Prof. Dr. Peter Burke

Primeiramente, como surgiu o seu interesse pela História e em qual momento da sua vida o Sr. optou por cursá-la? Como surgiu a História Cultural em sua obra?

 

As a small boy growing up just after the Second World War, I liked playing with toy soldiers. Someone gave me a book for adults called Fifteen Decisive Battles of the World. I found the text difficult but the diagrams of battles were ideal for the toy soldiers. I began to take an interest in military history, especially medieval armour and weapons and 19th-century uniforms. I became especially interested in the Middle Ages – Gothic cathedrals, romances of chivalry, heraldry, illuminated manuscripts (on display in the British Museum), medieval chronicles, etc. When I applied to Oxford, aged 17, I still thought I was going to be a medievalist, but then I discovered the Renaissance. Reading Jacob Burckhardt’s book on the culture of the Italian Renaissance was my discovery of culltural history, leading to my Culture and Society in Renaissance Italy (1972), which one reviewer called ‘the Burckhardt of the 1970s’ (actually, the book is still in print).

 

 

Como o Sr. analisa o impacto dos Annales na sua produção intelectual?

 

As a student at Oxford, I read works by Bloch, Braudel and Febvre (I think in that order) as well as new issues of  the journal Annales, and I became an enthusiast for ‘total history’ and especially the history of mentalities. When I was writing the book on the Renaissance, which was a social as well as a cultural history, I remember asking myself from time to time, How would an Annales historian approach this subject? None of them had, unless one includes Francastel, an unorthodox art historian who published something in the journal.

 

 

Uma reflexão que o Sr. propõe é pensar na História como gênero literário. Por que e como fazê-lo?

 

This is really an old idea, going back at least as far as Thucydides, who wrote history as tragedy long before Hayden White suggested ‘emplotment’. Another favourite historian of mine, Francesco Guicciardini, wrote a history of Italy in the 16th century that was also emplotted as tragedy, following the French invasion of Italy in 1494. Personally, I am most attracted to history in the ironic mode (another of White’s 4 categories, which should be at least 5, including epic). In this respect I follow Burckhardt. I would really like to be able to write history in the manner of Chekhov, producing a narrative that is comic  and tragic at the same time, but this would work better for political or maybe social hisotry rather than cultural history.

 

 

A ideia do gênero literário poderia ser expandida para outras áreas, como Antropologia, Economia, Direito, dentre outras?

 

Not only can be but has been. In anthropology, Clifford Geertz in particular was well aware of producing a literary work, while some of his ex-students contributed to a book, Writing Culture, that stressed the literary aspect of books on anthropology. The  comparison between Malinowski and Conrad (both Poles, living at the same time and  exploring worlds beyond Europe) was once bold but has become commonplace. I am not so sure about economics, but in the case of law, there is increasing interest in narrative and its conventions, a new approach to the testimonies of witnesses.

 

 

Como a História pode contribuir para a sociedade através das escolas, mas, também das universidades (onde outros cursos possuem disciplinas de História, como Arquitetura, Economia, Medicina e Matemática)?

 

In the 19th century, courses on the natural sciences usually included a history of the subject, abandoned when there was too much geology, physics, etc to teach. The history of science then turned into a speciality with courses of its own, part of the increasing division of labour inside as well as outside universities. I think that, for instance, courses on the history of architecture, given by architects for architects, make an important contribution to understanding, but this internalist approach (a history of problems and solutions) needs to be  complemented by an externalist approach by social or cultural historians, linking what happened in architecture to what happened outside it in a given period.

 

 

No contexto atual, qual a importância da divulgação científica? Na sua opinião, no que ela poderia vir a ser aprimorada?

 

In the case of the natural sciences, popularization via television is obviously important, while in some universities, chairs have been founded in ‘The Public Understanding of Science’. In the case of history, some leading scholars have shown themselves able to write for the general public as well as for specialists – Simon Schama, for instance, Carlo Ginzburg, or in the most recent generation of Annales historians, Patrick Boucheron. Things can always be improved, but looking at the disseminators, my view is optimistic. Looking at the disseminated, the readers and viewers, I am not so sure, especially in the  case of a generation more familiar with smartphones than with books.

 

 

O Sr. tem alertado sobre a importância do polímata. Assim, poderia nos falar sobre a relevância deles e da interdisciplinaridade para a sociedade em geral e, também, para os circuitos acadêmicos e para o próprio mercado de trabalho?

 

In an age of increasing specialization, we need polymaths more than ever, because they are the only individuals in a position to see connections between discoveries, problems  and solutions in different disciplines. The problem today is that there are fewer social niches for them than before. The job market has no place for them. But many polymaths have begun in one discipline and gradually extended their interests to others.

There are interdisciplinary courses in some universities (including the University of Sussex, where I began my teaching career in 1962, though the interdisciplinary project was abandoned there around the year 2000). I still believe that the best form of education in a university is to combine the intensive study of one discipline, the ‘major’ subject, with courses in other disciplines, preferably ones that connect with the  major. In the case of certain subjects, such as law and medicine, there may be a conflict between this ideal and the need for professional training, but most employers want graduates who are adaptable, whatever their subject at university. When I used to write references for my students, I emphasized, where possible, that they were quick to learn new things, and this kind of recommendation seemed to work.

 

 

Para finalizarmos, alguma projeção relativa ao que será a pesquisa acadêmica nas próximas décadas? Há, ao menos na História, a perspectiva de alguma renovação como foram os Annales?

 

Today, we see a variety of new approaches to history of which the best established and most important is surely the history of the environment. Where the Annales historians focussed and still focus on relations with the social sciences, historians of the environment need to know about natural sciences – geology, climatology, botany, etc. Other new approaches include digital history and non-human history. I don’t see any one centre dominating the scene like the Annalistes in Paris in the age of Braudel. History – like the world – is now polycentric!

A seguir, a Revista Tema Livre apresenta a entrevista concedida pelo historiador Aníbal Bragança (UFF) no dia 18 de abril de 2007, realizada no LIHED (Núcleo de Pesquisa sobre o Livro e a História Editorial no Brasil) situado na Biblioteca Central da citada Universidade. Na entrevista, dentre outras questões, Aníbal Bragança conta-nos sobre suas pesquisas na área da história editorial brasileira, fala a respeito de suas publicações relativas à História Cultural de Niterói e, por fim, da sua trajetória de vida, com a imigração de Portugal para o Brasil e a criação de livrarias na antiga capital fluminense.

Revista Tema Livre – Primeiramente, o Sr. pode falar-nos sobre o LIHED (Núcleo de Pesquisa sobre o Livro e a História Editorial no Brasil)?

Aníbal Bragança – O LIHED nasceu da minha atividade de pesquisa em História Editorial, quando consegui o acervo documental da Editora Francisco Alves, que é uma livraria-editora, fundada em 1854, que continua existindo até hoje, embora tenha passado por muitas mudanças, transformações de todo tipo. Ela é a editora privada mais antiga em funcionamento no país, e tem uma atividade que a coloca, inclusive, entre uma das mais antigas do mundo. No Brasil, só perde para a Impressão Régia, que é a Imprensa Nacional hoje. A Francisco Alves chegou a ser a maior editora brasileira e eu defendo que foi a primeira grande editora do país. Então, essa documentação tem uma grande importância para a História Editorial brasileira, porque ela permite que a gente possa reconstituir as práticas editoriais da segunda metade do século XIX e primeira do XX. A documentação vai até cerca de 1950, mais ou menos cem anos.

Então, a editora ia se descartar dessa documentação antiga que ficou preservada, a Biblioteca Nacional não quis, então o Carlos Leal, que é o proprietário atual, lembrou de meu interesse nessa documentação, por causa das pesquisas que eu tinha feito nos arquivos para elaborar a história editorial de Os Sertões, do Euclydes da Cunha, e me perguntou se eu queria ficar com ela. Eu fui com um caminhão na loja da Francisco Alves na rua 7 de setembro, no centro do Rio e peguei os documentos. Uma importante razão para a preservação desta documentação deve-se ao fato de que quando Francisco Alves morreu, ele deixou todos os seus bens para a Academia Brasileira de Letras. Isto fez com que houvesse um processo muito grande posteriormente ao seu falecimento, pois quando abriu-se o seu testamento e viram que ele deixou tudo para a Academia, seus parentes, sobrinhos, enfim, tinha uma série de interessados na fortuna dele e, assim, foi necessário preservar aquela documentação durante muitos anos por esta questão judicial.

Essa documentação acabou sendo preservada pelo sucessor do Francisco Alves, que era um antigo auxiliar seu, chamado Paulo de Azevedo, que comprou a editora da Academia, pois a ABL ficou só com os bens, dinheiro e imóveis. O Paulo de Azevedo também preservou a documentação, em função do processo. Acabou que esse acervo documental ficou preservado até mais ou menos 1990. Depois, a Editora entrou em uma crise muito grande, já com uma outra direção, que não tem mais nada haver com os fundadores, nem com os sucessores diretos, e aí essa documentação acabou se perdendo um pouco e se deteriorando, mas conseguimos dessa forma preservar uma documentação muito importante. Inclusive, eu já tinha aproveitado uma boa parte dessa documentação para fazer uma pesquisa na época do Doutorado na USP, quando eu estava fazendo a História Editorial do livro “Os Sertões”. Aí trabalhei no escritório da Francisco Alves uns três ou quatro meses, tinha mesa, acesso ao arquivo, a direção atual foi muito gentil neste aspecto. Então eles se lembraram que eu tinha interesse na documentação e me ofereceram ela.

Desde essa época que consegui os documentos, que tem mais ou menos uns cinco anos, quando eu criei o Núcleo de Pesquisa sobre Livro e História Editorial, tenho procurado na Universidade um espaço para organizar esse acervo, recuperá-lo, higienizá-lo, protege-lo, preservá-lo, mas foi difícil. No final da gestão do reitor anterior, através, fundamentalmente da PROAC, dirigida pela profa. Esther Luck, do Prof. Serra, do IACS, e da então diretora da Biblioteca Central, a Anne Marie, que agora está aqui conosco, que eu consegui este espaço que estava relativamente ocioso, e eu achei muito bom, porque fica ao lado da Biblioteca da Pós-Graduação em História e, na realidade, com a abertura deste espaço, a gente vai poder explorar mais a documentação em termos da sua potencialidade, pois o nosso objetivo é abrir para outros pesquisadores. Ressalto que tem muita gente que estuda a Francisco Alves, principalmente as suas edições, porque ele foi um grande editor de livros didáticos, na verdade o Francisco Alves foi o primeiro grande editor de livros didáticos do país, aí é preciso conhecer os manuais e os livros escolares que ele publicou e como. Nós também estamos com o Fundo Editorial Histórico da editora, os livros de contratos, enfim, tudo isto tem interesse para quem estuda a história do livro escolar, a história da educação e, então, o nosso objetivo é organizar, dar acessibilidade aos pesquisadores, em termos materiais mesmos. Além disto, o objetivo é digitalizar o máximo possível da documentação, livros, cartas, identidade dos volumes, folha de rosto e até, eventualmente, o livro inteiro, porque são livros raros, mesmo em bibliotecas especializadas, e até na Biblioteca Nacional, então eu quero ver se a gente consegue colocar na internet para que seja acessível para quem estiver pesquisando no Brasil e no exterior. Agora, depois de quatro ou cinco anos, é que a gente vai começar a ter uma possibilidade de desenvolver mais trabalhos. Aí, eu entrei com pedido de bolsas para alunos, para iniciação cientifica, monitoria e, agora, com esta possibilidade do trabalho aqui na biblioteca, creio que nós estamos começando efetivamente a história do LIHED com um acervo muito grande. Também estou trazendo para cá uma parte dos meus livros, na área especifica de interesse para a Educação, História Cultural, História do Livro e História Editorial, mas, mais importante do que isto, é o acervo documental que dá ao LIHED um caráter peculiar de arquivo.

Agrego que estou confiante de que a gente possa desenvolver aqui um Núcleo de Pesquisas que vá oferecer boas contribuições para o conhecimento da História Editorial brasileira que, até hoje, tem apenas uma grande obra, uma tese de doutorado, feita por um bibliotecário britânico, o Laurence Hallewell, que fez “O Livro no Brasil”, e que foi traduzido e, até hoje, é uma obra de interesse fundamental para quem vai estudar o livro no Brasil. Essa obra dá uma dimensão de grande valor, mas tem muita coisa que precisa ser desenvolvida e, até alguns anos atrás, não havia muitos estudos sobre o livro no Brasil. Havia ainda alguma coisa sobre a Colônia, o Rubens Borba de Moraes, que fez um trabalho muito interessante sobre bibliotecas coloniais, sobre a Impressão Régia, mas, de uns dez anos para cá, houve um grande desenvolvimento das pesquisas, muito dentro do campo da História Cultural, com a influência do Chartier e do Darnton e, também, tanto na Comunicação, quanto na Educação, houve uma conscientização deste novo tempo da História do Livro, história que é meio um guarda-chuva, pois há a História Editorial, tem a questão dos Direitos Autorais, da Indústria Gráfica, do Design dos Livros, tudo isto é objeto possível de pesquisa para quem trabalha na área de ciências humanas em geral.

RTL – O Sr. pode falar um pouco mais sobre Francisco Alves e sua editora?

Bragança – Bem, o criador da Francisco Alves, que era o Francisco Alves de Oliveira, era um minhoto que veio para o Brasil com quinze anos de idade como aprendiz, se formou aqui, montou uma editora no Rio de Janeiro a partir da livraria que foi fundada pelo seu tio e, depois, ele comprou editoras em Portugal e na França, expandindo os seus negócios para a Europa.

Além disto, é importante observar que a Francisco Alves foi muito prejudicada em sua imagem na época e, depois, na historiografia, pelo anti-lusitanismo que existia no inicio da República. Então, houve uma super-valorização dos franceses, do Garnier, do Laemmert e, depois, do Monteiro Lobato. Então, ficou uma francofilia muito grande e, depois, essa valorização do eixo paulista da historiografia, que se desenvolveu muito na historiografia brasileira, que passou a ver tudo com os olhos de São Paulo, tudo em São Paulo foi fundador. Basta lembrar da construção historiográfica sobre a semana de arte moderna e tudo o que se desenvolveu depois, além dos grandes historiadores de São Paulo, o Sérgio Buarque de Holanda, o Caio Prado Júnior, entre outros, e o peso da Universidade de São Paulo, o deslocamento do eixo econômico para São Paulo, enfim, acabaram fazendo a construção de uma imagem de que os paulistas fossem o centro de tudo e aí entronizaram o Monteiro Lobato como o fundador da Indústria Editorial brasileira, o que é um grande equívoco, isto porque, por mais tardia que tenha sido e, efetivamente o foi, a fundação desta indústria aconteceu em 1808, com a chegada do príncipe D. João ao Brasil. O Monteiro Lobato iniciou as suas atividades como editor, efetivamente, em 1918. São 110 anos de atividade editorial no país que ficou ignorada pela historiografia. Há, como eu disse antes, alguns estudos sobre a colônia, sobretudo sobre as bibliotecas coloniais, a valorização da Impressão Régia, mas ficou um espaço muito nebuloso e muito esquecido do que ocorreu depois da instalação da Impressão Régia até o Monteiro Lobato e, neste contexto, houve uma valorização muito grande dos livreiros estrangeiros, principalmente os franceses, que se instalaram aqui.

Então, observa-se que, para não falar do Francisco Alves como o criador ou como um dos grandes editores brasileiros, ele foi colocado pela historiografia como um editor estrangeiro, junto com o Garnier, o Laemmert, entre outros. Na realidade, Francisco Alves apenas nasceu em Portugal, porque ele veio para cá com 15 anos, toda a sua formação e constituição do seu negócio foram no Brasil. Ao comprar editoras em Portugal e na França e expandir os negócios para lá, Francisco Alves fazia exatamente o inverso do que tinham feito, principalmente, os editores franceses, que instalaram filiais aqui, na Argentina, enfim, se expandiam para os novos mercados. Esses franceses tiveram uma importância grande no Brasil, mas o Francisco Alves fez o percurso inverso. Criou a empresa no Rio de Janeiro, comprou várias empresas no país e, depois, no exterior. Ele foi uma pessoa bastante ativa, dinâmico, e talvez para não reconhecer a importância dele, colocou-se ele como editor estrangeiro, porque assim se podia colocar Monteiro Lobato como o criador. Isso é uma coisa que eu estou trabalhando no sentido de fazer esta revisão e, agora, certamente, com as comemorações do Bicentenário da instalação da Imprensa no Brasil, que vai ocorrer no ano que vem, a gente certamente conseguirá avançar nessa reconfiguração historiográfica da História do Livro no Brasil.

RTL – O Sr. também realizou o primeiro Seminário no país referente à História Editorial brasileira. Conte-nos sobre esta experiência.

Bragança – Essa experiência de realizar este seminário foi muito importante para mim e para quem esteve envolvido junto comigo. É um produto, vamos chamar assim, do LIHED, deste meu interesse em pesquisar a História Editorial brasileira. O primeiro seminário foi em 2004, porque foi quando a Francisco Alves fez 150 anos da sua fundação. Quer dizer, o evento foi motivado pelas comemorações do sesquicentenário da editora mais antiga em funcionamento no país. Eu consegui a parceria com a Casa de Rui Barbosa, que foi muito importante, a instituição acolheu muito bem o projeto e apoiou com recursos, o Programa de Pós-Graduação em Comunicação também apoiou, igualmente a Fundação Euclides da Cunha, daqui da UFF, e a CAPES também. Então, a gente conseguiu fazer um seminário relativamente pequeno, porque era especifico de História Editorial e estudos do Livro, mas tivemos cerca de 150 pesquisadores e nove convidados estrangeiros. A gente conseguiu fazer um seminário em três dias, de muito boa qualidade, conseguindo dar uma boa contribuição, tanto que a maioria dos textos ficou acessível na internet, no site que nós criamos (http://www.livroehistoriaeditorial.pro.br/) , e tem tido uma visitação, um acesso crescente, acho que o seminário tem, até hoje, repercussões muito positivas para a pesquisa do Livro e da História Editorial no Brasil. Considero este Seminário como a primeira grande realização do LIHED.

RTL – Anteriormente, o Sr. falou da questão da transferência da Corte portuguesa para o Brasil, advento, inclusive, que terá o seu bicentenário comemorado no próximo ano, em 2008. Assim, qual a importância deste acontecimento para o mercado editorial e, também, na editoração de livros no Brasil?

Bragança – Bem, foi uma grande contribuição para o desenvolvimento da colônia e, depois, do país. Mas isso deve ser visto, ao contrário do que normalmente se vê, como uma fuga, acho que deve ser visto como um processo que vinha de muito antes, desde que se pensou a formação do grande império luso-brasileiro.

No que diz respeito à produção de livros, eu entendo que a História Editorial brasileira começou em Portugal, em Lisboa, com a criação da Casa Literária do Arco do Cego, em 1799, embora em 1754 tenha se proibido o funcionamento de uma oficina gráfica no Rio de Janeiro, a do António Isidoro da Fonseca, que foi o primeiro editor a publicar livros no Brasil. O Arco do Cego foi criada pelo frei José Mariano da Conceição Veloso, que nasceu em Minas, que escreveu um livro chamado “Flora Fluminense”, e que foi para Portugal, para publicar o livro e foi acolhido pelo D. Rodrigo de Sousa Coutinho, cuja mãe era brasileira e tinha profundas ligações com o Brasil. Acabou que o livro não foi publicado, mas o frei Veloso foi encarregado pelo D. Rodrigo de criar uma editora, a do Arco do Cego. Juntaram-se para a criação desta editora vários estudantes brasileiros que estavam em Portugal e que se tornaram muito importantes posteriormente, como jovens intelectuais brasileiros.

Com o Arco do Cego foram editados muitos livros para o desenvolvimento do Brasil. Teve um livro fundamental que se chamou “Fazendeiro do Brasil”, composto de vários pequenos volumes que procuravam difundir as técnicas agrícolas mais avançadas, com maior produtividade, indicando, também, outras culturas que não apenas a cana-de-açúcar e café, enfim, culturas que pudessem desenvolver a agricultura no país. Além desse foco no desenvolvimento da colônia, a editora igualmente teve várias edições voltadas para a própria arte de imprimir, de ilustrar, de criação de desenhos, de técnicas tipográficas.

No entanto, a editora durou menos de três anos, terminou em 1801, pois aconteceu que, o D.Rodrigo, em 1801, ele foi transferido para o Real Erário, aonde já funcionava a Impressão Régia. Então, em função disto, D. Rodrigo acabou com a editora do Arco do Cego e levou o frei Veloso para a Impressão Régia. Mas, por uma série de razões, acabou que o frei Veloso não teve o mesmo papel ali que teve no Arco do Cego.

Então, com a vinda da família real para cá, o frei Veloso veio, o D. Rodrigo também, e muito do que é a Impressão Régia do Rio de Janeiro, criada com o príncipe D. João, tem muito a ver com o Arco do Cego, principalmente porque eles trouxeram operários, tipógrafos e gravadores que tinham alto nível técnico, o que permitiu que a Impressão Régia no Rio de Janeiro tenha publicado livros com excelente qualidade editorial e gráfica.

Normalmente, a gente esquece que tudo tem alguma coisa que precedeu, que ajudou a formar, nada vem de um “ponto zero”. Então, para mim, a História Editorial brasileira começa, efetivamente, com o Arco do Cego, em 1799, em Lisboa. Eu costumo chamá-la de uma editora brasileira que funcionava em Portugal, como acontece com o Correio Brasiliense, que é considerado o primeiro jornal brasileiro, mas era editado na Inglaterra. Por falar nisso, aproveito para dizer que Hipólito da Costa trabalhou com frei Veloso no Arco do Cego, mas, depois, ele acabou tendo uma outra trajetória. Então, a vinda da família real para cá, especificamente no campo do livro, teve uma importância muito grande. Embora a Impressão Régia tenha começado com o objetivo de publicar o jornal, logo ela começou a publicar livros, desde os didáticos até romances.

É claro que o público consumidor de livros já existia, desde antes da transferência da Corte, já com as Minas e o desenvolvimento urbano, de uma classe média e de um aparato burocrático, que vai fazer com que haja um público consumidor de livros, que tinha que comprar os livros que vinham de Portugal, da França, enfim, da Europa e, mais para o final do século XVIII, apesar de toda a censura, o número de livros que vinham para o Brasil era significativo. Então, quando a família real chegou ao Brasil, já tinha um público consumidor de livros, mas o fato de se poder editar aqui mudou radicalmente a situação anterior e, de 1808 a 1821, houve uma grande expansão.

Isso, enfim, tem a ver com a vinda da família real, com a criação da tipografia, mas eu acho que há antecedentes no Arco do Cego, que explicam, fundamentalmente, porque a Impressão Régia chegou com um alto padrão de trabalho, de serviços, a grande qualidade editorial.

RTL – E, posteriormente, como deu-se a questão do livro no Brasil?

Bragança – Depois de 1821, com o fim da censura, houve mais uma grande expansão e, também, depois, com a Independência. Mais tarde, já a partir de 1870, com a luta pela república, eu digo que houve realmente a formação de um mercado consumidor de produtos impressos, principalmente jornais, mas livros também, e isto foi até 1920. Temos aí cinqüenta anos de hegemonia da cultura letrada na cultura brasileira. Logo depois começa a “Era do Rádio”, começam a mudar os eixos, a hegemonia vai, paulatinamente, passando para o audiovisual, que se concretiza depois, com a televisão, em 1950.

Mas, até o final da década de vinte, antes da grande explosão do rádio, nós tivemos um período relativamente curto de hegemonia da cultura letrada, que tem a ver também com a expansão do sistema escolar de ensino, que se ampliou bastante, neste período dá-se a fundação da Academia Brasileira de Letras, enfim, houve um período em que os intelectuais brasileiros tiveram uma certa ascensão, uma certa hegemonia, eram muito ouvidos, tinham um certo poder.

Então, principalmente a partir de 1930, os impressos passam a ter que lidar com a presença do rádio, que é um meio que facilita muito a participação daqueles que não são alfabetizados. Participar dos acontecimentos, ter o acesso à música, à arte, vamos chamar assim, pois o rádio no Brasil nasceu muito voltado para uma difusão cultural, com o Roquete Pinto, até pela característica da sociedade brasileira ser muito oral, com alto número de analfabetos. Assim, o rádio nasceu com esse objetivo de instruir, educar, esse slogan que tem até hoje na Rádio Mec. Mas isso ocorreu porque a partir de 1930 houve uma grande expansão da sociedade brasileira em termos econômicos, sociais e tecnológicos. O livro passou a concorrer com outro meio de comunicação, que não só o escrito e impresso. Depois, com a implementação da televisão, em 1950, vai começar a haver uma crise maior da cultura letrada frente aos meios audiovisuais. E cada vez mais esse sistema audiovisual no Brasil se torna poderoso.

É claro que hoje se publica mais do que antes, mas se lê muito menos. No entanto, a cultura letrada sobrevive, ela é responsável pela Universidade, apesar de toda a crise desta instituição, dos intelectuais e do livro, eles continuam existindo. Pode-se entender que essas coisas não acabam, apenas mudam de posição em uma configuração cultural. O cinema não acaba com o teatro, a televisão não acaba com o rádio, mas há uma reestruturação na configuração cultural em uma relação entre comunicação e cultura, que é o foco de interesse meu em termos de pesquisa e a cultura letrada nesse contexto.

RTL – Como está, atualmente, o mercado editorial brasileiro?

Bragança – O mercado editorial brasileiro é um dos mais fortes em termos de número de exemplares, quantitativamente ele é forte, isso porque o público escolar é muito grande, chega a ser maior do que a população de muitos países. Finalmente, como o governo tem oferecido livros escolares aos setores mais desfavorecidos da população, ele tem comprado muito livro escolar. Com isso, a produção quantitativa de exemplares no Brasil cresceu muito e é bastante significativa. Podemos destacar que as editoras de livros escolares são, enfim, um grande negócio. Tão grande que tem despertado o interesse de grandes grupos internacionais que vem para cá e compram as editoras de livros didáticos, às vezes mantendo os nomes originais das editoras brasileiras, às vezes não.

Tem, também, o mercado de literatura tradicional, de ensaios, produção cientifica e tecnológica, mas esses mercados não sustentariam a indústria editorial brasileira. Grosso modo, nós poderíamos dizer que a indústria se mantém no patamar que se mantém pelas compras do governo de livros escolares. O governo tem, também, expandido a compra de para-escolares, com algumas coleções de clássicos na área de Ciências Sociais, mas isso tudo ocorre de uma forma muito desorganizada, porque, na realidade, o governo tinha era que montar e manter bibliotecas com a qualidade e quantidade necessárias. Aí sim, atendendo às demandas das comunidades que essas bibliotecas servissem, o governo aplicaria verbas na aquisição desses livros e, com isso, se atenderia as demandas vindas das bases, pois tem municípios que não tem uma biblioteca pública. Desde que o Instituto Nacional do Livro foi criado, em 1937, ele tem como objetivo instalar uma biblioteca em cada município. Hoje, em 70 anos, isso não foi alcançado. É claro que o número de municípios aumentou, mas neste tempo o Brasil não ser capaz de oferecer uma biblioteca em cada município é porque não houve, efetivamente, prioridade no investimento na área da cultura letrada.

Além disto, a grave situação do Brasil na área da cultura letrada deve-se ao fato de que não conseguiu-se estabelecer um sistema público de ensino que atenda a toda a população, coisa que outros países já alcançaram há muito tempo. Os países do norte da Europa, desde o século XIX, alcançaram índices de alfabetização de 99%. Houve uma grande expansão em alguns países, principalmente nos que ocorreu a Reforma Protestante, pois a Igreja reformada estimulou muito a alfabetização para ler a Bíblia. Quer dizer, antes até do Estado, o próprio movimento religioso protestante ampliou muito as práticas de leitura. Então, isto não ocorreu no Brasil. Temos problemas desde a colônia. Mas, evidentemente, hoje não se pode culpar tudo pela colonização. Houve já duzentos anos em que o Brasil poderia ter avançado muito mais nisso e na questão da desigualdade social também.

Uma questão que é crítica na sociedade brasileira é a de existir muito mais editoras do que livrarias, fazendo com que as editoras não tenham como vender, não tenham uma rede com uma capilaridade suficiente para atender o território nacional. Com isso, são feitas edições de mil, de setecentos, de quinhentos exemplares, porque não há aonde colocar.

Então, há distorções, há uma crise, há coisas complexas na área do livro, apesar de haver um ou outro indicador positivo. Mas, no geral, há uma crise muito grande, uma crise estrutural do setor, que decorre de toda uma formação meio torta do nosso mercado editorial, da indústria editorial e, também, dessa crise geral da cultura do impresso, que acaba se agravando porque cada vez mais há menos leitor do impresso. Cada vez há menos tempo, a escrita e, principalmente, a literatura, o ensaio, são meios de comunicação adequados a um outro ritmo de tempo. Hoje, ler um livro é uma tarefa que não está de acordo com o ritmo do tempo. Hoje o ritmo nos leva a fazer uma pesquisa na internet para conseguir a informação, o artigo, o documento que a gente quer, de maneira instantânea, imediata, que a gente vai utilizar e descartar. Então, a coisa do aprofundamento, do se deter sobre determinada obra, é uma coisa que eu tenho dito que é cada vez mais a coisa de uma elite. São cada vez menos pessoas que tem condições econômicas e sociais de um cotidiano que lhes permite levar duas, três horas em um bom ambiente podendo ler um livro, ter leituras a cada dia. Tem-se publicado cada vez mais, mas é muito difícil, para qualquer área, a gente se manter atualizado com tudo que se publica. Então, nós estamos cada vez mais nos tornando pessoas que lêem capítulos, trechos de livros, mesmo quem gosta, como é o meu caso, de ter uma boa biblioteca em casa, de ter os livros que eu acho que vou precisar, mas a leitura normalmente é fragmentada. Poucas vezes eu consigo ler um livro inteiro da maneira que quero.

Isso tudo me remete a um romance do Ítalo Calvino que se chama “Se um viajante numa noite de inverno”, que é um romance fantástico, que fala sobre essas questões de autoria, edição, leitura… Ele é um autor fabuloso, um grande romancista, mas, além disto, ele trabalhou em uma editora italiana chamada Einaudi, então ele conhece o mundo editorial por dentro e mostra, também, isto neste livro, em que ele diz que cada vez mais aumenta o número de leitores que lêem para escrever. Na realidade a gente, e eu me enquadro nisto, cada vez mais lê para escrever. O nosso ritmo não nos permite, de uma maneira geral, a leitura desinteressada. Quando eu vejo um leitor de romance, eu tenho uma grande admiração e um grande apreço, porque é alguém que ainda consegue ler, ler sem algum interesse que não seja a fruição da leitura. Ainda existem esses leitores, o que é muito bom, permitindo, assim, uma tiragem de um best-seller de três mil exemplares, pois um romance pode ser considerado, grosso modo, best-seller, se conseguir vender 3.000, 5.000 exemplares. Então, existe este público, que eu diria que é de sobreviventes, que não trocaram a leitura de um romance pela telenovela. Mas é um número cada vez mais restrito, porque ler exige um espaço, um silêncio, um certo isolamento até, para que a gente possa fruir da leitura de uma maneira adequada. É uma prática que eu considero que está cada vez menos em acordo com o ritmo da nossa cultura contemporânea. Mas, acho admirável quem consegue ler no ônibus, na barca, com barulho em volta. Geralmente são leituras mais digestivas, menos reflexivas, mas são leituras e a leitura é sempre um processo criativo. Então, quem consegue praticar leitura desinteressada e em qualquer ambiente eu acho admirável.

RTL – Esta questão relativa ao mercado editorial que o Sr. apontou é uma especificidade brasileira, ou também o é, inclusive, de outros países da América Latina, como a Argentina, que educacional, cultural e intelectualmente é um país que tem bom desenvolvimento ou da própria Europa?

Bragança – Bom, eu acho que todos os países do Ocidente, eu não conheço os dados do Oriente, mas eles apresentam queda nos índices de leitura. A Espanha, a França, os Estados Unidos são países que têm feito pesquisas e têm constatado que o tempo dedicado à leitura, o número de livros lidos, em média, tem caído e, cada vez mais, avançado a leitura na tela, nos computadores, na internet, até mesmo para noticiários e jornais. Então, a queda dos indicadores de leitura é geral, não é um caso especifico do Brasil. A questão é muito complexa.

No entanto, no caso do Brasil, a gente tem indicadores pior que sofríveis na leitura. Há certas pesquisas comparativas de compreensão da leitura em estudantes do nível médio em que o Brasil faz vergonha, fica acima só do Haiti, os outros países do continente, e não falo nem de Argentina e Chile, estão acima do Brasil. Mas a posição do país em termos de número de livros consumidos, mesmo incluindo os escolares, é muito baixo. Os níveis de compreensão da leitura, que demonstrariam práticas sociais de leitura, no caso do Brasil, é vergonhoso.

Acho que a gente sofre conseqüências de uma estruturação ruim da indústria editorial, do setor privado, penso muito em um processo que os editores fizeram no sentido de não oferecer condições para os livreiros se desenvolverem, então, com isso, o número de livrarias caiu muito. Os editores escolhiam que livros publicar, que preço definir, mandavam para as livrarias, que, se não vendessem, tinham que arcar com os prejuízos. Isso onerava muito o trabalho do livreiro, ele era obrigado, muitas das vezes, a jogar fora, liquidar ou dar o livro que ele não vendia porque ele não podia devolver à editora.

Depois, veio um outro momento, de concentração, que tem a ver com a expansão dos shoppings, e aí há a formação de grandes redes de livrarias.Assim, as livrarias de rua tiveram mais dificuldades em se manter. Mas, de todo jeito, acaba que as livrarias de rede são muito poucas em relação ao potencial de compras, mesmo pequeno, da sociedade brasileira, porque o Brasil é um país imenso. É uma questão muito complexa, que envolve os baixos indicadores de leitura, pois um país com quase 200 milhões de habitantes que faz tiragens médias de 1.000, 2.000 exemplares, na verdade, a maioria faz até menos de 1.000, é muito pouco. Isso mostra alguma coisa errada, uma distorção muito grande.

Já a realidade dos didáticos, como eu observei, é diferente, existem tiragens de mais de 1 milhão de exemplares. O Brasil tem um público jovem enorme, então haveria um potencial muito grande para a indústria editorial se desenvolver, no entanto, o que temos visto, tem estudos recentes do BNDES que provam isso, é uma rentabilidade decrescente da indústria editorial no Brasil, em que pesem os resultados positivos da área do livro escolar em decorrência, fundamentalmente, do investimento público na compra do livro para a distribuição aos alunos. Remedia-se, em parte, a situação, mas precisa-se de Bibliotecas Públicas.

Além disto, estas medidas excluem o livreiro. Ao instalar uma livraria em uma comunidade ela passa a ser um centro irradiador da cultura letrada. Ela passa a oferecer livros, as pessoas passam pela vitrine e olham, podem se interessar por um autor ou um assunto, o livreiro pode ser um agente multiplicador das práticas de leitura. Mas é uma das distorções da indústria editorial brasileira que esqueceu disto. Em 1975 eu dei uma entrevista ao Jornal do Brasil, quando eu ainda era livreiro, e a manchete foi essa: “Para o editor, o livreiro é um inimigo menor”. Quer dizer, era um inimigo com pouco poder de fogo, então, pode-se destruir à vontade. Evidentemente, tinham os editores que sabiam da importância dos livreiros e os valorizavam, postura, em sua maioria, das pequenas e médias editoras. No entanto, os resultados desta política se refletem no problema brasileiro de falta de distribuição e que é algo que os editores sempre reclamam. Nos últimos anos houve uma mudança nesta política, as editoras perceberam que cada vez mais tinha-se menos livrarias, elas viram que estes espaços eram muito importantes para dar visibilidade às suas edições e, aí, quando os espaços já haviam sido muito reduzidos e se tornado mais onerosos, os editores perceberam a relevância das livrarias.

Então, eu tenho procurado trabalhar com pesquisa, com alguma contribuição nesta situação contemporânea, principalmente depois que eu tive uma breve experiência na coordenação do PROLER da Biblioteca Nacional, no inicio de 2006, e aí essas questões do contemporâneo me chamaram mais atenção. Também nesta época eu acabei me envolvendo muito em um projeto que já vinha em processo de criação de uma política pública para o livro, mas acabou não dando certo. É uma coisa que eu estou contando em um depoimento que está publicado na revista virtual Linha Mestra, da Associação de Leitura do Brasil (ALB) http://www.alb.com.br/pag_revista.asp.

Mas, embora o meu foco de atuação seja o desenvolvimento histórico da indústria editorial brasileira, não só porque eu vivi como livreiro de 1966 até 1987, tendo passado, assim, por todo esse processo ao qual estou me referindo e, também, porque me interesso por essas questões, continuo sendo um comprador compulsivo de livros, então essas questões me interessam muito no contemporâneo. Mas, o meu foco principal, é a história.

RTL – Finalizando, eu queria perguntar ao Sr. sobre a sua atuação aqui na cidade de Niterói, seja como livreiro, seja como intelectual, além da sua trajetória de vida, com a questão da imigração de Portugal para o Brasil.

Bragança – Eu cheguei ao Brasil com 12 anos e fui logo trabalhar e estudar. Fiz o ginásio, o cientifico e, depois, o vestibular, mas sempre trabalhando. O meu segundo emprego, dos 16 aos 21,22 anos, foi no Banco Cordeiro, onde eu comecei como auxiliar e, aos 21 anos, já estava como inspetor, gerente de agência, e foi o período em que eu fiz o vestibular. Nesse período, que era 1964, 1965, existia a figura de Celso Furtado e da SUDENE, quase que dando aos economistas uma dimensão de redentores do país com o planejamento econômico, planejamento que poderia fazer a transformação social. Então, eu acabei me decidindo por fazer o vestibular para economia. É claro que também tinha o fato de eu trabalhar em banco, não pode-se negar, mas eu rapidamente percebi que não era isso que eu queria.

Quando fui gerente de uma agência em Nova Friburgo eu costumava, à noite, me refugiar em um centro de artes, ia participar dos grupos de teatro e de pintura, era um universo completamente diferente daquele que eu vivia durante o dia como gerente de banco. Ainda quando eu estava em Friburgo fiquei com muita vontade de montar uma livraria lá. Acho que o meu interesse em ter uma livraria estava muito relacionado ao meu curso cientifico no Liceu Nilo Peçanha, aqui em Niterói, que tem em frente a ele a Biblioteca Pública Estadual. Eu ia para a biblioteca estudar, fazer pesquisas e achava admirável os bibliotecários com todos aqueles livros, então, em algum momento, eu tive a vontade de ser bibliotecário ou livreiro. Deste modo, quando eu entrei para a Universidade, com esse objetivo e encantamento com a economia, eu já tinha o “vírus” de livraria.

Depois, quando eu era gerente de banco no Rio, eu conheci um livreiro, o Víctor Alegria, um português, que tinha uma firma chamada Encontro S/A Livraria, Galeria de Arte e Discoteca, sendo que discotecas, na época, tinha o significado de vender discos. Eu acabei entrando para a diretoria desta empresa, pois a proposta do Víctor era a que eu imaginava fazer, já antes, em Friburgo, uma livraria com galeria de artes e venda de discos.

Mais tarde, eu montei com ele e outros sócios uma livraria, a Encontro, que depois se transformou na Diálogo, e o banco foi comprado pelo BANESPA. Eles disseram que quem quisesse sair eles demitiriam e como eu já estava com a livraria, logo me ofereci para ser demitido, conseguindo um dinheiro para ajudar no desenvolvimento da livraria. Além de vender livros, sempre desejei fazer da livraria um centro de atuação na sociedade. Esse período era de grande agitação política e conscientização, principalmente depois do Juscelino. Fui, vamos dizer assim, assediado pelos sindicalistas, ainda quando era bancário, que me forneceram livros como o “ABC do comunismo” e o “Manifesto Comunista”. Isso para um jovem que já tinha uma sensibilidade para a questão social era uma motivação muito grande para a gente achar que poderia contribuir, ou até mesmo mudar a realidade.

Então, quando eu abri a livraria, a primeira foi a Encontro, junto com o Vítor, sendo que, meses depois, me separei deles, amigavelmente, a livraria mudou seu nome para Diálogo e, com outros sócios, Renato Berba e Carlos Alberto Jorge, especialmente, a minha proposta era atuar na transformação cultural de Niterói. Logo conseguimos esse espaço, promovemos vários lançamentos de livros, trouxemos muita gente, como, por exemplo, o Leandro Konder, que deu um curso de literatura russa, além do Barbosa Lima Sobrinho, Geir Campos, Fausto Wolff, Stanislaw Ponte Preta, Rubem Braga, Fernando Sabino, enfim, grandes autores vieram à livraria fazer palestras, lançar livros e, aí, o objetivo maior era editar. Então, junto com outros colegas que me ajudaram, eu criei uma linha editorial, que nós inauguramos em 1966/67. Em outubro de 1968 nós lançamos o primeiro do que seria uma série de livros, “O Estado e a Revolução” do Lênin. O prefacio foi do José Nilo Tavares, que era professor aqui da UFF, e uma apresentação de Otto Maria Carpeaux, que era um grande crítico literário da época, com uma tradução que nós compramos da antiga Editoral Vitória, que já tinha editado este livro no Brasil.

Isso tudo foi em outubro de 1968, quando a livraria fazia dois anos e, em dezembro de 68 teve o AI-5. A livraria foi fechada, saqueada e nós fomos presos. Também era uma época de que tudo o que se fazia de diferente em Niterói tinha uma repercussão muito grande. Então, setores conservadores da cidade acharam um horror aqueles garotos, na época eu tinha os meus vinte e poucos anos, fazendo o que nós estávamos fazendo. Teve até uma manchete em um jornal que era “A Diálogo importa 2 toneladas de subversão para Niterói”. Quando a gente foi ver o que era isso, é que na época o transporte era feito por barcas de carga, sendo que tinha um posto fiscal nas barcas, então eles pegaram a quantidade de quilos dos livros que foram impressos na gráfica da revista O Cruzeiro, no Rio, e colocaram a manchete das 2 toneladas. Então, logo depois do AI-5, a livraria foi fechada. Mas, em função dessa vontade de atuar na sociedade, a livraria voltou, porém tivemos que vendê-la, aí eu criei um clube de leitores chamado Centro do Livro, Livros para Todos e, depois, criei, em 1975, uma outra livraria, a Pasárgada.

A Pasárgada teve uma grande importância em Niterói, foi a primeira livraria de Icaraí, funcionava na Pereira da Silva, primeiro na esquina com a Moreira César, depois na esquina com a Tavares de Macedo, o prédio continua lá, e conseguimos criar, com maior infra-estrutura, essa dimensão cultural. Tinha auditório, cursos, palestras, lançamentos de livros, temporadas de peças, casa de chá, mas, em 1981, teve uma grande recessão econômica, em 1985 eu vim para a Universidade e, então, eu acabei fechando a livraria. Também tive outras livrarias em Niterói, abri umas dez livrarias na cidade, mas sempre com esta dimensão de intervenção na sociedade. Acho que eu consegui dar uma contribuição para as práticas de leitura, foram livrarias que tiveram muito sucesso, uma certa repercussão nacional. A Livraria Pasárgada foi uma referência, antecedeu uma tendência que, depois, outras livrarias no Rio desenvolveram, mas que a gente desenvolveu isto aqui em Niterói no inicio dos anos 80. Então, foi um período bastante interessante de intervenção na cidade. Além disto, participei da criação, junto com outros livreiros, em São Paulo, da Associação Nacional de Livrarias, da qual fui diretor, posteriormente, criamos uma Associação Regional de Livrarias aqui no Estado do Rio de Janeiro.

Acho que por isso fui chamado, em 1989, para ser Secretário de Cultura de Niterói. Assim, houve uma participação minha como livreiro e como Secretário de Cultura na vida cultural de Niterói. Mas eu acho que isso se acentuou quando eu comecei a trabalhar na Universidade e continuei me dedicando à questão do livro, mas mais em uma perspectiva como pesquisador. Com a minha dissertação de mestrado, que foi publicada em 1999, não deixei de contribuir com a história cultural de Niterói. A dissertação foi sobre a história da Livraria Ideal, de propriedade de um imigrante italiano, o Silvestre Mônaco, aí tem a ver com a minha situação de imigrante, eu mostrei a história da imigração, do desenraizamento, do reinraizamento de um imigrante italiano, que vem para cá em 1922, e que teve muitas vicissitudes, foi preso, era apontador do jogo do bicho, e que teve uma vida muito aventurosa no Brasil. O pai do Silvestre Mônaco era engraxate, o chamou para vir para o Brasil e ele veio com os seus quinze anos. O pai queria que ele o ajudasse na engraxataria, mas ele se recusou, acabou mudando-se para o Rio e foi vender bilhete de loteria, que era uma outra possibilidade que se tinha para o imigrante italiano. No entanto, ele acabou sendo apontador do jogo do bicho, era meio brigão, foi preso várias vezes, também era um período em que o Getúlio queria “domesticar” os operários e os imigrantes, aí o Silvestre Mônaco sofreu bastante, acabou voltando para Niterói e começou a trabalhar com o pai como engraxate. Só que o Silvestre Mônaco foi botando umas revistinhas do lado, livrinhos de literatura de cordel, e acabou formando a Livraria Ideal.

Depois, em 2002, foi publicado um outro livro que eu organizei com a minha esposa, a Maria Lizete, que foi sobre o poeta Geir Campos, que viveu em Niterói por muito tempo, teve uma atuação muito grande na cultura da cidade, principalmente nos anos de 1950, 1960, e esse livro sobre o Geir também mostrou a vida cultural de Niterói no período. Em 2004, eu fui convidado para colaborar apresentando um projeto para a Secretaria de Cultura de Niterói e propus organizar as obras reunidas de uma grande figura da cidade, que é o Luis Antônio Pimentel, que é jornalista, escritor, fotógrafo, memorialista, e é considerado a enciclopédia viva de Niterói. Luis Antônio Pimentel tem 96 anos, continua muito ativo, continua indo à redação praticamente todo dia, continua com uma seção, Letras Fluminenses, no jornal A Tribuna e no Jornal de Icaraí, é meio como o Barbosa Lima Sobrinho que, com 100 anos, estava escrevendo. Aí, o Luis Antônio Pimentel tinha vários livros publicados, mas esgotados, muita coisa inédita, descobri que ele escrevia sobre rádio em 1935 na Gazeta de Notícias, no Rio de Janeiro, escrevia crônicas do rádio antes da Rádio Nacional, no tempo em que a Mayrink Veiga era a grande estação de rádio, enfim, acabei organizando, em três volumes, com cerca de um total de umas mil e poucas páginas, as obras reunidas de Luis Antônio Pimentel. Nestes volumes também convidei vários colegas de Universidades, de Letras, História, enfim, para fazerem apresentações, prefácios e etc sobre a obra do Pimentel, eu mesmo escrevi várias apresentações e, também, nesta obra eu procurei dar uma contribuição para a História Cultural de Niterói através deste personagem. Então, são três personagens, o Silvestre Mônaco, o Geir Campos e o Luís Antônio Pimentel que estão intimamente ligados à vida cultural e intelectual da cidade.

Mais recentemente participei da edição de um livro de um poeta que foi meu contemporâneo chamado Cesar de Araújo, que faleceu recentemente. Neste livrinho, que é de poesias, também fiz um prefácio onde eu falo um pouco de livrarias que eu criei, da Encontro e da Diálogo. Então, a minha relação com a cultura da cidade, primeiro foi como livreiro, depois, editor, secretário de cultura, e hoje a minha contribuição para a História Cultural de Niterói eu procuro oferecer com o trabalho de pesquisa e organização de livros, mas esta é uma faceta do meu trabalho. O outro lado é o estudo da cultura letrada no Brasil. Tenho artigos publicados em revistas, no Brasil e em Portugal, capítulos em livros, como o “Leitura, História e História da Leitura” e “Cultura Letrada no Brasil”, também tenho artigo no livro “Comunicação, acontecimento e memória”, que é uma das publicações que organizei, enfim, é essa atividade bibliográfica e de pesquisador que junta esses dois fios de uma intervenção na cidade, mas, ao mesmo tempo, buscando dar uma contribuição nessa área de estudos da Cultura Letrada que eu venho fazendo aqui na UFF, no Programa de Pós-graduação em Comunicação, no curso de Estudos da Mídia. Também fui diretor cientifico da entidade que representa os pesquisadores da comunicação no Brasil, que se chama Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação – INTERCOM, de 2002 a 2005, coordeno um grupo de trabalho de produção editorial, que é multidisciplinar, com gente da história, letras, educação e comunicação, tenho trabalhado no Real Gabinete Português de Leitura, de onde sou sócio e conselheiro, ajudei a Gilda Santos a criar o Pólo de Pesquisa das Relações Luso-Brasileiras, ela era coordenadora e eu sub-coordenador, mas eu atuava como coordenador de um núcleo que se chamava Publicações e Leituras, e continuo muito interessado nesses pólos que são partes da vida da gente. A relação com Portugal, imigração, livros, leitura, juntando à experiência pessoal com a profissional, existencial, das nossas inquietações, enfim, felizmente, desde a minha saída do banco, eu só trabalho com aquilo que eu gosto, com aquilo que me dá prazer. Trabalhei dos 12 anos aos 21 para ganhar dinheiro para ajudar a família e eu mesmo a sobreviver, depois também para ganhar dinheiro, mas não tendo isso como fundamental, e sim como decorrência, porque o meu trabalho passou a ser a minha forma consciente de atuar na sociedade.

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A seguir, a Revista Tema Livre apresenta a entrevista concedida pela historiadora luso-brasileira Heloísa Paulo, doutora pela Universidade de Coimbra e pesquisadora do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS-20) da citada Universidade. Dentre outras questões, Heloísa Paulo fala dos opositores ao regime de Salazar que refugiaram-se no Brasil, sobre a utilização do cinema e da história nos tempos do fascismo, além da realização de eleições durante o Estado Novo português.

Revista Tema Livre – Primeiramente, qual foi a pesquisa que a Sra. desenvolveu no seu pós-doutorado em Portugal, na Universidade de Coimbra?

Heloisa Paulo – Bom, já que o meu doutorado teve como tema a Colônia oficial, com o salazarismo, eu fui trabalhar com o outro lado da Colônia. Eu partir do último capítulo da tese de doutoramento, intitulado "O outro lado da moeda", sobre os opositores e, juntamente com o material de uma exposição que montei, em 1998, em Coimbra, sobre a comemoração dos 40 anos da candidatura do Humberto Delgado, que era o líder mais carismático e que falava em nome da oposição, e construí uma nova proposta de pesquisa. (Aliás, muitos contemporâneos tinham reservas com ele e com esse pessoal que virava a casaca, pois o Humberto Delgado era uma figura ligada ao regime de Salazar e passou para a oposição como candidato independente)

Então, uma vez no Brasil, no cúmulo das coincidências, foi que eu encontrei o Sr. Manuel Lourenço Neto, que mora em Niterói, e que tinha sido citado na minha tese e em um artigo que eu fiz, e ele tinha lido.

O Sr. Manuel Lourenço pertenceu a oposição, foi preso com panfletos comunistas, em 1957, quando o Craveiro Lopes esteve no Brasil. Eu trabalhei com o processo dele no Ministério dos Negócios Estrangeiros em Portugal. A partir do nosso encontro, a gente conversou, e ele falou do arquivo do Jaime de Morais, que estava em Niterói. O Jaime de Morais foi líder da revolta de 3 de fevereiro de 1927, que está fazendo agora 80 anos, e vai ter um evento em Coimbra, no dia 1º de fevereiro [de 2007], que eu estou coordenando.

A partir do arquivo do Jaime de Morais, eu descobri uma série de opositores que passaram pelo Brasil. No meu retorno a Portugal, fui localizando uma série de outros arquivos, e consegui fazer uma rede de relações com esta documentação pessoal, inclusive de movimentos que militaram no Brasil, como o Movimento Nacional Independente, que passa a existir a partir da chegada de Humberto Delgado, em 1959. Esse movimento começa a se forjar a partir de 1961 e o arquivo dele tinha ido, ocasionalmente, para o Museu da República da Resistência. Lá tinham dois caixotes de ferro, trancados, e com uma documentação incrível e, também, realizei a pesquisa a partir do arquivo do Moura Pinto, que estava na Quinta da família.

A partir destes arquivos e de outros que localizei, eu fiz essa rede da oposição, e foi uma coisa muito interessante, porque pego basicamente opositores republicanos, alguns deles ninguém conhecia, e foram pessoas que lutaram na guerra de Espanha, que tiveram uma trajetória de vida incrível, como o Jaime Cortesão, o Jaime de Morais, o Moura Pinto, entre outros, e que foram apagadas pela história pelo próprio regime.

RTL – A Sra. pode falar um pouco mais destas figuras e sobre a resistência que eles fizeram no Brasil ao regime de Salazar?

Heloisa Paulo – Havia dois grupos de opositores ligados ao movimento Reviralho, que quer dizer, vamos revirar as coisas, como eram denominados pela situação os movimentos republicanos. Esses dois grupos de republicanos, um era liderado pelo Ribeiro de Carvalho, que era um militar, que pretendia ações diretas na sociedade, e o outro grupo, que reunia militares e civis, o grupo liderado pelo Jaime de Morais, pelo Jaime Cortesão e por Alberto Moura Pinto, denominado de "Budas".

O Jaime de Morais era médico, foi governador da Índia, governador de Angola, tinha um passado militar na marinha e dentro do Partido Democrático. Era ligado a uma figura muito interessante e que está a ser alvo de uma tese de doutoramento, o José Domingos dos Santos, que vai atuar também na oposição (José Domingos pensa em vir para o Brasil, chega a enviar cartas, mas ele acaba ficando em França, por causa da guerra). O Jaime Cortesão era o representante de um grupo que se chamava Seara Nova, que era um movimento forjado em 1920, em torno de uma revista com o mesmo nome, e que pretendia a renovação da vida intelectual, de maneira que permitisse, através do ensino do exercício da cidadania, forjar novos cidadãos e, a partir daí, um novo Portugal. Daí o nome Seara Nova. Você plantar para colher uma sociedade diferente, e essa sociedade seria orientada por esse ideal republicano de instituição, que é muito forte.

Um outro elemento é o Alberto Moura Pinto, jurista por formação, e que foi deputado na primeira constituinte, em 1911 e, em 1917, se agrega ao Sidonismo, movimento liderado por Sidónio Pais, que foi a tentativa de um presidencialismo, que durou um ano (Sidónio foi assassinado). O Moura Pinto permanece ligado ao governo de Sidónio por apenas dois meses. Ele é um dos que elaboram uma lei que era, quase, uma dessacralização do Estado, que o Sidónio implementa. Então, ele rompe com Sidónio Pais.

O Jaime Cortesão tinha ligações com os intelectuais franceses e, principalmente, com os ingleses. O irmão dele, o Armando Cortesão, vai para a Inglaterra, e fica até os anos de 1970, sendo o contato do Jaime de Morais naquele país. O Jaime Cortesão é respeitado intelectualmente e como representante político da Seara Nova e historiador. O Jaime de Morais, enquanto governador da Índia,criou uma rede de relações com o governo britânico muito acentuado, inclusive com um que irá ser o primeiro ministro da Inglaterra, após a saída do Churchill, no final da guerra, que é o Attlee. O Moura Pinto tinha ligações muito fortes no âmbito da diplomacia. Ele conseguia circular em todos os meios diplomáticos, espanhóis, franceses, tinha contatos com a Inglaterra, com o Brasil, porque a mulher dele era brasileira. Quer dizer, esses homens são figuras que têm um trânsito internacional muito grande.

Então, esse grupo vai se encontrar em Espanha, em 1931, no breve experimento republicano e, em 1934, quando a CEDA, que é a Confederação Espanhola das Direitas Autónomas, toma o poder, eles são presos. A razão é que eles entregam à esquerda as armas de contrabando que compraram na Alemanha, antes de Hitler, e que deveriam ser usadas numa revolução em Portugal. Com a virada à direita eles cedem as armas para o partido socialista espanhol, contribuindo para a revolta nas Astúrias contra o governo, mas tudo é descoberto.

O Jaime de Morais e o Cortesão vão para a França, o Moura Pinto, para dar tempo para os dois fugirem, se entrega à polícia. São coisas rocambolescas, de âmbito internacional, e são eles que vão apoiar também a ascensão da Frente Popular na Espanha. Eles têm ligação direta com Manuel Azaña, inclusive o Cortesão tem trânsito direto dentro da frente do Azaña, com Indalecio Prieto, com a Confederação Geral do Trabalho espanhola, a CGT, com a esquerda republicana.

Na guerra de Espanha, eles têm uma participação bastante ativa. Eles elaboram um plano, que seria o plano Lusitânia, que até bem pouco tempo atrás as pessoas achavam que não existia. Na verdade, o plano existe, eu tenho o plano, e consistia em fomentar uma revolta no sul de Portugal, abrindo uma nova frente de batalha no meio da guerra de Espanha, forçando um reposicionamento das potências com relação a Península Ibérica. A intervenção da Inglaterra seria maior por pressões que o partido trabalhista inglês faria, aliás, que já estava fazendo há muito tempo, ao menos para que a Inglaterra deixasse de enviar aviões a favor do Franco. Toda esta armação internacional, na verdade, segundo eles, deporia o governo do Salazar e formaria uma frente de esquerda que impediria o avanço do fascismo. Isso vai por água abaixo, porque o avanço das tropas franquistas é muito rápido, eles são pegos de surpresa, e não há uma cooperação dos elementos comunistas. Então, eles partem para a França, depois para a Alemanha, e quando Hitler chega ao poder, eles vêm para o Brasil.

Aqui no Brasil eles vão trabalhar em São Gonçalo, na COVIBRA, que é a Companhia de Vidros Brasileira, que pertencia a um português, Lúcio Thomé Feiteira. Esse indivíduo vem para cá, forma essa fabrica, em 1942, e ele vai abrigar todos os exilados que chegam. Ele mesmo vai financiar uma tentativa de revolta em 1947, na qual vai participar, inclusive, o pai do Mário Soares, que é o João Soares. Ele é um elemento que abriga, não só eles os "Budas", mas também outros opositores, como o João Sarmento Pimentel, que está ligado ao movimento de 1927, a uma tentativa de revolta em 1931, e que vem para o Brasil a seguir. O João Sarmento Pimentel se instala, primeiro, no Rio e, depois, em São Paulo, vai capitanear, até 1974, o Grêmio Republicano de São Paulo, que é o grande porta-voz da oposição no Brasil, e está ligado também ao jornal Portugal Democrático, nos anos de 1950 e 60. O Sarmento também está ligado ao grupo Seara Nova, é muito importante enquanto intelectual, enquanto fornecedor desta nova diretriz política. Ele é uma figura muito atuante, que vai ceder ideologicamente em determinados momentos, até mesmo em postulados que eles achavam incontestes para os republicanos, como é a questão das colônias. Ele e o seu grupo abrem mão da manutenção da idéia colonialista, e fazem mil alianças e convivem pacificamente até com os comunistas, apesar de que os comunistas não convivem pacificamente com eles. Desde a guerra civil há menções com relação ao Álvaro Cunhal, com o Moura Pinto, porque eu tenho o diário do Moura Pinto da Guerra de Espanha, então é muito interessante ver essas articulações que são feitas em termos partidários.

Então, esses homens vão continuar suas atuações aqui no Brasil. O Jaime de Morais só volta uma vez a Portugal. Ele é proibido de voltar, ele nunca tem o passaporte definitivo, pois a força que o Jaime de Morais tinha na Marinha era imensa. O Jaime Cortesão volta em 1955, mas ele já está bem doente, e o Moura Pinto volta para morrer mesmo. Ele sabe que tem um problema de úlcera incontornável, e morre em julho de 1960 e o Jaime Cortesão em dezembro do mesmo ano. O Jaime de Morais vai morrer no dia de 20 de dezembro de 1973, meses antes do 25 de abril.

Essas figuras são interessantes pela projeção internacional que eles possuem, porque a partir deles você consegue localizar, por exemplo, movimento de exilados que existia nos Estados Unidos, com um indivíduo chamado Abílio Águas, que era um republicano e que é praticamente desconhecido. O pessoal ligado ao Partido Socialista ainda tem idéia de quem foi Abílio Águas, quer dizer, o pessoal mais velho. Por exemplo, o Mário Soares disse que lembra do nome Abílio Águas, mas nunca soube nada dele. Na Venezuela, há um núcleo de oposição incrível, que tem ligações com o Rio de Janeiro. Fora isso, tem o famoso Partido Comunista, que é propagandista por excelência e que vai ter uma ação muito acentuada em França, na Argélia, no Brasil, nos Estados Unidos nem tanto, um pouco na Inglaterra. Existe então aí uma rede incrível de opositores que pretendiam realmente uma campanha de desmoralização do regime e de contra-propaganda do salazarismo, este vai servir da questão do Tratado do Atlântico Norte para manter sua posição, vai se servir da questão da Guerra Fria, vai se servir de todos estes artifícios pós-Segunda Guerra Mundial para conseguir sobreviver por tantos anos.

RTL – E o outro lado da Colônia, que não tinha esta relação hostil com o regime de Salazar?

Heloisa Paulo – Ah, o outro lado segue feliz e alegre, como se nada estivesse acontecendo! A visão que eles têm de Portugal é uma visão oficial de propaganda, a visão de quem quer ver aquilo. Eu sempre falo que a idéia da aldeia branquinha, bonitinha, é uma visão que as pessoas limpam em sua própria memória. Ninguém se lembra da sujeira de cabra no caminho, da falta de casa de banho, de você não ter jornal, de não ter água encanada, telefone… As pessoas, quando pensam na aldeia, o pessoal mais velho principalmente, na infância deles, como qualquer outra pessoa diz, é vista como maravilhosa. Mas a memória é seletiva, seleciona fatos e a propaganda se torna eficiente porque trabalha com este setor da memória, com essa gama de caracteres que fazem com que esta memória seletiva te construa uma imagem idílica das coisas. Mas isto acontece em Portugal, na Itália, em vários países. Há o caso de um italiano, ferrenho opositor ao Mussolini, que não conseguia conter as lágrimas quando via uma propaganda fascista, porque aquilo era a Itália dele. Então, esse sentimento do nacionalismo é muito mais forte, o trabalho dele acaba sendo muito mais consistente do que qualquer outro sentimento que pode haver. Esse papo de internacionalismo, isso é coisa para a União Soviética, que teve um Stálin para massacrar as nacionalidades, porque creio que todo mundo, no fundo, tem um nacionalismo como parâmetro, já que você sofre um processo de socialização que envolve essa questão do nacional, nem que você more em uma aldeia no fim do mundo, em uma região que não tenha Estado, o teu referencial é o referencial da tua casa, da tua família e, a partir daí, que se constrói a idéia do nacional. Faz o que toda professora primária faz com a criança para ensiná-la a ler, para ensiná-la a escrever, para se situar na sociedade. Basta trabalhar com o mundinho dela… Você primeiro desenha a casinha com os teus pais, com o microcosmo dela… o Estado Nacional fascista faz esse trabalho de socialização primária, ele lida com o que é mais intimo e mais perto da tua vivência social, é por isso que o nacionalismo dá certo e em tudo que é cultura, desde a Primeira Grande Guerra, e vai continuar dando, porque as questões nacionais ainda são pertinentes. O trabalho com o nacionalismo, quando você consegue, quando consegue codificar ou, pelo menos, cimentar essa idéia do nacional, é permanente. Não adiantou o Stálin tentar sufocar as nacionalidades, porque quando acabou a União Soviética voltou tudo… Não vai me dizer que os nacionalistas adoravam viver na União Soviética, porque a questão nacional sempre foi pendente, se não fosse, não teria tido a confusão que teve quando a centralização terminou. A Tchecoslováquia deu no que deu. Todos esses tampões, todos estes estados nacionais falsos não conseguiram superar a grande questão que é a nacional.

RTL – Além da questão nacional, a Sra. pode falar sobre a utilização da história pelo Salazar?

Heloisa Paulo – Eu vou tirar esta coisa do Salazar. Olha, eu já me aborreci muito com gente achando até que eu era salazarista, porque eu não acusava o Salazar de assassinato, etc e tal. Eu não vou acusar ninguém de assassinato, como eu não vou acusar comunistas de comerem criancinhas. Você é historiador, você tem que apresentar fatos, você tem que ter uma analise crítica, sim. Tem. Mas não transformar a tua análise crítica em discurso político, não transformar a história em discurso apologético, nem de um lado, nem de outro. É um discurso que você pode tomar posicionamentos, e vai, ainda mais a partir do momento que você escolhe o fascismo e não outra coisa. Você sempre faz um posicionamento. É obvio que não vou defender Mussolini, tampouco o seu António de Santa Comba Dão, mas, não é o Salazar a grande figura de monstro. Há todo um sistema em torno dele, inclusive, há todo um aparato de propaganda, há toda uma Academia de História de Lisboa, que vai contribuir para isso. Você tem o Manuel Múrias, o Matoso, que é pai do José Matoso de medieval. Conforme essa idéia de grandeza, você confina a História de Portugal a momentos específicos. Quer dizer, qual é o grande fator positivo de você ser português? É você ter vindo da nação dos Viriatos, lá de Viseu, você ter construído aquela pequena nação e, a partir daí, ter conquistado o mundo, Índia, Brasil e etc, e a história morre ali. Isso até o final do século XVIII, porque se você for para o século XIX em diante, é uma história de perdas. Então, a história estudada durante o período salazarista, isso abrange até 1974, a história estudada em meios universitários, ela ia até o século XVI. No máximo, até o século XVII. Você estudar século XVIII já era ser de esquerda, porque envolve a Revolução Francesa. Então, segunda metade do século XVIII, já era uma coisa muito perigosa de você estudar. Quando muito, se derrubava Lisboa com o terremoto, agora, a partir dali, qualquer movimento que incidisse em liberalismo… A própria Revolução do Porto, se você pegar em termos de historiografia, e tentar datar os estudos, a não ser o do Oliveira Martins, que, também, é lá do século XIX, ou foram feitos por republicanos na virada do século, ou são estudos feitos depois do 25 de abril, de final dos anos de 1970 e começo dos 80. História contemporânea é uma vaga que começa a partir de 1989, por aí. A primeira grande coletânea do fascismo foi a partir de um Congresso, que ocorreu em Lisboa, em 86. Aí, no final dos anos 90, virou mania. Agora virou especialista em fascismo. Mas é uma coisa muito recente nesta historiografia. Houve uma preocupação muito grande em você delimitar a história de Portugal ao período que seria áureo e que não envolveria discussões a respeito do Estado, nem da nação. Nada contra a nação e tudo pela nação, o lema clássico do Estado Novo.

RTL – Voltando à figura do Salazar, fala-se muito da relação entre ele e Getúlio Vargas. No entanto, a relação entre os governos de Salazar e de Juscelino Kubitscheck fica um pouco esquecida. Então, como foi a relação entre os governos de Salazar e J.K.?

Heloísa Paulo – O governo do Juscelino vai seguir a tendência americana, as influências americanas, vai estar em jogo a OTAN, vai estar em jogo todos os valores da Guerra Fria, e Salazar não é contestado. Salazar só passa a ser contestado em governos com tendência de esquerda, ou então em desvarios, como o do Jânio Quadros, mesmo assim, não é diretamente, porque ele era o grande pilar da entrada da Europa. Você tinha a base dos Açores, que era cedida aos americanos, e você tem ali uma questão que, estrategicamente, Portugal é porta de entrada para a Europa. Os aviões de grande curso só foram possíveis nos finais dos anos de 1960. Até então, para você fazer uma viagem de longo curso, você tinha que parar em algum lugar. Daí a base dos Açores existir ativa até oito anos atrás.

Então, Portugal tinha que ter esta importância, e não interessava que se quem estivesse lá fosse um fascista ou não. Ele foi se maquiando, acabou com o Tarrafal, depois da guerra, assim, teoricamente, não havia mais campo de concentração. Havia eleições, fraudadas, mas havia eleições, depois que o Humberto Delgado assusta e ele deixa as eleições para a presidência indiretas…

RTL – Falando nesta questão das eleições, como que elas ocorriam em Portugal?

Heloisa Paulo – Olha, as eleições abertas, entre aspas, para a presidência, foram feitas em 1949. A oposição lançou como candidato o general Norton de Matos, que era uma figura ligada ao movimento colonialista, era um republicano, que tinha sido governador de Angola, uma figura extremamente rica e respeitada, de idade avançada, portanto ele tinha uma espécie de consenso em torno dele, só que ele retira a sua candidatura antes das eleições. No entanto, ele o faz pelo simples fato de que o governo mandava para você as cédulas da União Nacional, partido único, que o candidato era o Carmona, que conseguiu ser candidato até a idade provecta de 83 anos. Na última eleição do Carmona é nítido que ele já não falava coisa com coisa, aliás, não o deixavam falar em público, mas ele permanece, desde 1928, quando assume, e vai se arrastando, até 50.

Então, a União Nacional mandava a cédula e a oposição tinha que fazer a própria cédula. Quando você fosse votar, você já levava a cédula. Se você pusesse um voto na urna, o elemento estava ali do lado, que, geralmente, era um PIDE, pertencia à Polícia de Investigação e Defesa do Estado, já sabia se você estava votando na União Nacional ou se você estava votando na oposição pelo papel que se estava levando, porque os papéis eram completamente diferentes, não precisava ver o voto.

Eles só conseguem resolver este problema em 1958, com as eleições do Humberto Delgado, que eles conseguem fazer um papel da mesma tonalidade e da mesma composição que as cédulas da União Nacional. Mas aí acontecem coisas caricatas. Por exemplo, aquelas lavadoras do Mondego, o Dr. Vilaça tem uma história genial, ele estava tomando conta dos votos pelo Partido Comunista, aí chega uma senhora com uma trouxa de roupas, pôs a trouxa ao lado e disse "mandaram-me entregar isto" e era um voto para a União Nacional que tinha ido para a casa dela. Aí, o senhor disse que ela tinha que marcar o voto. Ela respondeu "eu estou com pressa, não marco nada, isto daqui está entregue e não marca nem o meu nome." As eleições de 1958 foram as únicas em que você teve o direito a manter listagem, sendo que todos eles foram presos. O Dr. Vilaça foi preso dois dias depois que as eleições acabaram. Era um sistema de repressão muito forte em torno destas eleições. Era uma coisa realmente de fachada, para mostrar que havia eleições livres.

RTL – Outra questão relativa ao Estado Novo português que a Sra. também estudou foi o cinema. Fale-nos um pouco sobre isto.

Heloísa Paulo – Bom, cinema é uma coisa fascinante. Trabalhar com propaganda você tem dois lados. O documentarismo, que é a parte que eu me voltei mais, é fascinante, que te dá a sensação da realidade, mas que é completamente forjada. O meu fascínio pelo documentarismo, ainda o cinema de propaganda oficial, o Secretariado de Propaganda Nacional, depois o Secretariado Nacional de Cultura Popular e Formação do Turismo, eles só vão financiar, na verdade, uns três ou quatro filmes. Um é a Revolução de Maio, que é a história de um comunista, que participa do três de fevereiro de 1927, mas, quando ele volta a Portugal, fica tão maravilhado com o país, que ele desiste de fazer a revolução, e é muito interessante, é um filme que joga documentários no meio. É um filme de 1936, que foi feito para ser exibido na exposição de Paris, mesmo ano em que o pavilhão da República Espanhola tinha o Guernica. Era, ali, o jogo do comunismo e do anticomunismo. E você tem o Chaimite, além de um outro que é a história do filho de um imigrante português que está nos Estados Unidos e vai a Portugal para conhecer o país e se apaixonar por ele.

Agora, o documentarismo consegue ser muito mais eficiente do que esse filme de propaganda explicita. O documentário dá esta sensação de real. E aí acho que o maior veiculo de propaganda possível é o documentarismo, porque nada mais forjado do que o documentário. Esse fascínio pelo que você procura de verdade nestes documentários é que é muito interessante, e esses documentários é que forjam essa imagem de que você passa a acreditar, porque você está vendo. Tem um documentário chamado "A Aldeia mais portuguesa de Portugal" que é sobre a entrega do prêmio em 1936 do concurso da Aldeia mais portuguesa… Então, a aldeia fica na Serra do Marão, lá no alto, é, talvez, a aldeia mais pobre de Portugal, e ela ganha o documentário. O documentário é altamente montado, quando aparece o povo da aldeia andando com roupas normais há cortes violentos ali, em que você vê gente sorrindo, dançando, rindo na entrada das casas… É uma limpeza, a aldeia não tem uma sujeira de vaca, de cabra… É a aldeia mais limpa, mas era esta imagem. As pessoas olham e acham que aquilo era a verdade. Essa coisa da aldeia me lembra de um inglês, que ganhou um prêmio do Secretariado de Propaganda Nacional, pelo livro chamado "Não criei musgo". È a história de um inglês que vai para uma aldeia situada depois de Marco de Canaveses, demorava dois dias para ir ao Porto pegar dinheiro e voltar, passa lá três meses e adora aquilo. Ele achava que ali tinha uma vida especial, uma alegria especial, as pessoas eram miseráveis mas contentes. É essa idéia de limpeza, e o documentarismo favorece isso.

Ainda sobre a utilização do cinema, é importante lembrar a sua utilização no Brasil. Neste âmbito, a figura do Embaixador Pedro Teotônio Pereira é fundamental. Ele é um elemento chave dentro do salazarismo, porque ele é um teórico do corporativismo, é um dos grandes elaboradores da câmara corporativa e vai ser um grande elemento externo do contato do Salazar. É o representante do governo de Salazar durante a Guerra Civil junto ao Franco, e com o término da guerra e ele vai para a ONU representar Portugal, depois, quando os opositores começam a fazer barulho no Brasil, ele vem para cá. Aqui, ele monta a Semana de filmes portugueses, na qual tudo quanto é filme lacrimejante passa e a semana é aberta aos portugueses. Então, isso daí promove uma movimentação incrível e a oposição ainda chega a ir para a porta de um cinema tentar fazer alguma coisa, mas nada. No período que está aqui, entre 1947 e 1949, e ele faz isso constantemente. Os filmes vão para a Embaixada, aqui no Rio de Janeiro, e chamam os portugueses para participar. É a questão da aproximação entre governo e colônia que já está sendo feita desde os anos de 1930. Aproximação que vai além da questão do cinema, englobando até mesmo programas radiofônicos. A primeira emissão radiofônica do Salazar foi uma emissão para a colônia portuguesa no Brasil.

Então, é esta colônia quem manda dinheiro, é quem tem um apoio e pode defender o regime frente a um governo que, teoricamente, seria oposto a ele porque tinha sido ex-colônia. Então, é uma jogada de relações internacionais muito bem feitas.

RTL – Para finalizar, a Sra. pode falar-nos sobre a sua experiência em lecionar em universidades européias?

Heloisa Paulo – É como em qualquer parte do planeta! Invariavelmente, você vai para qualquer lugar e encontram-se as mesmas pessoas, os mesmos problemas… A única coisa que você tem uma diferenciação muito acentuada nisso, não tanto em termos de Espanha, mas também existe em termos de Espanha, eu só posso falar em termos de Espanha e Portugal, mas em Portugal é bastante acentuada, é a questão da hierarquia, a questão de Sr. Dr., o distanciamento que existe entre professores e alunos. Isso perturba para quem teve uma formação aqui, na qual esse distanciamento não existia. É muito chato você ver que isso ocorre. Mas valeu. Eu sempre lecionei História de Portugal contemporâneo e era engraçado, porque muitas vezes as pessoas tinham um primeiro impacto, pensavam como que ela vai dar História de Portugal Contemporâneo, mas é uma questão do conteúdo que você passa e as coisas ficam mais relaxadas. Eu tenho um amigo meu lá em Coimbra, o Carvalho Homem, ele falando é um orador estupendo, escrevendo é super complicado, e ele tem um texto ótimo que é "Introdução à História Contemporânea de Portugal", onde ele faz um arrolamento da historiografia do século XIX. Em Viseu, na Universidade Católica, eu mandei esse texto para ler e chegou um aluno meu e disse "Olha professora, a Sra. poderia dar um texto em português de Portugal porque este daqui é muito complicado" e eu disse "Está em português de Portugal!" A reação das pessoas é achar que você não tem condições de dar uma coisa porque você não é nativa. Em São Paulo, semanas atrás, aconteceu uma coisa muito engraçada. Chegou perto de mim e do Torgal uma menina, que está fazendo doutoramento, e sentou-se para conversar conosco. Ela perguntou o que eu lecionava lá e eu disse História Contemporânea de Portugal. Mas como é que conseguiu dar aula de História Contemporânea de Portugal? Respondi para ela, senta, lê e dá a aula. É esse impacto que é engraçado, mas passando as duas primeiras semanas de aula, essa coisa fica completamente esquecida. No âmbito acadêmico isto também ocorre. As pessoas têm um determinado senão, até você se fazer reconhecer é muito difícil. Depois, já passam a te chamar e a discutir de igual para igual.

 

 

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A seguir, a entrevista que o Prof. Dr. Luís Reis Torgal, Catedrático da Universidade de Coimbra, concedeu à Revista Tema Livre. O historiador, um dos maiores pesquisadores internacionais sobre o fascismo, fala à revista sobre o fascismo português, suas relações com a Alemanha de Hitler e a Itália de Mussolini e, ainda, sobre a imagem que Salazar construiu de si próprio para a população portuguesa.

Revista Tema Livre – Qual a sua atuação na Universidade de Coimbra e quais pesquisas o Sr. está a desenvolver atualmente?

Luis Reis Torgal – Bem, eu, actualmente, trabalho com o Estado Novo. O Estado Novo, digamos assim, para simplificar, significa o período do nosso fascismo à portuguesa, com Antonio Oliveira de Salazar e Marcelo Caetano, e que vai desde mais ou menos 1930 até 1974. Grande parte das pesquisas que eu faço e que eu oriento são nessa área. Quer na área da licenciatura, quer na área do mestrado, quer na área do doutoramento.
Por outro lado, coordeno um centro de investigação que pertence à Universidade de Coimbra, embora esteja ligado à Fundação para a Ciência e Tecnologia, que é o nosso organismo máximo de ordenação cientifica, que é o tal Centro de Estudos Interdisciplinares do século XX [CEIS-20], que, como o nome diz, é um centro interdisciplinar que aborda o século XX. Interdisciplinar porque existem, na verdade, grupos que trabalham, genericamente, a história do século XX, outros mais estritamente em história económica, história da imprensa, história da educação, história da ciência… Bom, é um centro interdisciplinar que abrange oito grupos de investigação e, por conseguinte, é essa a minha tarefa, a de coordenar este centro. Concluindo, sou professor de seminários de história contemporânea, nomeadamente do Estado Novo, oriento as teses, faço investigação nesta área e coordeno o Centro.

RTL – O senhor pode falar sobre o Salazar e a construção de sua imagem para a população portuguesa?

Torgal – Ora bem, em primeiro lugar, Salazar tinha a sua origem popular. Não quer dizer que fosse uma pessoa completamente pobre, mas, enfim, o pai era um agricultor em uma pequena aldeia próximo de Santa Comba Dão, não muito longe de Coimbra, embora numa outra área, em uma outra região, que é bem alta, sendo que Coimbra pertence à Beira Litoral. Foi um homem que teve uma formação de seminarista, uma formação para ser padre. Depois, foi para a Faculdade de Direito, onde forma-se e, aí, começa a ter uma militância em um centro católico chamado Centro Acadêmico Democracia Cristã e, posteriormente, no Centro Católico Português, onde acaba por ser deputado. Em 1928 entra no governo como Ministro das Finanças, e não sai mais. Em 1932, Salazar passa a primeiro ministro e, podemos dizer que, a partir de 1930, ele está a construir com correntes ideológicas muito distintas uma idéia de Estado Novo.
Por conseguinte, podemos dizer que com o Estado Novo há uma convergência de vários movimentos, nos quais temos os católicos, alguns monárquicos, alguns republicanos conservadores, alguns mais ligados diretamente à área fascista italiana, nacionais sindicalistas, até alguns indivíduos que vieram do movimento intelectual do modernismo, enfim, Salazar consegue fazer esta convergência. Fazia uma política de conciliação, em que havia as forças armadas, igreja, forças econômicas, alguns intelectuais, enfim, há uma conciliação também de natureza social junto ao governo e, até podemos dizer, entre patrões e operários. Aliás, o Estado Novo dirige-se, em uma primeira fase, muito aos operários, em uma idéia de se constituir um Estado Social e tal qual o fascismo italiano, em uma lógica antiliberal, que, ao mesmo tempo, era apresentada também como uma lógica anticapitalista. Por conseguinte, podemos dizer, de uma certa maneira, que este movimento que nós podemos chamar amplamente de fascismo genérico era uma terceira via. Era a via liberal, era a via comunista, que era a segunda, e esta era a via corporativista, fundamentalmente de características corporativas, criando uma conciliação de classes, evitando o encerramento das empresas pelas greves, há uma conciliação, e é nessa perspectiva que se ergue todo o Estado Novo.
Salazar vai construindo, como você perguntou, a sua imagem. A dele e a do Estado. A imagem dele era, normalmente, a da humildade, de uma pessoa que estava apenas para servir ao país, era esta a idéia que aparecia sempre. Cria-se uma imagem de alguém que veio do povo, mas de alguma maneira está um pouco para além do povo. O conceito de que como ele veio do povo ele sabe governar pensando no povo, é esta idéia que aparece nesta perspectiva. Digamos que ele foi um homem que entendeu ou procurou fazer toda uma política de massas. Às vezes, diz-se que não há uma idéia de massa no Estado Novo, imagem do governante carismático… Mas há a idéia do governante carismático, ela está a ser construída até com alguns discursos que Salazar fez. Ele está a construir exactamente esta imagem e é nessa perspectiva que nós podemos dizer que o Estado Novo foi aceito normalmente. Quer dizer, há algumas linhas de oposição, é evidente, os republicanos que tinham feito parte do governo antes a 1926, há ainda alguns monárquicos, que pensam no regresso da monarquia, há alguns católicos de linha avançada, mas poucos, muito poucos, pois o catolicismo deu um grande apoio ao Estado Novo, há os anarquistas, que estão com força nesta altura, há o partido comunista, ainda muito fraco, mas o que eu quero vos dizer é que o Estado Novo é bem aceito em uma primeira fase. Até os anos de 1940 é bem aceito. Depois é que começa todo um processo corrosivo. Isto deve-se, em grande parte, à imagem formada pelos órgãos de propaganda que se criaram, assim como foi com o fascismo de Mussolini. A repressão é importante, mas ela é, digamos assim, apenas aquilo que se tem de fazer para criar uma aceitação, mas mais importante é a reprodução ideológica. Evidentemente, ostraciza-se, sobretudo, quem fazia parte do Partido Comunista. Era preso, havia toda uma repressão neste sentido, mas o processo reprodutivo não é menos importante do que o processo repressivo, eu diria que era até mais importante.

RTL – Conte-nos sobre a questão da repressão no regime do Salazar.

Torgal – Pois, o que eu posso dizer é que realmente o regime de Salazar teve em conta imediatamente todo um processo repressivo, que é feito em nome da nação. Há o decalco do Estado Novo, que é um documento oficial que foi feito por um ideólogo e que são os dez mandamentos do Estado Novo. E o último mandamento diz mais ou menos isto: quem é contra o Estado Novo é contra a nação, e logo se é contra a nação, pode-se exercer a repressão, porque ao exercer a repressão está a se defender o regime e os direitos da pátria. Há toda uma legitimação da repressão e, embora a constituição de 1933, que é a nossa constituição do Estado Novo, e temos, exactamente, um dos casos raros. O nazismo imediatamente liquida a constituição de Weimar. O fascismo italiano acaba com a constituição liberal de 1848. Curiosamente, o Estado Novo cria uma constituição para atuar pela aparência de legalidade. Por exemplo, no artigo oitavo da constituição, aparecem todos os direitos que surgem em qualquer constituição liberal, mas, ao mesmo tempo, criam-se leis, que vão, de alguma maneira, contradizer as liberdades que estavam consideradas no artigo oitavo.
Por outro lado, você tem uma polícia política, um aparelho de censura, prisões políticas, a culminar, em 1936, na Colônia Penal do Tarrafal, na ilha de São Tiago, em Cabo Verde, para onde iam os anarquistas, comunistas e, depois, se cria todo um complexo de repressão, que não vai mudar essencialmente até 1974. Esse é um ponto importante. E é uma repressão que se exerce não apenas em relação aos políticos militantes, aos partidos de esquerda, nomeadamente ao comunista, mas exerce-se em relação a qualquer cidadão acima de qualquer suspeita. Quer dizer, todos nós éramos vigiados, todos tínhamos uma ficha na PIDE, até gente do próprio governo tinha ficha na PIDE. A PIDE, que chamou-se, primeiramente, Polícia de Vigilância e Defesa do Estado e, depois, em 1945, passou a Polícia Internacional e de Defesa do Estado. Internacional porque também era uma polícia de fronteiras. Por isso, ela ficou mais conhecida pelo nome PIDE do que PVDE, que é até um nome mais soante, mais forte, Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, de maneira que há toda uma rede repressiva que, também, passava pela polícia de segurança pública, pela polícia judiciária, pela guarda nacional republicana, pelos presidentes das câmaras, pelos governadores civis… Há toda uma rede de vigilância e de repressão, que, na verdade, como eu disse, mantêm-se exercendo em relação aos anarquistas primeiro e aos comunistas depois, mas, também, aos republicanos liberais, que até às vezes eram anti-comunistas, e aos católicos progressistas. Depois de 1940, depois da concordata, há uma série de católicos progressistas, padres, inclusivamente, que por esta via ou por aquela vão estar contra o Estado Novo, e vão ser alguns deles presos, outros ostracizados, enfim, alguns afastados para o estrangeiro, alguns afastados dentro do próprio país, em uma espécie de exílio doméstico… A repressão é uma rede e daí o facto de haver processos da PIDE em quantidades muito elevadas que estão agora a começar a ser estudado, alguns já estão a ser estudados há algum tempo, mas realmente começam aparecer há pouco tempo as primeiras obras mais globais sobre a PIDE e estamos cada vez mais a analisar o processo repressivo.
Por outro lado, para além desta repressão, há uma repressão, que, como eu digo, é ao contrário, que era fazer uma propaganda ideológica mostrando que há uma espécie de arte boa e de uma arte má, uma literatura boa e uma literatura má, enfim, toda uma repressão que se fazia ao contrário, através de uma reprodução de modelos. Um pouco como a chamada arte degenerada, aquela famosa exposição que Hitler realizou em Munique, em que há a arte boa e a arte degenerada, por conseguinte, é assim, mais ou menos, que as coisas se passam.

RTL – Finalizando, o Sr. pode falar sobre a relação do governo do Salazar com os outros governos autoritários da época, como o de Hitler e Mussolini?

Torgal – Ora bem, estão a começar a ser estudadas estas relações. Curiosamente existem alguns estudos interessantes sobre as relações de Portugal com a Espanha franquista, de Portugal com o regime francês, digamos assim, de direita, que de alguma maneira fez uma resistência ao fascismo hitleriano. Mas não há estudos aprofundados sobre as relações com o nazismo, nem com o fascismo italiano. Eu tenho dois orientandos, um que está a fazer o pós-doutoramento, alemão mesmo, que está a fazer um estudo das relações de Portugal com a Alemanha nazi. Há outro que está a fazer o doutoramento, italiano, de Bologna, que está a fazer o estudo das relações do Portugal salazarista com a Itália fascista de Mussolini. Mas aquilo que já sabemos é que as relações são muito diversificadas. Há relações a vários níveis. Há relações culturais, relações repressivas das polícias, a juventude fascista ou a juventude nazi vinha a Portugal, e a mocidade portuguesa ia à Alemanha ou à Itália, quer dizer, há todo um relacionamento bastante significativo. Agora, uma coisa que o meu amigo deve perceber é isto: Salazar foi muito hábil na política internacional, porque havia, por um lado, o nazismo e o fascismo, ele tinha uma grande admiração por Mussolini, não teria grande admiração por Hitler, mas ele tinha estes tipos de relações com estes países, como depois vem a ter com Getúlio Vargas, aqui no Brasil, como tinha relações com a Romênia, com a Polônia, com a Hungria, com uma série de países que assumiram, digamos assim, a sua posição ditatorial. Mas, atenção, Portugal tinha um grande aliado que era a Inglaterra. Ora, a gente sabe que a Inglaterra tinha uma lógica monárquica-constitucional tradicional, com partidos, por conseguinte, havia uma certa concessão democrática na Inglaterra e Salazar vai manter esta ligação. Assim, na guerra, Salazar vai manter-se em uma posição neutral, por um lado esperando que os governos de direita possam, de alguma maneira, ganhar a guerra, mas sem haver uma lógica imperialista, no entanto, ao mesmo tempo, de uma forma que a Inglaterra também não perca. Isto é uma lógica de ambigüidade, eu diria que Salazar queria que ganhassem os dois. É uma lógica do empate, porque o que interessava-lhe, realmente, era uma certa ordenação entre uma área e outra, mas sempre pensando que os regimes liberais estavam em falência, tinham acabado.

 

 

 

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A Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) realizou o “Seminário Internacional Revoluções de Independência e Construção da Nação na América Ibérica”, organizado pelos Profs. Drs. Marco Antonio Pamplona e Maria Elisa Noronha de Sá Mader, docentes e pesquisadores da referida instituição.
O Seminário promoveu o debate historiográfico em torno das revoluções de independências e da construção das nações no Brasil e na América Hispânica, a contar com pesquisadores hispano-americanos, europeus e brasileiros. No Rio de Janeiro para o evento, o Prof. Dr. Fernando Purcell (Pontificia Universidad Católica de Chile) foi entrevistado pela Revista Tema Livre. A seguir, o registro da conversa entre a publicação e o pesquisador chileno.

Revista Tema Livre – Em primeiro lugar, o Sr. pode falar sobre a sua tese de doutorado “Too Many Foreigners For My Taste.’ Mexicans, Chileans and Irish in Northern California, 1848-1880”.

Fernando Purcell – Bueno, yo hizo un doctorado en historia de Estados Unidos y me fue desde Chile siempre pensando en un problema, y ese problema tenía que ver con la inmigración y su papel en la historia de Estados Unidos. Lo que me interesaba saber, descubrir, explorar era como un país que había recibido tantos inmigrantes a lo largo de su historia podría mantener una suerte de cohesión nacional. Revisando archivos, especialmente en California, en la Universidad de Berkley, me encontré con periódicos de chilenos y mexicanos que habían estado en California, y eso me interesó mucho por el hecho de que al mismo tiempo que marcaba una presencia y demostraban una serie de intereses locales, demostraban una vinculación con el país de origen. Entonces, mi pregunta ahí fue ¿Cómo estos inmigrantes, que definitivamente forman parte de los Estados Unidos y dieran un carácter a esta sociedad, al mismo tiempo se mantienen vinculados a su lugar de origen? Decidí a elegir a esos dos grupos, a mexicanos y a chilenos, y mi profesor guía, Warren Dean, me dijo ¡Bueno!, ¡Perfecto! Pero se vas a hacer el trabajo comparativo de como distintos grupos nacionales se incorporan a la sociedad de los Estados Unidos, debes incluir un tercer grupo, y él me sugirió a incluir a los irlandeses por el hecho de que así como los mexicanos y los chilenos, era un grupo católico, pero, más allá de esta similitud, había una serie de diferencias. Entonces, comencé a comparar a esos tres grupos y dai surgió el proyecto dotoctoral.
En un primer momento, en el comienzo, yo decidí, desde Chile, a trabajar inmigrantes chilenos, simplemente que mi presencia en el archivo allá y al encontrar esos periódicos me surgieron las preguntas que tengo. Agrego que el trabajo yo lo realicé en archivos de tres países: de Chile, de México, estuve en ciudad de México trabajando ahí en varios archivos y, también, en Hermosillo, en el norte, donde vino mucha inmigración mexicana, y, de Estados Unidos, en California, en San Francisco, Sacramento… y estuve en Boston, debido a la gran cuantidad de inmigrantes irlandeses que llegaran y esta microfilmada toda la prensa irlandesa, hay muchos documentos que están disponibles. El recogido fue bastante amplio, archivos de tres países, en muchos lugares distintos.

RTL – Os chilenos mantiveram seu vínculo com Chile mesmo nos EUA. E como foi com os mexicanos e irlandeses?

Purcell – Lo interesante en la vinculación de los chilenos que vivían en los Estados Unidos con su país tiene relación con coyunturas, con momentos importantes, entre ellos, por ejemplo, un conflicto que Chile tubo con España, en 1865–1866, una pequeña guerra, que fue precisamente lo que motivó los chilenos a hacer sus diarios en la ciudad de San Francisco, antes no existían. Se crean muchas sociedades patrióticas en San Francisco y en todos los pueblitos donde se concentraban muchos de los mineros chilenos que se habían quedado allá y ocurre que los chilenos y los mexicanos son vistos por los norteamericanos como lo mismo, racial y culturalmente son lo mismo.
La práctica también ayuda, hay un vínculo muy fuerte, te pongo un ejemplo: más o menos en los mismos años que Chile tiene ese breve conflicto con España, México sigue invadido por Francia, y entra Maximiliano en el poder. ¿Que implicó esto en California? Que los mexicanos también crearan sus propios periódicos y sus propias sociedades patrióticas. Lo interesante es cómo habían chilenos que participaban de las sociedades patrióticas mexicanas y cómo habían mexicanos que participaban de las sociedades patrióticas chilenas. Logran una sintonía, idea de una verdadera comunidad, esto que hoy son los hispanos en los Estados Unidos, comienza con la fiebre del oro, comienza la primera noción, incluso, de una raza latina, y surge, temprano, en la década de 1870.
El aceso de los irlandeses es distinto. Me refiero a los irlandeses de la costa oeste de los Estados Unidos, porque en la costa este, en ciudades como Nueva York y Boston, los irlandeses eran sumamente discriminados, no eran considerados blancos, eran considerados simios, monos. Pero ya en California, ellos están relacionándose no solamente con los blancos, como en la Costa Este, sino que con chinos, con mexicanos y con chilenos, y lo que ocurre con ellos es que, como se blanquean, ocupan lugar mucho más destacado dentro del ámbito social que los mismos irlandeses en el mismo momento van a experimentar en la Costa Este. Y más, los principales críticos de la inmigración china son irlandeses, quienes, a la diferencia de mexicanos y chilenos, llegaron en un mayor número y alcanzaron un poder político importante, porque se nacionalizaban y porque al mismo tiempo participaban de las maquinarias políticas. Eran cooptados, por ejemplo, por el Partido Demócrata, que los consideraba importantes, lo que iban a tener una relevancia política mucho mayor. Y eso genera una bifurcación de caminos, hablando del resultado de la investigación: los irlandeses, en definitiva, se incorporaron a la sociedad de California de forma mucho más efectiva y plena por el peso político que tuvieron, mientras que chilenos y mexicanos ocurrieron todo lo contrario, sus índices de participación política, incluso de nacionalización, fue mínimo. La mayoría no se nacionalizó, se mantuvo en el margene de la sociedad, discriminados, lo que, por ejemplo, se vivencia no solamente en la política, sino en el espacio residencial en la ciudad de San Francisco. Muchos de ellos trabajaban en minas, en “Company Coals”, y en esos poblados ocupaban lugares marginales, segregados en relación a otro tipo de sociedad. Fue mucho más difícil la incorporación, pero siempre se mantuvieron vinculados a sus lugares de orígenes. Entonces, mexicanos y chilenos, a la diferencia de los irlandeses, pues Irlanda estaba ocupada por Inglaterra, se sentían mucho más pertenecientes a su patria, a su propio territorio, y ese vinculo lo mantuvieron conservando las comidas étnicas o nacionales, con sus propios clubes sociales, lo que les permitieron mantenerse más vinculados al lugar de origen, a la diferencia de los irlandeses.

RTL – Esse período que o Sr. trabalhou na tese refere-se a quando a Califórnia deixou de ser parte do México e passou a fazer parte dos EUA. Fale-nos um pouco sobre este episódio. Qual foi o papel das elites locais?

Purcell – Esa es una pregunta importante, porque se da la curiosidad de que este fenómeno de la fiebre del oro comienza en el 1848 y, precisamente, en el momento en que se firma el tratado de Guadalupe-Hidalgo, queda por cerrar un conflicto que implicó en la conquista de cerca de la mitad del territorio mexicano por parte de los Estados Unidos y más, se descubre oro en Enero de 1848, y el tratado se firma en Febrero de 1848. Ora, ¿que pasa? California era un territorio marginal y lo había sido dentro del esquema del colonialismo español, en Nueva España, y, también, dentro del período nacional mexicano, que comienza en la década del 1820. Por lo tanto, la cuantidad de personas de origen mexicano que habitaban California era muy pequeña en esa época. La toma de posesión de California por los Estados Unidos, y la fiebre del oro, generaran un poblamiento masivo, en donde esa población original, esas elites locales, que eran denominadas californios, eran mínimos. Estamos hablando de seis mil personas. Eran ganaderos y personas dedicada al mundo agrícola en torno a lo que habían sido las misiones franciscanas y que mientras habían sido transformadas en los focos de poblamiento durante el Virreinato, y en verdaderas unidades económicas, pero precarias, simples. Esas elites locales son menores, son muy pocas en cuantidad. Ya en 1850 había mucho más inmigrantes mexicanos, gente que había dejado desde Sonora, desde Chihuahua, a California, de lo que era gente que había vivido ahí toda su vida. Entonces, eso se produce confrontaciones, el californio, o sea, el elemento nativo, siente un cierto orgullo, mira con desprecio al inmigrante, pero tampoco ocupa una situación suficientemente privilegiada, con la excepción de que el tratado de Guadalupe-Hidalgo le permitía a estos californios el derecho de la ciudadanía inmediata, pero muchos de ellos no se nacionalizaron y, en definitiva, terminaron siendo un grupo marginal. Esa elite local anterior, de algún modo, se ve desestructurada y abrumada también por el arreglo de ciento de miles de personas que llegaron rápidamente a poblar California.

RTL – Fale-nos um pouco mais sobre estes califórnios. Posteriormente, já no período em que a Califórnia pertencia aos EUA, como estes califórnios se comportam? Casamentos mistos com norte-americanos? Há uma miscigenação? Ou uma nova elite os destrói?

Purcell – Bueno, en general lo que ocurre es que son hombres anglo-americanos lo que normalmente se casan con mujeres californias. No ocurre lo mismo con los hombres. Entonces, hay ahí un mestizaje que, en definitiva, ¿que hace? Termina por diluir de algún modo la presencia de los californios que ya en 1880 no es relevante. En 1880 ya no se puede hablar de la existencia de este grupo que en el 1848 está claramente diferenciado de los mexicanos. ¿Por qué? Porque las mujeres se han casado con hombres anglo-americanos, y los hombres, bueno, se han casado, sus descendentes, con inmigrantes mexicanas, y se han ido mezclando. Piensa que en California, en 1849, en pleno apogeo de lo que la fiebre del oro tenía 2% de población femenina. Entonces, dentro de este ambiente predominantemente masculino, obviamente que ¡las mujeres originarias de California eran un botín sumamente apreciado para este mundo masculino!

RTL – Saindo do hemisfério norte e partindo para o sul, como eram as relações do Chile com seus vizinhos no século XIX, envolvendo aí a questão das fronteiras?

Purcell – Primeramente, lo que se genera es que en California es un pot por la realidad en donde conviven mexicanos con chilenos, con un grupo pequeño de peruanos, con nicaragüenses, es una situación de hermandad mucho más profunda de la que ocurre, respectivamente, en sus lugares de origen. Por ejemplo, durante el siglo XIX, se van a desarrollar una serie de conferencias americanas que buscan establecer alianzas van a ser interpretadas como fundamentales por las comunidades de chilenos, de mexicanos, de peruanos en California, pero hay un recelo mayor en Sudamérica al respecto. Por estas tensiones que, al menos en el caso de Chile, van a comenzar a aparecer, ya desde la década de 1830, con vecinos, en particular con Perú y con Bolivia, que van a formar una Confederación, con el predominio de Andrés de Santa Cruz en la zona de Bolivia, que se van a enfrentar en una guerra con Chile, entre el 1836 y 1839. Esa guerra de ese siglo dibuja lo que son las relaciones de Chile con sus vecinos para el resto del siglo XIX. Primero, por la confrontación y victoria chilena, en definitiva, con el apoyo de algunos peruanos que, a su vez, también se quieren sacar Andrés de Santa Cruz de Bolivia, pero, en definitiva, es vista como una victoria chilena, que preocupa Argentina, que quiere mantener los balances de poder… con esa posibilidad de guerra se va una traición de relaciones diplomáticas cercana con Perú. Eso va a generar a lo largo del siglo XIX, tanto el tema de la Guerra del Pacifico, que comienza en 1879, que va a llevar a Chile, en definitiva, a conquistar una serie de territorios y quitar la posibilidad de salida del mar de Bolivia, quitándole porto, restringiendo el territorio sur peruano, lo que va a tensionar sus relaciones hasta el día de hoy. Más allá de los acuerdos alcanzados, entre comillas, supuestamente definitivos con Perú, en 1929. Eso porque hoy Chile no tiene relaciones diplomáticas formales con Bolivia, ya desde fines de la década de 1970. Hay constantes impases diplomáticos de una historia que se reporta a lo siglo XIX, de tensiones, de dificultades, y que va a llevar Chile también a confrontarse con Argentina, no bélicamente, pero sin diplomáticamente, para saltar el tema de las divisiones territoriales, también del siglo XIX.

RTL – É também no século XIX que surge o discurso da existência de uma especificidade chilena em relação aos outros países da América do Sul…

Purcell – Es muy importante ese discurso de excepcionalidad, que es muy marcado en Chile. Hay una serie de factores que influyen para que se pueda haber elaborado ese discurso. Yo diría que el fundamental es este aislamiento de Chile, que le permite al tener que lidiar con poblaciones relativamente más homogénea y contenidas en una unidad territorial más pequeña, marginal dentro del virreinato del Perú, le permite alcanzar una estabilidad institucional del estado más rápidamente que otras naciones. Ya en 1833 se genera una constitución unitaria, centralista, con un poder ejecutivo fuerte, que, con cierto éxito, logra más o menos manejar, controlar la situación. ¿Y qué pasa? Que Chile comienza comparar con otras realidades. Comienza a comparar con México. Son cuestiones que en una perspectiva histórica son algo incomparables. Compararse al virreinato, que intenta mantenerse, transformarse en una nación, con toda una diversidad que hay ahí, no se puede… Comienza a compararse con el virreinato del Perú, que es la misma situación de México, pues es una unidad mucho más grande que Chile, también con el virreinato de la Plata… y la prensa chilena comienza a destacar el éxito de Chile, que es ordenado, que contrario a lo que ocurre en otros lados, no es caótico, no es problemático y ahí surge esa idea de la excepcionalidad, de Chile ser producto de la existencia de una democracia, de un estado central en que hay orden, en que no hay el caudillismo, en que no hay un montón de problemas… Pero, se tu miras con calma, Chile tubo tres guerras civiles en el siglo XIX. ¿Hasta que punto es tan excepcional? Hasta que punto es tan excepcional se considera que en realidad esta comparando con fenómenos nacionales que surgen desde los centros de los virreinatos y no desde los márgenes. Entonces, todo eso tiene, pero es muy fuerte esa idea de excepcionalidad, es muy fuerte esa noción que intenta olvidar el mundo indígena chileno y que se dice, bueno, somos más europeos, somos los ingleses de Sudamérica. Todo discurso que surge tempranamente en el siglo XIX, en parte por las razones que hablamos, y que continua en los siglos siguientes.
Se tu vez después, por ejemplo, en el Chile de 1960, con Eduardo Freire, que gobernaba el país del 1964 al 1970, él viaja por Europa y por varias partes del mundo, de algún modo, buscando un reconocimiento de la estabilidad y de la democracia chilena, nuevamente, contrastándose con el resto del continente. ¿Qué lo que hace Eduardo Freire en los años de 1960 y que cautiva, por ejemplo, a Johnsohn, que está en la presidencia de los EE.UU. en este momento? El proyecto de la alianza para el progreso. Ahí hay esta idea de que en Chile las cosas se pueden resolver no necesariamente por la vía de las armas, como en Cuba, sino por la vía de la reforma, de la cooperación y de la libertad. En otras palabras, que Chile va a alcanzar sus cambios estructurales a través de formas pacificas, civilizadas, democráticas. Sin embargo, después Chile cayó en una dictadura que distingue una excepcionalidad que se diluye, pero se refuerza nuevamente con el éxito del neoliberalismo en los últimos años del gobierno de Pinoché y del levantamiento económico que nuevamente se ha sentido distinto… es una constante en la historia de Chile, que tubo su origen en el siglo XIX.

RTL – Qual a razão para os chilenos do século XIX emigrarem e escolherem os EUA, se, neste momento, o Chile recebia vários imigrantes europeus?

Purcell – Bueno, es una pregunta importante y también que se están haciendo muchos de los políticos y de los gobernantes chilenos en la época. En primer lugar, había una valoración, como en el resto de América Latina, sobre el elemento europeo. ¿Quienes son los científicos contratados pelos gobiernos? Europeos. Franceses, fundamentalmente, italianos… A los europeos los consideran industriosos. Por lo mismo, desde México hasta Chile y Argentina, en general, se desarrollan proyectos de colonización por parte de inmigrantes europeos despeto a una serie de nociones raciales y de ventajas que, supuestamente, están aparejadas a la presencia de esas personas. Lo interesante es como, en el caso chileno, esos agentes colonizadores, esos inmigrantes extranjeros van a ser ubicados en el sur de Chile, en zona donde existían indígenas, quienes no cuentan – según los gobernantes de la época – con esas cualidades que los europeos tienen. Dibujaron a los indígenas como cínicos, bárbaros, incivilizados, personas flojas, borrachas, todo lo contrario de lo europeo y ¿lo que hay que hacer? Hay que en los territorios que ellos habitan procurar insertar inmigrantes de forma tal de que hagan productivas tierras que están siendo despierdizadas. Esa es un poco la lógica que opera y que permite, por ejemplo, el arribo de muchos alemanes, desde la década de 1850 en adelante, a zonas del sur, como que estaban fundamentalmente pobladas por pequeños grupos de indígenas mapuches.
Ahora, me has preguntado también por el impacto que produce la inmigración de chilenos a Estados Unidos, precisamente en lo momento en que se estaban conformando…

RTL – Sim, pois, teoricamente, estes chilenos que estavam a emigrar para Califórnia poderiam ser deslocados para o sul do Chile…

Purcell – Pero, por un lado, se valoraba más al europeo que al chileno, pero también no hubo preocupación. Quienes se opusieran a la inmigración masiva de chilenos, que se calcula en torno a las 5 mil personas, que era bastante para esa época, señalaba que se estaban perdiendo brazos, mano de obra, fuerza que iba a ser muy importante.
Por lo mismo se opone a esta idea de sangría, que así se lo denominaban en la época, producto de la emigración de chilenos, que era muy importante en la zona central, o sea, quienes va a California viene, fundamentalmente, de zonas donde no se planificaba la colonización. Ese discurso no solamente no termina en California, sino continua después en las décadas posteriores con la construcción de ferrocarriles en Perú. Se construyeron ferrocarriles en Chile y empresarios norteamericanos e ingleses que participaron de esa construcción van a hacer lo mismo para ser contratado por el gobierno de Perú. Como ya habían “domesticado laboralmente” a una importante mano de obra chilena, llevan a muchos de estos chilenos a Perú, a trabajar. Las mismas críticas que ocurren en 1848, serán las que se dan en la década de 1870, 80, en el sentido de ‘estamos perdiendo nuestra mano de obra…’ Lo que se buscaba con el colono inmigrante era que poblase zonas territoriales despobladas, alejadas, a los márgenes del país.
Sobre la salida a California, la gran mayoría de los chilenos que fueron a California, fueron personas pobres, campesinos, algunas personas que trabajaban en la minería en Chile, pero la gran mayoría eran lo que se denominaban peones. Lo interesante es que esas personas bajo ninguna circunstancia habrían podido viajar por sus propios meritos, por varias razones, pero la fundamental es porque no trabajan con pagos en metálico, en moneda. No trabajan, normalmente, en términos contractuales, con contractos de por medio. Son personas que tienen una existencia, en general, precaria, que dependen del hacendado, que muchas veces pagan las cosechas no con dinero, sino que con fiestas o con alimentos, entonces, es casi imposible para la gran mayoría de chilenos que estuvieron a California hacerlo por sus propios méritos. ¿Como se explica? Bueno, precisamente, por la emergencia en Chile de una suerte de burguesía, la emergente burguesía empresarial chilena, que está caracterizada por la presencia de jóvenes, 30, 40 años, quienes a propósito del descubrimiento de mineros en el norte de Chile han comenzado a entrar en la inversión minera, lo que ha generado la primera riqueza chilena. Los primeros grandes ricos chilenos, la mayoría inversionistas, comienzan a aparecer en la década de 1830. Muchos de ellos hicieron su fortuna con la minería cerca de Copiapó, por ejemplo. Eso genera un atractivo para jóvenes empresarios chilenos, quienes contratan a estos peones y los llevan en lo que se llamaban las compañías y son ellos lo que a final sean esas compañías. Algunas con decenas, otras con cientos de personas, pero la gran mayoría eran compañías pequeñas. Un empresario que va con diez peones y les pagan pasaje, alimentación, y hay un trato, normalmente, de cómo se reparten las ganancias. Entonces, lo importante es que la motivación fundamental tiene que ver con aventura, pero, fundamentalmente, con un sentido empresarial de una emergente burguesía chilena que se ve atraída. ¿Y qué lo que explica que no haya sido tanto, por ejemplo, los ecuatorianos, los colombianos o gente de Centroamérica que hayan viajado a los EEUU? Porque no existía ese fortalecimiento de un capitalismo tan temprano como en Chile, ni mismo la existencia de una burguesía. Bueno, hay también factores geográficos, el hecho del pacifico, de muchos de los tránsitos de los barcos norteamericanos que partían de Nueva York, hacían escala en Río de Janeiro, Cabo de Horno, Valparaíso, para abastecerse, eso es un factor, pero esa misma ventaja la tenían en Colombia, en Ecuador y en Centroamérica, sin embargo, fueron muy poco los de esas zonas que inmigraron a los EE.UU.

 

 

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Catedrático da prestigiosa Universidade de Coimbra, o Prof. Dr. Fernando Catroga esteve em viagem acadêmica no Brasil e a aproveitar a passagem do pesquisador por Florianópolis, a Revista Tema Livre realizou a entrevista a seguir com o renomado pesquisador. Dentre os assuntos abordados, a utilização política da História e dos seus personagens ao longo dos séculos XIX e XX, bem como do espaço público por diversos regimes para a difusão dos seus ideais, a usar, mais uma vez, o passado.

Revista Tema Livre – Primeiramente, o Sr. pode falar-nos sobre a sua atuação na Universidade de Coimbra?

Fernando Catroga – Em Coimbra, sou professor catedrático, que corresponde, aqui, no Brasil, a professor titular. Também sou diretor do curso de doutorado sobre História Contemporânea e Relações Internacionais, bem como diretor da Revista de História das Ideias. É uma publicação anual, temática (cada número contém cerca de quinhentas páginas) e que sai desde 1977. Também me licenciei e doutorei na Universidade de Coimbra.

RTL – Como que ocorreu, no século XIX, durante a construção do Estado Nacional, a utilização da história de Portugal, dos descobrimentos e do Império português, além de personagens como Camões, Vasco da Gama e o Infante D. Henrique?

Catroga – Esse tem sido um dos campos que eu mais tenho estudado. Publiquei um pequeno ensaio, que teve uma edição aqui no Brasil, sobre memória, história e historiografia, que é o produto de reflexões teóricas que estiveram em conexão com essa minha investigação, sobre aquilo a que chamei “ritualizações da história”. Este trabalho pretendeu analisar o modo como o Estado-Nação português – em consonância com o que, no decurso do século XIX, vinha ocorrendo em outros Estados-Nação europeus – utilizou seletivamente o passado para o pôr ao serviço da refundação de uma memória nacional, projeto por sua vez indissociável da ideia de Império e das ameaças que sobre ele pairavam.
Para isso, levei em conta esta constatação: a acuidade que, também no espaço europeu, ganhou o chamado princípio das nacionalidades, expressa em lutas de libertação ou de refundação nacionais e em choques com imperialismos e hegemonias vários. Na verdade, havia regiões em que, sob a liderança da mais forte, se desencadearam processos de unificação e de construção de grandes Estados-Nação.
Os melhores exemplos serão os casos de Itália e Alemanha. Também havia regiões dentro de Estados-Nação, construídos ou em construção, em que surgiram movimentos tendentes à conquista da independência política. Para Portugal, nenhum destes modelos se aplicava, devido à sua velha de unidade lingüística e fronteiriça, assim como à existência de alguma centralidade do poder que já vinha do absolutismo. Em suma: Portugal não formava uma “nação cultural” à procura de ser um Estado, tarefa imposta pela onda das revoluções destruturadoras da ordem das sociedades de Antigo Regime. Em direta ligação com a crise do Império – como o caso do Brasil tinha começado a revelar –, necessitava-se de uma nova ideia de nação, que era, no fundo, um retomar mítico de algo que se teria perdido. Daí que tenha ganho relevo um processo, já bem visível na revolução liberal de 1820 (e não cem anos depois, como alguns defendem), a que tenho chamado refundação nacional (e imperial).
Com efeito, estas transformações arrastaram consigo a questão colonial (problema estrutural que se agudizará ainda mais nas últimas décadas do século XIX, durante a I Guerra Mundial e, depois, a partir da década de 1950). Ao mesmo tempo ditaram o aparecimento, ou o desenvolvimento, de uma forte consciência de decadência que, para alguns, já vinha de trás, particularmente do século XVIII, mas fora acentuada em Oitocentos. Sendo assim, não foi por acaso que, desde 1820, à esquerda ou à direita, todas as revoluções políticas portuguesas (a republicana de 1910, a do Estado Novo salazarista, a do 25 de abril de 1974) se apresentaram como “regeneradoras” e como portadoras do “novo”. O mesmo se pode afirmar acerca dos movimentos inteletuais e das revoluções culturais que estes queriam fomentar, desiderato que ganhou uma maior visibilidade com a Geração de 70.
De fato, foi assim com a primeira geração romântica, aquela que tinha participado na luta contra o absolutismo (Almeida Garrett, Alexandre Herculano). Mas, sobretudo a partir dos meados da década de 1860, começou-se a questionar a capacidade regeneradora da revolução liberal e surgiram programas de cariz republicano e socialista, em sintonia com as alterações que iam ocorrendo na Europa, emblematicamente consubstantaciadas na luta pela unidade italiana, na contestação ao anti-modernismo de Pio IX e às decisões do Concílio Vaticano I, no fascínio exercido pela recém formada Associação Internacional dos Trabalhadores, bem como no entusiasmo criado pelo eco dos acontecimentos da Comuna de Paris (1871). E tudo isto aparecia filosoficamente condicionado por múltiplas influências, que iam de um hegelianismo aprendido em traduções francesas a Vitor Hugo, Michelet, Quinet, Renan, Strauss, mas passavam também por Proudhon e por Comte e seus discípulos heterodoxos ligados ao magistério de Littré, etc. O desfecho dos avanços e recuos da revolução liberal estaria a saldar-se num constitucionalismo monárquico de orientação conservadora, aristocrático-burguesa e centralista, regime que, paulatinamente, foi criando a burocracia necessitada por esse tipo de Estado e uma base de apoio assente no caciquismo. Para os reformistas, tudo isto mostrava que o melhor da revolução tinha sido traído e que, contra a decadência, se impunha pugnar por uma nova revolução cultural, política e social.
Por outro lado, a Monarquia Constitucional, sendo um sistema misto, não podia reforçar o consenso somente em função do estatuto sacro-carismático da poder moderador do rei, pois o princípio monárquico coexistia com o princípio nacional. O que requeria a socialização de sentimentos inclusivos, polarizados pelas novas ideias cívicas e pactuais de indivíduo, pátria e nação, e não tanto por fidelidades de cunho pessoal.
Todos os Estados-Nação, a fim de cimentarem as novas sociabilidades políticas centradas no indivíduo-cidadão, segregaram a produção de mitos, símbolos, ritos de vocação consensualizadora e comunitarista e prometeram que o país tinha um destino inegualável a cumprir. E tudo isto era apresentado como mimético e sucedâneo em relação às práticas religiosas propriamente ditas. Rousseau chamou-lhes “religião civil”, mas outros preferem designá-los por “religião política”. Por ela se dava um complemento sentimental ao modo racionalista de justificar os ordenamentos políticos que, explícita ou implicitamente, buscavam legitimar o novo contrato social. Perceberam-no não só Robespierre e as revoluções liberais (os vintistas portugueses e brasileiros falavam na celebração de um novo contrato social), mas também todo o romantismo social, nomeadamente Augusto Comte, com a sua teorização da religião da humanidade e, em particular, do culto dos grandes homens e dos grandes acontecimentos que deviam ser revivificados, como exempla, através de ritos comemorativos dos respectivos centenários. Porém, o que, na letra do positivismo, foi iluministicamente apresentado como um porte cosmopolita, será nacionalizado pelas novas políticas da memória levadas a cabo nas últimas décadas do século XIX e durante boa parte do seguinte.
Reconhecia-se, assim, a importância do sentimento, não só ao nível subjetivo, mas também social, para a religação dos indivíduos a um sujeito coletivo, crescentemente entificado, chamado nação. E, na linha do magistério do romantismo alemão (Herder), mesmo que mitigado, falava-se de “alma”, de “índole”, de “idiossincrasia” do povo, ou, o que vai ser mais frequente, da nação. E os inteletuais auto-proclamam-se como os grandes reveladores desta essência nacional, que urgia ser ressuscitada e secularizada, devido ao anterior papel desempenhado pelo catolicismo na justificação dos mitos identitários, a começar pelo mito fundacional, em curso desde os inícios do século XV, centrado no aparecimento de Cristo ao primeiro rei de Porugal na batalha de Ourique contra os mouros.
Quer isto dizer que a fundamentação e cimentação dos Estados-Nação europeus não será devidamente compreendida se não se perceber que as justificações de teor racionalista (bem expressas na valorização dos direitos naturais do homem e do cidadão) estavam acompanhadas por argumentos e práticas de cariz mítico-simbólico, criados ou reinventados, e que estes não dispensavam o enraizamento histórico. Temos defendido que esse racionalismo estava geminado com legitimações de cunho historicista. Neste pano de fundo comum estrutural, o específico de cada mitologia nacional dizia somente respeito à escolha das origens (mais distantes, ou mais próximas), aos momentos que a retrospetiva selecionava como de apogeu e, consequentemente, ao grau da sua decadência, ou não, bem como à capacidade de cumprimento do desígnio nacional, mas de dimensão universal, que a história de cada povo, com avanços e recuos é certo, patentearia no concerto das nações.
Observe-se, porém, que tais evocações (e invocações) não se queriam passadistas. Elas exploravam a mais valia que uma certa leitura do passado podia oferecer aos interesses do presente, de modo a substituir-se ou a reformular-se o campo simbólico construído por séculos de Antigo Regime e por uma cultura senhorial assente na aliança entre o trono e o altar. Como alternativa, visava-se criar simbologias e mitologias adequadas às necessidades do Estado-Nação.
Este tipo de simbolização punha em cena uma “gramática” construtora do sentido do devir de cada povo. Não por acaso, contudo, a sua narrativa não se distanciava muito do sentido da história descrita por outras linguagens igualmente empenhadas na consolidação de uma nova memória nacional, fosse a da literatura, fosse a da nova historiografia, fosse a inscrita nas políticas de urbanização e plasmadas, sobretudo, na estatuária, na toponímia e em outros “lugares de memória”. Por isso, também em Portugal – e não é um fenômeno específico –, os grandes inteletuais dos primórdios do liberalismo foram jovens historiadores e escritores apostados em “nacionalizar”a interpretação da história e da cultura pátrias. Foi o caso do Almeida Garrett (o introdutor da poesia romântica em Portugal, cronista-mor do reino, ainda que durante pouco tempo, e criador do Teatro Nacional), e o de Alexandre Herculano, o primeiro grande historiador moderno português e cujo objeto de investigação não consistia na vida dos reis mas na do povo, ou melhor, na da nação, particularmente no seu período modelarmente fundador: a Idade Média. E, não por mera coincidência, ele também foi (finais da década de 1840) um dos principais demolidores da sustentabilidade histórica do milagre da batalha de Ourique, que teria ocorrido quando, em 1139, Cristo terá aparecido a Afonso Henriques em luta desigual contra cinco reis mouros.
Não deve surpreender esta ligação entre historicismo e racionalidade. Vendo bem as coisas, as nações necessitavam de legitimações de cariz narrativo, capazes de dar coerência, tanto retrospetiva como prospetiva, a um acreditado desígnio nacional. No caso português, porém, após a valorização romântica da Idade Média feita pelos liberais, essa filiação teleológica deixou de estar ancorada num mito fundacional. Investiu-se, sobretudo, num grande mito refundacional, enaltecido como o grande momento de apogeu da nação portuguesa: os Descobrimentos. Afirmo mesmo que, após os anos de 1870, este período passou a ser o eixo vertical a partir do qual se organizou, qualitativamente, a narrativa da história pátria: a fase anterior, que, desde D.Afonso Henriques a D. João I, era tida como preparatória e ascensional; e a posterior, que, com o absolutismo, a Inquisição e o tipo de economia gerado pela colonização, teria dado origem a um longo ciclo de decadência, estado que a revolução liberal, apesar das suas promessas regeneradoras, não tinha conseguido superar. A convocação do passado seria lenitivo revivescente para o presente. Explica-se, assim, que a consubstanciação dessa Idade de Ouro se desse na figura de Camões, como o investimento posto na passagem do centenário da sua morte bem demonstra.
É certo que, antes desta data, o poeta não estava esquecido na cultura portuguesa e no horizonte quase mítico das suas elites culturais. A sua revalorização ganhou um novo impulso na conjuntura da revolução liberal (Domingos Bomtempo, Garrett). Mas, a partir da década de 1860 e seguintes – aqui, já sob a influência positivista do culto dos “grandes homens” –, essa sacralização cívica foi inscrita num conjunto de práticas ritualistas empenhado na comemoração dos Descobrimentos e no fomento do contraste entre esse período, narrado como áureo, e a decadência do presente. E isso também permitia que, contra um certo darwinismo social subjacente à justificação da política das novas grandes potências, fossem relembrados direitos históricos que outros punham em causa, como mais explicitamente ficará patente na célebre conferência de Berlim (1885) e no decurso da comoção nacional provocada pelas exigências britânicas em relação a Moçambique (Ultimatum de 1890). Assim, não foi por acaso que do seio dos protestos anti-britânicos nasceu a canção A Portuguesa, hino que, vinte anos depois, será elevado pela revolução republicana de 5 de outubro de 1910 a “hino nacional”. Estatuto que o estado Novo não pôs em causa e que ainda hoje se mantém. Significativamente, começa deste modo: “Heróis do mar, nobre povo,/ nação valente, imortal,/ Levantai hoje de novo/O esplendor de Portugal!”.
Podemos dizer que foi sob o impulso de um regeneracionismo inseparável da manutenção do Império que se consolidou a nova “religião civil” portuguesa. Foi seu instrumento de propaganda a realização de festas cívicas, iniciativas que, porém, traziam para a rua um sentido da história narrado por outras linguagens e, em primeiro lugar, as do sistema educativo e, principalmente, a dos seus manuais de educação cívica e histórica. E as figuras didáticas eleitas (silenciando-se outras) só podiam ser personagens como Camões (grande poeta, mas também o grande cantor dos Descobrimentos), Vasco da Gama, Infante D. Henrique, Pedro Álvares Cabral, etc. É verdade que, numa conjuntura de agudização da questão religiosa, também não se esqueceu o Marquês de Pombal (1882). Contudo, o que se visava era a mobilização da história, ou melhor, de uma certa leitura histórica, para a defesa de direitos adquiridos na Índia e, sobretudo, em África. Daí o empolamento das comemorações em honra de Camões (1880), do Infante D. Henrique (1884), da viagem de Vasco da gama à Índia (1898-1899) e a relativa secundarização, em 1900, do centenário da chegada de Pedro Álvares Cabral a terras a que chamará Vera Cruz.
Para isso, procurava-se promover práticas congregadoras, capazes de inocularem nas massas sentimentos de autoestima e de coesão. Dir-se-á que, com esta mobilização exploradora do campo simbólico, se pretendia compensar a debilidade política e militar de Portugal face aos avanços coloniais das grandes potencias europeias da época. Com tais manifestações, evocadoras e invocadoras, desejava-se criar contrastes com a decadência do presente, mas, para, simultaneamente, se tonificar a vontade coletiva e, consequentemente, se realizar, como se dizia na linguagem da época, uma revivescência nacional. E, como a população era esmagadoramente analfabeta (cerca de 80 por cento), os espetáculos, como outrora o das catedrais góticas, foram montados mais para serem vistos e sentidos do que lidos e pensados.
Quanto às conexões deste ritualismo cívico com a religião propriamente dita, pode sustentar-se que esta tinha uma fraca presença. Aliás, os meios da igreja viram nestas festas efeitos da secularização das sociedades contemporâneas e pretensões de concorrência com as manifestaçãoes do catolicismo. E, numa espécie de contraresposta sentiram ser necessário utilizar a sua linguagem na controversa promoção do centenário de Santo António, em 1895.
Ainda gostava de dizer que esta galeria de heróis terá uma longa vida, embora, devido à sobre-exploração que, depois, o Estado Novo fará dela, se tenha instalado o convencimento, sobretudo nas gerações formadas na luta contra a Ditadura, de que a sua génese foi uma invenção do salazarismo. O que é um erro, porque toda esta mitologia acaba por ser transversal aos regimes políticos que se sucederam desde fins do século XIX até a revolução democrática de 1974.
É verdade que, no decurso da Monarquia Constitucional e da I Repúlica (1910-1926), a promoção de tal cultualismo e das suas expressões iconográficas esteve muito dependente de iniciativas da sociedade civil (grupos de inteletuais, associações culturais e escolares, estudantes), às quais só posteriormente o poder político se juntava, com uma espécie de contributo supletivo (frequentemente, vindo de receitas de edições filatélicas especiais). E esta relativa autonomia possibilitou que, em certas conjunturas, as manifestações se tivessem saldado a favor da forças que se opunham ao governo então em exercício. Exemplo: os republicanos foram os grandes beneficiados com o sucesso das festas comonianas em 1880. Contudo, com o Estado Novo, assistir-se-á a uma maior estadualização destes espetáculos e à sua integração numa planificada e totalizadora ação de propaganda nacional, ou melhor, nacionalista, para a qual foi criada, logo nos inícios da década de 1930, uma secretaria que se dedicava à “política do espírito” e que trabalhava diretamente na dependência de Salazar.
Seja como for, o núcleo duro dessa hagiografia cívica revela uma assinalável longevidade. A única diferença, no que às mudanças de regime diz respeito, encontra-se no maior destaque dado a certas figuras em detrimento de outras, assim como na mais estreita e tradicionalista ligação do cultualismo historicista com o catolicismo e com os valores antiliberais. De fato, com o nacional-catolicismo do regime autoritário, foi incrementada uma militante catolicização da religião civil, sem que isso tenha significado, porém, a diluição do Olimpo e dos ritos comemoracionistas, em vigor desde as últimas décadas so século XIX. Quando muito, assistiu-se, quer a uma ainda maior sobrevalorização da gesta dos Descobrimentos e da ideia de Império, quer ao regresso da fundamentação explicitamente providencialista da missão de Portugal no mundo.

RTL – O Sr. pode falar sobre a utilização destas figuras históricas durante o Estado Novo português e, também, no período posterior ao 25 de abril?

Catroga – O que acabei de dizer mostra que apresento o Estado Novo como herdeiro da mitologia nacional-imperial socializada nas últimas décadas da Monarquia Constitucional e durante a República. Património que foi integrado num ideário antiliberal, antidemocrático e de recatolocização de uma cultura que os regimes anteriores teriam secularizado em excesso. Isto é, tanto a sua releitura como o destaque que será dado dado a “heróis” até aí secundarizados, passaram estar ao serviço da ideia de dilatação da Fé e do Império e, portanto, inseridos numa propaganda cruzadística, em que a histórica diabolização do Oriente, aparece agora protagonizada pelo perigo comunista. E o mesmo se fez em relação à sacralidade da origem, que a crítica do século XIX tinha descredibilizado. Refiro-me ao mito do milagre de Ourique e, sobretudo, à tentativa para se beatificar e se heroicizar o primeiro rei de Portugal. Recorde-se que, ao contrário, em 1885, a comemoração do oitavo centenário da sua morte foi irrelevante quando comparada com os “préstitos cívicos” promovidos na mesma conjuntura para se glorificar Camões (1880) e o Marquês de Pombal (1882).
Análoga revalorização foi dada a outros símbolos fundadores e refundadores. Foi o caso de Viriato, pouco enaltecido nos finais do século XIX (está somente representado por uma pequena estátua no Arco da Rua Augusta, na “baixa” de Lisboa, no Terreiro do Paço, monumento só inaugurado nos princípios dos anos de 1870). A defesa da perenidade da nação casava-se bem com a mitificação dos lusitanos, bem como com os argumentos etnoculturais que os ideólogos do Estado Novo lançavam contra as teses contratualistas e voluntaristas acerca da origem da sociedade política e da nação.
Nuno Álvares Pereira foi uma outra personagem que viu a sua fama crescer com o avanço, ainda na I República, das forças conservadoras. Com os olhos postos no exemplo da direita francesa (Joana D’Arc), foi lançado um movimento tendente a canonizar o general de D. João, Mestre de Avis, tanto mais que ele, depois da vitória das tropas portuguesas sobre as castelhanas em 1385, recolheu a um convento. O militantismo desta cruzada será absorvido pelo Estado Novo, período em que o beato – na altura em que falo está iminente a sua canonização pelo Vaticano – foi promovido a patrono da arma de Infantaria e a uma das figuras tutelares da chamada Mocidade Portuguesa, organização masculina e feminina que, fundada em 1936-1937 com os olhos postos no seu modelo italiano e de outras experiências autoritárias, visava militarizar a juventude portuguesa.
Como não há política da memória sem uma correlata política do esquecimento, outros, anteriormente evocados, foram olvidados, ou, então, relegados para uma espécie de purgatório cívico. Não os ligados aos Descobrimentos, mas sobretudo os que significavam valores irrecuperáveis pelo Estado Novo: o anticongreganismo, o anticlericalismo, a modernidade, em suma.
De entre todos, deve destacar-se os avanços e os recuos do enaltecimento da figura e obra do Marquês de Pombal. O salazarismo teve, em relação a elas, uma leitura ambígua. Por um lado, a dimensão absolutista do ministro de D. José I parecia compaginar-se bem com o regime autoritário. Mas, a sua política iluminista e anti-jesuítica colidia com os interesses da aliança do Estado Novo com a Igreja. Prova-o o acontecido com a inauguração da estátua do Marquês de Pombal, em Lisboa, hoje uma das mais imponentes da cidade, colocada no topo da Avenida da Liberdade. A ideia nasceu em 1882, e a pedra fundacional foi colocada no mesmo ano. Para o efeito, houve várias comissões no período da Monarquia e da República, mas, por razões várias, só nos finais deste último regime se reuniram as condições materiais para, finalmente, se erguer monumento. A sua inauguração, porém, far-se-á já sob o Estado Novo (o que criou um grande incómodo às novas autoridades, precisamente porque o Marquês não era uma figura que se adequava bem à mitologia que o regime de Salazar queria dar continuidade). O salazarismo preferia os grandes heróis que vinham dos Descobrimentos, política igualmente concretizada, nas décadas de 1930-1950, por uma significativa estatuária de praça pública. Em simultâneo, também foi dado um maior relevo aos mitos fundacionais e refundacionais mais apropriáveis pela apologética católico-nacionalista.
A melhor síntese da forma como o regime reelaborou a herança e a vasou na linguagem ritual e simbólica da religião civil (agora mais catolicizada) encontra-se na comemoração do Duplo Centenário (1940) que levou a cabo. Por elas se pretendia evocar a origem da nacionalidade – convencionalmente colocada em 1140 – e a restauração da sua independência face ao domínio catelhano, em 1640. Mas, quer os cortejos cívicos, quer a exposição do “mundo português”, quer os inúmeros congregressos então realizados, foram montados para que tudo funcionasse como um espetáculo de massas, que pudesse ser lido como o livro da história de um povo imbuído de uma missão providencial. Por conseguinte, não deve admirar que os acontecimentos invocados estivessem ao serviço da apoteose da ideia de Império, bem como da nova restauração-regeneração que o Estado Novo estaria a realizar, depois de séculos de decadência. E, com a política monárquico-liberal e republicana, ter-se-ia agudizado tanto que, antes de 28 de Maio de 1926, Portugal estaria à beira de definhar. Sendo assim, o subliminar herói de toda a história contada pelas comemorações foi Salazar, espécie de ponto de chegada de uma filiação que havia começado em Viriato e, sobretudo, em D. Afonso Henriques, passado por Nuno Álvares Pereira, Infante Santo, Infante D. Henrique, D. João II, e que estaria finalmente a ser consumada.
Concluindo: não será errado afirmar que o cerne da mitologia nacional foi organizado à volta da aventura dos Descobrimentos e das suas consequências. E, para reforçar esta tese, basca analisar algo que é comum a todas as religiões civis dos Estados-Nação: os chamados “dias nacionais”.
O de Portugal é o dia de Camões, um produto do eco das comemorações de 10 de junho de 1880. Como “dia da Raça”, foi feriado nacional nos últimos anos da I República. Porém, foi o Estado Novo a estabelecê-lo de uma maneira continuada. Ora, se compararmos com o caso francês, nota-se a diferença: o “dia” gaulês referencia um acontecimento político – a Tomada da Bastilha, a 14 de julho. Pergunta-se, porquê este evento? Poderia ser qualquer outro da Revolução Francesa. Bem, a III República francesa escolheu-o, nos inícios dos anos de 1880, por causa de um pretenso cariz popular que seria mais enquadrável nos valores republicanos.
Diferentemente, Portugal é um dos poucos países em que o dia da nação parece rememorar um poeta. Nós temos que perguntar porquê, pois será limitado pensar-se que se trata de uma homenagem eivada de romantismo literário. Escolheu-se Camões porque a sua épica foi interpretada como a da gesta de um povo e da sua maior obra: os Descobrimentos. Diria que havia a consciência de que esta política da memória teria uma capacidade mais consensualizadora do que uma outra que explorasse datas ou figuras políticas. E este culto é anterior à Ditadura, incluindo a sua qualificação como “dia da Raça” em 1924. Todavia, a Ditadura em 1929 e, depois, a sua transformação em Estado Novo foi o regime que o institucionalizou como feriado nacional, consagrando o 10 de junho como “dia da Raça, de Portugal e de Camões”.
Saliente-se que os revolucionários do 25 de abril de 1974 sentiram alguma incomodidade com essa tradição. E tomaram medidas para que o 10 de junho fosse exclusivamente dedicado a Camões, enquanto o novo feriado, que iria celebrar o 25 de abril, homenagiaria o “dia da Pátria”. Porém, a inovação durou somente dois ou três anos. Os protestos e o refluxo revolucionário conduziram à situação atual: o 25 de abril é o “dia da Liberdade” e, o 10 de junho, o de “ Portugal, de Camões e das Comunidades”. Modo de relembrar, já não o Portugal imperial, mas o das diásporas, das imigrações, e de se apelar para uma ideia de comunidade compatível com a era pós-colonial em que se entrou depois da revolução. No entanto, a mitologia anterior não se extinguiu. Diria que ele sobrevive, mesmo quando já não existe a realidade que condicionou a sua emergência.
Há alguns anos, um jornal, aquando da passagem do vigésimo aniversário da revolução de 1974, fez um inquérito a algumas centenas de militares que, diretamente, estiveram envolvidos no derrube da ditadura. Procurava-se saber o que é que eles pensavam não só sobre temas da atualidade, mas também sobre personagens e acontecimentos históricos. Ora, quanto a este último assunto, as respostas indiciam um claro apego à mitologia nacional que povoa o panteão português desde as últimas décadas do século XIX.

RTL – Para finalizar, o Sr. pode falar sobre a presença destes personagens históricos no espaço público português?

Catroga – Houve uma reinvenção ou apropriação seletiva dos momentos altos do passado, para que as suas representificações pudessem funcionar como lenitivo para o presente. Aliás, em Portugal, no século XIX, os teorizadores destas questões utilizavam uma expressão muito interessante: ia-se ao passado para se criar um clima de “revivescência” nacional. Atitude que remete para uma visão qualitativa e seletiva do tempo. Todavia, não se pode esquecer que ela implicava uma demarcação qualitativa do espaço, traçando “altares da Pátria” e outros “lugares de memória”. Todos os Estados-Nação o fizeram, instituindo panteões, personalizando a toponímia, levantando monumentos no espaço público, mitificando lugares (exemplo portugueses: Sagres, a Torre de Belém, os Jerónimos – onde repousam os restos mortais de Camões e de Fernando Pessoa –, Mosteiro da Batalha, lugar de culto não só da memória de Aljubarrota, mas também do “Soldado Desconhecido”).
Também em Portugal se viveu, sob impacto francês, uma onda de “estátuomania” nos finais do século XIX. Mas se, como disse, essa foi a época da consagração dos heróis ligados à memória dos Descobrimentos, o mesmo não aconteceu ao nível da estatuária. É certo que a de Camões foi a primeira a ser inaugurada (1867). Porém, as demais, ou cultuaram as grandes figuras do movimento liberal ( D.Pedro I, Saldanha, Terceira, Joaquim António de Aguiar, José Estevão), ou surgiram impulsionadas por comemorações de centenários, embora com atos inaugurais bem posteriores (Marquês de Pombal, Guerra Peninsular, Restauradores).
Uma outra campanha monumentalizadora marcante do espaço público iniciou-se nos primeiros anos da década de 1920 e estendeu-se pelas seguintes. Teve a ver com a “internacional do luto” formada para se responder ao trauma provocado hecatombe provocada pela I Guerra Mundial e que atravessou todos os países que nela estiveram envolvidos. Traduziu-se, entre outras iniciativas, no levantamento de estátuas nas principais cidades e vilas do país, comummente dedicadas à memória dos que morreram pela pátria.
Como disse atrás, data da década de 1930 o fomento da estatuária que privilegiava a temática dos Descobrimentos. Ela será colocada em sítios nobres (como, em Lisboa, a de Pedro Álvares Cabral, oferecida pela colónia portuguesa do Brasil), mas, sobretudo, nas terras descobertas (Açores e Madeira), na terra natal dos navegadores, ou nos locais de embarque das viagens marítimas.
Quanto a este último lugar, merece particular destaque a implantada próximo da Torre de Belém, formada por um conjunto de figuras que tem como timoneiro o Infante D. Henrique. A primeira versão deste monumento foi feita, em gesso, para a Exposicão do Duplo Centenário. Mas agradou tanto a Salazar que este decidiu a sua reprodução em pedra e a sua implantação no lugar mítico da memória imperial. Referimo-nos aos Jerónimos e à sua envolvência, urbanizada quando ocorreu o centenário da Índia e sintomaticamente baptizada com o nome de “Praça do Império”, onde, nos inícios do século XX, foi instalada a estátua de Afonso de Albuquerque.
Este sítio de Lisboa tinha sido o epicentro das festas cívicas em honra de Camões e de Vasco da Gama e da chegada à Índia. E voltará a ser o grande cenário das comemorações do Duplo Centenário em 1940. No do 5º centenário da morte do Infante D. Henrique, em 1960 – acontecimento que teve como convidado de honra o Presidente do Brasil, Juscelino Kubitschek de Oliveira – o espaço mais enfatizado foi Sagres, apesar da historiografia não avalizar a existência da célebre “escola”, que teria sido liderada pelo Infante D. Henrique. Mas, o que é que aconteceu quando, a partir de 1980, se repetiu o ciclo comemorativo impulsionado um século antes, agora num contexto em que a democratização do país tinha arrastado consigo a descolonização em África e, consequentemente, o fim do Império? Poderia haver comemorações ainda imbuídas de historicismo imperial, quando o novo regime tinha sido o da descolonização?
Para responder, lembremos que, embora em moldes diferentes, a evocação dos mesmos “grandes homens” e dos mesmos “grandes acontecimentos” voltou a repetir-se um século depois. E recordemos o que, na mesma conjuntura, aconteceu com a Expo 98, realizada em Lisboa. Em primeiro lugar, no ano do centenário da viagem de Vasco da Gama, ela constituía uma resposta político-simbólica às festas promovidas em Sevilha, em 1992, pelo governo espanhol em memória de Colombo. Em segundo lugar, numa fase pós-colonial, parecia não haver mais cabimento para a retórica das comemorações anteriores. Também aqui o próprio termo “descobrimentos” deu lugar a uma expressão politicamente mais correta: “encontro de culturas”. E a temática da exposição foi dedicada aos oceanos e à sua importância ecológica e comunicacional para a vida dos povos, domínio em que os portugueses teriam sido pioneiros. Mas, o velho conteúdo não deixou de ser insinuado, nem que fosse como metáfora, como se pode ilustrar através da conotação que se quis dar à grande obra pública que rematou a urbanização daquela zona oriental de Lisboa (como, um século antes, se tinha feito para a zona dos Jerónimos) em que se implantou a Exposição. Falamos da nova ponte sobre o rio Tejo, levantada na área, e do significado do nome oficial que recebeu: Vasco da Gama! Mais uma prova de que os mitemas que dão autoestima ao sentido das histórias nacionais não estão mecanicamente dependentes das condições materiais que lhes deram origem.

 

 

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A seguir, a entrevista que o historiador Carlos Gabriel Guimarães concedeu a Revista Tema Livre, no dia 16 de dezembro de 2005, no Campus do Gragoatá da Universidade Federal Fluminense. Na entrevista, dentre outros assuntos, o historiador questiona o mito em torno de Irineu Evangelista de Sousa, o Barão/Visconde de Mauá e, ainda, fala da ação dos comerciantes portugueses e ingleses no mundo luso-brasileiro.

Revista Tema Livre – O Sr. é o presidente da Associação Brasileira de Pesquisa em História Econômica (ABPHE). Assim, o Sr. pode falar um pouco sobre a instituição?

Carlos Gabriel Guimarães – Sou o atual presidente da ABPHE, eleito em 2005, com mandato até 2007, quando teremos, em Aracajú, o VII Congresso Brasileiro de História Econômica e a 8ª Conferência Internacional de História de Empresas, sob a organização do Prof. Dr. Josué Modesto dos Passos Subrinho, atual reitor da Universidade Federal de Sergipe e vice-presidente da ABPHE.

A ABPHE surgiu oficialmente em 1993, no I Congresso Brasileiro de História Econômica e 2ª Conferência Internacional de História de Empresas, que foram realizados na USP, e teve como primeiro presidente, o Prof. Dr. Tamás Szmrecsányi da UNICAMP.

Hoje, a ABPHE tem mais de 200 associados, do Amazonas ao Rio Grande do Sul, além de alguns sócios estrangeiros. Destaco aqui que é uma associação que envolve economistas e historiadores, mas, também, temos sociólogos, antropólogos, enfim, acho importante essa diversidade, acho que isso caracteriza a ABPHE.

A ABPHE vem estimulando o retorno das pesquisas em história econômica, após a queda ocorrida, principalmente, entre os anos de 1980 e 1990. Muitos estudos estão sendo realizados, especialmente por historiadores da história econômica social. Vale lembrar que grandes pesquisadores da história como Kátia Matoso, Maria Yeda Linhares, Eulália Lobo e Fernando Novais fizeram suas pesquisas iniciais em história econômica. Chamo a atenção dos jovens historiadores que acham que a história econômica está apenas calcada em números. Lembro que, mais importante que a questão quantitativa, está a pesquisa sobre os atores sociais.

RTL – O Sr. pode falar, resumidamente, sobre o curso que o Sr. é coordenador, a Pós Graduação Lato Sensu em História do Brasil da UFF?

Guimarães – A pós-graduação lato sensu em História do Brasil é uma das especializações oferecidas pelo Departamento de História da UFF. Considero importante que a Universidade Pública ofereça esse tipo de curso, pois auxilia na qualificação profissional da sociedade e promove a mudança da atuação da academia, passando a ser mais próxima da população. Com o curso procuramos realizar esta mudança, com aulas aos sábados e tendo como alunos, principalmente, professores da rede pública e privada dos ensinos fundamental e médio, além de profissionais de outras áreas, como jornalismo, direito e geografia. Muitos alunos trabalham de segunda a sexta, e se esforçam para se atualizarem aos sábados, assim, é um caminho de mão dupla, porque passamos conhecimento, mas temos contato com outra realidade. Por ser um curso pago, temos recebido muitas criticas por parte daqueles que consideram que estamos privatizando a Universidade. Mas é importante ressaltar que da receita do curso, aproximadamente entre trinta e trinta e cinco por cento vai para os cofres da Universidade, para o Departamento de História e para o Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. O restante é para pagar as despesas com professores e funcionários. Infelizmente temos que cobrar, já que não podemos usar a carga horária destinada a outras atividades, como, por exemplo, as aulas na graduação, para atender a esse tipo de curso.

RTL – O Sr. esteve em Portugal fazendo o pós-doutorado. Assim, pode contar-nos, sucintamente, sobre a sua pesquisa lá?

Guimarães – Eu fiz uma pesquisa com bolsa da CAPES, fiquei lá, ao todo, por nove meses, e foi um estudo envolvendo mercadores ingleses em Lisboa e no Brasil na primeira metade do século XIX. Esta pesquisa foi desdobramento da minha tese de doutorado, que foi sobre a Sociedade Bancária Mauá, MacGregor & Cia., sendo que o Mauá é, na verdade, um mito.

RTL – Fale-nos a respeito do mito do Mauá.

Guimarães – Antes de falar do mito, vamos falar um pouco dos comerciantes ingleses, que muitos deles estão ligados ao Mauá, como o Richard Carruthers. Com a pesquisa em Portugal consegui mapear o irmão dele, o Guilherme Carruthers.

O Richard Carruthers, antes de chegar ao Brasil, foi para Lisboa com o irmão, em 1822/23, e depois veio para cá. É uma trajetória que os ingleses faziam no mundo colonial português, a maioria parava em Lisboa e, depois, ia para o Brasil, ou para outras praças dentro do Império Português. Isso significa uma questão política e econômica. No caso dos irmãos Carruthers, o Guilherme ficou em Lisboa e o Richard veio para o Rio de Janeiro e eles se associaram a grandes negociantes portugueses. O Guilherme se associou ao José Bento de Araújo, um dos maiores negociantes do vintismo português. No Rio de Janeiro aconteceu à mesma coisa, o Richard se associou ao famoso João Rodrigues Pereira de Almeida, deputado da Junta de Comércio, acionista do Banco do Brasil e traficante de escravo.

Esta associação dos ingleses com os portugueses possibilita pensar no que chamamos de cultura de negócios, ou seja, perceber que as atividades comerciais (os negócios) estavam ligadas a uma lógica de mercado diferente do mercado capitalista. A associação de um inglês com um negociante e deputado da Junta de Comércio, como era o caso do João Rodrigues Pereira de Almeida, essa rede e essa associação são justamente para poder penetrar nesse mercado e saber como ele funcionava. Não sendo um mercado capitalista, não é um mercado contratual, e tem muito de relação pessoal, proximidade com a política. É lógico que capitalismo também tem isso. Agora, no mercado não capitalista, a política, muitas vezes, é o principal motor, aí tem que estar próximo dos homens que estão nessa política (no Estado), e estes negociantes portugueses estavam lá. Em virtude das pesquisas, tem-se demonstrado a importância do negociante de grosso do Império Português, principalmente a partir de Pombal. Com a chegada da Corte em 1808, os negociante reinos no Rio de Janeiro participaram cada vez mais desse Estado Imperial português, assim como no período de D. Pedro I.

Falando no Irineu Evangelista de Souza, o futuro Barão e, depois, Visconde de Mauá, ele era caixeiro do João Rodrigues Pereira de Almeida, que o recrutou ainda muito garoto, em virtude do seu tio, que era o capitão de navio daquele negociante. O Irineu foi levado pelo seu tio porque perdeu o pai, e quando o Pereira de Almeida faliu, ele vai para a firma do Richard Carruthers. Esta passagem do Mauá envolve muito do que falei anteriormente, das relações pessoais num mercado que na prática não é capitalista. E cuidado com esses “capitalistas ingleses”, pois, principalmente depois de 1850, foi que verificamos uma articulação muito mais capitalista no sentido moderno da palavra para essas firmas inglesas. É interessante, porque as pessoas acham que os ingleses são pragmáticos, objetivos… Toda a historiografia sobre os ingleses no Brasil destaca o quanto eles eram modernos e os portugueses o oposto, ou seja, arcaicos. Não é nada disso, os grandes negociantes portugueses tinham as suas letras assinadas e recebidas nas praças européias. É bom chamar a atenção disto para parar um pouco com essa idéia pejorativa do português “tamancão”, desculpe usar essa palavra, e o inglês, o moderno. Não tinha nada disso, as relações dos ingleses com seus agentes envolviam relações pessoais, familiares.

No tocante ao mito do Mauá, é uma coisa interessante, porque, na verdade, não foi construído pelo próprio Mauá. O Mauá é autor de um livro intitulado “Autobiografia.. Exposição aos Credores”, onde explica o porquê da falência, da quebra do seu banco. Ele está expondo não é para todos, está expondo ao público dele. Agora, quem é o público dele? É a sociedade imperial e, principalmente, a Associação Comercial do Rio de Janeiro.

O problema é que o Mauá foi sendo apropriado, eu falo isso em um texto da Revista de História da Biblioteca Nacional daqui do Rio de Janeiro [edição nº4, outubro de 2005], que o Mauá foi sendo apropriado, tanto por uma esquerda, quanto por uma direita, desculpe-me usar essa demarcação ideológica-política, para justamente ou privilegiar o liberal, o empreendedor que teve um Estado opressor, aí é uma visão à direita, dos liberais, ou então alguém, um brasileiro que competindo contra os estrangeiros, principalmente contra o poderio inglês, precisou do apoio do Estado, porém o Estado negou. É a leitura da esquerda nacionalista velha e datada. Na verdade, não é nada disso.

O Mauá, como já chamei a atenção, com o retorno do Richard Carruhthers para a Inglaterra em 1837, ele vai ser o diretor da firma inglesa Carruthers & Company, e na década de 1840, a firma inglesa vai estar ligada ao tráfico negreiro, como destacam o Robert Conrad e o Luis Henrique Tavares, este último no livro “O comércio proibido de escravos”, quando estes trabalharam com a documentação inglesa do Public Record Office. Eles utilizam, principalmente, as correspondências consulares dos cônsules ingleses no Brasil. Lá estão os cônsules dizendo que várias firmas inglesas estão ligadas ao tráfico, jogando seus produtos para financiar o tráfico negreiro. A Carruthers & Company estava ligada ao grande negreiro Manuel Pinto da Fonseca. Eu achei o Manuel Pinto da Fonseca como sócio da Sociedade Bancária Mauá, MacGregor, e olha que ele foi expulso do Brasil em 1852 por causa do contrabando e, tinha como um dos testamenteiros um sócio e amigo pessoal do Mauá, o José Antonio de Figueiredo Júnior, pai do futuro Visconde de Figueiredo, que no final do Império, foi o organizador do Banco Nacional. O pai do Visconde de Figueiredo e o futuro Barão de Mauá estavam vinculados a um dos negócios mais lucrativos, que era o comércio de carne humana, como diziam os negreiros. E não só o Mauá estava ligado ao tráfico negreiro, mas várias firmas inglesas também, até mesmo os agentes dos Rothschilds no Brasil.

O Mauá teve vários bancos, mas nunca organizou uma holding, ao contrário do que alguns biógrafos dizem. Mauá organizou seu último banco, o Mauá & Cia, em 1867, e nesse banco foi transportado todo os passivos dos seus negócios. Não foi à toa que deu no que deu, ou seja, quando estourou uma crise na Praça do Comércio, como a de 1875, o banco quebrou. É importante salientar que o Banco Mauá & Cia não era o Banco Mauá, MacGregor, que foi o segundo banco organizado pelo Mauá, já que o primeiro banco foi o Banco de Brasil de 1851. Aliás, o primeiro Banco com o nome de Mauá & Cia foi organizado na década de 1850 (em 1856), e se constituiu no principal banco e emissor de notas (moeda) no Uruguai, com “filiais” na Argentina e no porto do Rio Grande na Província do Rio Grande do Sul. Olha o barão de Mauá e a política externa do Império. Paulino Soares de Souza, o Visconde de Uruguai, coladinho com Mauá, que é um mito também no Uruguai, e existe uma praça Mauá em Montevidéu.

O que Mauá estava fazendo lá? Estava lá porque era empreendedor? Mauá estava coladinho com o projeto de expansão do Império brasileiro na Região do Rio da Prata. Quando se pagavam as tropas do Brasil na Guerra do Paraguai era o Banco Mauá que fazia.

Outro grande problema do mito do Mauá é aquela associação dele como industrial, pois isto na verdade não aconteceu. O Mauá organizou algumas empresas, mas tiveram curta duração. O Estaleiro Mauá, por exemplo, que seria uma referência de estaleiro moderno, tem que ter cuidado. Era um conjunto de oficinas, tinha muitos escravos. Ora, cadê o maior abolicionista que os biógrafos e que o filme fala? Não tem nada de abolicionista! O Mauá industrial? Que indústrias ele teve? O Estaleiro Mauá, curta duração. A Luz Esteárica, curta duração. E mais, com muita subvenção do governo imperial. Mas o Mauá sempre foi, como esta lá no registro de matriculas do Tribunal do Comércio do Código Comercial, negociante de grosso, e depois, quando ele organizou os bancos, banqueiro. É o negócio dele, o negócio dele foi o comércio. Com o fim do tráfico negreiro, aqueles capitais de origem negreira vão ser direcionados para a atividade comercial do Rio de Janeiro.

Assim, o Mauá é um mito tanto para a direita, quanto para a esquerda, ou seja, para estes, o brasileiro que precisou do apoio do Estado contra a opressão estrangeira. Opressão estrangeira? Ele era colado com os ingleses! Ou então os liberais defendendo o indivíduo que por si só poderia chegar lá, porém o Estado atrasado… Vamos parar com isto! Ele era um homem do Império. Virou mito, principalmente no século XX, por causa do projeto de desenvolvimento nacional (sinônimo de indústria/industrialização), e aí o Mauá serve para tudo. Ele está tanto no comércio, quanto na industria. Em associações comerciais, em vários locais do Brasil, tem uma sala Mauá. Em associações industriais está, por exemplo, na FIRJAN e na FIESP. Então o Mauá serve para o industrial e para o comerciante… Ele é uma figura mítica. Tratá-lo como empresário no estilo moderno é um grande absurdo, e pior ainda é como os nossos alunos, nossos filhos, nossos netos, lendo livros de história do Brasil, falando da segunda metade do século XIX, a “Era Mauá”…. Parece que dentro daquele Império atrasado teve um período moderno…. Pelo amor de Deus! É um grande equivoco, mas mito é isso.

Bem, Mauá ganha bastante destaque a partir da década de 1920, com Alberto Faria, que faz um livro com uma apologia ao Mauá. Nos anos 30, Lídia Besouchet publica “Mauá e o seu tempo”. Um descendente do Mauá, Cláudio Ganns reedita o livro do Mauá, “Autobiografia. Exposição aos Credores”. Repare bem como o mito vai sendo recriado. Depois, Caio Prado Junior, Celso Furtado, o primeiro marxista, e o outro keyneziano estruturalista, também embarcam no mito. No caso do Celso Furtado, ligado ao Plano de Metas de JK, e um dos teóricos do projeto nacional desenvolvimentista, o resgate do Mauá, o Mauá industrial, era importante. Ora, no Rio de Janeiro, a indústria propriamente dita foi criada depois de 1870, como diz Maria Bárbara Levy, Eulália Lobo, Geraldo Beauclair, e vários historiadores econômicos. Não é a “Era Mauá”. A industria no Rio de Janeiro é pós-Mauá.

Assim, o Mauá era um homem do seu tempo, e mais, o tempo do Mauá é o tempo do apogeu do Império. Depois de 1870 já tem outros grupos mercantis que vão se sobrepor ao Mauá. É lógico que com a crise de 1875 ele quebrou por problemas dele e pelo fato do Estado que, via Banco do Brasil, não o apoiou. Um outro banco que pesquiso, o Banco Rural e Hipotecário do Rio de Janeiro, contou com a ajuda do Banco do Brasil, que emprestou mais de 3.000 contos e conseguiu salvar o Banco Rural e Hipotecário. Não fez isso com o Mauá, mas por quê? É a relação de poder, já não era mais o tempo do Mauá e o seu grupo. A situação estava se modificando.

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A seguir, a Revista Tema Livre apresenta entrevista concedida pela historiadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Claudia Wasserman. Na entrevista, a historiadora gaúcha fala, dentre outras questões, da sua trajetória acadêmica e do programa de pós-graduação em história da UFRGS, do qual é coordenadora. Além disto, Claudia Wasserman aborda a atuação de Francisco Madero, Hipólito Irigoyen e Getúlio Vargas, respectivamente, no México, Argentina e Brasil e, ainda, trata da guerra civil no Rio Grande do Sul no início da República brasileira.

Revista Tema Livre – Primeiramente, a Sra. pode falar-nos sobre a sua trajetória acadêmica?

Claudia Wasserman – Sou graduada em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 1981. Em 1984, fiz um curso de Especialização em História da América Latina também na UFRGS e em 1986 fui a primeira colocada na seleção de ingresso da primeira turma do Mestrado em História da UFRGS, onde hoje, no ano em que o curso completa 20 anos, sou a coordenadora. Mais do que uma interessante coincidência revela que os egressos de nosso Programa de Pós-Graduação colocaram-se profissionalmente com alguma facilidade. Temos mais dois professores que fizeram o Mestrado junto comigo. O Doutorado em História Social, eu realizei na Universidade Federal do Rio de Janeiro, tendo obtido o título em 1998. Os temas de pesquisa desses cursos estiveram sempre ligados à América Latina contemporânea, a começar pela especialização, onde o trabalho de conclusão era sobre a Revolução Mexicana e as questões econômicas do processo revolucionário. A partir do Mestrado os temas de história política começaram a predominar em meu itinerário de pesquisadora. Fiz uma dissertação sobre a construção da hegemonia burguesa no México, construída através do processo revolucionário, onde a curiosidade que moveu aquele estudo era entender porque o México era um dos poucos países da América Latina que não vivia sob a égide de ditadura militar de segurança nacional. As especificidades do processo mexicano permitiram àquele país a manutenção prolongada do processo democrático, ainda que com os devidos problemas típicos de países subdesenvolvidos. No Doutorado ampliei minhas pesquisas e tratei de entender o surgimento do nacionalismo em países da América Latina, quais eram os discursos políticos fundadores da nacionalidade em cada país, e para isso foi necessário uma análise aprofundada da literatura/historiografia da questão nacional na América Latina, desde os próceres das independências até o final do século XX. Na parte empírica, tratei dos discursos de campanha de três presidentes do México, Argentina e Brasil, respectivamente, Francisco Madero, Hipólito Irigoyen e Getúlio Vargas. Publiquei essa parte da pesquisa no livro “Palavra de Presidente” e venho trabalhando intensamente para publicar o primeiro capítulo que trata da bibliografia. Ao longo de toda essa trajetória de titulação trabalhei como professora em supletivo, ensino básico, ensino médio e ensino superior (Universidade de Passo Fundo – 1986, Centro La Salle de Ensino Superior – 1987,1988 e fui aprovada em concurso de História da América Latina na UFRGS, onde leciono desde outubro de 1988). A docência tem tido um papel fundamental no meu trabalho de pesquisa, conquanto tenho conseguido lecionar e pesquisar sobre as mesmas coisas, o que era raro no âmbito da história latino-americana, porque pelas dificuldades encontradas pelos pesquisadores na obtenção de bibliografia e na seleção de fontes: as pessoas lecionavam América Latina e faziam pesquisas sobre Rio Grande do Sul ou Brasil. Acho que, juntamente com outros colegas da UFRGS, pude contribuir para mudar esse quadro. Também atuo como escritora de livros de síntese universitária que, não sendo resultados de pesquisa direta, são de grande utilidade para divulgar o que vem sendo produzido na região e quais são os principais debates e seus conteúdos.

RTL – A Sra. poderia apontar os principais pontos em comum sobre a questão nacional no começo do século XX no Brasil, na Argentina e no México?

Wasserman – Francisco Madero (1910), Hipólito Irigoyen (1916) e Getúlio Vargas (1930) atuaram em três países, em épocas diferentes, mas tiveram em comum uma preocupação inédita, antes de suas aparições, com questões relativas à cidadania, sem a qual é impensável entender um país como nação. Segundo um dos mais renomados teóricos mundiais acerca do tema do nacionalismo, Eric Hobsbawn, “a questão nacional está na intersecção da política da tecnologia e da transformação social”, o que significa dizer que para existir de fato uma nação são necessários minimamente três fenômenos: a presença de um Estado político, a tecnologia advinda do desenvolvimento do capitalismo que permite a existência de uma imprensa que, por sua vez, dissemina a idéia de “comunidade imaginada” e, finalmente, a existência de um povo consciente de pertencer àquela comunidade, que se sinta incluído minimamente como cidadão. Esse último passo na direção da construção da nacionalidade de fato só ocorreu na América Latina quando as oligarquias primário-exportadoras foram questionadas pela primeira vez, porque esses grupos que estavam encastelados no poder desde o período colonial eram totalmente excludentes, não permitiam o acesso à cidadania. A abertura desses canais de participação ocorreram quando as oligarquias começaram a ser questionadas e abriu-se espaço para governantes burgueses, representados no México, na Argentina e Brasil por Francisco Madero (1910), Hipólito Irigoyen (1916) e Getúlio Vargas (1930), respectivamente.

RTL – A Sra. pode contar-nos, sucintamente, sobre a guerra civil no Rio Grande do Sul e a atuação das elites gaúchas na Primeira República?

Wasserman – Meu trabalho com as elites gaúchas na Primeira República tem muito a ver com essa pesquisa sobre a questão nacional, pois a década de 1920 constitui-se no Brasil no período de crise das oligarquias. As estudei nesse sentido. A luta de 1923 no Rio Grande do Sul é uma continuidade da Revolução Federalista de 1893. Questionou-se primeiramente o poder de Júlio de Castilhos e, depois, Borges de Medeiros. A solução do conflito levou Getúlio Vargas ao poder do estado em 1928, como candidato do consenso das elites que haviam lutado desde o final do século XIX. Era o fim da hegemonia do Partido Republicano Rio-grandense e o fim do predomínio absoluto das oligarquias no Brasil

RTL – A Sra. pode falar, brevemente, sobre os seus projetos de pesquisa “Percurso intelectual e historiográfico da questão nacional e identitária na América Latina” e “Movimentos Sociais latino-americanos: a construção de identidades nos movimentos de trabalhadores, estudantes, operários, mulheres e intelectuais.”?

Wasserman – São os projetos que desenvolvo atualmente. O primeiro, como já mencionei, é ainda resultado ampliado das pesquisas realizadas no âmbito do doutorado, visa desenvolver uma problemática pertinente na relação do papel exercido pelos intelectuais na construção da “comunidade imaginada”, qual o seu grau de intervenção na “invenção das nações”, etc. O segundo projeto tem mais a ver com a minha atividade como orientadora de mestrado, principalmente, e como docente de história contemporânea da América Latina. Estou escrevendo, junto com alguns alunos, um dicionário de movimentos sociais contemporâneos latino-americanos que deve sair até o final do ano.

RTL – No que tange o projeto de pesquisa “Percurso intelectual e historiográfico da questão nacional e identitária na América Latina” a Sra. pode apresentar alguns casos sobre os usos da História como legitimação de projetos sociais e sobre os modismos estrangeiros nos debates latino-americanos?

Wasserman – Sobre “modismos estrangeiros” eu diria que todo pensamento intelectual latino-americano foi marcado por uma influência daquilo que era produzido teoricamente no exterior; o liberalismo, o positivismo, os determinismos, o marxismo, o neoliberalismo, nada disso foi produzido originalmente na América Latina, mas somos tributários de todos esses aparatos conceituais. Modificados e adaptados à nossa realidade, mas produzidos com base em experiências concretas estranhas à nossa realidade, eles podem ser vistos como “modismos estrangeiros”, como também o são toda admiração que nossas elites têm e tiveram, ao longo da história, pelo exterior, desde a moda, culinária, cultura, até o pensamento social e político. Em relação à legitimação de projetos políticos por intermédio da história produzida na academia, isso é muito difícil de determinar, mas a utilização de eventos da história nacional pelos discursos políticos, isso acontece o tempo todo, basta ver as referências a episódios da história e a personagens, presentes nos discursos políticos até os dias de hoje.

RTL –Finalizando, conte-nos sobre a pesquisa intitulada “Arrolamento de documentos históricos da cidade de Passo Fundo”, coordenada pela Sra.

Wasserman – Essa pesquisa de início de carreira era, na verdade, uma exigência da Universidade de Passo Fundo para que eu pudesse ser mantida lá por pelo menos dois dias da semana. Assim, propus a eles fazer uma pesquisa na cidade e constatei que os arquivos locais eram desconhecidos dos pesquisadores e dos alunos que iniciavam uma carreira na cidade. Nesse sentido, a idéia de em primeiro lugar produzir uma espécie de catálogo com a documentação existente em cada local. Foi uma experiência muito interessante e relevante.

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A historiadora argentina María Gabriela Quiñonez, da UNNE (Universidad Nacional del Nordeste), apresentou no VI Encontro da ANPHLAC (Associação Nacional de Pesquisadores de História Latino-Americana e Caribenha), em Maringá, no Paraná, a palestra “Las elites locales y la construcción de una historia nacional: visiones alternativas y argumentos reivindicatorios en las primeras historias provinciales de la Argentina, 1870 – 1910”.

Aproveitando a estada da pesquisadora em Maringá, a Revista Tema Livre realizou a entrevista que consta a seguir, concedida no último 23 de julho.

Revista Tema Livre – Primeiramente, qual o tema da palestra que a Sra. proferiu hoje?

María Gabriela Quiñonez – La ponencia que yo presenté tiene que ver con las elites provinciales y la formación, la construcción de la historia nacional en Argentina y como esas historias que se creo en las provincias en el siglo XIX lo que intentan es lograr la reivindicación de la provincia. Las provincias se han considerado como protagonistas de la historia argentina frente a una historia nacional que esta fundamentalmente centrada en los acontecimientos de Buenos Aires, donde elige el estruturador del relato y lo constituye Buenos Aires y el gobierno central que actuaron allí. Este sería el tema.

RTL – A figura de Artigas é retratada de que maneira na historiografia que a Sra. teve contato?

Quiñonez – Bueno, con respecto a la figura de Artigas, lo que yo trato en la ponencia es el como se transmite ese proceso a través de los manuales escolares en el sistema educativo y, fundamentalmente, el hecho que esos manuales están basados en la tradición liberal. Inicialmente generada por Mitre y por López, la visión de Artigas es totalmente negativa. Mitre, a lo largo de su obra, intenta, digamos, hacer que los otros caudillos argentinos que estuvieron vinculados con Artigas intenten incorpóralos a la historia nacional, a la historia argentina. No así la figura de Artigas. Prácticamente en todos los manuales de historia nacional que se utilizaron en la Argentina hasta la década del 60 la figura de Artigas sigue siendo la del gaucho insolente, disolvente, ante-nacional, separatista, y esa misma imagen, domina la historiografía nacional argentina es la que se reproducen los espacios provinciales de las provincias más alejadas, digamos, de Buenos Aires, geográficamente, no así en el litoral. En el litoral se va dar, como lo que decía María Silvia Leoni, en el caso de Corrientes, la inicialmente la visión negativa con nuestros primeros historiadores, que es Manuel Florencio Mansilla y, posteriormente, una reivindicación de la figura de Artigas. En Entre Ríos, sin embargo, si se va dar desde 1881, muy tempranamente, pocos años de la tercera edición de la historia de Manuel Belgrano, de Mitre, se va dar una obra de Benigno Teixeira Martínez que es un historiador español radicado en Entre Ríos que va a reivindicar a la figura de Artigas. Mientras en las otras provincias más alejadas como las del noroeste argentino, el centro, la región de Cuyo, Mendoza, San Juan y San Luis se va a tener una visión negativa de Artigas y, esa visión, inclusive, va ser aplicada a las diferencias internas de las elites provinciales en sectores que se oponen a la política de Buenos Aires van a ser consideradas artiguistas como se artiguistas fuera un adjetivo.

RTL – Sobre o embate entre Buenos Aires e as Províncias, o embate entre unitários e federalistas, que ocorreu a época da formação do Estado argentino, como é tratado por historiadores como Mitre e López, por exemplo?

Quiñonez – Bueno, en principio, las conductas como las de Artigas, digamos, calificadas de antinacionales, y la defensa de la autonomía fueran vistas como actitudes en contra de la organización de la nación, en base la idea de organización que tenia Buenos Aires. Entonces, todos los caudillos federales o los lideres de las provincias fueran vistas como antinacionales. Esa visión es muy clara, fundamentalmente, en López, más que en Mitre, porque, eso es lo que yo decía, que hay algunas cuestiones de la historia nacional que son mas bien aporte de López do que de Mitre, pero la historia se considera esa historia como historia mitrista. La figura de Mitre, en ese caso, es mas fuerte que la de López, pero, sobretodo, digamos, el condenar a las Ligas Federales como antinacionales es una construcción que viene de López. Y eso se va modificando en el siglo veinte con la aparición de nuevos estudios, sobretodo con la figura de Ravignani, que va a rescatar el papel de las provincias desde Buenos Aires y porque no lo hace solamente él. Yo, lo que intentaba explicar en la ponencia, es que muchas de las ideas que aparecen en la obra de Ravignani están presente en historiadores provinciales del siglo XX y, inclusive, de fines del siglo XIX, quizás, así en una formulación muy elementar, pero están presentes. Este historiador de Buenos Aires, Emilio Ravignani, va a rescatar el valor de los caudillos como los representantes de las Ligas Federales, y eso lo hacen en un contexto de crisis del sistema federal que ellos estaban viviendo.

RTL – Finalizando, como está o intercâmbio acadêmico entre historiadores argentinos e brasileiros?

Quiñonez – Yo sé que hay, digamos, trabajos en común, inclusive reuniones de trabajos que se hacen entre universidades del Sur de Brasil y universidades como la de Buenos Aires, por ejemplo. No conozco otros casos, pero en el caso de la universidad la que venimos nosotros, que es la Universidad Nacional del Nordeste, que tiene residencia en Corrientes, el contacto es prácticamente inexistente. Se pudiera firmar convenios y se podría establecer contactos como para que exista una comunicación más fluida entre los investigadores que trabajan sobre temas regionales. Eso pudiera dar lugar también a que los equipos se puedan presentar a las convocatorias de subsidios que hay, porque, o sea, los subsidios están, lo que pasa es que falta los contactos personales. Entonces, estos congresos pueden generar este contacto que está faltando para que se puedan establecer, constituir equipos. Yo creo que es muy importante, a mi, personalmente, me gustaría muchísimo poder tener una serie en la Universidad, la que sé que puedo ir a discutir sobre mi trabajo, independientemente de que esté trabajando cuestiones que tengan que ver con la región y se puede hacer lo mismo allá, que la gente pueda ir allá y que sea algo natural, intercambiar entre Universidades argentinas, sobretodo las del Nordeste, porque somos países que tenemos frontera en contacto, digamos, estamos en contacto y a la vez no lo estamos.

A seguir, a entrevista concedida pela Profª. Drª. Marieta de Morais Ferreira à Revista Tema Livre, realizada no CPDOC, em 28 de dezembro último. Na entrevista, a historiadora fala da sua formação acadêmica, da instalação do curso de história no Rio de Janeiro e da utilização da História Oral, entre outras questões.

Revista Tema Livre – Primeiramente, conte-nos a sua trajetória acadêmica.

Marieta de Morais Ferreira – Bom, eu fiz o curso de graduação em História na UFF e dei seguimento à minha formação acadêmica no programa de Pós-Graduação em história, também na UFF. Primeiro o mestrado e, depois, alguns anos mais tarde, o doutorado, na primeira turma.

Além disto, no começo da minha carreira, trabalhei como praticamente todos os meus colegas na época, na rede pública municipal. Logo que me formei fiz concurso, comecei a dar aula no ensino médio e fiquei alguns anos fazendo isso, mas, logo depois, eu tive a oportunidade de fazer um concurso para ser pesquisadora da Casa de Rui Barbosa, no centro de pesquisa em história, onde eu comecei a trabalhar com a primeira república, história empresarial… Neste período também comecei a dar aula na Faculdade de Filosofia Santa Dorotéia, em Nova Friburgo, para onde levei vários colegas da UFF, e reestruturamos o Departamento de História. Depois, já em 1979, eu vim trabalhar no CPDOC, ficando difícil conciliar essas várias atividades. Saí da Casa de Rui Barbosa, também deixei a Faculdade de Filosofia Santa Dorotéia e o ensino médio na rede pública. Então, aqui no CPDOC, eu fiquei trabalhando com dedicação exclusiva, me dedicando à História Política, que é uma área de pesquisa do CPDOC, com a história do século XX e até a história mais recente.

A minha tese de mestrado tinha sido sobre os Comissários de Café na Província Fluminense, século XIX. Quando eu vim para o CPDOC passei a me interessar mais, até por uma questão de que a instituição me levava a isso, a trabalhar com a História Política. Então, esta passou a ser uma área que se tornou um alvo por excelência da minha atuação. Coordenei um grupo de pesquisa sobre História Política do antigo Estado do Rio de Janeiro, fundei uma linha de pesquisa sobre História Política do Rio de Janeiro e, então, desenvolvi muitos trabalhos nesta área, sempre juntando História Política, História da República e História do Rio de Janeiro.

Passados alguns anos, eu me tornei Coordenadora do programa de História Oral do CPDOC. Aí abriu-se também outra área de trabalho, que era uma coisa que até então eu tinha feito de forma eventual, trabalhar com algumas entrevistas, mas sem ter uma sistemática maior. Quando me tornei Coordenadora, comecei a fazer um investimento grande nesse campo, de discutir as questões da memória, da História Oral, da História do Tempo Presente e, então, essa minha área de trabalho se ampliou, incorporando essas novas temáticas.

Ao lado de ser pesquisadora do CPDOC, também sou professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde eu ingressei em 1986. Desde então eu tenho sido professora lá, trabalhando na Graduação, no Mestrado e no Doutorado.

RTL – A Sra. pode falar da influência francesa na sua atuação acadêmica?

Marieta – Em relação a essa influência da França na minha carreira, eu acho que, efetivamente, a historiografia francesa tem uma presença muito importante aqui no Brasil, e acho que os historiadores franceses possuem uma produção muito interessante, muito inovadora e que realmente têm contribuído para uma atualização, renovação, da historiografia brasileira.

Mas, além disso, tive também uma possibilidade de ter um contato muito interessante quando eu fui para a França fazer o pós-doutorado. Passei um ano lá, na École des Hautes Etudes en Science Sociales, fazendo uma investigação sobre as missões francesas no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, para a criação dos cursos de história. Já há um conhecimento bastante razoável sobre essas missões no caso da USP, que tem figuras destacadas que vieram para colaborar na fundação do curso de História. Mas, para o Rio de Janeiro, havia muito pouca coisa. Fiz uma investigação interessante, destacando o papel de alguns professores franceses como Henri Hauser, Victor Tapié, Albertini, que eram grandes profissionais e que vieram para fundar o curso de História na Universidade do Distrito Federal. Depois, mais tarde, outros vieram para fundar o curso de História na Universidade do Brasil, que antecede a UFRJ. Essa foi também uma experiência bastante interessante.

RTL – E como foi a instalação do curso de história aqui no Rio de Janeiro?

Marieta – Isso ocorreu em 1935, quando, aqui no Distrito Federal, o prefeito Pedro Ernesto, juntamente com Anísio Teixeira, que tinha o papel de algo como secretário da educação, o nome não era exatamente este, criam então a chamada UDF, Universidade do Distrito Federal. Ela era uma Universidade com características muito inovadoras, preocupada em implementar o ensino laico e em formar professores. Então, o Anísio Teixeira vai negociar na França, com a embaixada francesa aqui no Rio, com o Ministério da Educação Nacional na França, a vinda de uma missão para o Rio de Janeiro, que era composta por vários professores, não só para o curso de História, mas também para as outras áreas, como Literatura, Filosofia, Matemática… Enfim, são vários especialistas que vêm, mas eu não me detive em estudar todas as áreas, me fixei fundamentalmente na de História. E foi interessante, porque eu acompanhei a trajetória de alguns professores. Então, são profissionais que não só vão dar aulas, mas também vão orientar sobre a carga horária, quantas horas deve ter cada curso, como deve ser o programa, enfim, é bastante interessante a maneira como isso é formatado.

RTL – Fale-nos sobre o papel do CPDOC como instituição de preservação e divulgação da história, bem como sobre a composição do seu acervo.

Marieta – Bom, o CPDOC é uma instituição que tem 30 anos e foi fundado para receber os chamados arquivos pessoais de homens públicos. Os primeiros arquivos que recebemos foi o de Getúlio Vargas, depois fomos recebendo vários outros arquivos pessoais de figuras que atuaram na chamada Era Vargas. Ministros, parlamentares, secretários de governo… pessoas como, por exemplo, Oswaldo Aranha, Anísio Teixeira, Sousa Costa, José Maria Victer, enfim, todas aquelas figuras que atuaram no período começaram a doar os seus arquivos para cá. E, então, hoje temos aqui um grande acervo, são cerca de dois milhões de documentos que são recebidos a partir da constituição destes arquivos pessoais. A partir da década de 80 o acervo do CPDOC começou a se ampliar e a receber também outros tipos de documentos. Continuava sendo de homens públicos, enfim, é até uma linha que a gente mantém, mas o foco da Era Vargas se ampliou, o Regime Militar de 64 passou a ser também um outro ponto temático para catalisar acervos para serem doados. Então, dentro desta linha, um acervo importante é o do presidente Geisel, também há de outros militares, como Cordeiro de Farias, Muricica, e outras figuras políticas, como Tancredo Neves e Ulisses Guimarães. Depois, mais tarde, recebemos o do Lysâneas Maciel, e acabamos de receber o do Franco Montoro… Então, quer dizer, na verdade, atualmente esse acervo do CPDOC tem cerca de 190 arquivos, que são mais ou menos uns dois milhões de documentos. Esse material é recebido, organizado, catalogado, informatizado e disponibilizado para que o público possa consultá-lo livremente.

RTL – Hoje vive-se o ressurgimento da História Política. A Sra. pode falar, grosso modo, das razões desse ressurgimento e o que corresponde a essa nova História Política?

Marieta – Olha, sobre a História Política, algumas pessoas acham que ela nunca deixou de ter importância ou que ela sempre continuou existindo. Eu já escrevi vários artigos sobre isto, chamando a atenção para esse renascimento, vamos dizer assim, essa renovação, acho que, talvez, a palavra renovação seja mais adequada até que renascimento. Porque, na verdade, ela nunca deixou de ser feita, de ser praticada, só que ela era, primeiro, vista com uma dose de desconfiança e de desvalorização muito grande. E, além da posição pouco valorizada no conjunto da historiografia, ela também enfocava principalmente temas mais tradicionais, de uma maneira igualmente tradicional de produzir e de escrever a História Política. A partir dos anos 80, principalmente 90, houve uma renovação bastante grande nesse retorno da História Política. Isto ocorreu, principalmente na França, mas aqui no Brasil tivemos reflexos nisso e, junto com a História Política, também outras temáticas foram revalorizadas, retrabalhadas, como a questão das biografias, que também era um tema que durante muito tempo foi desvalorizado. Por que? Porque a história que recebia melhor avaliação era aquela que atuava em áreas que privilegiavam a história social, a história das grandes massas, a história dos oprimidos, a história dos chamados de baixo… e, quando a História Política começou a ser retrabalhada, ela começou a fazer também a história política dos vencidos, eu não gosto desta palavra, mas dessas camadas menos privilegiadas, mas, também, a história das elites, que era uma área meio problemática e passou a ser revitalizada. E, também, as biografias, o estudo das biografias coletivas, o estudo da memória política, dos usos políticos da memória, da cultura política, enfim, vários temas novos foram incorporados à História Política. Eu creio que hoje uma área muito interessante para você trabalhar a História Política de uma forma bastante inovadora é com a memória política e com esta questão que está muito em voga dos vultos políticos do passado, então, acho que traz efetivamente uma renovação para o campo.

Eu me lembro que quando eu entrei no doutorado, o meu projeto de ingresso era sobre partidos políticos e aquilo eu tinha um interesse enorme. Fiz uma longa introdução me justificando para dizer como a História Política era importante, como é que você podia estudar a História Política, qual a importância de estudar os partidos e, até algumas pessoas da banca me indagaram por quê eu não ia estudar Ciência Política, por quê eu não ia fazer um doutorado em Ciência Política… E eu disse, não, eu não sou cientista política, e nem quero adotar uma abordagem da Ciência Política. Eu quero adotar uma abordagem da História, e aí trabalhamos História Política dentro de novas perspectivas, com novas abordagens, introduzindo novos conceitos.

RTL – Sobre a História Oral, como é tratada pela academia como fonte de pesquisa para o historiador? Além disto, quais os cuidados que o historiador deve ter na utilização da História Oral, seja no aspecto da seleção dos entrevistados, seja na certificação das informações?

Marieta – Essa questão da História Oral é interessante, porque, para mim, foi uma experiência engraçada. Quando eu comecei a dar aula na Pós-Graduação da UFRJ, eu me lembro de uma das primeiras vezes que eu fui dar um curso sobre História Oral. Mas, como era uma coisa tão problemática entre os meus colegas, eu nem tive coragem de botar este nome, eu coloquei o nome de fontes orais para dar uma disfarçada. Por quê? Porque muitas pessoas falavam comigo, mas como você está mexendo com essa coisa de História Oral, esse negócio de entrevista é tudo fofoca, é tudo mentira… O que está embutido neste tipo de afirmação, neste tipo de avaliação? A crença que tem alguma fonte que fala a verdade. Então, você tem fonte que fala a verdade e tem fonte que fala mentira. Eu acho que isso é uma questão muito problemática, e que na atualidade poucos historiadores ainda mantém esse tipo de perspectiva. Por que o jornal ou os anais da câmara, ou as publicações oficiais, por que elas têm uma maior veracidade do que um depoimento oral? Até mesmo os números, qualquer fonte tem marcas de subjetividade e eu acho que a coisa mais importante é assumir que as fontes têm uma maior ou menor dose de subjetividade e se preparar para lidar com esta questão. Quer dizer, não é fingindo que a fonte não tem a subjetividade que você está garantindo uma maior veracidade nas suas pesquisas e uma maior objetividade. Então, eu acho que a questão é você enfrentar e, principalmente, se você trabalha com as fontes orais, com a História Oral, introduzindo a questão da memória, creio que existem instrumentos para, efetivamente, poder fazer uma avaliação do material. Primeiro, assumindo que qualquer memória ela tem esquecimentos, silêncios, distorções… e cabe ao pesquisador lidar com isto. Interpretar isto. Por que silenciou? Não é porque uma entrevista, um depoimento, ele silencia sobre um fato, que ele deixa de ser útil. Ou porque ele passou uma informação distorcida, ou omitiu alguma informação, ou exagerou na outra, o que você tem que fazer, efetivamente, como, alias, em qualquer fonte, você tem que ter um estudo sobre aquela conjuntura, você tem que ter um aprofundamento sobre a produção historiográfica relativa àquela temática, você tem que ter um conhecimento factual daquela conjuntura, para que efetivamente você possa deter os instrumentos de avaliação daquela fonte, mas isso eu acho que não é só em relação a fonte oral, eu acho que isso é em relação a qualquer outra fonte.

No que diz respeito à seleção dos depoentes, ou aos cuidados que você deve ter, eu acho que, realmente, o pesquisador tem que conhecer o seu campo de investigação. Tendo as suas questões, tendo o conhecimento aprofundado, ele tem como avaliar, estabelecer critérios de seleção, como também se tem que estabelecer critérios de seleção quando se vai fazer uma pesquisa em um jornal, ou quando se vai fazer uma pesquisa quantitativa, tem sempre que se ter critérios para selecionar, para recortar as suas fontes. Então, eu vejo que a História Oral é uma metodologia para, efetivamente, se produzir depoimentos de uma forma controlada sobre determinadas temáticas. Neste sentido, o depoimento que é produzido a partir da metodologia da História Oral é diferente de entrevistas que são produzidas de formas mais aleatórias, sejam entrevistas jornalísticas, sejam entrevistas de um pesquisador sobre uma temática, em que não se lança mão desses procedimentos metodológicos, que dão um conhecimento sobre o depoente, que vai ser entrevistado, sobre a temática sobre a qual ele vai perguntar.

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