Tortuosos caminhos da “invenção de si”: política, nacionalismo cultural e estrangeiros no Brasil

Artigo de Neide Almeida Fiori e Eduardo Búrigo de Carvalho
Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL)

 

Política e nacionalismo cultural

A presente comunicação analisa as mútuas relações que se estabeleceram, nos tempos do governo de Getúlio Vargas (1930-1945), entre a política e o nacionalismo cultural da época e os imigrantes estrangeiros. Nessas relações, a escola ocupou um lugar estratégico pois é ela que, atendendo aos desejos do Estado, oferece aos alunos caminhos à "invenção de si". Na amplidão temática desta proposta, as análises enfatizam a política nacionalizadora implantada pelo Estado Novo e dirigida aos imigrantes estrangeiros e seus descendentes que, em sua maioria, haviam se estabelecido na região Sul do Brasil – estados do Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina.

A investigação exigiu um agir metodológico diversificado: pesquisa bibliográfica, entrevistas e pesquisa documental. Esta última desenvolveu-se em arquivos particulares e públicos, principalmente no Arquivo Público do Estado de Santa Catarina. Trata-se de uma investigação dirigida especialmente a documentos relacionados a escolas: planejamento de aulas, descrições de cerimônias cívicas, ofícios, atas, relatórios, muitos manuscritos por alunos que, com sua letra tímida, desde logo revelavam ser uma escrita infantil. Nessa parte, a investigação, por uma questão de viabilidade operacional e, principalmente, pela expressividade da situação catarinense1 no projeto nacionalizador, refere-se ao estado de Santa Catarina.

O governo Vargas, com as primeiras legislações interventoras do ano de 19382, inicia formalmente a implantação de um plano de nacionalização destinado a atingir toda a sociedade brasileira. Especial importância era dispensada à atuação das escolas pela sua capacidade de influir, como dirá mais tarde Charles Taylor (1997, p.15), na formação de "um agente humano, uma pessoa ou um self ".

Essa afirmativa figura em seu livro As fontes do self: a construção da identidade moderna, que reflete sobre as relações existentes entre as concepções morais e os sentidos do self, ambos relacionados com a identidade moderna. Do ponto de vista sociológico, toda identidade é construída, permeada por uma relação de poder, havendo alguns perfis específicos de identidade social. Nas extremidades de um continnum imaginário, pode-se colocar a identidade de projeto que ocorre "quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, de buscar a transformação de toda a estrutura social." (CASTELLS, 1999, p.24)

No outro extremo desse continuum imaginário encontra-se a identidade legitimadora, ou seja, aquela "introduzida pelas instituições dominantes da sociedade no intuito de expandir e racionalizar sua dominação em relação aos atores sociais, tema este que está no cerne da teoria da autoridade e dominação de Sennett, e se aplica às diversas teorias do nacionalismo." (CASTELLS, 1999, p.24)

Situações assim contribuíram para o desaparecimento da vida pública como um espaço de democracia, estimularam o grande crescimento das organizações burocráticas e de sua força de dominação, e foram o pano de fundo de um nacionalismo exacerbado que, ao buscar a afirmação de identidades que privilegiava, sufocava, das mais variadas e estranhas maneiras, as manifestações identitárias de outros grupos sociais.

 

Nacionalismo, uma questão atual?

Ao enfocar a questão da construção da identidade, Castells faz referência "às diversas teorias do nacionalismo" e conduz a autores clássicos como Karl Marx. Para este, o processo histórico tem na luta de classes o seu decisivo protagonista, sendo que as situações locais ou nacionais devem ser percebidas apenas como uma parte, e pouco expressiva, desse processo. Assim sendo, cabe às nações, Estados e cidades serem analisados sob a perspectiva da classe e da luta de classes, fenômenos com dimensão global. A partir do exposto, compreende-se que Marx não tenha se ocupado com uma teoria do nacionalismo. A suas posições, todavia, e a de seus seguidores tiveram importância para o rumo da questão nacional: apoiaram as causas nacionais consideradas grandes ou históricas, como na Hungria, na Polônia e na Alemanha; mas se mostraram hostis às pequenas nacionalidades, como de algumas nações eslavas. Enfim, um pensamento de síntese aponta que, em relação ao nacionalismo, o marxismo o interpreta como uma expressão dos interesses burgueses.

Em relação ao nacionalismo, a contribuição de Max Weber (1993, p.56) foi muito importante, especialmente pelas distinções que estabeleceu entre Estado e nação. Por Estado definiu uma comunidade humana que, nos limites de determinado território, "reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física3 " (aí se percebe quanto a "territorialidade" e a "violência" marcam a obra de Weber). E ainda elaborou um conceito de política cheio de força e que é paradigmático no pensamento weberiano: política significa poder – uma vontade se impondo sobre outra em uma relação desigual.4

Por sua vez, o conceito de nação em Weber, também muito importante, é elaborado em associação com a idéia de cultura, entendendo contudo que somente o Estado pode ser a base capaz de garantir a diversidade das manifestações culturais de cada nação de seu território. Embora a expressão nacionalismo não tenha sido mencionada por Weber, sem dúvida contribuiu decididamente para a sua compreensão especialmente ao estudar o Estado, a nação e os grupos étnicos.

Ao analisar situações e valores étnicos que estão ao alcance do poder do Estado, é importante lembrar que o pensamento de Weber aponta a esfera política como capaz de impor rumos à etnicidade. Nessas considerações, que contém muito da idéia de nação cultural ou de criação de identidades culturais coletivas, como isso se concretizaria, ou seja, como se poderia dar rumos à etnicidade? Nos Estados nacionais, para atingir esse objetivo, a "tarefa de assegurar uma cultura colectiva pública comum foi entregue a órgãos de socialização popular, como o sistema público de educação e os meios de comunicação." (SMITH, 1997, p.24).

Os procedimentos pedagógicos com objetivos nacionalistas centravam-se muito na idéia de pátria, uma expressão com várias nuances de interpretação. O termo tem mesmo uma história que costuma ser contada na perspectiva da cultura alemã, como relata Wolfgnag Thüne em A pátria como categoria sociológica e geopolítica:

A história do termo "pátria" (Heimat) remonta ao conceito Heim-ôit, o lugar de refúgio, de abrigo, de morada, o lugar onde se nasce, o lugar da infância. A "vida ao abrigo" assemelha-se à "vida escondida no lugar" (heim-lich), onde se guardam segredos (Ge-heim-nisse). Isso significa que a pátria está em oposição com aquilo que é do estrangeiro (alilante, Aus-land) onde o homem sente falta desses laços. (1991, p.46)

No que diz respeito à Sociologia, a categoria pátria vai ficar por algum tempo no esquecimento: "houve um período na sociologia, em que a 'sociedade' aparecia como o único quadro capaz de explicar o convívio humano. Através de uma guinada, a sociologia redescobre os conceitos de 'comunidade', 'pátria', 'integração', encontráveis na sociologia alemã, em Georg Simmel, Max Weber e, principalmente, em Ferdinand Tönnies"5 (THÜNE, 1991, p.07).

São muito próximos o sentido de nacionalismo e de patriotismo, e "uma vez que, na história da Europa, as pátrias adquiriram a forma de nações, o nacionalismo outra coisa não seria do que aquele primeiro sentido, do que o amor pela própria nação" (CHABOT, s.d., p.05). Quanto a Émile Durkheim, registre-se que não elaborou uma teoria explícita de nacionalismo, mas se ocupou com o assunto a partir de uma visão bem especifica e endossando a expressão patriotismo. Definiu-o como "um sentimento que liga o indivíduo à sociedade política, de tal modo que aqueles que conseguem constituí-la se sentem vinculados a ela por um laço de sentimento" (DURKHEIM6 apud GUIBERNAU, 1997, p.37). Durkheim entendia que esse sentimento, o patriotismo, não iria perdurar, ao ficar polarizado pelo ideal nacional ou pelo ideal amplo da idéia de humanidade.

No decorrer do processo histórico, a assertiva de Durkheim não se confirmou. O conceito de nação e os sentimentos nacionalistas, estiveram muito presentes na Primeira Grande Guerra e na Segunda Guerra Mundial. Foram épocas do que se poderia chamar de "nacionalismo conflituoso", segundo expressão de Baycroft. Tempos em que vigoravam "definições emocionais e racistas de identidade, a rivalidade nacional feroz que levou à agressão contra os inimigos da nação e a afirmação autoritária e violenta de que aquilo que a nação mais precisa é de glória e grandeza" (BAYCROFT, 2000, p.129).

Bem mais tarde, já na chamada Era da Globalização, também foi prevista a anunciada, desde muito tempo, morte do nacionalismo, ao dar-se a globalização da economia e a internacionalização das instituições políticas e também o

universalismo de uma cultura compartilhada, difundida pela mídia eletrônica, educação, alfabetização, urbanização e modernização; e os ataques desfechados por acadêmicos contra o conceito de nações, consideradas "comunidades imaginadas" numa versão menos agressiva da teoria antinacionalista, ou "criações históricas arbitrárias", como na contundente formulação de Gellner advindas de movimentos nacionalistas controlados pelas elites em seu projeto de estabelecimento do Estado-Nação moderno. (CASTELLS, 1999, p.44)

Para surpresa de muitos estudiosos ocorreu o contrário, a ponto de Castells afirmar que a "era da globalização é também a era do ressurgimento do nacionalismo, manifestado tanto pelo desafio que impõe a Estados-Nação estabelecidos, como pela ampla (re)construção da identidade com base na nacionalidade, invariavelmente definida por oposição ao estrangeiro." (CASTELLS, 1999, p.44). O nacionalismo continua tendo um caráter político evidente e um papel muito expressivo no discurso moderno de legitimidade política. Mas, para além dessa dimensão, Anthony Giddens, em O estado-nação e a violência, aponta claramente para a sua dimensão psicológica: "Por 'nacionalismo' quero dizer um fenômeno que é basicamente psicológico – a adesão de indivíduos a um conjunto de símbolos e crenças enfatizado comunalmente entre membros de uma ordem política." (GIDDENS, 2001, p.141).

 

A construção do sentimento de pertença

Ênfase na dimensão política ou na psicologia, por todos os caminhos há teorias que tentam explicar o nacionalismo. Que estranha essa questão que envolve o "sentimento de pertencer a uma comunidade cujos membros se identificam com um conjunto de símbolos, crenças e estilos de vida, e têm a vontade de decidir sobre seu destino político comum." (GUIBERNAU, 1997, p.56). Tudo isso, dito de forma simplificada, pode ser resumido na expressão sentimento de pertença.

Esta comunicação se ocupará com questões que se relacionam com o Estado nacional, entendido como um fenômeno dos tempos modernos, que procura unir o povo mediante uma homogeneização cultural caracterizada por símbolos e valores, tradições e mitos de origem, reais ou inventados, mas que são apresentadas ao grupo como sendo comum a todos. Do exposto, percebe-se as nações vistas como comunidades culturais; e foi trilhando esse caminho de interpretação que a escola, especialmente a escola elementar, assumiu a responsabilidade (planejada) de construção da homogeneidade cultural da nação. Esta expressão, todavia, tem que ser percebida, bastante ao estilo do que Durkheim expõe em seu livro Educação e Sociologia, como uma dicotomia na qual convivem homogeneidade/heterogeneidade.

O sentimento de pertença ajusta-se mais ao reino do subjetivo, da sensibilidade, sendo que o investimento emocional dos indivíduos, nos elementos de sua cultura, é um aspecto importante e que tem sido explorado pelo nacionalismo – o encantamento subjetivo provocado pelos hinos cívicos, a emoção de ver a bandeira pátria tremulando ao vento. Por sua vez, a identidade legitimadora situa-se mais no reino da racionalidade, sendo elaborada pelas instituições dominantes da sociedade, usualmente pelo Estado, que têm como meta expandir a dominação em relação a atores sociais; pode incluir a emoção mas esta faz parte das estratégias de seu agir – a exploração racional da emoção humana.

Há acima uma expressão chave do pensamento de Weber, a dominação. Segundo palavras de Giddens, em Capitalismo e moderna teoria social, o conceito de dominação "refere-se apenas aos casos de exercício de poder em que um agente obedece a uma ordem específica dada por outrem. A aceitação da dominação pode basear-se em motivos muito diferentes." (GIDDENS, 1994, p.218). Assim aqueles que se submetem às determinações, numa relação social caracterizada pela dominação, sinalizam que as reconhecem pelos mais variados motivos: apóiam-se em fundamentação legal; advém de uma autoridade respeitada; ajustam-se aos costumes, ao que sempre aconteceu?

 

A identidade legitimadora

Há mútuas relações entre o sentimento de pertença e a identidade legitimadora; harmoniosas proximidades que fizeram com que ambos fossem relevantes na elaboração deste estudo. Mas a presente investigação tomou como paradigma central a questão da identidade legitimadora em função de algumas razões, como o fato de esse tipo de identidade ser uma expressão do poder político dominante na sociedade.

No tempo histórico e recorte geográfico deste estudo, a identidade legitimadora vai se referir às posições do poder governamental brasileiro (governo Vargas, anos 1930-1945) que, como ponto de arranque burocrático, estavam centralizadas no Ministério da Educação.7 Comunicando com outras palavras e gerando, por certo, outra forma de compreensão, afirma-se que o governo brasileiro elaborou então um modelo de identidade legitimadora que veio a se constituir na vereda – caminho estreito, senda – que, em termos de identidade social, era oferecida aos alunos das escolas primárias do país como possibilidades da "invenção de si".

Esse modelo identitário se ajustava confortavelmente às populações escolares de origem luso-brasileira. Contudo, ao referir-se às zonas de imigração e ao alunado descendente de estrangeiros, o desconforto cultural era bastante grande e as ações curriculares se transformavam numa camisa de força. Mas deu-se de fato o emprego da força, na implantação desse modelo de identidade legitimadora, atingindo tudo que a ele se opunha ou que com ele não se harmonizava – escolas fechadas, professores presos, material escolar apreendido, o que não é o tema do presente estudo. De todas as ações o Ministério da Educação participou pois, como afirma Schwartzman, em Tempos de Capanema:

O "abrasilleiramento" destes núcleos de imigrantes era visto como um dos elementos cruciais do grande projeto cívico a ser cumprido através da educação, tarefa que acabou se exercendo de forma muito mais repressiva do que propriamente pedagógica, mas na qual o Ministério da Educação se empenharia a fundo. (2000, p.93)

A identidade imposta exigia, só para ilustrar um aspecto bastante objetivo da questão, o domínio do idioma português; e, saliente-se, sem manifestação de sotaque, ou seja, com o à vontade suave e quase musical com que os nativos dominam o seu idioma (Quadro 01).

Escola pública de Jaraguá do Sul
Associação escolar Liga Pró-Língua Nacional
– ano 1943 –
Uma ata da reunião registrou as orientações que deveriam ser seguidas pelos seus membros, indicando que era importante que se "corrigissem as palavras erradas pronunciadas pelos colegas, principalmente os "erres", tão difíceis de pronunciar para os descendentes de estrangeiros." (SANTA CATARINA, 1943b)
Quadro 1

Como uma forma de pressão para o abandono do idioma étnico, a língua dos antepassados, simbolizada na figura dos avós, era apresentada como algo sem utilidade alguma e perdida nas brumas passado (Quadro 02). Mas tratava-se do modo de falar de personagens que catalizavam muito amor nas famílias: o "Opa" e a "Oma" para os alemães; o "Nono" e Como uma forma de pressão para o abandono do idioma étnico, a língua dos antepassados, simbolizada na figura dos avós, era apresentada como algo sem utilidade alguma e perdida no horizonte do passado (Quadro 02); o modo de falar do "Opa" e a "Oma" para os alemães; do "Nono" e da "Nona" para os italianos.

A escola nacional exigia que seus pequenos alunos esquecessem abruptamente a cultura dos antepassados, sem entender que a assimilação é um processo e que tem um tempo para cumprir-se; e outras coisas mais que vão por essa mesma linha de pensamento.

Município de Blumenau – Grupo Escolar José Bonifácio

Reunião do Clube de Leitura

– 14 de julho de 1943 –

O diretor da escola, visando valorizar o idioma português, segundo a ata de reunião escrita por um aluno, discorreu "sobre o melhoramento da nossa língua que devemos por em prática quotidianamente em nossos lares também [interrogou]: para que fim guardamos com carinho a língua dos avós que não mais voltaria a ser falada, em parte alguma de nosso território." (SANTA CATARINA, 1943b)
Quadro 02

Pode-se perguntar: terá sido mesmo tão marcante a ação do Ministério da Educação na política educacional das escolas primárias, especialmente no Sul do país, área de nacionalização? Como está claro no Plano Nacional de Educação, mais tarde conhecido como Reforma Capanema, ao governo federal cabia a responsabilidade de conceber e controlar toda a política educacional do ensino primário e, nas regiões consideradas como "zonas de nacionalização", subvencionar esse nível de ensino.8 Os estados e municípios se situavam mais no âmbito das responsabilidades relacionadas com o administrar.

 

O fluxo do poder

Para atingir os objetivos de homogeneidade cultural que se relacionavam com a construção da identidade nacional e a nacionalização das populações estrangeiras (faces diferentes do mesmo processo homogeneizador) foi implantada, sob a orientação do Ministério da Educação,9 e a decidida colaboração das autoridades responsáveis pelas diversas unidades da federação, uma política educativa muito nacionalista. Eficiente, partindo da distante cúpula sediada na cidade do Rio de Janeiro, então capital do país, atingia efetivamente as escolas e os alunos. As ações chegavam às escolas cercadas pela força política de um regime ditatorial no qual tudo conduzia à obediência; e a esse poder acrescente-se o força que já é própria da instituição escolar enquanto monopolizadora da educação considerada como legítima. Nesse sentido Ernest Gellner , com a costumeira acidez com que analisa o nacionalismo, criticou a escola e a atuação do professor:

Na base do sistema social moderno encontra-se, não o carrasco, mas o professor. Não é a guilhotina, mas o (devidamente intitulado) doctorat d' état que constitui a principal ferramenta e o símbolo do poder do Estado. O monopólio da educação legítima é agora mais importante e mais central do que o monopólio da violência legítima. (GELLNER, 1993, p.59)

No caso catarinense, o Departamento de Educação, a Inspetoria da Nacionalização do Ensino,10 as Inspetorias de Educação, eram os principais órgãos que exerciam o seu poder de dominação (direta ou indireta) sobre as escolas e os alunos, a partir da autoridade de que estavam revestidos (Quadro 03).

Grupo Escolar Mauá – Tubarão

– 14 de julho de 1942-

Inicialmente, o Inspetor Escolar orienta no sentido do não emprego de castigos físicos pois, além de proibidos, não os considera eficientes. Mas alerta que um clima de vigilância deve reinar na escola: "É essencial que o aluno seja sempre vigiado onde quer que se encontre. É escusado dizer que essa vigilância deverá ser discreta, do contrário degenerará em espionagem contraproducente".(SANTA CATARINA, 1942)
Quadro 03

No momento cabe lembrar que, de acordo com a lição de Weber que não pode ser esquecida, a dominação gera obediência e, ainda, nas situações em análise, as autoridades da época (décadas 1930-1940) entendiam que, como um clima a impregnar toda a vida escolar (Quadro 04), as disciplinas do currículo deviam apresentar um cunho profundamente moral, sentimental.

Visita de Inspeção Escolar

– 09 de abril de 1941 –

O Inspetor Escolar Adriano Mosimann, um homem culto, uma liderança entre os educadores catarinenses, inspecionou uma escola pública na então distante vila de Cocal, uma região colonizada por imigrantes italianos. No Termo de Visita que assinou estavam escritas as instruções que deveriam ser seguidas pelo professor:

"As aulas de geografia, história e educação devem ter um cunho profundamente moral, sentimental, construtivo e patriótico. Por meio delas, a criança deve adquirir noções elementares, mas exatas, do bem e do mal,11 deve ainda afeiçoar-se ao ambiente em que vive, ao município, ao Estado e à Pátria e, principalmente, aprender a admirar os nossos grandes vultos e orgulhar-se dos grandes feitos para que, ao deixar os bancos escolares, tenha aprendido que há alguma coisa mais importante do que ganhar dinheiro, isto é: zelar, com amor e carinho, pelo rico patrimônio moral e material dos nossos maiores e que, um dia, lhe será legado." (SANTA CATARINA, 1941)

Quadro 04

Como caminho para desvendar um pouco os meandros dessa forma de dominação, escolheu-se a pesquisa documental. O material empírico, levantado no decorrer de pesquisa em arquivos públicos (algumas vezes, em acervos particulares), trouxe à tona documentos escolares muito expressivos. Tratava-se de documentos que cumpriam diretrizes de ação muito diversificadas como: criar e manter ativas associações escolares as mais variadas; fazer atas; escrever um jornal escolar; redigir cartas integrando uma rede de correspondência com alunos de outras escolas; cantar no coro da escola; elaborar programas cívicos; denunciar colegas que não respeitassem a brasilidade falando em idioma étnico, mesmo em momentos de recreio escolar; integrar o Pelotão da Bandeira; fazer parte da Liga Pró-Língua Nacional; auxiliar no Pelotão de Saúde; colecionar biografias do heróis nacionais; ser membro da Liga da Bondade; organizar cooperativas escolares; apreciar , nas Horas de Arte, os álbuns contendo imagens dos grandes vultos da pátria; elaborar relatórios; plantar verduras e flores como membro do Clube Agrícola; cantar hinos e recitar poesias que engrandecessem a pátria. Um pouco dessa documentação escolar, como um material ilustrativo, está apresentada nesta Comunicação.

Faz-se necessário enfatizar que, nas regiões de colonização estrangeira da terra catarinense, a partir da noção de brasilidade concebida com raízes lusitanas considerava-se fundamental que todos dominassem o idioma vernáculo, e que a língua de Camões imperasse na vida em família, nos lazeres infantis e, evidentemente, no âmbito escolar. Essa era mesmo a grande meta da chamada escola de nacionalização; e, para que alguém pudesse ser chamado de "bom brasileiro", esse domínio lingüístico era considerado fundamental. Havia, nas décadas de 1930-1940 como que uma guerra (ou seria uma guerra mesmo?) entre as culturas, que se expressava num confronto entre a brasilidade (a cultura nacional) e as culturas étnicas (as culturas com raízes estrangeiras). O confronto pode ser considerado como natural, na perspectiva do processo social no qual, ao conflito, segue-se a acomodação. Esta consiste num arranjo para conviver e sobreviver, com mais paz do que no conflito, mas ainda não tendo a suavidade da assimilação. E outra pergunta pode ser feita agora? Será que, no caso brasileiro, a assimilação de imigrantes teve contornos de suavidade? Não é esse o entender de Flávio Kothe no ensaio O cânone colonial: ensaio, quando falando sobre os tempos antigos do Brasil afirmou: "O que a Colônia fez com negros e índios, a República fez com os imigrantes. A assimilação foi o genocídio da diferença" (KOTHE, 1997, p.151).

Haveria mesmo então uma guerra entre as culturas? É por aí que vai o pensamento de Gilberto Freyre, nos tempos da Segunda Guerra Mundial, esta uma guerra de verdade, "de sangue", que grassando na Europa tornou-se mundial e provocou mais de 50 milhões de mortos. E que polarizou o mundo entre duas principais coligações: o Eixo, formado pela Alemanha, Itália e Japão; e os Aliados liderado pela Inglaterra, Estados Unidos e França. Essa polarização em grupos antagônicos leva, no Brasil, a uma polarização das culturas sendo que os alemães, italianos e japoneses (ou seus descendentes) que viviam no Brasil passam a ser vistos sob a ótica da segurança nacional ou como "inimigos em potencial" que era preciso nacionalizar com urgência. Parece se instaurar então um clima de guerra entre as culturas do país, umas ameaçando, outras se sentindo ameaçada. Esse momento está muito bem expresso numa obra de Gilberto Freyre publicada em 1940: Uma cultura ameaçada: a luso-brasileira. Mas o mais acirrado confronto, apontado inclusive na obra de Freyre, dava-se entre a brasilidade e germanismo (Quadro 05). Questões dessa natureza estavam na ordem do dia, especialmente a partir do momento em que o Brasil, em agosto de 1942, declarou guerra à Alemanha e à Itália.

Jornal A Gazeta, Florianópolis

– julho de 1942 –

Na época, os submarinos alemães e italianos exerciam uma forte vigilância sobre o mar com o objetivo de impedir as ligações marítimas entre o Brasil e o Atlântico norte, especialmente os Estados Unidos. Como decorrência, navios brasileiros começaram a ser atacados. Somente no mês de julho de 1942 foram afundados os navios Tamandaré, Piave e Barbacena, havendo muitas mortes. Esses fatos causaram uma grande comoção pública. Era guerra no mar e, em terra, continuava o confronto entre as culturas, ao qual vai se referir o Juiz de Direto, Marcílio Medeiros, em artigo do qual se apresenta um pequeno trecho seguir;

"A mocidade se está esclarecendo e aprendendo a amar o Brasil como sua única e verdadeira Pátria. Os confins do germanismo batem em retirada ante a marcha irresistível da brasilidade!. Longo é ainda o caminho a percorrer-se. Muito, porém, já se percorreu." (MEDEIROS, 1942, p.02 )

Quadro 05

Esse clima de nacionalismo impregnava a escola na qual moralidade e civismo eram a tônica; mas um civismo de tom excludente em relação ao alunado que não tinha raízes culturais luso-brasileiras. Sem desejar transmitir a idéia de inexistência de liberdade interior dos pequenos alunos na invenção de si, reafirma-se que esses eram caminhos marcantes que, tendo muito de compulsório, eram oferecidos ao alunado da escola elementar, aos tempos do Estado Novo. Frase intrigantemente pesada em seu conteúdo, mas que se apóia no fato de que, em busca de seus objetivos nacionalizadores, a escola apelava para a questão da moralidade, no sentido de que desejava que em relação aos comportamentos difundidos pela escola, se salientasse que estavam baseados nas determinações da moral – eram expressões do bem.

Essa concepção de moral tinha muito do pensamento de Durkheim expresso no livro Éducation et sociologie (1966, p.45) "a moral está estreitamente ligada com a natureza das sociedades visto que, como temos demonstrado, ela muda quando as sociedades mudam"12. Assim, entende-se que, nos tempos do governo Vargas que estão em análise, nacionalismo e moral tenham ficado de mãos dadas: eram essas, no momento, as necessidades sociais, enquanto expressas pelo Estado.

De acordo com Giddens (1981, p.52), interpretando o pensamento de Durkheim, o sistema educacional formal desempenha "um papel vital na inculcação das atitudes e capacidades morais que se requerem na sociedade orientada para esses ideais seculares" – os ideais do individualismo moral. Para atingir esse objetivo, a escola precisava endossar um estilo de moral laica impregnada de racionalismo e muito próxima do pensamento iluminista, e que foi assim exposta por Émile Durkheim em Sociologia, educação e moral.13

Por educação moral laica, há que entender-se uma educação que se furte a todo e qualquer recurso aos princípios nos quais assentam as religiões divulgadas, que se apóie exclusivamente em idéias, sentimentos e práticas sujeitas à jurisdição da simples razão, numa palavra, uma educação puramente racionalista. (1984, p.101)

Tratava-se de uma moral escolar laica, ou seja, racionalista em sua essência. Mas mesmo tendo essas características, sempre que exigiam os interesses das grandes instituições da sociedade, geralmente o Estado, a escola difundia os valores típicos da moral escolar religiosa. A religiosidade entrava aí como uma estratégia de ação – como um caminho eficiente para atingir as famílias e penetrar nas mentes infantis e que ajudava ainda no sentido de tornar os conteúdos ensinados mais atraentes. Esse fato, por decorrência, abria caminho para que a escola se ocupasse com os conceitos de bem e de mal.

Nos tempos e na realidade educacional que estamos estudando, a do estado de Santa Catarina, a escola elementar, claramente seguido orientações dos órgãos hierárquicos superiores difundia, em seu currículo e em todas as situações de aprendizagem, uma moral que colocava em primeiro plano os objetivos da política de estado; e nesse sentido, e à medida do interesse do nacionalismo oficial, difundia os valores típicos da religião. Muito ilustrativo de uma situação dessa ordem é a existência da associação escolar denominada Liga da Bondade que, em caráter obrigatório, devia ser organizada em todas as escolas primárias de Santa Catarina.

Nas décadas de 1930 e 1940, os que concebem os caminhos da educação elementar no país, demonstram saber que o conceito de moralidade é mais amplo do que as suas ligações com a religiosidade; tem raízes mais profundas. Tão profundas que em um livro atual denominado As fontes do self: a construção da identidade moderna (1997, p.10), Charles Taylor aponta para as "conexões [existentes] entre os sentidos do self e as concepções morais, entre a identidade e o bem". Dito de forma um pouco diferente: o autor aponta para as conexões que se estabelecem entre "identidade e moralidade" (1997, p.15).

Nos tempos do Estado Novo, "identidade e moralidade" foram duas questões que, de forma articulada, estiveram muito presentes na escola elementar. Identidade centrada no nacionalismo que se difundia na escola – a orgulhosa identidade de ser brasileiro e de falar o idioma português. E moralidade centrada na idéia de "bem" que tinha um desdobramento na expressão o bom brasileiro – aquele que não apenas nasceu no Brasil como que num acidente geográfico, mas que ama essa terra sobre todas as coisas e com todas as suas forças, que coloca a pátria acima da família, e que, de preferência sem sotaque, domina o idioma português. Para atingir esse último fim (o domínio, por pequeninos, filhos de estrangeiros, da língua vernácula), como já visto, todos deviam colaborar, inclusive os coleginhas de escola a quem cabia assumir a posição de "mestres no falar".

Afinal, o que eu sou como uma pessoa ou um self? Após reconhecer a necessidade de "retratar a relação entre self e moral" (TAYLOR, 1997, p.11), pode-se perguntar: que respostas a filosofia moral tem dado para isso? A verdade é que as respostas a essas questões têm sido muito limitadas, como discorre Charles Taylor. Expressiva parte da filosofia moral contemporânea tem abordado a moralidade de uma forma muito limitada enfocando menos o que é bom ser e, priorizando-se os aspectos operacionais ou pragmáticos, ocupando-se mais com o que o que é certo fazer:

Essa filosofia moral tendeu a se concentrar mais no que é certo fazer do que no que é bom ser, antes na definição do conteúdo da obrigação do que na natureza do bem viver; e não há nela espaço conceitual para a noção do bem como o objeto de nosso amor ou lealdade ou, como Íris Murdoch o retratou em sua obra, como o foco privilegiado da atenção ou da vontade. Essa filosofia sancionou uma concepção defeituosa e truncada da moralidade num sentido estreito, bem como de toda a gama de questões envolvidas na tentativa de levar a melhor vida possível, e isso não só para filósofos profissionais como para um público mais amplo. (TAYLOR, 1997, p.15-16)

Foi nesse naipe, estreito, que a filosofia moral animou as escolas primárias catarinenses nas décadas de 1930 e 1940. Uma filosofia que não se ocupava com questões referentes ao que era bom ser mas indicava enfaticamente aos alunos o que era certo fazer. Muitas dessas indicações, mesmo que atualmente pareçam um tanto exóticas, se dirigiam à questão lingüística. A língua vernácula deveria fatalmente predominar. O idioma, no caso a língua portuguesa, era concebido como uma fonte de poder e um estimulador da assimilação. E ter o domínio sobre a língua portuguesa era uma característica do "bom brasileiro" – uma representação simbólica identificada com a moralidade; enfim, com o "bem". Nesse sentido, no âmbito das escolas, algumas coisas estavam solidificadas como "certo fazer": aprender a língua portuguesa, sem sotaque; difundir o idioma no seio da família e entre os amigos; e, até mesmo, não responder quando alguém formulasse uma questão em idioma étnico. E mais ainda, ser "bom brasileiro" não era uma questão de opção mas de moralidade.

O sociólogo Zygmunt Bauman tem analisado temas clássicos da filosofia política. Ao tratar da construção social da ambivalência, discorre sobre a existência de amigos, de inimigos e de estranhos. Considera que "os amigos são criados pela pragmática da cooperação. São moldados pela responsabilidade e o dever moral. Os amigos são aqueles por cujo bem-estar eu sou responsável antes que ajam em reciprocidade e independente disso;" já "os inimigos, por outro lado, são criados pela pragmática da luta. Eles são construídos pela renúncia à responsabilidade e ao dever moral." (1999, p.63). Os inimigos são aqueles que não aceitam serem responsáveis pelo meu bem-estar antes que eu rejeite responsabilidade pelo bem-estar deles e mesmo independentemente disso. Sempre colocadas em oposição uns aos outros, assim Bauman entende as categorias de amigo e de inimigo. E, nesse contexto, como fica a posição do estranho?

Contra esse confortável antagonismo, contra essa colisão conflituosa de amigos e inimigos, rebela-se o estranho. A ameaça que ele carrega é mais terrível que a ameaça que se pode temer do inimigo. O estranho ameaça a própria sociação, a própria possibilidade de sociação. Ele desmascara a oposição entre amigos e inimigos como o compleat mappa mundi, como diferença que consome todas as diferenças e portanto não deixa nada fora dela. Como essa oposição é o fundamento no qual se assenta toda a vida social e todas as diferenças que a constroem e sustentam, o estranho solapa a própria vida social. E tudo isso porque o estranho não é nem amigo, nem inimigo – e porque pode ser ambos. E porque não sabemos nem temos como saber qual é o caso. (BAUMAN, 1999, p.64)

Não é um amigo, não é um inimigo, com quem, por serem posições claras, todos sabem como nortear as relações. O estranho, o imigrante, o estrangeiro é uma incógnita – fala outra língua, cultua outros heróis – faz-se necessário nacionalizá-lo (Quadro 06).

Escola Estadual do Núcleo Rio Branco

– 31 de maio de 1942 –

O Delegado de Polícia visitou a escola e deixou registrada sua opinião. Louvou a organização do estabelecimento de ensino, a ordem, a disciplina, o entusiasmo e o patriotismo que reinava na escola e deu loas ao professor, "por tudo isso e pela sua personalidade bem definida de bom brasileiro". (SANTA CATARINA, 1942)

Quadro 06

O estrangeiro não é um inimigo, como já se disse. Mas os militares e delegados de polícia se sentiam muito a vontade em entrar nas escolas de nacionalização, analisar tudo e, mais ainda, deixar seu parecer escrito onde se anotavam as visitas.

Os imigrantes brasileiros, os estrangeiros que tinham vindo de longe para morar no Brasil, não integravam o mito das três raças. E no âmbito das escolas primárias de então, as crianças aprendiam que esses grupos eram um "peso" na convivência social (não falavam o vernáculo, e do exposto, percebe-se as nações vistas como comunidades culturais; e foi trilhando esse caminho de interpretação que a escola, especialmente a escola elementar, assumiu a responsabilidade (planejada) de construção da homogeneidade cultural da nação. Esta expressão, todavia, tem que ser percebida, bastante ao estilo do que Durkheim expõe em seu livro Educação e sociologia, como uma dicotomia na qual convivem homogeneidade/heterogeneidade.

O sentimento de pertença ajusta-se mais ao reino do subjetivo, da sensibilidade, sendo que o investimento emocional dos indivíduos, nos elementos de sua cultura, é um aspecto importante e que tem sido explorado pelo nacionalismo – às vezes até professaram religião diferente da católica), podendo considerar-se feliz a região onde não haviam se localizado os estrangeiros (Quadro 07). Essa percepção estava presente no magistério catarinense e era mesmo, muito à vontade, comunicada em documentos dirigidos às autoridades de Santa Catarina.

Escola Mista Estadual de Passo do Sertão,Município de Araranguá-

17 de novembro de 1945 –

Trecho da correspondência da secretaria da escola, dirigida ao Inspetor Geral do Ensino

"Tenho o prazer de levar ao seu conhecimento que a Liga Pró-Língua Nacional anexa a este educandário tem funcionado regularmente, tendo os seus membros demonstrado grande interesse pela mesma. Já organizamos dois álbuns durante o corrente ano, todos os alunos já demonstraram bastante sentimentos patrióticos, adquiridos pelas horas de arte que realizamos mensalmente, homenageando brasileiros ilustres, demonstrando-lhes seus feitos e seu amor pela Pátria. Felizmente, nesta localidade todos os habitantes são brasileiros, não havendo grandes dificuldades para o bom cultivo da nossa bela língua pátria". (SANTA CATARINA, 1945)

Quadro 7

Os estrangeiros eram, face ao sentimento nacional brasileiro, chamados de alienígenas (Quadro 08). . O termo aponta para quem é de outro país, estrangeiro, indica o contrário de indígena; este nasceu na terra, é nativo. Como afirma Tânia Maria Baibich em seu livro Fronteiras da identidade: o auto-ódio tropical, a categoria sócio-política de estrangeiro coloca-o numa posição de alteridade que implica, necessariamente, uma exclusão. Ao demarcarem-se as fronteiras da identidade, firmam-se também as fronteiras da diferença, sempre desfavoráveis ao estrangeiro.

– 28 de abril de 1943 –

Uma professora do Grupo Escolar Feliciano Pires, cidade de Brusque, fez um estudo sobre "a nacionalização do espírito infantil" quando escreveu o que segue:

"A observação, durante vários anos de magistério, em centros coloniais de ordem alienígena deixa-me na convicção de que só poderemos ter resultados mais satisfatórios no ensino da língua pátria e das demais disciplinas escolares e, principalmente, na educação física, digo, cívica, quando pela ação do tempo, auxiliado por um severa legislação rigorosamente executada, conseguir-se modificar, nesses centros coloniais, o ambiente familiar, cumprindo ao professor não esmorecer nunca diante do pouco resultado obtido, cabendo-nos considerarmos no sopé da alta montanha pedregosa, cujo cimo, a integração de todos os seus filhos de origem estrangeira na comunhão nacional, devemos galgar removendo pedra por pedra, sem olhar a distância, nem o tempo, nem o esforço." (SANTA CATARINA, 1943a)

Quadro 08

Nas escolas primárias catarinenses também se difundia a expressão "alienígena", ao se referir ao grupo imigrante. Era uma forma de marcar a diferença entre "nós" e os "outros". O fato desperta especiais reflexões por se tratar de situação educativa, e, ainda de acordo com Tânia Maria Baibich (2001, p.24), "muitos têm apontado o preconceito como uma matéria de aprendizagem": as pessoas simplesmente assimilam preconceitos endossados pelos grupos com que se identificam, pais ou pares em geral. Daí porque os preconceitos apresentam força suficiente para se manterem no decorrer das gerações.

A expressão alienígena, na documentação escolar que está sendo o apoio da presente pesquisa, indica que havia variações no modo de falar. Assim, as regiões rurais, com suas pequenas propriedades cultivadas pelo agricultor e sua família, podiam até ser chamadas, um tanto solenemente, de "centros de colonização de origem alienígena" (SANTA CATARINA, 1943a). A professora catarinense que usou essa terminologia (Quadro 08) ainda teceu considerações sobre a maneira como os alunos se sentiam divididos entre o clima nacionalista da "escola brasileira" e o ambiente familiar onde predominavam os valores étnicos, como a forma de falar dos antepassados, tudo considerado como intolerável; como o caminho de solução, a mestra indicava a criação de uma legislação, severa, e que deveria ser rigorosamente cumprida.

O que se observava então, na sociedade e nas escolas catarinenses, era muito simples: alunos divididos entre dois mundos, dois sistemas de valores; simplesmente havia uma situação de ambivalência. Esta é, aliás, a espinha dorsal do livro Modernidade e ambivalência, de Zygmunt Bauman, que afirma também que os caminhos propostos para controlar a ambivalência têm sido a tecnologia e a administração. Assim, entende-se que muitos indiquem que "a redução da ambivalência é uma questão de descobrir e aplicar a tecnologia adequada – uma questão administrativa. Os dois fatores combinaram-se para fazer dos tempos modernos uma era de guerra particularmente dolorosa e implacável contra a ambivalência." (1999, p.11) Enfim, as escolas não sabiam (e não queriam) conviver com dois sistemas de valores – os nacionais e os étnicos. A ambivalência não era tolerada; os alienígenas necessitavam espelhar-se nos nacionais.

E por falar em alienígenas, recorde-se que as autoridade de todas as instâncias – federais, estaduais e municipais – tinham especial gosto no uso dessa expressão; e mais ainda, como um desdobramento de comunicação, os grupos de imigrantes e seus descendentes eram designados também como "quistos étnicos" ficando implícito (e explícito, muitas vezes) que era necessário extirpá-los da realidade social (Quadro 09). Essa analogia, já no ano de 1922 foi usada pelo Governador Hercílio Luz.

O Jornal do Comércio, Rio de Janeiro

– 7 de setembro de 1922 –

A questão referente ao "abrasileiramento" das populações imigrantes era assunto de interesse nacional. Mas o que acontecia em Santa Catarina, causava especial preocupação."Ao que se refere a realidade dos fatos, pode-se considerar resolvido o problema da nacionalização de uma não pequena parte da população catarinense de origem estrangeira (…). O abrasileiramento desses contingentes alienígenas veio, em boa hora, solucionar o que o Governador do Estado chamou, numa boa hora, numa metáfora sugestiva, 'Kysto ethinico' no organismo nacional". (JORNAL DO COMÉRCIO, 1922)

Quadro 09

O "bom brasileiro" ajudava a combater os quistos étnicos. A expressão, que no campo jurídicos se refere à nacionalidade – ser brasileiro -, era acrescida de um qualificativo que categorizava a realidade indicando (implicitamente) uma dicotomia: os brasileiros, aqueles que simplesmente haviam nascido no Brasil como que por um acidente circunstancial da vida; e os bons brasileiros. Cabia à escola formar os "bons brasileiros". Essa questão estava intimamente ligada à construção ideológica do Estado Novo que exigia um novo homem, novas leis, uma nova mentalidade. Isso fica bem evidente nas orientações governamentais que chegavam à escola (Quadro 10).

Recorde-se, acima de tudo, os bons brasileiros apoiavam o governo. Mas outras coisas também caracterizavam o bom brasileiro: o respeito às autoridades, um grande desejo que os Aliados vencessem a guerra, de modo especial nas frentes da Europa em que a luta envolvia a Alemanha e a Itália.

Grupo Escolar Henrique Lages em Imbituba

Reunião da Liga Pró-Língua Nacional

– novembro de 1943 –

"O Estado Novo, chefiado pelo dr. Getúlio Vargas, o guia sem par e muito querido do povo brasileiro, protegendo o operário, a família e a economia popular, melhorou as condições de vida no nosso país e fortaleceu, com acertadas medidas, a nossa nacionalidade".

E diz o documento que foi lido em uma reunião de alunos: "O Estado Novo, representado por seu grande presidente, tem, por isso, o apoio incondicional dos bons brasileiros". A reunião de alunos logo se encerrou ao som do Hino Nacional (SANTA CATARINA, 1943b)

Quadro 10

Além disso, o bom brasileiro era preferencialmente católico, demonstrava grande amor à família, dedicava-se aos estudos e, principalmente (isto nas zonas de nacionalização) amava o idioma português (Quadro 11). Como uma contra-face desse amor, abandonara o idioma étnico – a forma de falar de sua família, de sua comunidade local. Fatos dessa ordem exigem que se tenha claro que a questão idiomática era muito importante na perspectiva do nacionalismo. Nesse contexto, a língua passou a ser considerada como parte de ações da engenharia social e o seu significado, que transcendeu ao seu uso real, adquiriu um grande poder simbólico.

Escola Municipal de Rio do Meio, Município de Araranguá –

– 17 de julho de 1942 –

Em termo de visita do Inspetor Escolar Marcilio Dias de S. Tiago, consta:

"O aproveitamento dos alunos foi bom em aritmética, mas sofrível em leitura e linguagem, visto a influência de língua estrangeira, o que a professora precisa neutralizar proibindo outra língua e esforçando-se por bem falar a nossa" (SANTA CATARINA, 1942)

Quadro 11

Nas mais variadas regiões do mundo se pode identificar historicamente esforços para nativizar a língua, como um fator de aglutinação e de construção do estado nacional. No Brasil, a questão foi um pouco diferente pois a meta era um processo mais radical. O que se visava era a extirpação do falar étnico que tivesse raízes nos grupos de imigrantes estrangeiros. Essas ações, verdadeiras manifestações de poder direcionando a cultura, adquirem ricas perspectivas de análise (aqui houve apenas uma pequena mostra), quando entendidas em suas relações com a identidade coletiva e como fazendo parte dos tortuosos caminhos que cada um enfrenta na "invenção de si".

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Notas

1 – As pesquisas mais recentes que estudam o tema nacionalização e a violência cultural, e inclusive física, que foi dirigida aos imigrantes estrangeiros e seus descendentes, na região Sul, apontam que esses fatos adquiriram maior força no estado de Santa Catarina.

2 – Não está sendo esquecido que, no bojo dos acontecimentos relacionados com a Primeira Guerra Mundial, o governo federal fez intervenções nacionalizadoras nos sistemas de ensino da região Sul do país. Essas medidas, todavia, são consideradas tímidas quando comparadas com a campanha de nacionalização que se inicia no ano de 1938.

3 – Grifo do autor.

4 – Segundo Weber, situado dentro de uma relação social, "o poder é definido simplesmente como a probabilidade de um ator impor sua vontade a outro, mesmo contra a resistência deste". Cf.: (ARON, 1999, p.494).

5 – O renascimento do interesse por questões relacionadas com a pátria foi tão forte que nas escolas de Primeiro Grau da Alemanha, na década de 1920, havia uma disciplina curricular autônoma intitulada "O estudo da pátria".

6 – DURKHEIM, Emile. A debate on nationalism and patriotism. In: GIDDENS, Anthony. Durkheim on politics and the state. Londres: Fontana Paperbacks, 1987, p.206.

7 – No ano de 1937, a denominação completa era Ministério da Educação e Saúde.

8 – As subvenções federais ao ensino elementar ocorreram mas de forma tão modesta e aquém das necessidades que, de fato, foram estados que assumiram a maior parte dessas responsabilidades, no Paraná, em Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

9 – Com essa afirmativa não se está esquecendo a ação do exército, mas o Ministério da Educação era o grande executor das aspirações da corporação militar quando os assuntos da educação passam a ser considerados como "questões de segurança nacional". A partir daí, não cabia mais a temática educacional ficar somente no âmbito da ação militar, mas essa ordem de preocupações deveria também se articular com a mentalidade da escola civil.

10 – Durante um largo tempo, o nome completo desse órgão foi Inspetoria das Escolas Subvencionadas pelo Governo Federal e Nacionalização do Ensino, sendo conhecida usualmente como Inspetoria de Nacionalização do Ensino.

11 – Grifo nosso.

12 – Tradução nossa.

13 – Essa edição brasileira da obra de Durkheim contém dois estudos do autor: Educação e sociologia (Primeiro Livro) e A educação moral (Segundo Livro).

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