ao comandante do Terço de Cavalaria5.

A completar o tripé da organização militar estariam os Corpos de Ordenanças. Criados pela lei de 1549 de D. João III e organizados conforme o Regimento das Ordenanças de 15706 e da provisão de 15747, os Corpos de Ordenanças, possuíam um sistema de recrutamento que deveria abranger toda a população masculina entre 18 e 60 anos que ainda não tivesse sido recrutada pelas duas primeiras forças, excetuando-se os privilegiados8. Conhecidos também por “paisanos armados” possuíam um forte caráter local e procuravam efetuar um arrolamento de toda a população para as situações de necessidade militar. Os componentes das Ordenanças também não recebiam soldo, permaneciam em seus serviços particulares e, somente em caso de grave perturbação da ordem pública, abandonavam suas atividades. O termo “paisanos armados” carrega em si a essência do que seria a qualidade militar dos integrantes das Ordenanças, isto é, um grupo de homens que não possuía instrução militar sistemática, mas que, de forma paradoxal, eram utilizados em missões de caráter militar e em atividades de controle interno9. Também se organizavam em terços que se subdividiam em companhias10. Os postos de Ordenanças de mais alta patente eram: capitão-mor, sargento-mor, capitão. Os oficiais inferiores eram os alferes, sargentos, furriéis, cabos-de-esquadra, porta-estandartes e tambor11.

O presente artigo pretende abordar alguns aspectos acerca dos mecanismos de funcionamento desta última força militar, tendo como recorte espacial e cronológico a comarca de Vila Rica entre os anos de 1735-1777, atentando-se sobretudo para os direitos, privilégios e obrigações inerentes a seus postos de mais alta patente. Neste sentido, consideramos que era fundamental que o ocupante de um posto nas Ordenanças obtivesse autoridade e reconhecimento público e social para que conseguissem tornar-se face visível do poder.

Assim, consideraremos que se por um lado os direitos, privilégios e obrigações apresentadas a este oficialato delimitavam seus papéis sociais e funções, por outro, lhes propiciavam firmar espaços de prestígio e distinção, os quais levavam à consolidação de seus instrumentos de mando e “qualidade” social nas conquistas.

Ressaltes-se que a invocação da “qualidade” (social) é visível nos atos de nomeações para postos militares a fim de escolher o dirigente ideal12, pois tanto em Portugal quanto no ultramar, mais importante que os saberes particulares de guerra na composição de um chefe militar era sua “qualidade”13.

No ultramar esta qualidade estava invariavelmente associada à nobreza, mas não a uma nobreza derivada do ilustre nascimento, do sangue e hereditária, e sim a um ideal que invocava a concepção de “nobreza civil ou política” isto é, baseada na prestação de serviços ao Monarca14 , bem como a um ideal com um caráter guerreiro, atrelado à noção de conquistador15.

1. Conhecendo as forças

De acordo com António Hespanha, as Ordenanças em Portugal, e mesmo no ultramar, tiveram um impacto político disciplinador, pois através delas se fazia chegar às periferias as determinações do centro; bem como tiveram um caráter dispersor do poder régio ao fomentar o reforço das elites locais e também ao se oporem aos comandos centralizados da Tropa profissional Paga16.

Para o caso português, alguns autores têm destacado a importância das Ordenanças como fonte de poder na esfera local e aliada na implementação das diretrizes administrativas17. Por seu turno, a convivência da Coroa com os poderes locais tem sido apontada como principal contraponto do exercício “absoluto” da autoridade régia em seus domínios18. O papel que tais poderes desempenharam compreende uma conjugação entre comportamentos classicistas (pois as classes dirigentes das localidades não eram homogêneas, fato que repercutiu em seus comportamentos), solidariedades estamentais e laços de patrocínio, tudo conjugado com o poder conferido pela outorga de honras pelo Rei. Este poder podia ser significativo quando a Coroa tinha uma ampla capacidade de patrocínio visto que, quando usado judiciosamente, permitia incorporar novos grupos sociais ao aparelho estatal e assim ampliar sua base social. Entretanto, este processo fazia com que a Coroa não pudesse prescindir do apoio destes grupos dando lugar ao florescimento de clientelas e de redes de intermediários sociais19.

Vale lembrar que esta sociedade regia-se a partir de um paradigma corporativista segundo o qual o indivíduo não existe sozinho e sim como parte de um todo ocupando um lugar na ordem, uma tarefa ou dever social20. Desta forma, a partir deste paradigma pregava-se que o poder era, por natureza, repartido; e, numa sociedade bem governada, esta partilha natural deveria traduzir-se na autonomia político-jurídica dos corpos sociais. A função da cabeça (Rei) não era, pois, a de destruir a autonomia de cada corpo social, mas por um lado, a de representar externamente a unidade do corpo e, por outro, a de manter a harmonia entre todos os seus membros, atribuindo a cada um aquilo que lhe é próprio; garantindo a cada qual o seu estatuto (“foro”, “direito”, “privilégio”); numa palavra, realizando a justiça21. Nesta perspectiva, a representação do sistema político ocorreria através de uma articulação hierarquizada de múltiplos círculos autônomos de poder tais como as famílias, as cidades, as corporações, os senhorios, os reinos, o Império, nos quais a articulação dos poderes se faria de acordo com os mecanismos espontâneos decalcados sobre as relações sociais de poder, ou seja, sobre o poder efetivo de cada esfera para impor às outras o seu reconhecimento22.

Deste modo, e conforme destacou António Hespanha, o Estado português na Época Moderna não deve ser entendido sob o ponto de vista da centralização excessiva, mas a partir do conceito de Monarquia Corporativa. Neste sentido teríamos um Estado no qual o poder real partilhava o espaço político com outras instâncias de poder: Igreja, Concelhos, Senhores, Família; onde o direito legislativo da Coroa seria enquadrado pela doutrina jurídica e por usos e práticas locais; onde os deveres políticos cediam ante os deveres morais (graça, piedade, gratidão, misericórdia) ou afetivos (redes de amigos e clientes); e onde os oficiais régios teriam ampla proteção de seus direitos e atribuições, tendendo a minar o poder real23.

Assim, ao mesmo tempo em que se reconheceu a importância dos poderes locais para a efetivação do poder régio em muitos de seus domínios, se descobriu que a vitalidades do mesmo era indissociável da constituição de poderosas elites locais24. Como bem demonstrou Pedro Cardim, o Rei estabelecia com os grupos dirigentes do reino, e das localidades ultramarinas, vínculos de interdependência e de complementaridade: o monarca cada vez mais contou com os serviços destes homens nomeando-os para os mais variados postos e cargos nos mais variados lugares de seu Império. Por seu turno, tais indivíduos esperavam que a realeza os recompensassem devidamente pelos serviços prestados. Este sistema de remuneração de serviços funcionou como o principal suporte do regime político luso moderno. Em contrapartida, este mesmo sistema de concessão de mercês abriu espaço para uma maior perifização do poder e para a emergência de grupos locais com interesses próprios25.

Dentro deste viés, na última década estudos que têm se dedicado ao processo de colonização brasileira vêm se atentando para a limitação dos poderes régios e, consequentemente, para a atuação de poderes locais na construção da autoridade metropolitana na colônia; para a negociação que envolvia as relações entre Coroa e súditos, para a formação de uma “nobreza da terra” e para a influência de práticas e valores de Antigo Regime nos diferentes setores da sociedade26. Esta historiografia assinala que as tensões afetando os principais grupos de poder na América Portuguesa estiveram vinculadas a um dado perfil de formação do súdito colonial, destacando a forma e a força da dinâmica local nas relações de poder. Conforme destacou Jack Greene as elites coloniais foram capazes tanto de opor resistência quanto de usar as instituições metropolitanas em prol de seus objetivos27.

Ressalte-se que este processo de atuação das elites no território colonial vinha seguindo um padrão definido em moldes gerais pelas normas e agências institucionais estabelecidas pela própria Coroa. Maria Fernanda Bicalho analisou muito bem esta questão destacando que nas conquistas, através do controle de instituições locais como as Câmaras, as Ordenanças e as Irmandades, as elites coloniais procuraram ter acesso a honras, privilégios e signos de distinção28. Estes três órgãos/instituições constituíam-se em esferas de poder local, sendo fundamentais para garantir a convivência “ordenada” da população na América Portuguesa29.

No caso das Ordenanças sua importância para a Coroa tem sido atestada por se constituírem em um espaço de negociação que fundamentava os vínculos políticos entre a Metrópole e a Colônia sendo, portanto, um canal de encontro e colaboração entre Metrópole e comunidades locais, bem como uma esfera de negociação de conflitos e divergências30, e também por se constituírem em um importante componente da administração lusa na colônia, pois levavam a ordem legal e administrativa da Coroa para os lugares mais longínquos de seu vasto Império31. Este elemento também é ressaltado por Raymundo Faoro, para quem as Ordenanças constituíram a “espinha dorsal” da colônia, elemento de ordem e disciplina32.

Alguns autores destacam que os indivíduos que ocupavam os quadros da oficialidade de Ordenanças eram, em sua maioria, membros das elites proprietárias locais, sem nenhuma experiência militar, e que sua posição de patenteado implicava em prestígio e poder, mas em nenhuma responsabilidade, e por isso atuavam, muitas vezes, de forma independente, violando ordens e abusando de sua autoridade33. Não se desconsidera que os abusos de autoridade existiram, muito menos que os indivíduos atuantes nas Ordenanças não se constituíam em meros executantes dos interesses do poder central e de seus representantes ultramarinos, pois eram também agentes representantes de interesses inscritos na esfera local34. Contudo, a idéia de que os oficiais de Ordenanças não possuíam nenhuma responsabilidade e de que se constituíam em forças independentes sem nenhuma ligação com o poder régio, é demasiado deturpada. Estes estudos não se atentaram para o fato de que o Rei detinha o controle da nomeação dos oficiais, através da concessão de postos militares, e que por meio disto, e da concessão de outras mercês, a Coroa estabelecia vínculos estratégicos com os colonos que propiciavam a expansão de seus interesses no além-mar35.

2. Direitos, privilégios e obrigações apresentadas aos oficiais de Ordenanças

Ser capitão- mor, sargento-mor, capitão era uma forma de identificação no mundo colonial que muitos indivíduos passaram a assumir instalados nas conquistas e essa identificação definia seu lugar social na hierarquia do Antigo Regime que, além de lhes impor uma série de obrigações, lhes garantiam também direitos que faziam questão de usufruir36.

Os privilégios adquiridos com uma patente de Ordenanças eram vários e sempre sublinhados nas cartas patentes que assim sobre eles discorriam “[…] na ocupação do posto não vencerá soldo algum mas gozará de todas as honras, privilégios, liberdades e isenções e franquezas que em razão dele lhe pertencem […]”. Através do Regimento de 1570 podemos ter acesso a alguns destes privilégios dados aos homens de patente. No referido Regimento ficava assim estipulado:

“[…] todo capitão-mor e capitão logram do privilegio de cavalleiro fidalgo; todo militar goza de nobreza pelo privilegio do foro, ainda que antes de o ser militar tenha sido mecanico, de qualquer qualidade, ou condição, por ella he dado a suas mulheres, filhas e descendentes do genero feminino o titulo de dom. São tambem isentos dos encargos dos concelhos, não pagão jogados aos reguengos, não podem ser presos em ferros nem presos por dívida,; lograo privilegio de aposentadoria ativa e passiva […]”37.

De todos os direitos que possuíam, o que os possibilitavam meio de nobilitação era o mais valorizado e sempre que alguma situação impedia que tal direito fosse exercido, os oficiais não se privavam de reivindicá-lo. O caso do capitão-mor de Ouro Preto António Ramos dos Reis denota exemplarmente o que estamos querendo dizer quando remete para o Conselho Ultramarino uma reclamação de que os privilégios cabíveis a seu posto não estavam sendo respeitados e validados. Natural do Porto chegara ao Brasil com 9 anos de idade com seus pais António Martins Ramos e Maria Gonçalves e vivera no Rio de Janeiro antes de vir para as Minas. No Rio de Janeiro se casou com Vitória dos Reis e com ela tivera três filhos. Ainda nesta cidade iniciou sua carreira militar servindo alguns anos em praça de soldado infante em um dos terços da Guarnição do Rio de Janeiro38. Em 1714 encontramos António Ramos dos Reis em Minas Gerais onde estabeleceu uma trajetória de sucesso ocupando vários postos militares importantes como o de capitão de auxiliares no distrito de São Bartolomeu, o de mestre-de-campo de Vila Rica em 1732 e ,em 1741, o de capitão-mor das Ordenanças de Vila Rica. Mostrou-se:

“[…] fiel a V. Mag. em todos estes serviços fazendo muitas de suas obrigações com despesas de sua fazenda, como na ocasião em que socorreu o Rio de Janeiro quando os franceses invadiram tal cidade com seus escravos armados e fazendo tal jornada à custa de sua fazenda. Como também na ocasião em que ajudou na contenção da revolta contra o ouvidor geral Manoel da Costa Amorim com seus escravos armados […]”39.

Além da ocupação de importantes postos militares, António Ramos dos Reis ocupou também importantes cargos como o de vereador e o de juiz de órfãos, ambos em Vila Rica, sendo também membro de importantes Irmandades de Vila Rica, do Rio de Janeiro e de Portugal40. Além de todos estes postos e cargos que lhe conferiam enorme prestígio e atestavam sua “qualidade” , este oficial foi também um dos homens mais abastados das Minas Gerais, sendo descobridor de uma grandiosa lavra localizada no morro chamado comumente de morro do Ramos onde tem serviço de talho aberto e varias minas com muitas grades, tanques de recolher águas onde tem para cima de 100 escravos. Além disso, tinha também várias moradas de casas em Ouro Preto e no Rio de Janeiro, além de outra fazenda, também no Rio de Janeiro, com casa de vivenda e capela, hum curral de criação de gado vacum com mais de 20 escravos41, dados nada desprezíveis nesta sociedade para aqueles que quisessem reconhecimento público da distinta posição social que ocupavam. António Ramos dos Reis era também cavaleiro professo da Ordem de Cristo42, o que consistia num poderoso mecanismo de distinção social que evocava dignidade e nobreza43.

Segundo Norbert Elias, numa sociedade permeada por valores e práticas de Antigo Regime, a forma como se era visto era imprescindível para a determinação de sua posição e distinção enquanto elite44, e as festas barrocas eram excelente momento para se externalizar posições de mando e prestígio. Emanuel Araújo destaca que as festas eram lugar de expressão de fidalguia, que ressaltava o brilho, o poder e a grandeza dos participantes, sendo legitimadoras do poder local na medida em que introjetavam valores necessários à ordenação e domínio sobre a sociedade45.

Assim, nesta sociedade marcada por símbolos, rituais e valores voltados para a distinção e nobiliarquia, o respeito às regras do cerimonial e a ocupação das posições de destaque eram fundamentais para o reconhecimento da “qualidade” e da autoridade.

Não por acaso, António Ramos dos Reis reclama que suas honras e lugar que deveria ocupar na festa realizada em Vila Rica para comemorar o nascimento da infanta não foram respeitados. Argumenta que:

“[…] na referida festa se deo ao suplicante acento com impropriedade faltandose a elle a honra devida e que por ocupar o posto de capitão-mor lhe eram competentes todas as honras e privilegios, liberdades e isençoens concedidos às pessoas que ocupam tais postos em qualquer parte do reino […]”46.

Para tentar evidenciar que este privilégio era quase um “direito adquirido” o dito oficial cita um caso semelhante ao seu que ocorreu na Bahia em 1716 ao se negarem as honras ao mestre de campo Miguel Pereira da Costa onde se resolveu que se restituissem ao dito mestre de campo seu lugar de direito47.

Do acima exposto depreende-se que em uma sociedade de Antigo Regime, para que os oficiais conseguissem manter sua “qualidade”, fazia-se necessário estar em constante movimentação nas teias sociais que permeavam seu cotidiano. Por ser uma sociedade marcada por tensão permanente, a estagnação podia ser fatal para aqueles que almejassem ascender socialmente48. Por estagnação entendemos o não aproveitamento dos recursos de que este oficialato dispunha nesta sociedade para adquirir mais prestígio e aumentar suas posições de comando; recursos estes que surgiam das próprias relações sociais que eles mantinham e que em última instância denotava autonomia e autoridade política por parte destes indivíduos.

Muitas também eram as obrigações a que este oficialato estava sujeito. Talvez uma das mais elementares era ter de morar no distrito onde atuava. Em todas as cartas patentes vinha assim estipulado “[…] são obrigados a residir sempre dentro do distrito da dita sua companhia, sob pena de se lhes dar baixa e prover outra pessoa no referido posto […]”. O Regimento das Ordenanças de 1570 também dissertava acerca deste assunto argumentando que “[…] se o capitão-mor se ausentar até 2 meses no verão e 6 meses no inverno o sargento-mor lhe substitui, se sua ausência passar disso deve-se eleger outro capitão-mor […]”49. De fato, encontramos alguns casos em que a perda de um posto foi devida à mudança para outras localidades. António Luís Brandão, por exemplo, ganha a patente de capitão de Ordenança de Pé no arraial da passagem em 1741 devido “[…] ausência que fez para o Rio de Janeiro o capitão della António Álvares da Cruz, estabelecendo nesta cidade sua casa, como me constou por informação do capitão mor desta villa”50. A importância do “critério da residência” é atestada por Fernando Dores Costa para quem “a cadeia de autoridade definida na companhia rege-se pelo critério da residência. O ‘espírito’ que parece guiar o regimento é o de garantir a presença dos dirigentes do treino obrigatório nos locais onde se organizam as companhias”51.

Outra obrigação dos oficiais de Ordenanças, sobretudo dos capitães-mores, bem como dos sargentos-mores era organizar os alardos ou “mostras gerais”, ou seja, impor o treino militar. Estes deveriam ter lugar duas vezes por ano, mas sem uma regularidade definida. Após a convocatória as companhias de cada localidade deveriam reunir-se no local determinado, geralmente na praça pública em frente às câmaras, para serem inspecionados e se efetuarem os exercícios. Durante os alardos estes oficiais examinavam as armas dos soldados, para verificar se estas se encontravam em condições de uso52.

Cabia ainda aos oficiais, em caso de ataque inimigo, organizar a defesa e zelar pela conservação e reparo das estruturas defensivas. Durante todo o século XVIII foi constante a atuação de oficiais de Ordenanças em contenção de revoltas, ataque a quilombos, vigilância de caminhos e defesa de fronteiras.

A fragilidade da estrutura burocrática da Coroa determinava que para o desempenho de certas funções administrativas também se recorresse à colaboração dos oficiais de Ordenanças, o que acabou se tornando quase uma “obrigação” para estes indivíduos, até porque sem estas prestações de serviços não conseguiam sua ascensão e atestação de sua “qualidade”. Eleitos entre os “principais da terra”, eles eram muitas vezes chamados a desempenhar funções que em princípio caberiam as extensões periféricas do poder central, realidade presente não só no ultramar mas também no reino53. Entre estas atividades administrativas sob responsabilidade dos oficiais de Ordenanças, no período abordado, estavam a construção de obras públicas e a coleta de alguns tributos, como a capitação e o quinto, atuações com as quais também contribuíam para a manutenção da ordem pública54.

Por exemplo, em 1748 Manuel Cardoso Cruz e Manuel Teixeira Chaves, capitães de Ordenanças de Mariana, enviam um requerimento ao Rei D. João V solicitando que se ajustasse a melhor forma de se evitar as inundações da cidade, causadas pelas cheias do ribeirão do Carmo. Argumentam que:

“[…] desejam evitar os dannos que se encaminha para a cidade e a ruina dos seos habitantes e que querem fazer hua obra para evitar as ditas cheias, mas que tal obra é impocivel não só as rendas do senado da vila, mas ainda as posses de todos os moradores da vizinhança della […]”55.

Reconhecem que tal obra era de utilidade ao “bem comum” e à Coroa e se oferecem para fazer a dita obra “movidos não só de utilidade própria, mas do bem comum e pelo desejo que como leais vacalos tem de servir a S. Mag”. Entretanto, colocam algumas condições:

“[…] pedem uma pequena despesa annual do senado da mesma cidade, os foros que se paga ao senado das terras que se tem aforado e aforarem de casas feitas que rendem 600 mil por anno(…)e pedem também as terras por onde passa o dito rio das quais já se tirou já o ouro e que alguns proprietários os ajudem com certo número de escravos correspondentes as terras que tiverem, e pedem também que os escravos, assim como pardos, prettos, forros que por crimes merecerem degredos lhe sejam dados para trabalharem na dita obra”56.

Do acima exposto pode-se dizer que os oficiais participavam de certa forma do controle da vida política e econômica das localidades, exerciam um relativo poder sobre as populações e revelavam-se essenciais a um aparelho estatal em construção; um recurso que a Coroa lançou mão em Portugal, depois da guerra da Restauração, e que foi repassado para a América57.

Para finalizar destaco que o funcionamento da organização bélica, pelo menos no que diz respeito às Ordenanças na região e período enfocados, estava estritamente ligado às medidas régias que por meio do sistema de mercês, coadunava as ações e relações dos coloniais, no caso dos oficiais, para o ordenamento do espaço social que pretendia dominar. Obviamente que nem sempre os desígnios régios para ordenamento do espaço social iam de encontro aos interesses dos indivíduos ou grupos que os colocavam em prática, e que justamente por se constituírem em homens possuidores de autoridade dos quais a Coroa não podia prescindir, podiam negociar com a mesma a defesa de interesses.

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Notas

01 – As observações aqui apresentadas foram retiradas de minha Dissertação de Mestrado intitulada “Atuação de poderes locais no Império Lusitano: uma análise do perfil das chefias militares dos Corpos de Ordenanças e de suas estratégias na construção de sua autoridade. Vila Rica, (1735-1777)” defendida no PPGHIS/UFRJ.

02 – MELLO, Christiane Figueiredo Pagano de. Os Corpos de Auxiliares e de Ordenanças na segunda metade do século XVIII: as capitanias do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e a manutenção do Império Português no centro-sul da América. Niterói: UFF, 2002. Tese de doutorado, p. 1.

03 – Neste sentido ver FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Vol. 1. São Paulo: Globo; Publifolha, 2000, passim e PRADO Jr. Caio, Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000, especialmente o capítulo 3; LEONZO, Nanci. As companhias de ordenanças na capitania de São Paulo: das origens ao governo de Morgado de Mateus. São Paulo: coleção do museu paulista, série história, v. 6, 1977; BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Autoridade e conflito no Brasil colonial: o governo do Morgado de Mateus em São Paulo (1765-1775). São Paulo, Conselho Estadual de Artes e Ciências Humanas, 1979; PEREGALLI, Enrique. Recrutamento militar no Brasil colonial. Campinas: Editora da Unicamp, 1986. MELLO, Christiane Figueiredo Pagano de. Os corpos de auxiliares e de ordenanças na segunda metade do século XVIII… Op. cit.; MELLO E SOUZA, Laura de. Desclassificados do ouro… Op. c it.; ANASTASIA, Carla. Vassalos e rebeldes: violência coletiva nas Minas na primeira metade do século XVIII. Belo Horizonte: C/ Arte, 1998.

04 – SILVA, Kalina Vanderlei. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial: militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. Recife: Fundação de Cultura Cidade de Recife, 2001, ver capítulo 2.

05 – FILHO, Jorge da Cunha Pereira. “Tropas militares luso-brasileiras nos séculos XVIII e XIX”. In: Boletim do Projeto “Pesquisa Genealógica Sobre as Origens da Família Cunha Pereira”. Ano 03, nº. 12, 1998, p. 19-21.

06 – A respeito disso ver: Regimento das Ordenanças de 1570. In: COSTA, Veríssimo Antonio Ferreira da. Collecção Systematica das Leis Militares de Portugal, Tomo IV – “Leis pertencentes às Ordenanças”, Lisboa, Impressão Regia, 1816. Localização: BN/F,4,3-5/Divisão de Obras Raras.

07 – Esta provisão editada quatro anos depois de promulgado o Regimento das Ordenanças complementava o mesmo com algumas alterações e esclarecimentos fundamentados nas necessidades decorrentes da atuação prática das Ordenanças. Para maiores detalhes ver: Provisão das Ordenanças de 1574. In: COSTA, Veríssimo Antonio Ferreira da. Collecção Systematica… Op. cit.

08 – MONTEIRO Nuno G. “Os concelhos e as comunidades”. In: HESPANHA, António M. (Org). História de Portugal: o Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1998. Vol. 4, p. 273.

09 – COTTA, Francis Albert. “Os Terços de Homens Pardos e Pretos Libertos: mobilidade social via postos militares nas Minas do século XVIII”. MNEME – Revista de Humanidades. http://www.seol.com.br/mneme/, p. 3.

10 – Idem, p. 4.

11 – FILHO, Jorge da Cunha Pereira. “Tropas militares luso-brasileiras nos séculos XVIII e XIX…” Op. cit., p. 5-9.

12 – COSTA, Fernando Dores. “Fidalgos e plebeus”. In: HESPANHA, António M. (Org). Nova História Militar de Portugal. Vol. II – séculos XVI-XVII. Lisboa: Círculo de Leitores: 2003, p. 106-107.

13 – HESPANHA, António M. “Introdução”. In: HESPANHA, António Manuel (Org). Nova História Militar de Portugal… Op. cit., p. 20-24.

14 – MONTEIRO, Nuno Gonçalo. “Poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia” In: HESPANHA, Antônio M. (Org). História de Portugal…Op. cit., p. 298-299. Conforme destacou Nizza da Silva, a nobilitação dos coloniais perpassa pela prestação de serviços ao Monarca que retribui com mercês que vão nobilitando cada vez mais estes indivíduos. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na colônia. São Paulo: Ed. Unesp, 2005, p.7-10.

15 – Acerca desta noção ver: FRAGOSO, João. “A nobreza da República: notas sobre a formação da primeira elite senhorial do Rio de Janeiro (séculos XVI e XVII)”. In: Topoi: Revista de História. Rio de Janeiro, vol. 1, 2000; FRAGOSO, João. “A nobreza vive em bandos: a economia política das melhores famílias da terra do Rio de Janeiro, século XVII: algumas notas de pesquisa”. Revista Tempo. Niterói, volume 15, 2003. Ver ainda BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, principalmente capítulo 12.

16 – HESPANHA, António M. “Conclusão”. In: HESPANHA, António Manuel (Org). Nova História Militar de Portugal… Op. cit., p. 362.

17 – MONTEIRO, Nuno G. “Os concelhos e as comunidades…” Op. cit., p. 273. Ver também: ALDEN, Dauril. Royal government in colonial Brazil: with special reference to the administration of the Marquis of Lavradio, Viceroy, 1769-1779. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1968. p. 443-446. Ver ainda: HESPANHA, António Manuel (Org). Nova História Militar de Portugal… Op. cit.

18 – MONTEIRO, Nuno G. “Os concelhos e as comunidades”. In: HESPANHA, António M. (Org.). História de Portugal… Op. cit., p. 275.

19 – PUJOL, Xavier G. “Centralismo e localismo? Sobre as relações políticas e culturais entre capital e territórios nas monarquias européias dos séculos XVI e XVII”. In: Penélope, n. 6, 1991. p. 129.

20 – HESPANHA, A M. Panorama Histórico da Cultura Jurídica Européia. Madri: Editorial Tecnos, 1998. p. 59-61.

21 – Idem, p. 61-63.

22 – HESPANHA, António M. As vésperas do Leviathan: instituições e poder político. Portugal – século XVII. Coimbra: Almedina, 1994. p. 298-308.

23 – HESPANHA, António. “A constituição do Império Português: revisão de alguns enviesamentos correntes”. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria F. & GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI – XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 166-167.

24 – MONTEIRO, Nuno G. “Os concelhos e as comunidades…” Op. cit., p. 288.

25 – CARDIM, Pedro. “Centralização política e Estado na recente historiografia sobre o Portugal do Antigo Regime”. In: Revista Nação e Defesa. Lisboa: Instituto de Defesa Nacional, nº. 87, 1998. p. 134-135.

26 – A título de ilustração podemos citar: FRAGOSO, João. “A nobreza da República: notas sobre a formação da primeira elite senhorial do Rio de Janeiro”… Op. cit., p. 45-122; FRAGOSO, João, BICALHO, Maria F. & GOUVÊA, Maria F. (Orgs). O Antigo Regime nos trópicos… Op. cit.; BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império… Op. cit.; FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócio: a interiorizarão da metrópole e do comércio nas minas setecentistas. São Paulo: HUCITEC, 1999.

27 – GREENE, Jack. “Negotiated Authorities: the problem of governance in the extended polities of the early modern Atlantic world”. In: Negotiated Authorities. Essays in colonial political and constitutional history. Charlottesville, University Press of Virginia, 1994. Passim.

28 -BICALHO, Maria F. “As câmaras ultramarinas e o governo do Império” In: FRAGOSO, João, BICALHO, Maria F. & GOUVÊA, Maria F. (Orgs). O Antigo Regime nos trópicos… Op. cit., p. 207.

29 – GOUVÊA, Maria de Fátima. “Redes de poder na América Portuguesa: o caso dos Homens Bons do Rio de Janeiro (1790-1822)” In: Revista Brasileira de História, v. 8, nº. 36, p. 297-330. 1998, p. 310.

30 – MELLO, Christiane F. Pagano de. Os Corpos de Auxiliares e de Ordenanças na segunda metade do século XVIII… Op. cit., . p. 2-9.

31 – PRADO Jr. Caio, Formação do Brasil Contemporâneo… Op. cit., , p. 324.

32 – FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro… Op. cit., p. 222.

33 – AUFDERHEIDE, Patricia Ann. Order and violence: social deviance and social control in Brazil, 1780-1840. Thesis of the University of Minnesota, 1976. Vol. 1. p. 126. Ver ainda: KARASCH, Mary. “The Periphery of the periphery? Vila Boa de Goiás, 1780-1835”. In: DANIELS, Christine & KENNEDY, Michael V. Negotiated Empires: Centers and Peripheries in the Americas, 1500-1820. New York & London: Routledge, 2003, p. 155.

34 – MELLO, Christiane F. Pagano de. Os Corpos de Auxiliares e de Ordenanças na segunda metade do século XVIII… Op. cit., p. 5.

35 – FRAGOSO, João, BICALHO, Maria F. B. & GOUVÊA, Maria. “Bases da materialidade e da Governabilidade no Império: uma leitura do Brasil colonial”. Penélope, n.º 23, Lisboa, 2000, p. 75.

36 – Ver: ALMEIDA, Maria Regina C. de. Metamorfoses Indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003., p. 260.

37 – “Regimento das Ordenanças de 1570” In: COSTA, Veríssimo Antonio Ferreira da. Collecção Systematica das Leis Militares de Portugal… Op. cit., p. 62.

38 – Casa do Pilar de Ouro Preto, 1º ofício – Testamento de António Ramos dos Reis. Livro nº. 20, folha 74, (1761).

39 – Arquivo Histórico Ultramarino/ Projeto Resgate – Documentação avulsa de Minas Gerais/Cd- rom/cx:39; doc:67.

40 – CPOP, 1º ofício – Testamento de António Ramos dos Reis. Livro nº. 20, folha 74, (1761).

41 – Idem.

42 – AHU/MG/cx: 31; doc:1.

43 – CUNHA, Mafalda Soares da. A Casa de Bragança, 1560-1640: práticas senhorias e redes clientelares. Lisboa: Editora Estampa, 2000, p.48-53.

44 – ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. Parte III.

45 – ARAÚJO, Emanuel. O teatro dos vícios: transgressão e transigência na sociedade urbana colonial. Rio de Janeiro: ed. José Olímpio, 1997. Passim.

46 – AHU/MG/cx: 41; doc: 10.

47 – Idem.

48 – ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte…Op. cit., partes III, IV, V e VI.

49 – “Regimento das Ordenanças de 1570”. In: COSTA, António. “Collecção sistemática de leys…” Op. cit. p. 9.

50 – AHU/MG/cx: 41; doc: 35. Grifo meu.

51 – COSTA, Fernando Dores. “Milícia e sociedade: recrutamento”. In: HESPANHA, António M. (Org). Nova História Militar de Portugal… Op. cit, p. 73.

52 – RODRIGUES, José Damião. “A guerra nos Açores” In: HESPANHA, António M. (Org). Nova História Militar de Portugal… Op. cit. p. 249.

53 – Idem, p. 252.

54 – FIGUEIREDO, Luciano Raposo de A. “Glossário”. In: Códice Costa Mattoso. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1999. Volume 2. Coleção Mineiriana.

55 – AHU/MG/cx: 51; doc: 45.

56 – Idem.

57 – RODRIGUES, José Damião. “A guerra nos Açores…” Op. cit. p. 252.

 

 

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Artigo de Fábio Ferreira
Mestre em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde defendeu a dissertação intitulada “O General Lecor e as articulações políticas para a criação da Província Cisplatina: 1820-1822.”

Com o processo de independência dos antigos domínios espanhóis na América e a conseqüente desagregação do Vice Reino do Rio da Prata, a parte denominada Banda Oriental, que corresponde à atual República Oriental do Uruguai, atravessou uma árdua guerra civil, que destruiu grande parte do seu setor produtivo e levou à desorganização a sociedade oriental.

Neste quadro, o príncipe regente D. João tentou estender, em dois momentos, as fronteiras dos seus domínios americanos até o Prata, apossando-se da Banda Oriental. Em 1811, o príncipe realizou a primeira incursão militar nesta área. No entanto, por pressão da Inglaterra, D. João retirou as suas tropas no ano seguinte.

Em 1816 ocorreu a segunda tentativa expansionista, que obteve êxito. Nesse ano, as forças militares do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, lideradas pelo general português Carlos Frederico Lecor1, invadiram o território oriental e conquistaram pacificamente Montevidéu em 20 de janeiro de 1817, após articulações com o Cabildo desse núcleo urbano. A partir de então, Lecor instalou-se na cidade, que passou a ter um governo luso. Concomitantemente, as forças revolucionárias do oriental José Gervásio Artigas resistiam a Lecor, entretanto, em 1820, Artigas foi derrotado, exilando-se no Paraguai do ditador Francia.

Enquanto Lecor realizava a sua administração da Banda Oriental ocorria, em Portugal, mais especificamente no Porto, em agosto de 1820, a Revolução Liberal, que logo chegava a Lisboa e, no ano seguinte, proporcionava agitações em distintas partes do Reino do Brasil, como Pará, Bahia e Rio de Janeiro. Dentre as demandas dos revoltosos estava o estabelecimento das Cortes, a elaboração de uma constituição e o retorno de D. João VI para a Europa.

Em 26 de fevereiro, a guarnição militar do Rio de Janeiro rebelou-se e, com a participação do príncipe D. Pedro, obrigaram D. João VI a jurar a Constituição que estava a ser elaborada em Lisboa. Além disto, o monarca comprometia-se a retornar a Portugal e foi-lhe imposto um novo ministério, em que, dentre outras figuras, estava o liberal Silvestre Pinheiro Ferreira, que ocupou a pasta dos Negócios Estrangeiros e Guerra.2

Em 16 de abril, dez dias antes de retornar para Portugal, D. João VI expediu duas medidas importantes para a região do Prata. A primeira delas foi o reconhecimento da independência das províncias platinas em relação à Espanha. A segunda foi no sentido de resolver a questão da ocupação da Banda Oriental. Assim, ordenou-se a constituição do Congresso Cisplatino para que os orientais votassem o futuro do seu território.

Primeiramente, sobre o Congresso, a idéia deste partiu de Pinheiro Ferreira, que era contrário à permanência dos portugueses na Banda Oriental, argumentando junto ao rei que esta acarretava uma série de prejuízos, seja pela ação de corsários contra o comércio luso, seja pela despesa anual que gerava ao tesouro público.3

Outros fatores apontados pelo ministro liberal que deveria levar-se em conta para o abandono da Banda Oriental era o descontentamento e as insubordinações das tropas lusas estacionadas no Prata, bem como as reivindicações da Espanha em relação ao território oriental. Segundo Pinheiro Ferreira, se D. João VI não resolvesse a questão envolvendo a Banda Oriental antes de partir da América para a Europa, o monarca teria que negociá-la com os espanhóis quando estivesse de volta ao Velho Mundo,4 o que, evidentemente, colocava o rei português sob maiores pressões de Madrid.

Além disto, Pinheiro Ferreira inviabilizava a incorporação do território oriental ao Brasil, afirmando que um decreto não iria transformar os orientais em portugueses, sendo, assim, D. João VI não poderia contar com a fidelidade dos habitantes dessa província e, ainda, o ministro questionava a idéia de que a Banda Oriental desejava unir-se ao Brasil, argumentando que este era o anseio de alguns indivíduos, os aliados de Lecor, que se auto-intitulavam portadores dos desejos da província para fazer o que lhes fosse conveniente. Assim, a única solução que o ministro encontrava era a de que os orientais se reunissem em Assembléia para definir o futuro de sua província.5

Somada à questão de um possível abandono da Banda Oriental, Pinheiro Ferreira sugeriu o envio de João Manoel Figueiredo a Buenos Aires, em missão que mostrasse aos portenhos e aos governos circunvizinhos, como a República de Entre Rios, o desejo de D. João VI de ter relações amigáveis com eles, bem como para incrementar o comércio destes governos com o Reino Unido português. Na proposta do ministro, Figueiredo entraria, uma vez em Buenos Aires, em contato com Chile, Entre Rios, dentre outros governos, e “[…] ao General Barão da Laguna se dará ordem para que coopere com elle [Figueiredo] para restabelecer a boa intelligencia entre aquelles differentes Estados e os Povos do Brazil.” Além disto, “Por esta occasião se lhes participará as medidas de liberal conducta que na maneira acima exposta S.M. tem adoptado a respeito da Banda Oriental como huma prova do espírito de Justiça e disinteresse de que o Governo Portuguez se acha animado”6

No próprio dia 16 de abril, Pinheiro Ferreira escreveu a Lecor comunicando que D. João VI ordenava que os orientais votassem pelo futuro do território ocupado, de maneira livre, sob a proteção das armas lusas, mas sem qualquer tipo de pressão. Além disto, Pinheiro Ferreira afirmava que o resultado mais provável do Congresso era o da Banda Oriental constituir-se em um Estado independente, então Lecor ficaria encarregado de acertar com o novo governo a proteção da fronteira e a segurança interna dos orientais. O governador do Rio Grande cuidaria das forças militares responsáveis pela fronteira entre o novo estado oriental e o Brasil.7

A união da Banda Oriental com o Brasil era definida pelo ministro como pouco provável, porém, ele qualificava como algo que não era impossível. Assim, Pinheiro Ferreira expunha que D. João VI desejava que Lecor permanecesse como governador e capitão geral da nova província.8

Por fim, João Manoel Figueiredo portava o ofício que seria entregue a Lecor com as ordens do Congresso Cisplatino e o general deveria ajudá-lo, para que se lograsse a paz com os vizinhos do Brasil. Entretanto, a missão de Figueiredo não foi duradoura. O cônsul apresentou-se ao governo de Buenos Aires em 28 de julho de 1821, porém, menos de um mês depois, em 21 de agosto, o cônsul expirava, nesta cidade, de maneira súbita.9

A BANDA ORIENTAL DE D. JOÃO VI E AS RELAÇÕES COM OS VIZINHOS DO REINO DO BRASIL

Para a melhor compreensão das formulações por parte do Rio de Janeiro das ordens para a realização do Congresso Cisplatino é mister a compreensão das relações da Banda Oriental e do Brasil de D. João VI com as repúblicas sul-americanas, tema deste item do artigo.

Sucintamente, sobre as relações de Lecor com os governos limítrofes, é importante observar que eram relacionamentos instáveis, de desconfiança mútua, que variavam de conflitos armados prontos a eclodirem a alianças contra inimigos comuns. Além disto, no que referia-se às relações entre a Banda Oriental e as antigas áreas de dominação espanhola, Lecor tinha o interesse em estar sempre bem informado do que estava a ocorrer nas províncias que compuseram o Vice-Reino do Prata e, até mesmo, em localidades mais distantes, como o Chile e o Peru.

Do mesmo modo, o general buscava manter boas relações, principalmente, com os governos de Buenos Aires e Entre Rios, provavelmente pelo fato de que estes apresentavam grande potencial para rivalizar com os portugueses, por questões como a proximidade geográfica e pelas pretensões destes governos em conquistar a Banda Oriental.

Evidentemente, a atenção dispensada por Lecor aos antigos domínios espanhóis era reflexo da preocupação que existia em setores do Reino Unido português em relação aos seus vizinhos hispânicos. O Correio Brasiliense expunha, em várias de suas edições, que os assuntos referentes aos governos limítrofes eram, depois dos de Portugal, os mais importantes para o Brasil. Observa-se, ainda, que se os assuntos dos vizinhos do Brasil eram relevantes, as questões que envolviam os governos do Prata eram-no ainda mais. O governo de D. João VI tinha interesse pelo que estava a acontecer no espaço platino, buscando informações sobre as províncias desta região. Pinheiro Ferreira entendia que as relações com os vizinhos do Prata era uma das questões mais importantes da sua pasta.10

Assim, além de líder militar e político, Lecor também funcionava como uma espécie de informante do governo do Rio de Janeiro sobre os acontecimentos do antigo Vice-Reino platino e, até mesmo, do Chile e Peru. Por sua vez, o general luso também tinha a sua rede de informantes em diversos pontos do Prata, sendo, deste modo, abastecido com dados concernentes aos fatos ocorridos nos territórios hispânicos.

Em função dos adventos ocorridos no Reino Unido português, em especial após os acontecimentos de fevereiro de 1821 na Bahia e no Rio de Janeiro, Buenos Aires começava a articular os meios para entrar em conflitos armados com Lecor, esperando, somente, o resultado de expedição buenairense enviada a Lima. Os desdobramentos do liberalismo em Portugal e no Brasil só vieram a fortalecer o projeto de Buenos Aires e, ainda, nesta cidade tinha-se a ciência de que restabeleceria-se na Europa a sede da monarquia lusa, que, por sua vez, na concepção portenha, poderia prejudicar o systema americano.11

Além disto, Buenos Aires sabia que no Manifesto Nacional os portugueses apoiavam as queixas da Espanha sobre a ocupação da Banda Oriental, bem como expressavam a sua insatisfação em relação aos altos custos da ocupação do território oriental e o conseqüente desejo de Portugal abandonar a conquista platina. Deste modo, nos planos de Buenos Aires, era chegada a hora de indispor-se com a Banda Oriental portuguesa. Segundo Lecor, os planos dos portenhos era expulsá-lo da Banda Oriental e, ainda, levar às províncias do Brasil a guerra, fomentando a separação do reino americano de Portugal.12

Assim, nesse contexto de desconfianças e ameaças mútuas, foram expedidas pelo Rio de Janeiro as já citadas medidas relativas ao Prata. Aos portenhos, em ofício de 16 de abril, Pinheiro Ferreira mostrava o desejo de D. João VI de ter relações de amizade com os vizinhos do Brasil, sendo que as províncias de Buenos Aires ocupavam o primeiro lugar e, expressava, igualmente, o reconhecimento do rei à independência portenha. No mesmo documento, o ministro português comunicava a realização do Congresso Cisplatino, mas com o cuidado de construir a imagem das Cortes de Montevidéu como feitas da maneira mais livre e popular, sem a menor sombra de coerções e de manipulações.13

Além disto, no ofício, havia a justificativa do reconhecimento da independência dos governos limítrofes não ter sido feita antes pelo monarca, associando-se, assim, esta ação à ascensão do liberalismo no Reino Unido português, bem como a outras questões internas e externas, sem mencionar no documento quais e, ainda, à política dos Estados europeus. Igualmente, o governo de D. João VI anunciava que receberia em seus domínios os agentes portenhos, fossem eles comerciais ou diplomáticos, com todas as honras e considerações.14

Seguidamente a estas exposições, Pinheiro Ferreira afirmava aos portenhos que esperava que o reconhecimento feito por D. João VI gerasse nas províncias vizinhas similar reconhecimento em relação aos domínios lusos.15 No mais, o ofício redigido por Pinheiro Ferreira para o governo instalado em Buenos Aires era enviado, através de cópias, para as províncias do interior, para o Paraguai, Chile e Colômbia.16

Entretanto, as amigáveis intenções do ministro não conquistaram a confiança portenha. Por mais que as comunicações dirigidas a Buenos Aires tenham sido repletas de expressões e vocabulários indicadores de uma política de boa vizinhança e típicos do liberalismo, Martin Rodriguez, que estava a frente do governo portenho, escrevia à Junta de Representantes da Província de Buenos Aires, ao Chile e ao Paraguai expressando a sua desconfiança e ojeriza em relação ao ministro liberal e ao Congresso Cisplatino (Ressalta-se que Martin Rodriguez tomava este posicionamento antes mesmo do congresso ser realizado).17

Na carta a Francia, Rodriguez expunha que acreditava que o reconhecimento das independências era um meio para obrigá-los a consentir na incorporação do território oriental ao cedro de D. João VI. Além disto, Rodriguez entendia a Banda Oriental como parte da nação que Buenos Aires também fazia parte.18

Em Buenos Aires havia a desconfiança do que poderia haver por trás do reconhecimento da independência dos governos do Prata. Suspeitava-se que poderia ser uma espécie de moeda de troca com as forças políticas platinas, para que estas reconhecessem a presença lusa na Banda Oriental, presença que acabou por ser votada pelos orientais no Congresso Cisplatino, conforme será apresentado no próximo item.

A CRIAÇÃO DO ESTADO CISPLATINO ORIENTAL

Uma vez expedida pelo governo de D. João VI as ordens para a realização do Congresso e tendo ciência das tensas relações que envolviam o território oriental e, principalmente, o governo de Buenos Aires, é válido ressaltar que Lecor escreveu, em fins de maio de 1821, a Silvestre Pinheiro Ferreira, informando que os habitantes da província temiam que os portugueses de lá saíssem, pois acreditavam que se isto ocorresse, a Banda Oriental seria novamente vítima dos conflitos armados, mergulhando, assim, em uma nova guerra civil.19 Identifica-se, nesta questão, o interesse de Lecor em manter o poder português na Banda Oriental, com a construção de uma argumentação que buscava convencer o ministro liberal da necessidade da permanência da ocupação.

Dias depois, Lecor expediu, em 15 de junho de 1821, as ordens para a convocação do Congresso e de seus deputados. A comunicação do general português foi dada a Juan José Durán, chefe político da província. De acordo com as ordens de Lecor, baseadas nas de Pinheiro Ferreira, os deputados deveriam ser nomeados livremente, sem violência e da maneira mais adequada às circunstâncias e costumes do país – palavra utilizada na documentação para definir a Banda Oriental – de modo que se fosse consultada a vontade geral dos povos. Além disto, os parlamentares deveriam representar toda a província para deliberarem sobre o futuro oriental, de modo a decidir como esta seria governada.20

No documento, Lecor pediu a maior brevidade possível na instalação do Congresso, para que o mesmo fosse instalado ainda em 15 de julho de 1821, logo, um mês depois, e transferia toda a responsabilidade da convocação e do processo eleitoral do Congresso Cisplatino para Durán. Assim, o chefe político da província ficou responsável pela definição do número de deputados que iriam compor o Congresso e a quantidade de parlamentares que cada pueblo ou departamento enviaria a Montevidéu. Ressalta-se que Lecor somente informou que o critério de seleção dos componentes do Congresso deveria ser proporcional ao número aproximado de habitantes de cada parte da Banda Oriental. Após as instruções de Durán, iniciou-se, na Banda Oriental, o processo de seleção dos deputados e seus suplentes para o Congresso Cisplatino.

É importante ressaltar que, quatro dias depois, em 19 de junho, basicamente um mês antes da primeira reunião do Congresso Cisplatino, Lecor escreveu ao conde dos Arcos afirmando que acreditava que o seu resultado seria o de incorporar a Banda Oriental aos domínios de D. João VI. Na carta, além do resultado do Congresso, pois os orientais várias vezes haviam pedido que D. João VI permanecesse no controle definitivo da província, Lecor expunha que estava a preparar o Congresso da maneira que fosse conveniente para resultar na incorporação à monarquia lusa e, assim, esperava a aprovação do rei, mas, também, de D. Pedro, dos seus métodos.21 Nove dias depois, em 28 de junho, Lecor escreveu outra carta ao conde dos Arcos, demonstrando novamente o conhecimento prévio do resultado do Congresso Cisplatino.22

Também confirmando o resultado estavam os ofícios enviados por Martin Rodriguez, em dois de julho de 1821, antes ainda da primeira reunião do Congresso, ao Chile, Paraguai e às províncias platinas:

Sabe el Gobierno por noticias reservadas y reservadisimas q.e ha podido recoger del Brasil y del mismo Montevideo, q.e ha emprezado á plantificarse el plan, que dejó dispuesto S. M. F. al retirarse p.a Europa, de agregar al territorio brasiliense toda la Banda Oriental de este Rio adoptando p.a esto el simulado arbitrio de consultar, por medio de un Cong.o […] 23

Não se pode ignorar o quanto Martin Rodriguez era antipático à ocupação de Montevidéu e ao governo português, nem a sua busca de gerar semelhante rejeição nas províncias que hoje compõem a Argentina e nos governos do Chile e do Paraguai. Entretanto, do mesmo modo, não pode-se ignorar que as informações contidas no ofício de Martin Rodriguez não diferem da das cartas de Lecor. Rodriguez afirmou, antes do resultado do Congresso, que este resultaria na incorporação da Banda Oriental ao Brasil, e que o mentor do plano era D. João VI.

Além disto, no citado ofício, o governador de Buenos Aires expunha que o reconhecimento da independência das antigas colônias de Espanha significava o desejo, por parte de D. João VI, de que, como moeda de troca, os hispânicos reconhecessem a incorporação da Banda Oriental. Também parte do resultado acordado, os portugueses teriam colocado uma série de agentes no interior da Banda Oriental para trabalharem positivamente junto à população o resultado do Congresso Cisplatino.24

Sobre o Congresso, este iniciou-se no dia 15 de julho, “[…] en conformidad de lo dispuesto por S.M.F. El Rey del Reyno Unido de Portugal, Brasil y Algarves y publicado para su observancia y cumplimiento por el Ilmo y Exmo Sor. Barón de la Laguna, comandante en Gefe del ejército pacificador de esta Provincia: llegado el caso de reunirse un Congreso general extraordinario para tratar y decidir sobre la suerte futura del País […]”25 tendo como deputados diversos aliados de Lecor, como o próprio Durán, Fructuoso Rivera e Tomás García de Zúñiga. Além destes, foram congressistas o padre Dámaso Antonio Larrañaga, Jerónimo Pío Bianqui e Francisco Llambí, que compuseram, em 1817, o Cabildo que entregou Montevidéu a Lecor.

Três dias depois da abertura do Congresso Cisplatino, no dia 18 de julho, os congressistas votaram, unanimemente, pela incorporação ao Reino Unido português. Outra questão válida de ressaltar é que os deputados estabeleceram a clara vinculação entre a anexação e a garantia de uma certa autonomia para a província dentro dos quadros da monarquia portuguesa, inclusive com representação no Congresso Nacional, com a manutenção do castelhano como seu idioma oficial e dos limites com o Brasil sendo anteriores ao processo revolucionário do Prata. Além disto, no Congresso determinou-se que o nome do novo território correspondente à Banda Oriental seria Estado Cisplatino Oriental.26

Complementa-se que os deputados estabeleceram como uma das cláusulas da incorporação a permanência de Lecor no poder, definindo que o general continuaria no comando do Estado Cisplatino: “Continuará en el mando de este Estado, el Señor Barón de la Laguna.”27 O oriental responsável por certificar-se do cumprimento das condições para a incorporação e resolver juntamente com Lecor eventuais solicitações dos pueblos recaiu sobre Tomás García de Zúñiga28, um dos principais aliados de Lecor, que, inúmeras vezes, chegou a financiar a administração do general com seus próprios recursos financeiros.

Quase um mês depois da sua primeira reunião, em oito de agosto de 1821, o Congresso Cisplatino encerrou-se. As suas últimas ordens foram no sentido de enviar cópia das atas a Lecor, para que o general informasse os últimos acontecimentos ao rei D. João VI, que a esta altura já estava em Portugal, e as Cortes de Lisboa.29 Assim, as desconfianças portenhas de que as forças de Lecor na Banda Oriental permaneceriam, concretizaram-se no citado Congresso. De semelhante modo, concretizavam-se as afirmações contidas nas epistolas de Lecor de que a anexação ocorreria.

CONCLUSÃO

Assim sendo, é provável que o reconhecimento da independência das Províncias do Prata esteja relacionado com o Congresso Cisplatino, significando uma espécie de troca, pois o reconhecimento da independência poderia ter sido feito pelo monarca em outro momento. Evidentemente, a ascensão do liberalismo no Reino Unido português não pode ser negada, pois mudava a correlação de forças no âmbito interno e externo dos domínios joaninos, com a ascensão de novos ministros e a mudança de Portugal dentro do jogo diplomático europeu.

Provavelmente, partindo para a Europa, D. João VI desejava resolver definitivamente as pendências existentes no espaço platino, neutralizando, com o reconhecimento da emancipação, a oposição do governo de Buenos Aires ao governo português. Também é provável que significasse que o monarca acreditasse que o resultado do Congresso viesse a desagradar aos portenhos e, para amenizar a ira destes, reconhecia, assim, a sua independência.

Finalizando, de acordo com a documentação, antes mesmo da instalação do Congresso Cisplatino, já havia o conhecimento do seu resultado, mostrando-se que as Cortes de Montevidéu foram um simulacro – utilizando-se aqui as palavras de Martin Rodriguez – de representação. Além disto, não pode-se negar a ação de Lecor e do seu grupo de aliados políticos no Congresso Cisplatino para que se lograsse o resultado que lhes fosse conveniente. Assim sendo, as articulações e a habilidade política do general Carlos Frederico Lecor foram fundamentais para a criação e anexação do Estado Cisplatino Oriental ao Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.

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Notas

01 – Lecor, de ascendência francesa, nasceu em Portugal na década de 1760, ingressando no final do século XVIII no exército português. Lutou na Campanha do Rosilhão, onde, em 1794, foi ferido gravemente, quase falecendo, no entanto, isto não impediu que o militar participasse das lutas contra Napoleão Bonaparte, liderando, inclusive, a Leal Legião Lusitana. Lecor lutou em território francês e, com a derrota da França, conduziu as vitoriosas tropas portuguesas de volta ao seu país.
Findo os conflitos na Europa e com os interesses da monarquia de Bragança nas questões geopolíticas relativas ao espaço platino, as tropas portuguesas situadas no velho mundo foram enviadas para o Brasil. Lecor, na ocasião Governador da Praça de Elvas, liderou a expedição destinada ao Prata.

02 – NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e constitucionais: A cultura política da independência (1820-1822): Rio de Janeiro: Revan, FAPERJ, 2003, p.249 e SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal: 1807 – 1832. Viseu: Verbo, 2002, p.372.

03 – Silvestre Pinheiro Ferreira. “Memória e Cartas biográficas”. Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1876-1877. Volume II, Rio de Janeiro, Tipografia G. Lenzinger & Filhos. 1877. Apud: Devoto, El Congreso Cisplatino (1821): repertorio documental, seleccionado y precedido de um análisis. Revista del Instituto Histórico y Geográfico del Uruguay, t.XII. Montevideo: 1937, p.163-164.

04 – Idem.

05 – Idem, p.164.

06 – Idem, p.167.

07 – Arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, livro “Rio da Prata”. Apud: Devoto, op.cit., p.169-171.

08 – Idem.

09 – La Gaceta de Buenos Aires, nº66, 01 de agosto de 1821, p.309 (Acervo da Biblioteca Nacional de Buenos Aires); Carta de Francisco da Costa Pereira ao Barão da Laguna. Buenos Aires, 23 de agosto de 1821, p.1-2. Lata 396, doc.10, v.2, p.98-99 (Acervo do IHGB); Documentos para la Historia Argentina. Correspondencias generales de la província de Buenos Aires relativas a relaciones exteriores (1820-1824), t.XIV. Facultad de Filosofía y Letras. Buenos Aires, 1921. Apud: DEVOTO, op.cit., p.180.

10 – Fundo: Cisplatina, cx. 977, pac. 02, doc.19, p.55-61 (Arquivo Nacional do Rio de Janeiro); Silvestre Pinheiro Ferreira. “Memória e Cartas biográficas”. Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1876-1877. Volume II, Rio de Janeiro, Tipografia G. Lenzinger & Filhos. 1877. Apud: Devoto, op.cit., p.163 e COSTA, Hipólito José da. Correio Braziliense, ou, Armazém literário, v.-XVI-XXIX. (1816-1822). São Paulo: Imprensa Oficial do Estado; Brasília: Correio Brasiliense, 2002.

11 – Carta do Barão da Laguna a Silvestre Pinheiro Ferreira. Montevidéu, 4 de abril de 1821, p.1. Lata 396, doc.10, v.2, p.30. (Acervo do IHGB).

12 – Idem.

13 – Arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, livro “Rio da Prata”. Apud: DEVOTO, op.cit., p.171 e 172.

14 – La Gaceta de Buenos Aires, nº66, 01 de agosto de 1821, p.309 (Acervo da Biblioteca Nacional de Buenos Aires).

15 – Idem, p.310.

16 – Idem.

17 – Documentos para la Historia Argentina. Correspondencias generales de la província de Buenos Aires relativas a relaciones exteriores (1820-1824), t.XIV. Facultad de Filosofía y Letras. Buenos Aires, 1921. In: DEVOTO, op.cit., p.176.

18 – Carta de Martín Rodríguez a Gaspar Rodríguez Francia, Buenos Aires, 27 de julho de 1821. Apud: DEVOTO, op.cit., p.385-386.

19 – Carta do Barão da Laguna a Silvestre Pinheiro Ferreira. Montevidéu, 25 de maio de 1821, p.1-3. Lata 396, doc.10, v.2, p.35-37. (Acervo do IHGB).

20 – Carta do Barão da Laguna ao Conde dos Arcos. Montevidéu, 19 de junho de 1821, p.1. Lata 396, doc.10, v.2, p.48. (Acervo do IHGB).

21 – Carta do Barão da Laguna ao Conde dos Arcos. Montevidéu, 28 de junho de 1821, p.1. Lata 396, doc.10, v.2, p.49. (Acervo do IHGB).

22 – Documentos para la Historia Argentina. Correspondencias generales de la província de Buenos Aires relativas a relaciones exteriores (1820-1824), t.XIV. Facultad de Filosofía y Letras. Buenos Aires, 1921. Apud: Devoto, op.cit., p.177.

23 – Idem, p.178.

24 – El Argos de Buenos Aires, 21 de julio de 1821. (Acervo da Biblioteca Nacional de Buenos Aires).

25 – ACTAS DEL CONGRESO CISPLATINO. Montevideo, 1821. Archivo General de la Nación., f.1. (Acervo do Archivo General de la Nación, Montevideo)

26 – Idem, f.8v-27v.

27 – Idem

28 – La Gaceta de Buenos Aires, op.cit., p.326. (Acervo da Biblioteca Nacional de Buenos Aires)

29 – ACTAS DEL CONGRESO…, op. cit., f.39 e 39v. (Acervo do Archivo General de la Nación, Montevideo)

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E DOCUMENTAIS

Fontes primárias

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