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Prof. Dr. Fernando Catroga (Universidade de Coimbra)

Catedrático da prestigiosa Universidade de Coimbra, o Prof. Dr. Fernando Catroga esteve em viagem acadêmica no Brasil e a aproveitar a passagem do pesquisador por Florianópolis, a Revista Tema Livre realizou a entrevista a seguir com o renomado pesquisador. Dentre os assuntos abordados, a utilização política da História e dos seus personagens ao longo dos séculos XIX e XX, bem como do espaço público por diversos regimes para a difusão dos seus ideais, a usar, mais uma vez, o passado.

Revista Tema Livre – Primeiramente, o Sr. pode falar-nos sobre a sua atuação na Universidade de Coimbra?

Fernando Catroga – Em Coimbra, sou professor catedrático, que corresponde, aqui, no Brasil, a professor titular. Também sou diretor do curso de doutorado sobre História Contemporânea e Relações Internacionais, bem como diretor da Revista de História das Ideias. É uma publicação anual, temática (cada número contém cerca de quinhentas páginas) e que sai desde 1977. Também me licenciei e doutorei na Universidade de Coimbra.

RTL – Como que ocorreu, no século XIX, durante a construção do Estado Nacional, a utilização da história de Portugal, dos descobrimentos e do Império português, além de personagens como Camões, Vasco da Gama e o Infante D. Henrique?

Catroga – Esse tem sido um dos campos que eu mais tenho estudado. Publiquei um pequeno ensaio, que teve uma edição aqui no Brasil, sobre memória, história e historiografia, que é o produto de reflexões teóricas que estiveram em conexão com essa minha investigação, sobre aquilo a que chamei “ritualizações da história”. Este trabalho pretendeu analisar o modo como o Estado-Nação português – em consonância com o que, no decurso do século XIX, vinha ocorrendo em outros Estados-Nação europeus – utilizou seletivamente o passado para o pôr ao serviço da refundação de uma memória nacional, projeto por sua vez indissociável da ideia de Império e das ameaças que sobre ele pairavam.
Para isso, levei em conta esta constatação: a acuidade que, também no espaço europeu, ganhou o chamado princípio das nacionalidades, expressa em lutas de libertação ou de refundação nacionais e em choques com imperialismos e hegemonias vários. Na verdade, havia regiões em que, sob a liderança da mais forte, se desencadearam processos de unificação e de construção de grandes Estados-Nação.
Os melhores exemplos serão os casos de Itália e Alemanha. Também havia regiões dentro de Estados-Nação, construídos ou em construção, em que surgiram movimentos tendentes à conquista da independência política. Para Portugal, nenhum destes modelos se aplicava, devido à sua velha de unidade lingüística e fronteiriça, assim como à existência de alguma centralidade do poder que já vinha do absolutismo. Em suma: Portugal não formava uma “nação cultural” à procura de ser um Estado, tarefa imposta pela onda das revoluções destruturadoras da ordem das sociedades de Antigo Regime. Em direta ligação com a crise do Império – como o caso do Brasil tinha começado a revelar –, necessitava-se de uma nova ideia de nação, que era, no fundo, um retomar mítico de algo que se teria perdido. Daí que tenha ganho relevo um processo, já bem visível na revolução liberal de 1820 (e não cem anos depois, como alguns defendem), a que tenho chamado refundação nacional (e imperial).
Com efeito, estas transformações arrastaram consigo a questão colonial (problema estrutural que se agudizará ainda mais nas últimas décadas do século XIX, durante a I Guerra Mundial e, depois, a partir da década de 1950). Ao mesmo tempo ditaram o aparecimento, ou o desenvolvimento, de uma forte consciência de decadência que, para alguns, já vinha de trás, particularmente do século XVIII, mas fora acentuada em Oitocentos. Sendo assim, não foi por acaso que, desde 1820, à esquerda ou à direita, todas as revoluções políticas portuguesas (a republicana de 1910, a do Estado Novo salazarista, a do 25 de abril de 1974) se apresentaram como “regeneradoras” e como portadoras do “novo”. O mesmo se pode afirmar acerca dos movimentos inteletuais e das revoluções culturais que estes queriam fomentar, desiderato que ganhou uma maior visibilidade com a Geração de 70.
De fato, foi assim com a primeira geração romântica, aquela que tinha participado na luta contra o absolutismo (Almeida Garrett, Alexandre Herculano). Mas, sobretudo a partir dos meados da década de 1860, começou-se a questionar a capacidade regeneradora da revolução liberal e surgiram programas de cariz republicano e socialista, em sintonia com as alterações que iam ocorrendo na Europa, emblematicamente consubstantaciadas na luta pela unidade italiana, na contestação ao anti-modernismo de Pio IX e às decisões do Concílio Vaticano I, no fascínio exercido pela recém formada Associação Internacional dos Trabalhadores, bem como no entusiasmo criado pelo eco dos acontecimentos da Comuna de Paris (1871). E tudo isto aparecia filosoficamente condicionado por múltiplas influências, que iam de um hegelianismo aprendido em traduções francesas a Vitor Hugo, Michelet, Quinet, Renan, Strauss, mas passavam também por Proudhon e por Comte e seus discípulos heterodoxos ligados ao magistério de Littré, etc. O desfecho dos avanços e recuos da revolução liberal estaria a saldar-se num constitucionalismo monárquico de orientação conservadora, aristocrático-burguesa e centralista, regime que, paulatinamente, foi criando a burocracia necessitada por esse tipo de Estado e uma base de apoio assente no caciquismo. Para os reformistas, tudo isto mostrava que o melhor da revolução tinha sido traído e que, contra a decadência, se impunha pugnar por uma nova revolução cultural, política e social.
Por outro lado, a Monarquia Constitucional, sendo um sistema misto, não podia reforçar o consenso somente em função do estatuto sacro-carismático da poder moderador do rei, pois o princípio monárquico coexistia com o princípio nacional. O que requeria a socialização de sentimentos inclusivos, polarizados pelas novas ideias cívicas e pactuais de indivíduo, pátria e nação, e não tanto por fidelidades de cunho pessoal.
Todos os Estados-Nação, a fim de cimentarem as novas sociabilidades políticas centradas no indivíduo-cidadão, segregaram a produção de mitos, símbolos, ritos de vocação consensualizadora e comunitarista e prometeram que o país tinha um destino inegualável a cumprir. E tudo isto era apresentado como mimético e sucedâneo em relação às práticas religiosas propriamente ditas. Rousseau chamou-lhes “religião civil”, mas outros preferem designá-los por “religião política”. Por ela se dava um complemento sentimental ao modo racionalista de justificar os ordenamentos políticos que, explícita ou implicitamente, buscavam legitimar o novo contrato social. Perceberam-no não só Robespierre e as revoluções liberais (os vintistas portugueses e brasileiros falavam na celebração de um novo contrato social), mas também todo o romantismo social, nomeadamente Augusto Comte, com a sua teorização da religião da humanidade e, em particular, do culto dos grandes homens e dos grandes acontecimentos que deviam ser revivificados, como exempla, através de ritos comemorativos dos respectivos centenários. Porém, o que, na letra do positivismo, foi iluministicamente apresentado como um porte cosmopolita, será nacionalizado pelas novas políticas da memória levadas a cabo nas últimas décadas do século XIX e durante boa parte do seguinte.
Reconhecia-se, assim, a importância do sentimento, não só ao nível subjetivo, mas também social, para a religação dos indivíduos a um sujeito coletivo, crescentemente entificado, chamado nação. E, na linha do magistério do romantismo alemão (Herder), mesmo que mitigado, falava-se de “alma”, de “índole”, de “idiossincrasia” do povo, ou, o que vai ser mais frequente, da nação. E os inteletuais auto-proclamam-se como os grandes reveladores desta essência nacional, que urgia ser ressuscitada e secularizada, devido ao anterior papel desempenhado pelo catolicismo na justificação dos mitos identitários, a começar pelo mito fundacional, em curso desde os inícios do século XV, centrado no aparecimento de Cristo ao primeiro rei de Porugal na batalha de Ourique contra os mouros.
Quer isto dizer que a fundamentação e cimentação dos Estados-Nação europeus não será devidamente compreendida se não se perceber que as justificações de teor racionalista (bem expressas na valorização dos direitos naturais do homem e do cidadão) estavam acompanhadas por argumentos e práticas de cariz mítico-simbólico, criados ou reinventados, e que estes não dispensavam o enraizamento histórico. Temos defendido que esse racionalismo estava geminado com legitimações de cunho historicista. Neste pano de fundo comum estrutural, o específico de cada mitologia nacional dizia somente respeito à escolha das origens (mais distantes, ou mais próximas), aos momentos que a retrospetiva selecionava como de apogeu e, consequentemente, ao grau da sua decadência, ou não, bem como à capacidade de cumprimento do desígnio nacional, mas de dimensão universal, que a história de cada povo, com avanços e recuos é certo, patentearia no concerto das nações.
Observe-se, porém, que tais evocações (e invocações) não se queriam passadistas. Elas exploravam a mais valia que uma certa leitura do passado podia oferecer aos interesses do presente, de modo a substituir-se ou a reformular-se o campo simbólico construído por séculos de Antigo Regime e por uma cultura senhorial assente na aliança entre o trono e o altar. Como alternativa, visava-se criar simbologias e mitologias adequadas às necessidades do Estado-Nação.
Este tipo de simbolização punha em cena uma “gramática” construtora do sentido do devir de cada povo. Não por acaso, contudo, a sua narrativa não se distanciava muito do sentido da história descrita por outras linguagens igualmente empenhadas na consolidação de uma nova memória nacional, fosse a da literatura, fosse a da nova historiografia, fosse a inscrita nas políticas de urbanização e plasmadas, sobretudo, na estatuária, na toponímia e em outros “lugares de memória”. Por isso, também em Portugal – e não é um fenômeno específico –, os grandes inteletuais dos primórdios do liberalismo foram jovens historiadores e escritores apostados em “nacionalizar”a interpretação da história e da cultura pátrias. Foi o caso do Almeida Garrett (o introdutor da poesia romântica em Portugal, cronista-mor do reino, ainda que durante pouco tempo, e criador do Teatro Nacional), e o de Alexandre Herculano, o primeiro grande historiador moderno português e cujo objeto de investigação não consistia na vida dos reis mas na do povo, ou melhor, na da nação, particularmente no seu período modelarmente fundador: a Idade Média. E, não por mera coincidência, ele também foi (finais da década de 1840) um dos principais demolidores da sustentabilidade histórica do milagre da batalha de Ourique, que teria ocorrido quando, em 1139, Cristo terá aparecido a Afonso Henriques em luta desigual contra cinco reis mouros.
Não deve surpreender esta ligação entre historicismo e racionalidade. Vendo bem as coisas, as nações necessitavam de legitimações de cariz narrativo, capazes de dar coerência, tanto retrospetiva como prospetiva, a um acreditado desígnio nacional. No caso português, porém, após a valorização romântica da Idade Média feita pelos liberais, essa filiação teleológica deixou de estar ancorada num mito fundacional. Investiu-se, sobretudo, num grande mito refundacional, enaltecido como o grande momento de apogeu da nação portuguesa: os Descobrimentos. Afirmo mesmo que, após os anos de 1870, este período passou a ser o eixo vertical a partir do qual se organizou, qualitativamente, a narrativa da história pátria: a fase anterior, que, desde D.Afonso Henriques a D. João I, era tida como preparatória e ascensional; e a posterior, que, com o absolutismo, a Inquisição e o tipo de economia gerado pela colonização, teria dado origem a um longo ciclo de decadência, estado que a revolução liberal, apesar das suas promessas regeneradoras, não tinha conseguido superar. A convocação do passado seria lenitivo revivescente para o presente. Explica-se, assim, que a consubstanciação dessa Idade de Ouro se desse na figura de Camões, como o investimento posto na passagem do centenário da sua morte bem demonstra.
É certo que, antes desta data, o poeta não estava esquecido na cultura portuguesa e no horizonte quase mítico das suas elites culturais. A sua revalorização ganhou um novo impulso na conjuntura da revolução liberal (Domingos Bomtempo, Garrett). Mas, a partir da década de 1860 e seguintes – aqui, já sob a influência positivista do culto dos “grandes homens” –, essa sacralização cívica foi inscrita num conjunto de práticas ritualistas empenhado na comemoração dos Descobrimentos e no fomento do contraste entre esse período, narrado como áureo, e a decadência do presente. E isso também permitia que, contra um certo darwinismo social subjacente à justificação da política das novas grandes potências, fossem relembrados direitos históricos que outros punham em causa, como mais explicitamente ficará patente na célebre conferência de Berlim (1885) e no decurso da comoção nacional provocada pelas exigências britânicas em relação a Moçambique (Ultimatum de 1890). Assim, não foi por acaso que do seio dos protestos anti-britânicos nasceu a canção A Portuguesa, hino que, vinte anos depois, será elevado pela revolução republicana de 5 de outubro de 1910 a “hino nacional”. Estatuto que o estado Novo não pôs em causa e que ainda hoje se mantém. Significativamente, começa deste modo: “Heróis do mar, nobre povo,/ nação valente, imortal,/ Levantai hoje de novo/O esplendor de Portugal!”.
Podemos dizer que foi sob o impulso de um regeneracionismo inseparável da manutenção do Império que se consolidou a nova “religião civil” portuguesa. Foi seu instrumento de propaganda a realização de festas cívicas, iniciativas que, porém, traziam para a rua um sentido da história narrado por outras linguagens e, em primeiro lugar, as do sistema educativo e, principalmente, a dos seus manuais de educação cívica e histórica. E as figuras didáticas eleitas (silenciando-se outras) só podiam ser personagens como Camões (grande poeta, mas também o grande cantor dos Descobrimentos), Vasco da Gama, Infante D. Henrique, Pedro Álvares Cabral, etc. É verdade que, numa conjuntura de agudização da questão religiosa, também não se esqueceu o Marquês de Pombal (1882). Contudo, o que se visava era a mobilização da história, ou melhor, de uma certa leitura histórica, para a defesa de direitos adquiridos na Índia e, sobretudo, em África. Daí o empolamento das comemorações em honra de Camões (1880), do Infante D. Henrique (1884), da viagem de Vasco da gama à Índia (1898-1899) e a relativa secundarização, em 1900, do centenário da chegada de Pedro Álvares Cabral a terras a que chamará Vera Cruz.
Para isso, procurava-se promover práticas congregadoras, capazes de inocularem nas massas sentimentos de autoestima e de coesão. Dir-se-á que, com esta mobilização exploradora do campo simbólico, se pretendia compensar a debilidade política e militar de Portugal face aos avanços coloniais das grandes potencias europeias da época. Com tais manifestações, evocadoras e invocadoras, desejava-se criar contrastes com a decadência do presente, mas, para, simultaneamente, se tonificar a vontade coletiva e, consequentemente, se realizar, como se dizia na linguagem da época, uma revivescência nacional. E, como a população era esmagadoramente analfabeta (cerca de 80 por cento), os espetáculos, como outrora o das catedrais góticas, foram montados mais para serem vistos e sentidos do que lidos e pensados.
Quanto às conexões deste ritualismo cívico com a religião propriamente dita, pode sustentar-se que esta tinha uma fraca presença. Aliás, os meios da igreja viram nestas festas efeitos da secularização das sociedades contemporâneas e pretensões de concorrência com as manifestaçãoes do catolicismo. E, numa espécie de contraresposta sentiram ser necessário utilizar a sua linguagem na controversa promoção do centenário de Santo António, em 1895.
Ainda gostava de dizer que esta galeria de heróis terá uma longa vida, embora, devido à sobre-exploração que, depois, o Estado Novo fará dela, se tenha instalado o convencimento, sobretudo nas gerações formadas na luta contra a Ditadura, de que a sua génese foi uma invenção do salazarismo. O que é um erro, porque toda esta mitologia acaba por ser transversal aos regimes políticos que se sucederam desde fins do século XIX até a revolução democrática de 1974.
É verdade que, no decurso da Monarquia Constitucional e da I Repúlica (1910-1926), a promoção de tal cultualismo e das suas expressões iconográficas esteve muito dependente de iniciativas da sociedade civil (grupos de inteletuais, associações culturais e escolares, estudantes), às quais só posteriormente o poder político se juntava, com uma espécie de contributo supletivo (frequentemente, vindo de receitas de edições filatélicas especiais). E esta relativa autonomia possibilitou que, em certas conjunturas, as manifestações se tivessem saldado a favor da forças que se opunham ao governo então em exercício. Exemplo: os republicanos foram os grandes beneficiados com o sucesso das festas comonianas em 1880. Contudo, com o Estado Novo, assistir-se-á a uma maior estadualização destes espetáculos e à sua integração numa planificada e totalizadora ação de propaganda nacional, ou melhor, nacionalista, para a qual foi criada, logo nos inícios da década de 1930, uma secretaria que se dedicava à “política do espírito” e que trabalhava diretamente na dependência de Salazar.
Seja como for, o núcleo duro dessa hagiografia cívica revela uma assinalável longevidade. A única diferença, no que às mudanças de regime diz respeito, encontra-se no maior destaque dado a certas figuras em detrimento de outras, assim como na mais estreita e tradicionalista ligação do cultualismo historicista com o catolicismo e com os valores antiliberais. De fato, com o nacional-catolicismo do regime autoritário, foi incrementada uma militante catolicização da religião civil, sem que isso tenha significado, porém, a diluição do Olimpo e dos ritos comemoracionistas, em vigor desde as últimas décadas so século XIX. Quando muito, assistiu-se, quer a uma ainda maior sobrevalorização da gesta dos Descobrimentos e da ideia de Império, quer ao regresso da fundamentação explicitamente providencialista da missão de Portugal no mundo.

RTL – O Sr. pode falar sobre a utilização destas figuras históricas durante o Estado Novo português e, também, no período posterior ao 25 de abril?

Catroga – O que acabei de dizer mostra que apresento o Estado Novo como herdeiro da mitologia nacional-imperial socializada nas últimas décadas da Monarquia Constitucional e durante a República. Património que foi integrado num ideário antiliberal, antidemocrático e de recatolocização de uma cultura que os regimes anteriores teriam secularizado em excesso. Isto é, tanto a sua releitura como o destaque que será dado dado a “heróis” até aí secundarizados, passaram estar ao serviço da ideia de dilatação da Fé e do Império e, portanto, inseridos numa propaganda cruzadística, em que a histórica diabolização do Oriente, aparece agora protagonizada pelo perigo comunista. E o mesmo se fez em relação à sacralidade da origem, que a crítica do século XIX tinha descredibilizado. Refiro-me ao mito do milagre de Ourique e, sobretudo, à tentativa para se beatificar e se heroicizar o primeiro rei de Portugal. Recorde-se que, ao contrário, em 1885, a comemoração do oitavo centenário da sua morte foi irrelevante quando comparada com os “préstitos cívicos” promovidos na mesma conjuntura para se glorificar Camões (1880) e o Marquês de Pombal (1882).
Análoga revalorização foi dada a outros símbolos fundadores e refundadores. Foi o caso de Viriato, pouco enaltecido nos finais do século XIX (está somente representado por uma pequena estátua no Arco da Rua Augusta, na “baixa” de Lisboa, no Terreiro do Paço, monumento só inaugurado nos princípios dos anos de 1870). A defesa da perenidade da nação casava-se bem com a mitificação dos lusitanos, bem como com os argumentos etnoculturais que os ideólogos do Estado Novo lançavam contra as teses contratualistas e voluntaristas acerca da origem da sociedade política e da nação.
Nuno Álvares Pereira foi uma outra personagem que viu a sua fama crescer com o avanço, ainda na I República, das forças conservadoras. Com os olhos postos no exemplo da direita francesa (Joana D’Arc), foi lançado um movimento tendente a canonizar o general de D. João, Mestre de Avis, tanto mais que ele, depois da vitória das tropas portuguesas sobre as castelhanas em 1385, recolheu a um convento. O militantismo desta cruzada será absorvido pelo Estado Novo, período em que o beato – na altura em que falo está iminente a sua canonização pelo Vaticano – foi promovido a patrono da arma de Infantaria e a uma das figuras tutelares da chamada Mocidade Portuguesa, organização masculina e feminina que, fundada em 1936-1937 com os olhos postos no seu modelo italiano e de outras experiências autoritárias, visava militarizar a juventude portuguesa.
Como não há política da memória sem uma correlata política do esquecimento, outros, anteriormente evocados, foram olvidados, ou, então, relegados para uma espécie de purgatório cívico. Não os ligados aos Descobrimentos, mas sobretudo os que significavam valores irrecuperáveis pelo Estado Novo: o anticongreganismo, o anticlericalismo, a modernidade, em suma.
De entre todos, deve destacar-se os avanços e os recuos do enaltecimento da figura e obra do Marquês de Pombal. O salazarismo teve, em relação a elas, uma leitura ambígua. Por um lado, a dimensão absolutista do ministro de D. José I parecia compaginar-se bem com o regime autoritário. Mas, a sua política iluminista e anti-jesuítica colidia com os interesses da aliança do Estado Novo com a Igreja. Prova-o o acontecido com a inauguração da estátua do Marquês de Pombal, em Lisboa, hoje uma das mais imponentes da cidade, colocada no topo da Avenida da Liberdade. A ideia nasceu em 1882, e a pedra fundacional foi colocada no mesmo ano. Para o efeito, houve várias comissões no período da Monarquia e da República, mas, por razões várias, só nos finais deste último regime se reuniram as condições materiais para, finalmente, se erguer monumento. A sua inauguração, porém, far-se-á já sob o Estado Novo (o que criou um grande incómodo às novas autoridades, precisamente porque o Marquês não era uma figura que se adequava bem à mitologia que o regime de Salazar queria dar continuidade). O salazarismo preferia os grandes heróis que vinham dos Descobrimentos, política igualmente concretizada, nas décadas de 1930-1950, por uma significativa estatuária de praça pública. Em simultâneo, também foi dado um maior relevo aos mitos fundacionais e refundacionais mais apropriáveis pela apologética católico-nacionalista.
A melhor síntese da forma como o regime reelaborou a herança e a vasou na linguagem ritual e simbólica da religião civil (agora mais catolicizada) encontra-se na comemoração do Duplo Centenário (1940) que levou a cabo. Por elas se pretendia evocar a origem da nacionalidade – convencionalmente colocada em 1140 – e a restauração da sua independência face ao domínio catelhano, em 1640. Mas, quer os cortejos cívicos, quer a exposição do “mundo português”, quer os inúmeros congregressos então realizados, foram montados para que tudo funcionasse como um espetáculo de massas, que pudesse ser lido como o livro da história de um povo imbuído de uma missão providencial. Por conseguinte, não deve admirar que os acontecimentos invocados estivessem ao serviço da apoteose da ideia de Império, bem como da nova restauração-regeneração que o Estado Novo estaria a realizar, depois de séculos de decadência. E, com a política monárquico-liberal e republicana, ter-se-ia agudizado tanto que, antes de 28 de Maio de 1926, Portugal estaria à beira de definhar. Sendo assim, o subliminar herói de toda a história contada pelas comemorações foi Salazar, espécie de ponto de chegada de uma filiação que havia começado em Viriato e, sobretudo, em D. Afonso Henriques, passado por Nuno Álvares Pereira, Infante Santo, Infante D. Henrique, D. João II, e que estaria finalmente a ser consumada.
Concluindo: não será errado afirmar que o cerne da mitologia nacional foi organizado à volta da aventura dos Descobrimentos e das suas consequências. E, para reforçar esta tese, basca analisar algo que é comum a todas as religiões civis dos Estados-Nação: os chamados “dias nacionais”.
O de Portugal é o dia de Camões, um produto do eco das comemorações de 10 de junho de 1880. Como “dia da Raça”, foi feriado nacional nos últimos anos da I República. Porém, foi o Estado Novo a estabelecê-lo de uma maneira continuada. Ora, se compararmos com o caso francês, nota-se a diferença: o “dia” gaulês referencia um acontecimento político – a Tomada da Bastilha, a 14 de julho. Pergunta-se, porquê este evento? Poderia ser qualquer outro da Revolução Francesa. Bem, a III República francesa escolheu-o, nos inícios dos anos de 1880, por causa de um pretenso cariz popular que seria mais enquadrável nos valores republicanos.
Diferentemente, Portugal é um dos poucos países em que o dia da nação parece rememorar um poeta. Nós temos que perguntar porquê, pois será limitado pensar-se que se trata de uma homenagem eivada de romantismo literário. Escolheu-se Camões porque a sua épica foi interpretada como a da gesta de um povo e da sua maior obra: os Descobrimentos. Diria que havia a consciência de que esta política da memória teria uma capacidade mais consensualizadora do que uma outra que explorasse datas ou figuras políticas. E este culto é anterior à Ditadura, incluindo a sua qualificação como “dia da Raça” em 1924. Todavia, a Ditadura em 1929 e, depois, a sua transformação em Estado Novo foi o regime que o institucionalizou como feriado nacional, consagrando o 10 de junho como “dia da Raça, de Portugal e de Camões”.
Saliente-se que os revolucionários do 25 de abril de 1974 sentiram alguma incomodidade com essa tradição. E tomaram medidas para que o 10 de junho fosse exclusivamente dedicado a Camões, enquanto o novo feriado, que iria celebrar o 25 de abril, homenagiaria o “dia da Pátria”. Porém, a inovação durou somente dois ou três anos. Os protestos e o refluxo revolucionário conduziram à situação atual: o 25 de abril é o “dia da Liberdade” e, o 10 de junho, o de “ Portugal, de Camões e das Comunidades”. Modo de relembrar, já não o Portugal imperial, mas o das diásporas, das imigrações, e de se apelar para uma ideia de comunidade compatível com a era pós-colonial em que se entrou depois da revolução. No entanto, a mitologia anterior não se extinguiu. Diria que ele sobrevive, mesmo quando já não existe a realidade que condicionou a sua emergência.
Há alguns anos, um jornal, aquando da passagem do vigésimo aniversário da revolução de 1974, fez um inquérito a algumas centenas de militares que, diretamente, estiveram envolvidos no derrube da ditadura. Procurava-se saber o que é que eles pensavam não só sobre temas da atualidade, mas também sobre personagens e acontecimentos históricos. Ora, quanto a este último assunto, as respostas indiciam um claro apego à mitologia nacional que povoa o panteão português desde as últimas décadas do século XIX.

RTL – Para finalizar, o Sr. pode falar sobre a presença destes personagens históricos no espaço público português?

Catroga – Houve uma reinvenção ou apropriação seletiva dos momentos altos do passado, para que as suas representificações pudessem funcionar como lenitivo para o presente. Aliás, em Portugal, no século XIX, os teorizadores destas questões utilizavam uma expressão muito interessante: ia-se ao passado para se criar um clima de “revivescência” nacional. Atitude que remete para uma visão qualitativa e seletiva do tempo. Todavia, não se pode esquecer que ela implicava uma demarcação qualitativa do espaço, traçando “altares da Pátria” e outros “lugares de memória”. Todos os Estados-Nação o fizeram, instituindo panteões, personalizando a toponímia, levantando monumentos no espaço público, mitificando lugares (exemplo portugueses: Sagres, a Torre de Belém, os Jerónimos – onde repousam os restos mortais de Camões e de Fernando Pessoa –, Mosteiro da Batalha, lugar de culto não só da memória de Aljubarrota, mas também do “Soldado Desconhecido”).
Também em Portugal se viveu, sob impacto francês, uma onda de “estátuomania” nos finais do século XIX. Mas se, como disse, essa foi a época da consagração dos heróis ligados à memória dos Descobrimentos, o mesmo não aconteceu ao nível da estatuária. É certo que a de Camões foi a primeira a ser inaugurada (1867). Porém, as demais, ou cultuaram as grandes figuras do movimento liberal ( D.Pedro I, Saldanha, Terceira, Joaquim António de Aguiar, José Estevão), ou surgiram impulsionadas por comemorações de centenários, embora com atos inaugurais bem posteriores (Marquês de Pombal, Guerra Peninsular, Restauradores).
Uma outra campanha monumentalizadora marcante do espaço público iniciou-se nos primeiros anos da década de 1920 e estendeu-se pelas seguintes. Teve a ver com a “internacional do luto” formada para se responder ao trauma provocado hecatombe provocada pela I Guerra Mundial e que atravessou todos os países que nela estiveram envolvidos. Traduziu-se, entre outras iniciativas, no levantamento de estátuas nas principais cidades e vilas do país, comummente dedicadas à memória dos que morreram pela pátria.
Como disse atrás, data da década de 1930 o fomento da estatuária que privilegiava a temática dos Descobrimentos. Ela será colocada em sítios nobres (como, em Lisboa, a de Pedro Álvares Cabral, oferecida pela colónia portuguesa do Brasil), mas, sobretudo, nas terras descobertas (Açores e Madeira), na terra natal dos navegadores, ou nos locais de embarque das viagens marítimas.
Quanto a este último lugar, merece particular destaque a implantada próximo da Torre de Belém, formada por um conjunto de figuras que tem como timoneiro o Infante D. Henrique. A primeira versão deste monumento foi feita, em gesso, para a Exposicão do Duplo Centenário. Mas agradou tanto a Salazar que este decidiu a sua reprodução em pedra e a sua implantação no lugar mítico da memória imperial. Referimo-nos aos Jerónimos e à sua envolvência, urbanizada quando ocorreu o centenário da Índia e sintomaticamente baptizada com o nome de “Praça do Império”, onde, nos inícios do século XX, foi instalada a estátua de Afonso de Albuquerque.
Este sítio de Lisboa tinha sido o epicentro das festas cívicas em honra de Camões e de Vasco da Gama e da chegada à Índia. E voltará a ser o grande cenário das comemorações do Duplo Centenário em 1940. No do 5º centenário da morte do Infante D. Henrique, em 1960 – acontecimento que teve como convidado de honra o Presidente do Brasil, Juscelino Kubitschek de Oliveira – o espaço mais enfatizado foi Sagres, apesar da historiografia não avalizar a existência da célebre “escola”, que teria sido liderada pelo Infante D. Henrique. Mas, o que é que aconteceu quando, a partir de 1980, se repetiu o ciclo comemorativo impulsionado um século antes, agora num contexto em que a democratização do país tinha arrastado consigo a descolonização em África e, consequentemente, o fim do Império? Poderia haver comemorações ainda imbuídas de historicismo imperial, quando o novo regime tinha sido o da descolonização?
Para responder, lembremos que, embora em moldes diferentes, a evocação dos mesmos “grandes homens” e dos mesmos “grandes acontecimentos” voltou a repetir-se um século depois. E recordemos o que, na mesma conjuntura, aconteceu com a Expo 98, realizada em Lisboa. Em primeiro lugar, no ano do centenário da viagem de Vasco da Gama, ela constituía uma resposta político-simbólica às festas promovidas em Sevilha, em 1992, pelo governo espanhol em memória de Colombo. Em segundo lugar, numa fase pós-colonial, parecia não haver mais cabimento para a retórica das comemorações anteriores. Também aqui o próprio termo “descobrimentos” deu lugar a uma expressão politicamente mais correta: “encontro de culturas”. E a temática da exposição foi dedicada aos oceanos e à sua importância ecológica e comunicacional para a vida dos povos, domínio em que os portugueses teriam sido pioneiros. Mas, o velho conteúdo não deixou de ser insinuado, nem que fosse como metáfora, como se pode ilustrar através da conotação que se quis dar à grande obra pública que rematou a urbanização daquela zona oriental de Lisboa (como, um século antes, se tinha feito para a zona dos Jerónimos) em que se implantou a Exposição. Falamos da nova ponte sobre o rio Tejo, levantada na área, e do significado do nome oficial que recebeu: Vasco da Gama! Mais uma prova de que os mitemas que dão autoestima ao sentido das histórias nacionais não estão mecanicamente dependentes das condições materiais que lhes deram origem.

 

 

 

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Prof.ª Dr.ª María Gabriela Quiñonez (Universidad Nacional del Nordeste, Argentina)

A historiadora argentina María Gabriela Quiñonez, da UNNE (Universidad Nacional del Nordeste), apresentou no VI Encontro da ANPHLAC (Associação Nacional de Pesquisadores de História Latino-Americana e Caribenha), em Maringá, no Paraná, a palestra “Las elites locales y la construcción de una historia nacional: visiones alternativas y argumentos reivindicatorios en las primeras historias provinciales de la Argentina, 1870 – 1910”.

Aproveitando a estada da pesquisadora em Maringá, a Revista Tema Livre realizou a entrevista que consta a seguir, concedida no último 23 de julho.

Revista Tema Livre – Primeiramente, qual o tema da palestra que a Sra. proferiu hoje?

María Gabriela Quiñonez – La ponencia que yo presenté tiene que ver con las elites provinciales y la formación, la construcción de la historia nacional en Argentina y como esas historias que se creo en las provincias en el siglo XIX lo que intentan es lograr la reivindicación de la provincia. Las provincias se han considerado como protagonistas de la historia argentina frente a una historia nacional que esta fundamentalmente centrada en los acontecimientos de Buenos Aires, donde elige el estruturador del relato y lo constituye Buenos Aires y el gobierno central que actuaron allí. Este sería el tema.

RTL – A figura de Artigas é retratada de que maneira na historiografia que a Sra. teve contato?

Quiñonez – Bueno, con respecto a la figura de Artigas, lo que yo trato en la ponencia es el como se transmite ese proceso a través de los manuales escolares en el sistema educativo y, fundamentalmente, el hecho que esos manuales están basados en la tradición liberal. Inicialmente generada por Mitre y por López, la visión de Artigas es totalmente negativa. Mitre, a lo largo de su obra, intenta, digamos, hacer que los otros caudillos argentinos que estuvieron vinculados con Artigas intenten incorpóralos a la historia nacional, a la historia argentina. No así la figura de Artigas. Prácticamente en todos los manuales de historia nacional que se utilizaron en la Argentina hasta la década del 60 la figura de Artigas sigue siendo la del gaucho insolente, disolvente, ante-nacional, separatista, y esa misma imagen, domina la historiografía nacional argentina es la que se reproducen los espacios provinciales de las provincias más alejadas, digamos, de Buenos Aires, geográficamente, no así en el litoral. En el litoral se va dar, como lo que decía María Silvia Leoni, en el caso de Corrientes, la inicialmente la visión negativa con nuestros primeros historiadores, que es Manuel Florencio Mansilla y, posteriormente, una reivindicación de la figura de Artigas. En Entre Ríos, sin embargo, si se va dar desde 1881, muy tempranamente, pocos años de la tercera edición de la historia de Manuel Belgrano, de Mitre, se va dar una obra de Benigno Teixeira Martínez que es un historiador español radicado en Entre Ríos que va a reivindicar a la figura de Artigas. Mientras en las otras provincias más alejadas como las del noroeste argentino, el centro, la región de Cuyo, Mendoza, San Juan y San Luis se va a tener una visión negativa de Artigas y, esa visión, inclusive, va ser aplicada a las diferencias internas de las elites provinciales en sectores que se oponen a la política de Buenos Aires van a ser consideradas artiguistas como se artiguistas fuera un adjetivo.

RTL – Sobre o embate entre Buenos Aires e as Províncias, o embate entre unitários e federalistas, que ocorreu a época da formação do Estado argentino, como é tratado por historiadores como Mitre e López, por exemplo?

Quiñonez – Bueno, en principio, las conductas como las de Artigas, digamos, calificadas de antinacionales, y la defensa de la autonomía fueran vistas como actitudes en contra de la organización de la nación, en base la idea de organización que tenia Buenos Aires. Entonces, todos los caudillos federales o los lideres de las provincias fueran vistas como antinacionales. Esa visión es muy clara, fundamentalmente, en López, más que en Mitre, porque, eso es lo que yo decía, que hay algunas cuestiones de la historia nacional que son mas bien aporte de López do que de Mitre, pero la historia se considera esa historia como historia mitrista. La figura de Mitre, en ese caso, es mas fuerte que la de López, pero, sobretodo, digamos, el condenar a las Ligas Federales como antinacionales es una construcción que viene de López. Y eso se va modificando en el siglo veinte con la aparición de nuevos estudios, sobretodo con la figura de Ravignani, que va a rescatar el papel de las provincias desde Buenos Aires y porque no lo hace solamente él. Yo, lo que intentaba explicar en la ponencia, es que muchas de las ideas que aparecen en la obra de Ravignani están presente en historiadores provinciales del siglo XX y, inclusive, de fines del siglo XIX, quizás, así en una formulación muy elementar, pero están presentes. Este historiador de Buenos Aires, Emilio Ravignani, va a rescatar el valor de los caudillos como los representantes de las Ligas Federales, y eso lo hacen en un contexto de crisis del sistema federal que ellos estaban viviendo.

RTL – Finalizando, como está o intercâmbio acadêmico entre historiadores argentinos e brasileiros?

Quiñonez – Yo sé que hay, digamos, trabajos en común, inclusive reuniones de trabajos que se hacen entre universidades del Sur de Brasil y universidades como la de Buenos Aires, por ejemplo. No conozco otros casos, pero en el caso de la universidad la que venimos nosotros, que es la Universidad Nacional del Nordeste, que tiene residencia en Corrientes, el contacto es prácticamente inexistente. Se pudiera firmar convenios y se podría establecer contactos como para que exista una comunicación más fluida entre los investigadores que trabajan sobre temas regionales. Eso pudiera dar lugar también a que los equipos se puedan presentar a las convocatorias de subsidios que hay, porque, o sea, los subsidios están, lo que pasa es que falta los contactos personales. Entonces, estos congresos pueden generar este contacto que está faltando para que se puedan establecer, constituir equipos. Yo creo que es muy importante, a mi, personalmente, me gustaría muchísimo poder tener una serie en la Universidad, la que sé que puedo ir a discutir sobre mi trabajo, independientemente de que esté trabajando cuestiones que tengan que ver con la región y se puede hacer lo mismo allá, que la gente pueda ir allá y que sea algo natural, intercambiar entre Universidades argentinas, sobretodo las del Nordeste, porque somos países que tenemos frontera en contacto, digamos, estamos en contacto y a la vez no lo estamos.

Prof. Dr. João Paulo Pimenta (USP)

Entrevista com o historiador João Paulo Pimenta

 

Professor da USP e doutor por esta mesma instituição, João Paulo Pimenta tem realizado, ao longo de sua trajetória acadêmica, pesquisas e publicações envolvendo o Brasil e a América Espanhola no século XIX. Deste modo, a Revista Tema Livre apresenta ao seu público a entrevista realizada, por e-mail, com o historiador da USP, onde são tratados assuntos concernentes às independências latino-americanas e à formação do Estado Nacional na América Latina. Igualmente, na entrevista, são abordadas questões concernentes à historiografia do Brasil, da Argentina e do Uruguai, assim como ao ocaso dos Impérios Ibéricos no Prata e à província Cisplatina.

Revista Tema Livre – Primeiramente, o Sr. trabalhou, tanto no seu mestrado, quanto no seu doutorado, com questões envolvendo o Brasil e a América Espanhola no primeiro quarto do século XIX. Deste modo, perguntamos-lhe como surgiu este interesse?

João Paulo Pimenta – Por um lado, esse interesse surgiu da constatação de que as diferentes historiografias a respeito da independência e da formação do Estado nacional brasileiro sempre tocaram, "de raspão", no tema dos impactos causados pela política hispano-americana naqueles dois movimentos, sem que isso conduzisse a análises pormenorizadas. Claro que, até hoje, nenhum historiador pôde negar que, nas primeiras décadas do século XIX, as trajetórias históricas da América portuguesa e da América espanhola se cruzaram, e alguns esboços de quando, onde, como e porquê isso se deu chegaram a ser feitos. Sendo esse um topos obrigatório da realidade geral que eu pretendia estudar, pareceu-me que o seu aprofundamento analítico indicava para uma importante demanda de pesquisa, e fornecia um excelente pretexto para a problematização de temas muito relevantes.

Por outro lado, não há como negar que vivemos, nesta primeira década de século XXI, um momento ainda propício a inquietações intelectuais que, conscientemente ou não, contribuam para um arrefecimento das fronteiras nacionais, inclusive no plano da investigação histórica especializada. Avaliando retrospectivamente o que tenho feito, reconheço que minha obra expressa bem uma tendência a problematizar a história contra a circunscrição nacional de temas, a diálogos críticos com variadas tradições intelectuais nacionais, e ao tratamento de fontes primárias de diferentes procedências espaciais. Creio que de tais investigações resulta, no entanto, mais do que uma necessária crítica a distorções nacionalistas ou nacionalizantes impostas à História, simplesmente uma história "em seus devidos lugares"; isto é, um olhar global e totalizador sobre os processos de independência da América ibérica e a presença, neles, da questão das identidades coletivas. O que não deixa de ser uma forma de olhar típica da realidade atual.

RTL – Além disto, o Sr. pode nos contar, sucintamente, sobre a influência dos processos de independência e de formação dos Estados Nacionais da América Espanhola no Brasil?

Pimenta – Se minhas investigações partiram justamente da constatação de um consenso historiográfico em torno do reconhecimento de que houve impactos nada desprezíveis de uma realidade sobre a outra, até o momento elas conduziram a duas conclusões gerais diretamente derivadas dessa constatação, e articuladas entre si: em primeiro lugar, a historiografia não estava errada ao destacar tais impactos, pois de fato um espectro significativo de determinações provenientes da política hispano-americana a partir da crise de 1808 foi sendo absorvido no mundo luso-americano (nesse ponto, minhas pesquisas não se voltam contra a tradição; pelo contrário, dão continuidade a ela); em segundo lugar – e aí sim ao revés do que afirmava a maioria esmagadora das obras que tocaram na questão – esse espectro não é redutível aos exemplos "negativos", pelos quais a América espanhola "ensinou" a América portuguesa a evitar fenômenos que aquela começou a conhecer antes que esta, e que nos termos da época podiam ser referidos como "exemplos sangrentos" de "desordem", "destruição", "anarquia", "guerra civil", etc. Também houve, sobretudo nos anos que imediatamente envolvem a independência do Brasil, exemplos "positivos", pelos quais a América espanhola pôde se converter em exemplo benéfico de viabilização de um mundo sem metrópoles.

Trata-se, desse modo, de fenômeno complexo e multifacetado. Essa complexidade, por fim, só pode ser devidamente compreendida quando relacionada a elementos de política externa dos governos americanos e europeus da época, a rotas comerciais, a fluxos humanos e de livros, jornais, informações, boatos e idéias. O resultado dessa dinâmica interação entre Brasil e América espanhola no começo do século XIX – e que não se limita, obviamente, ao desfecho da crise dos impérios ibéricos, mas diz respeito ao movimento em si – chamei de "experiência hispano-americana", reelaborando uma categoria analítica bem construída por Reinhardt Koselleck.

RTL – E qual foi a repercussão da Independência do Brasil na América Espanhola?

Pimenta – Eis uma questão fundamental, cuja resposta satisfatória ainda nos escapa quase que totalmente. Em minha dissertação de mestrado, finalizada em 1997 e posteriormente publicada em livro, levantei alguns elementos em torno dos conflitos políticos e identitários posicionados na intersecção da bem-sucedida construção de um Brasil monárquico com as fracassadas tentativas de construção de um governo central em Buenos Aires e que agregasse a maioria dos territórios do antigo Vice-Reino do Rio da Prata; mas foram apenas alguns elementos, já que esta não era a questão central daquele trabalho. Mais recentemente, escrevi alguma coisa e comecei a orientar trabalhos de estudantes de graduação e pós-graduação voltados diretamente a espaços como a Venezuela, o México e o Peru, além, claro, do mesmo Rio da Prata, onde sem sombra de dúvida a política luso-americana exerceu maior impacto do que em qualquer outra parte. Se da análise de uma "experiência luso-americana" resultou uma contribuição historiográfica satisfatória, as muitas "experiências luso-americanas" presentes no mundo hispânico ainda aguardam o empenho dos historiadores. Mas não tenho dúvida que tais "experiências" existiram e foram significativas.

RTL – Especificamente sobre o espaço platino, que o Sr. trabalhou em seu livro "Estado e nação no fim dos impérios ibéricos no Prata (1808-1828)", fale-nos, resumidamente, sobre o ocaso desses impérios nesta região da América.

Pimenta – Ele só pode ser compreendido de modo abrangente e total; portanto, avaliando-se e integrando-se os resultados da pesquisa especializada voltada para cada um dos espaços específicos que à época compunham as unidades políticas, econômicas, sociais e culturais em contato. Não se trata, apenas, de Brasil e Rio da Prata, mas também dos muitos "Brasis" e "Rios da Prata" existentes. E a região vulgarmente chamada de banda oriental representa, nessa direção, uma síntese de muitos vetores e determinações históricas. Essa é uma forma de analisar as coisas que vai muito além de noções tradicionais (mas nem por isso desprovidas de utilidade para outros estudos) como "fronteira", ou de métodos (por ventura igualmente válidos) de "comparações" ou "conexões". Trata-se, simplesmente, de respeitar a abrangência do fenômeno a ser estudado – a crise e dissolução dos impérios ibéricos na América.

O que, nas primeiras décadas do século XIX, integrava aqueles espaços em uma mesma unidade histórica? Longevos contatos fronteiriços, disputas territoriais, guerras, relações diplomáticas e complexos produtivos compartilhados; mas também – e aí me refiro especificamente à conjuntura inaugurada com as guerras napoleônicas na Europa – a possibilidade real de quebra da unidade dinástica em Portugal e Espanha, de desintegração dos seus respectivos domínios americanos, de inserção destes no novo desenho político-econômico mundial, de ampliação dos espaços de crítica política, da crescente complexidade dos próprios meios de atuação política, etc. Em suma: a partir de 1808 a unidade das Américas espanhola e portuguesa enfrentava uma mesma situação de fundo, ainda que para tanto mobilizassem esforços que, de parte a parte, encontrariam soluções diferenciadas e específicas. Talvez isso possa ser visto como a defesa de uma compreensão do contexto americano da época de modo menos fragmentado e isolado do que de costume, sem implicar, evidentemente, o abandono da investigação específica – apenas a sua re-significação de acordo com uma unidade histórica mais ampla.

RTL – Fale-nos também sobre o mito das origens nas historiografias do Brasil, da Argentina e do Uruguai, bem como a crítica a esta produção historiográfica.

Pimenta – Aprendemos, todos nós, a fazer História de acordo com premissas estabelecidas no século XIX, e segundo as quais os significados das realidades passadas só podem ser devidamente compreendidos como singulares, únicos, jamais repetíveis. Ora, no caso das historiografias ibero-americanas, tais premissas se conjugam com o advento das narrativas nacionais, que elevaram a nação à condição de sujeito máximo da história, devidamente destacado das demais ao seu redor. Muito embora muitas e profundas renovações historiográficas tenham sido observadas em diferentes países, inclusive com a crítica direta às presunções fundadoras atribuídas a determinados acontecimentos por representantes das historiografias nacionais, ainda carregamos muito fortemente as implicações decorrentes dos limites impostos por aquela concepção histórica. Sem que sejamos nacionalistas stritu sensu, a tendência é fazermos uma história de países, ou pelo menos hipertrofiada em temas que não costumam transcender as fronteiras nacionais da historiografia onde eles foram concebidos.

No que me toca mais diretamente, não pretendi fazer dessa crítica (ademais já realizada por grandes autores como Carlos Real de Azúa, José Carlos Chiaramonte e François-Xavier Guerra) o escopo principal de meu trabalho, apenas o seu pretexto inicial. Acredito que toda operação intelectual de desmanche de outras concepções modelares deve oferecer como alternativa algo equivalente, e que, nesse caso, envolve o empenho em olhar para além de um movimento de independência, ou de um tempo-espaço específico. Deve-se atribuir sentido ao que é (obviamente) específico por aquilo que ele possui de típico, em meio ao cenário americano mais amplo. Mas isso é muito difícil, já que tal empenho pressupõe justamente um bom domínio das historiografias nacionais que, de algum modo, tocaram na questão geral.

RTL – No que refere-se à Cisplatina, o Sr. pode nos falar sobre a produção periódica realizada em Montevidéu. Perguntamos-lhe, assim, sobre a influência e o peso político desses jornais, se eles podem ser considerados como brasileiros e, ainda, quem eram seus editores?

Pimenta – O pouco que sei a respeito dessa obliterada produção periódica publiquei em alguns pequenos artigos, e que são, no meu entender, muito mais um indicativo de uma demanda de pesquisa fundamental do que a resolução de um problema histórico que está apenas esboçado. O periodismo surge na banda oriental com as invasões inglesas de 1806 e 1807, adquire forte sentido político já com a formação da junta revolucionária de Buenos Aires em 1810 e doravante representa um mecanismo de luta política imprescindível para os muitos e diversificados agentes atuantes naquele cenário. Conforme afirmei acima, a região é uma síntese de muitos vetores e determinações históricas que aproximam as Américas espanhola e portuguesa, o que está sobejamente espelhado nessa produção impressa.

Mais especificamente, quando o grupo de Carlos Frederico Lecor cria a "província Cisplatina", em 1821, pretendendo mantê-la como uma parte do Reino do Brasil, é na imprensa periódica que ensaios políticos importantíssimos são feitos: periódicos são criados e fechados, editores subsidiados e perseguidos, e manifestações de descontentamento cada vez mais abertas em relação à própria política portuguesa encontram espaço de publicização, mostrando contradições do sistema. Trata-se, evidentemente, de uma imprensa portuguesa diretamente vinculada ao Brasil, mas isso não parece ter sido suficiente para valorizá-la historiograficamente enquanto tal; já na historiografia uruguaia, o período vulgarmente conhecido como de "dominación luso-brasileña" tampouco goza de grande prestígio entre os estudiosos. Se estou correto nesse diagnóstico, nos dois casos ainda percebemos efeitos nocivos da persistência de concepções estritamente nacionais da história das independências. Mas sou otimista em relação à reversão desse quadro, inclusive ao constatar um aumento significativo nos estudos brasileiros e uruguaios a respeito da banda oriental. A agenda continua aberta.

RTL – Por fim, abandonando o Prata e partindo para outras áreas da América Espanhola que fazem fronteira com o Brasil, o Sr. pode falar um pouco sobre as relações políticas e diplomáticas brasileiras com países como o Paraguai, a Bolívia e a Venezuela no período trabalhado em sua tese de doutorado?

Pimenta – As relações diplomáticas de fato entre esses países só serão organizadas algum tempo após suas respectivas independências, isto é ao longo das décadas de 1820 e 1830, o que vem também merecendo atenção de estudiosos, principalmente os voltados à história política das relações internacionais. No entanto, durante os anos anteriores, existiram várias formas de relacionamento entre autoridades políticas atuantes nessas regiões, e que infelizmente ainda nos são pouco conhecidas. Há que se pesquisar documentação de províncias fronteiriças, há que se entender os pontos de contato dos "brasis" não somente pela bem-conhecida fronteira do Rio Grande, mas também as de São Paulo, Mato Grosso, Rio Negro e Pará com o Alto Peru, o Peru, a Nova Granada, a Venezuela e o Caribe. Novamente, nessas lacunas nos vemos às voltas com mazelas das fronteiras historiográficas nacionais. Mas já estou ficando repetitivo: reafirmo que sou otimista em relação ao preenchimento dessas lacunas em um futuro próximo, pois cada vez mais historiadores de diferentes países, voltados às independências americanas, buscam a integração de suas pesquisas. Afinal, vivemos no século XXI…

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