Tag Archives: História do Brasil Império

Os 200 anos da Independência do Brasil

Niterói, 04 de maio de 2022.
Da Redação.

Como é de conhecimento público, nesse ano, completam-se 200 anos da Independência do Brasil. Depois da realização das séries de entrevistas sobre os bicentenários da criação do Estado Cisplatino Oriental e das emancipações do México e do Peru, que ocorreram ao longo de 2021, a revistatemalivre.com inicia hoje o ciclo dedicado ao Brasil no seu canal do YouTube
O bicentenário brasileiro é oportunidade para agregar pesquisadores de diversas instituições nacionais e estrangeiras para discutirem o complexo processo de independência brasileiro sob vários prismas, abarcando questões econômicas, políticas e culturais, que envolveram diversos atores e grupos sociais de norte a sul do Brasil. Constitui-se em momento de reflexão e análise da sociedade brasileira e sua história.

As conversas ocorrerão, quinzenalmente, no canal da revistatemalivre.com no YouTube às 19h. Para assisti-las, basta clicar aqui

 

 

A estreia
Logo mais, às 19h, "Brasil: 200 anos da Independência" tratará das influências de Napoleão Bonaparte no Brasil da primeira metade do século XIX, além dos mercenários franceses que lutaram ao lado de D. Pedro I, da imigração francesa para o Rio de Janeiro e a influência da França no campo intelectual brasileiro, além de muito mais. O convidado é o historiador francês Patrick Puigmal (Universidad de Los Lagos/Chile).

A próxima conversa ocorrerá no dia 18 de maio, também às 19h, e a convidada é a historiadora norte-americana Kirsten Schultz (Seton Hall University/EUA). O título do bate-papo é “A Versalhes Tropical: a corte portuguesa no Rio e a Independência”. Não deixe de participar.

 

 

Se inscreva no nosso canal para não perder a próxima live. É só clicar no link a seguir: https://www.youtube.com/revistatemalivre?sub_confirmation=1

 

 

 

 

Outros bicentenários

Já estão disponíveis no YouTube todas as lives das séries sobre a Cisplatina, o Peru e o México. Assista clicando em https://www.youtube.com/revistatemalivre?sub_confirmation=1

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Para artigos acadêmicos, clique aqui.

 

Leia entrevistas com historiadores clicando aqui.

 

Acesse a seção notícias:

https://revistatemalivre.com/category/noticias

 

Ouça os podcasts revistatemalivre.com clicando em:

https://revistatemalivre.com/mais/audio-html

 

Assista à TV Tema Livre com um único clique em:

https://revistatemalivre.com/mais/tvtemalivre-html

 

 

 

Voltar à página inicial

 

 

 

 

 

 

Cem anos da morte da princesa Isabel

Ao sancionar em 1888 uma das mais emblemáticas normas brasileiras — a Lei Áurea —, Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bourbon e Bragança, popularmente nominada princesa Isabel, "a Redentora", lapidou por definitivo seu nome entre os mais importantes da história nacional. No centenário de sua morte, ocorrida em 14 de novembro de 1921, a personalidade isabelina reflete uma mulher extremamente religiosa (engajada, crente e fiel), espiritualizada, letrada, otimista, autoritária e que buscou o reconhecimento de que estava apta a reinar — o que aconteceu por três vezes ao assumir interinamente o comando do Império, em meio a períodos de grande agitação social e política.

Filha de Dom Pedro II e Teresa Cristina de Bourbon, a princesa imperial, nascida em 1846, no Rio de Janeiro, só se tornou definitivamente a herdeira presuntiva do Império após a morte prematura de seus dois irmãos homens: o primogênito D. Afonso Pedro, falecido aos 2 anos, e D. Pedro Afonso, com pouco mais de 1 ano.

Com o caráter moldado por D. Pedro II para ser sua sucessora, a princesa imperial, assim como seu progenitor, adorava leitura, ciência, química, fotografia.

— Dom Pedro II era um conservador, parecido com seu avô D. João VI, já Dona Isabel era mais parecida com seu avô D. Pedro I, que era dos rompantes. Por ser mulher, era muito tolhida na sociedade em que viveu e na sua época era a única na política — explica o historiador Bruno da Silva Antunes de Cerqueira, coautor da obra Alegrias e Tristezas: estudos sobre a autobiografia de D. Isabel do Brasil, com a historiadora Fátima Argon.

A trajetória da princesa está documentada pelo Arquivo do Senado, em Brasília. Os registros revelam de congratulações a preocupações e apontam que muitos parlamentares não vislumbravam o comando em definitivo do Império nas mãos de uma mulher. 

Diferentes momentos da vida da Princesa Isabel (Imagens: Acervo da Biblioteca Nacional, do Arquivo Nacional e do Museu Imperial de Petrópolis)

Em agosto de 1850, as duas câmaras das Casas parlamentares se reuniram no Paço do Senado para a sessão de reconhecimento da princesa imperial como sucessora de seu pai, Dom Pedro II, no trono e na Coroa do Brasil. Dez anos depois, ao completar 14 anos, ela fez o juramento, diante da Assembleia Geral, como herdeira presuntiva do Império, no qual assegurou “manter a religião católica apostólica romana, observar a constituição política da nação brasileira, e ser obediente às leis, e ao imperador”.

Nos seus 18 anos, a princesa encontrava-se diante dos preparativos para seu casamento, firmado com o príncipe franco-germânico Luís Filipe Maria Fernando Gastão d'Orléans, o Conde d’Eu.

— Pensava-se no Conde d'Eu para minha irmã [princesa Leopoldina] e no Duque de Saxe para mim. Deus e os nossos corações decidiram diferentemente, e a 15 de outubro tinha eu a felicidade de desposar o Conde d'Eu — registrou a princesa Isabel.

A escolha do esposo da herdeira imperial, repudiada por alguns parlamentares, causava uma preocupação redobrada.

— Por ela ser mulher, os senadores e deputados, que eram absolutamente machistas, achavam que o marido é que iria mandar — esclarece o historiador Antunes de Cerqueira.

 

Casamento da princesa Isabel com o Conde d'Eu (Foto: Reprodução/União Monárquica Brasileira)

 

Em maio de 1871, foi aprovada pela Câmara e encaminhada ao Senado a proposta de outorga de consentimento para que o imperador pudesse deixar o país, em viagem à Europa por motivo do estado de saúde da imperatriz.

Tal autorização legal conclamava, na ausência de Dom Pedro II, a governança por parte da princesa imperial, pela primeira vez, como regente.

A manifestação ensejou debates no Plenário do Senado, com a defesa da proposta pelo presidente do Conselho de Ministros (primeiro-ministro), o senador Visconde do Rio-Branco (BA):

— O motivo é muito atendível e imperioso: a saúde de Sua Majestade a Imperatriz. (…) Nós, porém, pensamos que não há razão alguma para recear que uma ausência tão curta do chefe do Estado ponha em perigo a nação brasileira.

O senador J. M. Figueira de Mello (CE) não só defendeu a saída do imperador, como ratificou total e completamente as atribuições de poder moderador e de chefe do Poder Executivo à princesa.

Na contramão, o senador Zacarias de Góes e Vasconcellos (BA) demonstrou preocupação com a viagem, "diante de iminente reforma acerca da questão do estado servil" — que em alguns meses daria origem à Lei do Ventre Livre — e com as atribuições atribuídas no projeto à futura regente imperial.

Também contrário à saída do imperador, o senador Silveira da Motta (GO) foi convicto em propor ao menos uma data-limite para retorno, citando a “incerteza com que a regência continuará a funcionar como realeza temporária”.

Ao assegurar que o chefe do Estado estava sempre pronto a cumprir seus altos deveres, o presidente do Conselho de Ministros mais uma vez ponderou que “para o gabinete não é duvidoso que a regência, no caso de que se trata, compete à herdeira presuntiva da Coroa”.

Assim, em 19 de maio foi outorgado o consentimento ao imperador. No dia seguinte, Dona Isabel — assim chamada por ser alteza — fez seu juramento como regente diante da Assembleia Geral. Foi durante essa primeira regência que a princesa se tornou, aos 25 anos, a primeira senadora do Brasil, título assegurado a ela pela Constituição do Império.

 

Juramento da Princesa Isabel, no interior do Palácio do Conde dos Arcos (Pintura: Victor Meirelles)

O fim da escravidão nos Estados Unidos, em 1865, reforçou o espírito abolicionista no Brasil, onde por longos anos temeu-se a guerra civil em decorrência da procrastinação da abolição.

— Nessa primeira regência Dona Isabel era uma menina. Visconde do Rio-Branco, primeiro-ministro, é que detinha todo o poder. A Lei do Ventre Livre era obra sua, mas é claro que ele dá crédito à Dona Isabel, porque ele era um monarquista contumaz — explica Antunes de Cerqueira.

A par do comando de Rio Branco, a princesa imperial tinha completa noção do que fazia, conhecia o jogo político e sabia quem iria votar a favor ou contra à proposta da primeira lei abolicionista, segundo o historiador.

Muito esperada, a votação do projeto por deputados e senadores foi marcada por conflitos que perpassaram interesses políticos, partidários e escravocratas. 

Apenas dois dias após ter sancionado a Lei do Ventre Livre — que fixou a data de 28 de setembro de 1871 como o marco a partir do qual as mulheres escravizadas dariam à luz crianças livres —, a princesa imperial, grávida, fez sua primeira fala à Assembleia Geral, congratulando-se com os parlamentares pela extinção gradual do elemento servil.

— Esta última reforma marcará uma nova era no progresso moral e material do Brasil. É empresa que exige prudência, perseverantes esforços e o concurso espontâneo de todos os brasileiros. Tenho fé em que seremos bem sucedidos, sem prejuízo da agricultura, nossa principal indústria, porque esse cometimento é a expressão da vontade nacional, inspirada pelos mais elevados preceitos da religião e da política. O governo fará quanto lhe cumpre para a mais pronta e perfeita execução de tão importantes reformas, dedicando-lhes a mais solícita atenção — afirmou a regente.

Pouco tempo depois de Isabel ter encerrado sua primeira regência, o magistrado Sayão Lobato externou em sessão no Senado seus agradecimentos pelo tempo em que atuou como ministro da Justiça durante a primeira governança da princesa. Com Isabel, ele disse ter sido honrado com sua “graciosidade, extrema bondade e continuadas provas de confiança”.

 

harge do periódico 'Semana Ilustrada', em 1871, na sanção da Lei do Ventre Livre (Imagem: Biblioteca Nacional Digital)

 

Do fim da primeira regência até 1876, a princesa Isabel esteve completamente tomada pela vida íntima, assombrada pela dificuldade de gerar herdeiros. O primeiro aborto ocorreu em outubro de 1872, sucedido pela perda de um filho no parto, em 1874. Somente em outubro do ano seguinte nasceu o primeiro herdeiro da princesa, chamado Pedro de Alcântara em homenagem ao avô imperador.

Poucos meses depois, em março de 1876, a princesa imperial foi nomeada com totais poderes regente pela segunda vez, a partir de nova viagem do imperador. A segunda experiência no trono não lhe foi fácil, tornando-se ainda mais pesada com o registro de mais um aborto.

As eleições do final daquele ano foram marcadas por fraudes e violência. Sua extrema ligação com a Igreja a manteve na linha de severas críticas. A princesa também esteve no comando em um difícil período de pós-epidemia de varíola e de vindoura grande seca, que deixaram centenas de milhares de mortos.

Na abertura dos trabalhos legislativos do ano seguinte, a regente abrandou os acontecimentos turbulentos do período eleitoral e tratou do orçamento para o biênio 1877-1878. Aos parlamentares, ela assegurou que o governo procurou reduzir os gastos, mas que seria necessária a decretação de meios que fizessem desaparecer qualquer desequilíbrio entre a receita e a despesa:

— Causas conhecidas explicam o fato de não ter a receita pública atingido o algarismo em que foi calculada. Para segurança do crédito nacional, cumpre não confiar unicamente no aumento natural da renda. As obras de viação férrea e outras votadas exigem despesas a que não pode por si só fazer face a receita ordinária. E porque não fora prudente usar largamente dos recursos do crédito, atenta à nociva influência que os empenhos contraídos exercem sobre o presente e o futuro, é de bom conselho atender somente aos melhoramentos, que não possam ser adiados.

 

Princesa Isabel e seu primogênito, 1876. (Foto: Biblioteca Nacional)

 

Impossibilitada de comparecer à abertura da segunda sessão legislativa, em meados de junho de 1878, coube ao ministro e secretário de Estado dos negócios do Império, Antonio da Costa Pinto e Silva, transmitir aos parlamentares as palavras da regente, que não se esquivou de tratar da forte seca que assolava regiões do país.

— A prolongada falta de chuvas em algumas províncias do Norte e na de S. Pedro do Rio Grande do Sul acarretou sobre elas as provações inerentes a semelhante flagelo. O governo, auxiliado pela caridade particular, tem acudido as populações daqueles pontos do Império com gêneros alimentícios, autorizando ao mesmo tempo os presidentes a despenderem o que for preciso para aliviar os sofrimentos das classes mais necessitadas; e estudará os meios de prevenir, quanto for possível, os graves efeitos desse mal, de que periodicamente são vítimas, com especialidade as províncias do Norte.

Pouco tempo depois, o senador Góes de Vasconcellos, ao criticar a ausência do imperador, renegou afirmativas de que D. Pedro II não faria falta por ter deixado regente em seu lugar.

— Não procede a escusa. A virtuosa princesa, embora tenha, pela Constituição, plenos poderes para governar, é, afinal, simples regente, adstrita à vontade, às prescrições, aos conselhos do chefe ausente; não pode afastar-se daquilo que presuma ser a mente do augusto viajante. Demais a sua saúde não é muito vigorosa, segundo consta dos jornais, que, de vez em quando, anunciam que a princesa acha-se impedida de sair à rua e dedicar-se aos trabalhos de seu elevadíssimo cargo.

O machismo enraizado na época colocava recorrentemente em xeque as competências da princesa imperial. “Apático” era a palavra que definia o governo de Dona Isabel, segundo Góes de Vasconcellos, ao passo “que ela não governava como imperatriz, mas apenas como regente”.

— Ainda, se as circunstâncias do país fossem favoráveis, mas sendo críticas e cheias de dificuldades muito sérias, deverá estar à testa do governo quem ocupa efetivamente o trono, e não sua augusta filha. Ele, o sábio, o mais ilustrado dos monarcas do mundo, esse é quem devia estar no país à frente dos negócios — completou o senador.

Com o fim de sua segunda regência, a princesa voltou-se por completo à vida familiar. Em janeiro de 1878 veio o segundo herdeiro, príncipe D. Luís. Em Paris, em agosto de 1881, nasceu o terceiro filho, D. Antônio.

 

Plenário do Senado em 1888 (Foto: Antônio Luiz Ferreira e Alberto Henschel)

 

Com a partida de D. Pedro II para a Europa por recomendações médicas, aos 40 anos a princesa imperial iniciou a terceira e última regência, em julho de 1887, período tomado pelo crescimento do movimento abolicionista. Com seu apoio, não foram poucos os projetos pelo fim da escravidão apresentados na Câmara e no Senado.

Na presidência do Conselho de Ministros, o Barão de Cotegipe (BA) — líder da bancada escravagista — trabalhou pelo retardo das reformas que culminariam na abolição dos escravizados. O período foi ainda mais conturbado pela insubordinação militar no Exército brasileiro.

Em abril de 1888, a própria princesa imperial comandou, em cerimônia no Palácio de Cristal, a libertação dos últimos escravizados no município de Petrópolis.

— Fez o Gabinete todo e parlamentares subirem a serra para mostrar poder. Ela estava mostrando para aqueles homens o que era capaz de fazer — relata o historiador Antunes de Cerqueira.

Nessa mesma época, em uma manobra inteligente, a regente — certamente já bem mais madura politicamente — destituiu todo o gabinete e nomeou como novo presidente do Conselho dos Ministros o conservador pró-abolição João Alfredo Correia de Oliveira, em um ato que ela mesma nomeou de “golpe”.

Crítico da regente imperial, o liberal senador Saraiva (BA) destacou que a princesa queria que o ministério tivesse um homem da confiança dela, isto é, “um chefe de polícia que a deixasse dormir tranquilamente no seu palácio de Petrópolis”.

O senador Leão Velloso (BA) contestou comentários, dentro e fora do Parlamento, sobre os atos de Sua Alteza.

— No procedimento da Coroa nada se pode notar que não ache apoio nas doutrinas seguidas em outros países, ou não se harmonize perfeitamente com alguns precedentes.

Populares se reúnem em frente ao Paço Imperial no dia da sanção da Lei Áurea

 

Na abertura de sessão legislativa de maio de 1888, além de tratar de questões caras ao Brasil — como segurança pública, estado sanitário do país, educação, renda pública e organização militar —, a regente imperial não deixou de destacar a ânsia pelo fim da escravidão.

— A extinção do elemento servil, pelo influxo do sentimento nacional e das liberalidades particulares, em honra do Brasil, adiantou-se pacificamente de tal modo que é hoje aspiração aclamada por todas as classes, com admiráveis exemplos de abnegação da parte dos proprietários. Quando o próprio interesse privado vem espontaneamente colaborar para que o Brasil se desfaça da infeliz herança, que as necessidades da lavoura haviam mantido.

A princesa conclamou os parlamentares a não hesitarem “em apagar do direito pátrio a única exceção que nele figura em antagonismo com o espírito cristão e liberal das nossas instituições”.

Não demorou e, em 8 de maio, o gabinete de Correia de Oliveira encaminhou à Câmara dos Deputados a proposta de lei para a completa extinção da escravidão no Brasil. Bem recebido pelas duas Casas, o projeto foi aprovado pelos deputados dois dias depois. Quando chegou ao Senado, no dia 11, foi constituída comissão especial para apresentar parecer sobre a proposta.

 

Assinatura da Lei Áurea por Sua Alteza Real Princesa Isabel (Pintura: Victor Meirelles)

 

A urgência com que a matéria foi tratada nas duas Casas legislativas incomodou os escravagistas, que não se conformavam com a perda dos escravizados e de não haver qualquer previsão de ressarcimento aos seus então proprietários.

O senador Paulino de Souza (RJ), ao confessar-se vencido pelo projeto da Lei Áurea, lembrou que em 1885 “achávamos em plena propaganda abolicionista” e que a proposta que os parlamentares iriam votar era “inconstitucional, antieconômica e desumana”.

— Pois bem, é o governo regular do Brasil que, em contraposição àquele governo revolucionário, faz decretar, de um dia para outro, a abolição imediata, pura e simples, sem uma garantia para os proprietários, espoliando-os da propriedade legal, abandonando-os a sua sorte nos termos do nosso interior, entregando-os à ruína, expondo-os às mais temerosas contingências, sem também por outro lado tomar uma providência qualquer a bem daqueles, que voltam em grande parte à miséria e ao extermínio, nos primeiros passos de uma liberdade, de que, não preparados convenientemente, dificilmente saberão usar a seu benefício.

O senador afirmou “iludirem-se” aqueles que acreditavam remover uma grande dificuldade com a lei da abolição do elemento servil.

— Pelo contrário, é agora que recrescem, com a desorganização do trabalho e com a entrada de 700 mil indivíduos não preparados pela educação e pelos hábitos da liberdade anterior para a vida civil, as contingências previstas para a ordem econômica e social.

Com apoio de muitos no Plenário, o senador Dantas (BA) assegurou aos pares que a abolição da escravidão não marcaria para o Brasil uma época de miséria, de sofrimentos, de penúria.

— Uma simples consideração, porque a discussão longa virá depois, bastará para tranquilizar os que se aterrarem com os presságios dos honrados senadores que me precederam: dentro de espaço de 17 anos, 800 mil escravos têm desaparecido do Brasil. Pois bem, senhores, é justamente neste período que se nota maior riqueza no país, grande aumento de trabalho e com ele maior produção, e, como consequência, considerável aumento na renda pública.

As reformas liberais não poderiam representar, na opinião do parlamentar, um perigo ao Brasil, mas seriam “o complemento, o remate, a consequência natural do passo que estamos dando”.

O presidente do Conselho de Ministros, Correia de Oliveira, completou:

— Tem-se ainda apelado para os transtornos que desta proposta hão de provir. Sei bem que não se extirpa do organismo social um cancro secular sem que perturbações se operem. Nunca mais há de abrir-se, porém, a cicatriz desta ferida: e sobre ela se levantará — o patriotismo e o bom senso dos brasileiros o indica — o grande edifício da crescente prosperidade de nossa pátria.

 

 

Carta original da Lei Áurea (Lei Imperial 3.353) assinada pela princesa

 

No domingo de 13 de maio de 1888, apenas três dias após a deliberação do texto abolicionista na Câmara, o Senado aprovou a proposta, sancionada no Paço Imperial poucas horas depois pela regente imperial, aclamada a “Redentora”.

Sem poder agir publicamente pela abolição até janeiro de 1888, quando pôde externar seu abraço à causa já nacionalmente disseminada, a princesa Isabel agia na surdina — como em 1886, quando impediu a destruição do Quilombo do Leblon, portanto dois anos antes da completa abolição da escravidão.

— As pessoas não queriam dizer que a Lei Áurea, fruto de uma luta popular, dos líderes abolicionistas, que eram negros e brancos letrados, também foi uma luta palaciana. Isso ninguém queria reconhecer. Uma das coisas que mais incomodavam era o fato de que Dona Isabel tinha poder como mulher, porque era regente do Império, e ela atuou — expõe o historiador Antunes de Cerqueira.

Os chefes do movimento abolicionista (Joaquim Nabuco, André Rebouças e José do Patrocínio) eram três homens isabelistas, lembra ele:

— Isso tinha alguma significação: indica que eles queriam o terceiro reinado para implementar as reformas de que eles mesmos eram os baluartes. Ora, se o terceiro reinado não veio, como é que eles ou Dona Isabel podem ser culpados pelo pós-abolição? — questiona.

Os escravocratas denominaram a abolição como o “golpe de estado da Lei de 13 de maio”. Antunes de Cerqueira afirma que, ao sancionar a Lei Áurea, a princesa imperial fez algo que seu pai nunca faria. Tal discussão esteve em debate no Senado na época.

O senador Chistiano Ottoni (MG) tomou a palavra para retificar o que chamou de “inexatidões flagrantes”, como apontar Sua Alteza Imperial como a única que poderia decretar a lei de 13 de maio, “visto que seu pai seria incapaz de igual energia”.

— Ora, a verdade histórica é que o nome que há de ser citado no futuro como o primeiro autor da libertação é o do Sr. D. Pedro II. O começo da evolução, a aurora desse movimento, foi a carta escrita em 1866 pelo nosso ministro da Justiça aos sábios franceses prometendo a reforma; e desta carta declarou há dias o Sr. deputado Joaquim Nabuco que possui a minuta por letra do Imperador. Está, pois, a sua iniciativa mais que averiguada.

— Na verdade, os homens tinham asco dela por ser uma mulher com poder, ser a herdeira do trono. Ia ser a imperatriz, estar acima de todos eles, mandar. Eles eram machistas — diz o historiador Antunes de Cerqueira.

 

 

Isabel, o Conde d'Eu e o escritor Machado de Assis na Missa Campal da Abolição da Escravatura, em 17 de maio de 1888 (Foto: Antonio Luiz Ferreira, Coleção de Dom João de Orleans e Bragança/IMS)

 

A despeito de sancionar o ato abolicionista incondicional, a princesa continuava na mira das críticas, em especial da imprensa, muitas vezes agressiva. "Carola" e "retrógrada", por suas práticas religiosas, eram algumas das palavras que constantemente maculavam sua imagem.

Em meio à agitação política e econômica, a regente — favorável ao sufrágio feminino — acompanhava o crescimento de adesões a pedidos, de diferentes direções, para requerer mudanças na forma de governo.

Em setembro de 1888, o Papa Leão XIII concedeu a Rosa de Ouro à princesa Isabel. A honraria era destinada a personalidades católicas de grande destaque e benemerência, e foi outorgada a ela especialmente pela assinatura da Lei Áurea.

Tal fato acirrou ainda mais os debates no Senado, onde os parlamentares discutiram uma possível jura ou manifestação de obediência da regente à Santa Sé.

— Devo declarar que a notícia não é exata: não houve tal juramento — garantiu o presidente do Conselho, senador Correia de Oliveira.

A possibilidade de um futuro governo monárquico em definitivo nas mãos de uma mulher também inflava os debates na Casa.

O senador Soares Brandão (PE) explanou sobre o fato de mulheres oferecerem, em muitas partes do mundo, um reinado mais esplêndido do que os homens.

— Se é certo que elas não têm a grande virtude política de governo, que ordinariamente podem ter os homens (a de perdoar as injúrias); se são mais sensíveis, mais vingativas, mais nervosas, também é certo que têm sobre os homens uma imensa superioridade: não têm ciúmes, não têm invejas, os seus ministros não lhes fazem sombra; podem, pois, gloriar-se com o governo deles.

O retorno de Dom Pedro II ao comando do país, em agosto de 1888, não perpetuou por muito tempo sua governança, sucedida pela Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889.

— A República não foi feita contra a família imperial, mas claramente contra Dona Isabel, em seu terceiro reinado (os republicanos diziam que a abolição foi um confisco de propriedade e queriam indenização), e contra os negros. A República foi uma forma de impedir a politização do movimento abolicionista e ascensão dos negros — defende Antunes de Cerqueira.

Com a notícia da República, em vários lugares do país, como Rio de Janeiro, São Luís, Florianópolis e Cuiabá, os negros fizeram, nos dias subsequentes, rebeliões que terminaram com muitos mortos.  

— Os negros entendiam que Dona Isabel era legítima para reinar, porque ela, na verdade, do ponto de vista político, ameaçou seu próprio trono com a abolição. Eles achavam que mesmo ela sendo mulher, loira, branca e de olho azul, tinha legitimidade. A Guarda Negra da Redentora, que existia no Brasil inteiro, foi assassinada pela República Velha. São heróis anônimos — completa o historiador.

 

 Isabel, o Conde d'Eu e seus netos, na França, década de 1910. (Foto: Arquivo Nacional)

 

Com a República, chegou o exílio da família imperial, que desembarcou em Lisboa em dezembro do mesmo ano. Não tardou e semanas depois a imperatriz Teresa Cristina faleceu na cidade do Porto. A princesa Isabel e a família se mudaram para a França. Dom Pedro II morreu em dezembro de 1891, quando a princesa passou a ser reconhecida pelos monarquistas como a nova imperatriz.

Em 1920, o presidente da República, Epitácio Pessoa, deu fim ao banimento da família imperial. Com a saúde deteriorada, sem poder retornar ao Brasil, a princesa morreu em 14 de novembro de 1921, aos 75 anos, tendo sido inicialmente enterrada na França.

Ao declarar Isabel como “um grande nome da nossa história”, o senador Tobias Barreto (RN) pronunciou-se após sua morte:

— Parece que foi ironia do destino reservar a uma mulher o papel de consumar a grandiosa obra que os nossos homens de Estado durante 66 anos não souberam levar a cabo por si sós; ou então quis o destino que essa mulher constituísse um símbolo de bondade, para ficar na história, representando a forma incruenta pela qual realizamos uma verdadeira revolução, que a outros tinha custado caudais de sangue.

Isabelista, o senador afirmou que a princesa não era possuída da timidez do pai:

 — Quando lhe afrontavam os sentimentos, sabia defendê-los de viseira erguida.

Apesar de, poucos dias depois da morte de Isabel, ter sido apresentado projeto à Câmara dos Deputados para a repatriação de seu corpo, somente em 1953 os restos mortais chegaram, em navio de guerra, ao Brasil. Assim como o Conde d’Eu, ela foi reenterrada em 1971 na Catedral de São Pedro de Alcântara, em Petrópolis, santuário cuja obra foi iniciada pela própria princesa imperial, em 1884.

Está em andamento um pedido à Igreja de processo de beatificação de Isabel, enquanto no Congresso tramitam projetos de lei que sugerem a inserção de seu nome no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria.

— Os 100 anos de morte de Dona Isabel rememoram uma personagem nebulosa, fulcral, querida da população. Ela participou do processo abolicionista, mas isso foi negado e mal interpretado no próprio tempo em que ela viveu. A história dessa personagem explica um Brasil atual e também um Brasil que não veio — conclui Antunes de Cerqueira.

Fonte: Agência Senado

 

 

Saiba mais sobre o 13 de maio assistindo a entrevista a seguir

 

 

 

 

Se inscreva no nosso canal do YouTube:

https://www.youtube.com/revistatemalivre?sub_confirmation=1

 

Leia artigos acadêmicos disponíveis na Revista Tema Livre clicando aqui.

 

Escute os podcasts da Revista Tema Livre clicando aqui.

 

 

 

Voltar ao início do site

 

Há 200 anos, o território que é hoje o Uruguai tornava-se parte do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves

Niterói, 08 de agosto de 2021

No dia 08 de agosto de 1821, portanto, há exatos 200 anos, o Congresso Cisplatino era dissolvido. Sua última ordem foi a de enviar cópias de suas atas ao general português Carlos Frederico Lecor para que o militar as enviasse a D. João VI e às Cortes de Lisboa. Porém, muitos leitores devem estar se perguntando o que foi esse Congresso? Qual a sua relação com o título do texto? Quais informações estavam contidas nas atas?
Para a obtenção das respostas, é necessário recuar a 1816, quando D. João invadiu a Banda Oriental, denominação que o território que é hoje o Uruguai tinha na época. Para conduzir o governo português da área ocupada, foi designado o general Lecor, que a administrou através de coalização com uma série de setores da sociedade local. Com a eclosão, em 1820, do movimento liberal em Portugal, e consequentemente com a drástica mudança nos destinos da política do Reino Unido português, que incluiu o retorno de D. João VI à Europa e o estabelecimento das Cortes Gerais em Lisboa para a elaboração de uma constituição, o recém empoçado ministro dos Negócios Estrangeiros e Guerra, Silvestre Pinheiro Ferreira, quis definir o futuro da ocupação militar no Prata.
Foi ordenado que em Montevidéu se estabelecessem Cortes, no modelo das de Lisboa, para que a sociedade local decidisse o futuro da invasão. Unidos, Lecor e atores locais montaram um jogo de cartas marcadas para que as Cortes de Montevidéu, ou Congresso Cisplatino (nome como as reuniões que se iniciaram em julho de 1821 ficaram conhecidas pela historiografia), decidissem pelo que lhes interessava: a união do que é hoje o Uruguai à monarquia portuguesa – fato histórico que teve o seu bicentenário nesse ano. 
O Congresso Cisplatino iniciou-se em um domingo, no dia 15 de julho de 1821. Três dias depois, os deputados votaram, unanimemente, pela incorporação. No dia 23, por decisão dos congressistas, a antiga Banda Oriental passou a chamar-se Estado Cisplatino Oriental. No dia 31, Lecor aceitou a incorporação em nome de D. João VI. No quinto dia de agosto ocorreu o juramento de incorporação, participando, do ato, Lecor, os congressistas e todas as autoridades e funcionários de Montevidéu. No dia 8 de agosto de 1821, uma quarta-feira, houve a dissolução do Congresso Cisplatino e a ordem para que fossem enviadas a Lecor as suas atas, pois o general deveria mandá-las para Lisboa. Nos documentos, a votação dos deputados, bem como o argumento dos aliados de Lecor, para que o território que é hoje o Uruguai se tornasse parte do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. 
Aparentemente, Lecor e seus atores sociais alcançavam os seus objetivos. Porém, a História é sempre mais complexa e, com 200 anos de vantagem, sabemos que o projeto cisplatino não vingou. O Reino Unido português dividiu-se, o Brasil tornou-se um Império a parte e, em 1825, eclodiu a Guerra da Cisplatina, que resultou na criação da República Oriental do Uruguai.

 

Bicentenário da criação do Estado Cisplatino Oriental
Em razão dos 200 anos da Cisplatina, a Revista Tema Livre aproveitou a oportunidade para debater esse episódio histórico e realizou uma série de lives com historiadores de diversas instituições da Argentina, Brasil, EUA e Uruguai. Assista à série completa no nosso canal do YouTube. Acesse: https://www.youtube.com/revistatemalivre

 

Lista dos episódios
1) Live de abertura: "Los partidarios de la corona española en la Cisplatina"
Convidada:  Prof.ª Dr.ª Ana Ribeiro (Investigadora, actual Vice Ministra de Educación y Cultura de Uruguay)

 


2) “Antes da Cisplatina: Sacramento, Montevidéu e os interesses portugueses no Rio da Prata”
Convidado: Prof. Dr. Fabrício Prado (College of William and Mary)

 


3) "O Congresso Cisplatino: a incorporação de Montevidéu e a sua campanha à monarquia portuguesa"
Convidado: Prof. Dr. Fábio Ferreira (Universidade Federal Fluminense – UFF)

 


4) Panfletos, jornais e a linguagem política na Cisplatina.
Convidado: Prof. Dr. Murillo Dias Winter (USP/FAPESP)

 


5) Live de enceramento: "El ciclo revolucionario en Iberoamérica. El Río de la Plata y Brasil en el escenario Atlántico"
Convidada: Prof.ª Dr.ª Marcela Ternavasio (Instituto de Estudios Críticos en Humanidades/Universidad Nacional de Rosario/CONICET)

 


Se inscreva no nosso canal do YouTube:

https://www.youtube.com/revistatemalivre?sub_confirmation=1

 

 

 

Leia artigos acadêmicos disponíveis na Revista Tema Livre sobre a Cisplatina clicando aqui.

 

Leia entrevistas com historiadores de diversas instituições do Brasil e do exterior com um único clique aqui.

 

Escute os podcasts da Revista Tema Livre clicando aqui.

 

Voltar ao início do site

 

 

 

 

 

Extra, extra: parlamento derruba planos de D. Pedro I de restringir a liberdade de imprensa

D. Pedro I vivia em guerra com os jornais que criticavam o seu governo. Das 12 ocasiões em que discursou no Parlamento, em duas o imperador cobrou dos senadores e deputados uma lei que reduzisse a liberdade de imprensa e lhe permitisse punir e calar as “folhas” oposicionistas.

— O abuso da liberdade de imprensa, que infelizmente se tem propagado com notório escândalo por todo o Império, reclama a mais séria atenção da assembleia. É urgente reprimir um mal que não pode deixar em breve de trazer após de si resultados fatais — afirmou D. Pedro I em 1829.

O imperador pedia a aprovação de um projeto de lei restritivo que havia sido apresentado em 1827, mas vinha sendo levado em banho-maria pelo Parlamento. Diante da cobrança imperial, os parlamentares se viram obrigados a desengavetar essa proposta de Lei de Imprensa.

Documentos históricos hoje guardados no Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que o projeto rachou os senadores. Para os governistas, a liberdade desfrutada pelos jornais estava mais para libertinagem e punha em risco a existência do Império recém-fundado (independente em 1822) e ainda não consolidado. Para os senadores oposicionistas, ao contrário, a imprensa livre era um dos requisitos para a sobrevivência da nação.

No fim, a oposição conseguiu barrar o ímpeto autoritário de D. Pedro I. A Lei de Imprensa de 1830 — a primeira do tipo aprovada pelo Parlamento brasileiro — concedeu aos jornais muito mais autonomia do que desejava o monarca.

 

 

Trecho do discurso pronunciado por D. Pedro I no Parlamento em 1830: desejo de amordaçar a imprensa (imagem: Falas do Trono/Biblioteca do Senado)

 

No Senado, a base governista tentou até o fim evitar a derrota do imperador.

— É lícito a cada um mostrar a sua opinião, mas é do nosso dever sustentar este governo e prevenir revoluções. Portanto, devemos castigar a quem atacar — argumentou o senador Carneiro de Campos (BA).

— O governo da Inglaterra é forte e justiceiro — discursou o senador Visconde de Cayru (BA), referindo-se ao grande modelo de Monarquia da época. — Quando há abuso da imprensa, o escritor é punido com pesada multa. Conforme a gravidade do caso, até é desterrado para a Nova Holanda [Austrália], sendo o transporte marítimo a ferros no porão do navio.

Para Cayru e Carneiro de Campos, jornais tendenciosos envenenavam a opinião pública e até poderiam persuadir os cidadãos a pegar em armas contra o governo, levando à dissolução do Império. Os autores de “folhas incendiárias”, portanto, deveriam ser levados ao banco dos réus e exemplarmente castigados.

Os senadores oposicionistas, por sua vez, argumentavam que os jornais não tinham tal poder e tão somente refletiam — e não criavam — a opinião pública. De acordo com esses parlamentares, a imprensa deveria ser o mais livre possível para que o monarca pudesse conhecer os verdadeiros anseios dos súditos e, assim, melhor governar o Brasil.

— A liberdade de imprensa é o esteio e o paládio do governo monárquico constitucional representativo. Sem ela, o governo não pode progredir — afirmou o senador Marquês de Caravelas (BA).

— A liberdade de imprensa é o veículo da felicidade de toda a sociedade, porque daqui é que vêm as luzes a todo o Império — acrescentou o senador Marquês de Queluz (PB). — Havemos nós de pôr uma mordaça ao cidadão? Será justo proibir-se-lhe que fale do governo, conhecendo qualquer defeito, quando das suas reflexões podem resultar melhoramentos? Eu quereria que a lei não punisse o escritor filósofo.

 

 

Jornal Astrea faz crítica ao autoritarismo de D. Pedro I sem citar o nome do imperador (imagem: Biblioteca Nacional Digital)

 

As tendências despóticas de D. Pedro I já eram explícitas. A sua medida mais rumorosa foi o fechamento arbitrário da Assembleia Constituinte em 1823. O imperador ficou irritado com os termos da Constituição em elaboração, que lhe dava menos poderes do que ele desejava. No ano seguinte, impôs uma Constituição ao seu gosto.

Mesmo com a Constituição de 1824 em pleno vigor, D. Pedro I adiou a convocação do Senado e da Câmara o máximo que pôde. As duas Casas do Parlamento só começariam a funcionar em 1826. Nesse interregno de dois anos, ele pôde comandar o país livremente, sem precisar dividir o governo com o Poder Legislativo.

No vácuo parlamentar, D. Pedro I assinou com Portugal o tratado de reconhecimento da Independência, que previa uma pesada indenização a ser paga pelos brasileiros. Ele também entrou na malfadada Guerra da Cisplatina, ao fim da qual o atual Uruguai conseguiu se libertar do Brasil. Ambos os episódios abalaram profundamente as finanças públicas, o custo de vida, o orgulho nacional e a confiança da população no soberano.

Mesmo quando o Parlamento se formou, o imperador relutou a repartir o poder. Ao escolher os ministros, por exemplo, ele recorria a pessoas do seu círculo de relações, e não a deputados da maioria parlamentar. As elites reagiram escrevendo na imprensa e votando na Câmara contra o monarca.

No início, o Senado não foi palco dessa reação pelo fato de ser naturalmente governista. Enquanto os deputados eram eleitos no voto, os senadores vitalícios eram escolhidos pelo próprio D. Pedro I a partir de uma lista tríplice. Ele, claro, só selecionava gente de sua confiança.

Sem assinar os textos, deputados recorriam aos jornais para disseminar as críticas ao monarca que não ousavam pronunciar da tribuna da Câmara. As leis da época permitiam o anonimato na imprensa.

Como a Constituição estabelecia que a pessoa do imperador era “inviolável e sagrada”, os ataques por texto se davam de forma camuflada. O expediente mais comum era chamá-lo de “tirano”, “déspota” e “absolutista” sem citar o seu nome. Por vezes, a referência direta era a reis de outras nações e outros tempos, como o francês Luís XIV. O contexto, porém, deixava claro que o alvo era D. Pedro I. Os jornais mais atrevidos recorriam à palavra “Poder” — anagrama de “Pedro”.

A imprensa oposicionista também alertava para o risco de o monarca tentar reunificar o Brasil a Portugal e rebaixar o novo Império à velha condição subalterna de Colônia. A hipótese não era de todo fantasiosa. Diante da morte de D. João VI em Lisboa em 1826, D. Pedro I havia despachado sua filha mais velha, D. Maria da Glória, para assumir o trono português, o que deixava os interesses das duas Coroas perigosamente embaralhados.

 

 

Slogan indica posicionamento do jornal Astrea contrário ao governo de D. Pedro I (imagem: Biblioteca Nacional Digital)

 

Nas discussões da Lei de Imprensa de 1830, os senadores governistas sugeriram a punição de quem escrevesse contra o monarca inclusive ataques dissimulados. O Visconde de Cayru discursou:

— Seria nula e irrisória a lei se unicamente punisse os ataques diretos. Só loucos rematados ou pessoas com tédio à vida poderiam publicar impressos em que diretamente afirmassem que se pode desobedecer ao chefe da nação. A esse respeito, os arteiros e temerários só inculcam malignas ironias, alegorias, epigramas, parábolas e romances, que são ainda de maior perigo, espalhando-se pelo vulgo. Muitas vezes, tais ataques indiretos são tão pungentes e evidentes que parecem apontar com o dedo os objetos contra os quais os mal-intencionados dirigem os seu tiros, ainda que os não nomeiem.

Outro ponto defendido pelo apoiadores de uma Lei de Imprensa dura foi a inclusão dos livros entre os escritos passíveis de processo judicial. Em reação, os adversários argumentaram que essa ideia não fazia sentido porque a população do Império era majoritariamente analfabeta — segundo o Censo de 1872, o primeiro do Brasil, não sabiam ler e escrever por volta de 80% das pessoas livres; entre os escravizados, o índice era de 99%.

— O livro que tivesse para cima de 100 páginas, este poderia circular. O povo não o lê nem quer que se lhe leia um livro assim. Lê folhas avulsas, e não livros, mormente se são dos que exigem mais aturada reflexão. Portanto, o livro pode muito bem passar, porque à liberdade de imprensa deve dar-se toda a extensão — disse o Marquês de Caravelas.

Apropriando-se justamente do argumento do analfabetismo, os governistas apresentaram outra ideia para tentar calar os adversários de D. Pedro I. Eles pediram que a futura Lei de Imprensa punisse também os desenhos. O senador Saturnino (MT) discursou:

— Quem duvida que pela estamparia se pode fazer, e de fato se tem feito, uso da poderosa arma do ridículo para abater, desacreditar e ainda transtornar os atos do governo dos quais muitas vezes pode depender a segurança do Estado?

Recorrendo a eufemismos, ele ainda tocou na delicada questão das gravuras pornográficas:

— Quem também duvida que a estamparia fornece o meio de espalhar pinturas indecentes, que corrompem a moral pública, principalmente na mocidade pouco acautelada, e que pela vulgarização de tais estampas se excitam paixões das quais podem resultar grandes males à sociedade?

 

 

Charge francesa trata da briga de D. Pedro I com o irmão D. Miguel pelo trono português: imperador jamais permitiria tal caricatura na imprensa brasileira (imagem: Honoré Daumier)

 

Um dos argumentos mais recorrentes dos aliados de D. Pedro I no Senado foi a Revolução Francesa, de 1789, marcada tanto pela convulsão social quanto pelo guilhotinamento do rei e pela derrubada do absolutismo monárquico. Apoiados nesse episódio, os senadores governistas sugeriram que a Lei de Imprensa punisse não só a palavra escrita, mas também a falada. Cayru continuou:

— O abuso nas palavras é a maior arma dos traidores. A hórrida prova se viu na Revolução da França tanto pela devassidão dos impressos malignos como pela verbal propagação de doutrinas subversivas em clubes, corpos de guarda, sociedades e até pelas inflamatórias pregações dos saltimbancos. Guardemo-nos dos horrores dos que, com gritarias, açulavam [incitavam] a plebe na França a enforcar nas lanternas das ruas, apelidando “aristocratas”, as pessoas mais distintas por seus títulos e serviços à nação. Para que fazermos ilusão, se este mesmo mal está entre nós e sobre nós?

Para os senadores da oposição, esse discurso do medo era balela.

— Não tem paridade o exemplo. Será o mesmo entre nós, uma nação pacífica, que uma nação revoltosa que não conhece lei, mas só o impulso do seu delírio em fermentação? — rebateu o senador Borges (PE). — Digo que, em tal caso [sendo as falas enquadradas na Lei de Imprensa], eu ficarei tremendo e não falarei mais, porque de minhas simples palavras se pode interpretar mal. Eu figuro um exemplo: se eu estiver fazendo um elogio a um ministro e der uma risada sardônica, será delito?

A imprensa no Primeiro Reinado era muito diferente da imprensa de hoje. Os jornais não noticiavam os acontecimentos, mas defendiam causas. A historiadora Tassia Toffoli Nunes, autora de uma dissertação de mestrado na Universidade de São Paulo (USP) sobre a liberdade de imprensa naquele tempo, explica:

— Os jornais foram espaços que as elites criaram para expor suas ideias políticas. Certas publicações faziam a defesa do governo; outras, a crítica. Para usar uma expressão da atualidade, o que se dava por meio da imprensa era uma guerra de narrativas. Sendo uma guerra, muito do que se publicava, claro, não era verdade. E não existiam jornais grandes, consolidados, profissionais. Eles normalmente rodavam algumas edições e desapareciam, sendo logo substituídos por novos títulos.

 

 

Em artigo, jornal Astrea pede a aprovação de uma lei que garanta a liberdade de imprensa (imagem: Biblioteca Nacional Digital)

 

D. Pedro I se preocupava com os jornais oposicionistas porque sabia que, mesmo a população sendo majoritariamente iletrada, a imprensa tinha, sim, influência sobre a sociedade. Foi por essa razão que, durante os três séculos do período colonial, Portugal jamais autorizou que se instalassem tipografias ou circulassem jornais no Brasil. A imprensa só foi permitida em 1808, quando D. João VI transferiu a sede do governo português de Lisboa para o Rio de Janeiro. Jornais e panfletos, de fato, acabaram sendo importantes na disseminação das ideias que levaram à Independência.

Ciente dessa influência, o soberano adotou a estratégia de apoiar jornais governistas que se contrapusessem às “folhas incendiárias”. Na Assembleia Constituinte de 1823, o deputado Carneiro da Cunha (PB) acusou D. Pedro I de pedir aos presidentes (governadores) das províncias que assinassem e distribuíssem nas repartições públicas o jornal O Regulador Brasileiro, escancaradamente pró-imperador.

Numa das edições, o jornal procurou criminalizar o mundo da política afirmando que, para o bem do Brasil, o Parlamento a ser criado pela Constituição não deveria ser autônomo, mas, sim, obediente ao monarca, uma vez que este seria o único capaz de fazer frente aos “abusos” dos legisladores.

Em 1829, o senador Borges disse que, a mando do governo, dois jornais publicavam fake news contra os parlamentares da oposição:

— Toda esta cidade [Rio de Janeiro] sabe como têm sido tratados os membros do Corpo Legislativo. E não vimos essa Gazeta do Brasil, que não teve outra tarefa mais que injuriá-los? E, se ela acabou, não vão aparecendo já certas alegorias nessa outra gazeta intitulada O Analista, que coincide com a primeira, porque admite injúrias muito palpáveis, apesar de se não publicarem os nomes das pessoas a quem são dirigidas?

Com frequência, o próprio D. Pedro I saía em defesa de seu governo nos jornais e assinava artigos disfarçado sob pseudônimos como Ultra Brasileiro, Constitucional Puro, Inimigo dos Marotos e Piolho Viajante.

Quando estava menos propenso aos argumentos, porém, ele podia partir para a violência. É conhecido o episódio em que seu braço-direito e ministro José Bonifácio de Andrada e Silva arbitrariamente mandou fechar jornais adversários no Rio de Janeiro. Episódio nebuloso foi o atentado contra o jornalista Luís Augusto May, do jornal oposicionista A Malagueta. May foi atacado em casa por homens encapuzados e por pouco não foi assassinado. A suspeita recaiu sobre Bonifácio.

 

 

Jornal governista O Regulador Brasileiro pede mais poderes para D. Pedro I e menos poderes para o Parlamento (imagem: Biblioteca Nacional Digital)

 

De acordo com o historiador Antonio Barbosa, professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB), a tendência despótica do imperador é explicada pelo momento histórico mundial em que ele viveu:

— No caso de D. Pedro I, o autoritarismo e os embates constantes com o Parlamento e a imprensa não podem ser interpretados como falha de caráter. Ele foi criado e educado para ser um monarca absolutista, como haviam sido seu pai, sua avó e todos os seus antepassados em Portugal. Quando chegou a sua vez de assumir o trono, contudo, a história acabava de virar a página, saindo do tempo do absolutismo, em que o rei governa em nome de Deus e tem poderes ilimitados, e entrando no tempo do liberalismo, em que o rei precisa seguir a Constituição e negociar com o Parlamento. O grande marco mundial dessa mudança foi a Revolução Francesa. D. Pedro I não soube lidar com a mudança dos ventos da história.

Barbosa acrescenta que o autoritarismo do primeiro imperador do Brasil também se explica pelo contexto nacional:

— Em 1822, existiam vários projetos de Brasil que disputavam a hegemonia. O plano de D. Pedro I, em que o país independente seria uma Monarquia, não era o único. Houve grupos que lutaram para que o país se transformasse numa República e grupos que se mobilizaram para que o Brasil continuasse fazendo parte de Portugal. Para fazer o seu projeto prevalecer, D. Pedro I entendeu que precisava agir com mão de ferro.

 

 

Embora educado para ser absolutista como D. João VI, D. Pedro I foi obrigado a dividir o poder com o Parlamento (imagem: Debret/The New York Public Library)

 

Diante da resistência de D. Pedro I a aceitar a partilha do poder característica dos governos constitucionais, até mesmo o Senado, aliado natural do imperador, no fim da década de 1820 mudou de lado, juntou-se à Câmara e tornou-se adversário. Foi assim que a Lei de Imprensa de 1830 saiu do Parlamento diferente da desejada pelo monarca.

Apesar de prever até nove anos de prisão para quem cometesse abusos em jornais, livros, desenhos e discursos, inclusive críticas indiretas ao imperador, a nova lei estabeleceu que os réus seriam julgados por tribunais do júri — isto é, por cidadãos comuns, e não por juízes. Isso, na prática, acabou por anular todo o rigor contido na letra da lei. Ao contrário dos juízes, os cidadãos comuns normalmente estavam afastados das brigas políticas e costumavam absolver os jornalistas processados.

A historiadora Tassia Toffoli Nunes diz:

— Pouco depois da aprovação da lei, houve juízes e professores de direito que a criticaram a avaliando que ela levava à impunidade dos redatores. Isso quer dizer que o Parlamento conseguiu fazer frente à tendência absolutista e arbitrária de D. Pedro I e favoreceu a liberdade de imprensa.

Ela chama a atenção para o fato de a censura prévia das publicações não ter sido aventada em momento algum das discussões no Parlamento:

— Nem mesmo os senadores e deputados mais conservadores do Primeiro Reinado chegaram a propor a censura prévia. Esse tipo de abuso só seria colocado em prática no Brasil muito tempo mais tarde, no Estado Novo [1937-1945] e na ditadura militar [1964-1985]. Nesses dois períodos ditatoriais da República, regredimos a uma prática arbitrária característica dos tempos da Colônia.

Logo após a aprovação da Lei de Imprensa de 1830, o jornalista Líbero Badaró foi assassinado em São Paulo. Nas páginas de seu jornal, O Observador Constitucional, Badaró não poupava D. Pedro I. Embora não se tenha atestado o envolvimento do monarca, o crime comoveu a opinião pública e contribuiu para minar ainda mais o governo. Meses depois, em 1831, o imperador viu-se forçado a abdicar do trono.

A partir de 1830 e até o fim do Império, a imprensa brasileira foi, na prática, livre. O oposto de seu pai, D. Pedro II jamais se incomodou com as críticas publicadas. Foram frequentes as charges que o retrataram em situações ridículas. Um dos apelidos que os jornais adversários lhe deram foi Pedro Banana. Até mesmo fake news contra ele circularam sem sofrer repressão.

 

 

Embora jornais o ridicularizassem, D. Pedro II não perseguia a imprensa (imagem: Biblioteca Nacional Digital)

 

Numa carta à princesa Isabel, D. Pedro II explicou:

“Entendo que se deve permitir toda a liberdade nestas manifestações [da imprensa] quando não se dê perturbação da tranquilidade pública, pois as doutrinas exprimidas nessas manifestações pacíficas se combatem por meios semelhantes, menos no excesso. Os ataques ao imperador, quando ele tem consciência de haver procurado proceder bem, não devem ser considerados pessoais, mas apenas manejo ou desabafo partidário”.

Reportagem e edição: Ricardo Westin

Pesquisa histórica: Arquivo do Senado

Edição de multimídia: Bernardo Ururahy

Edição de fotografia: Pillar Pedreira

Montagem da Capa: Aguinaldo Abreu

Fonte: Agência Senado

 

 

SAIBA MAIS – Assista à conversa entre os Profs. Drs. Fábio Ferreira e Isabel Lustosa intitulada "O nascimento da imprensa no Brasil: entre D. João VI e D. Pedro I"

 

 

 

 

Se inscreva no nosso canal do YouTube:
https://www.youtube.com/revistatemalivre?sub_confirmation=1

 

 

Conhecimento e cultura: ouça os podcasts revistatemalivre.com e escute entrevistas com pesquisadores de diversas instituições de pesquisa do Brasil e do mundo clicando aqui

 

 

 

Voltar à seção notícias

 

Página inicial

 

 

Uma outra Carlota: evento realizado na Biblioteca Nacional apresenta novo perfil de Carlota Joaquina, fruto de recentes pesquisas desenvolvidas no âmbito das universidades brasileiras.

Niterói, 19 de setembro de 2013. 

 


A Biblioteca Nacional teve como convidados, na última terça-feira (17) , para o ciclo de debates "Biblioteca Fazendo História", os historiadores Francisca Azevedo (UFRJ) e Fábio Ferreira (UFF). O evento ocorreu no auditório Machado de Assis e teve como tema "Carlota Joaquina e as conspirações na corte". O debate, mediado por Marcello Scarrone, durou quase duas horas e foi transmitido, ao vivo, através do Instituto Embratel. 

 

À esquerda, a Prof.ª Dr.ª Francisca Azevedo (UFRJ). À direita, o Prof. Dr. Fábio Ferreira (UFF). Ao centro, Marcello Scarrone, mediador do debate.

À esquerda, a Prof.ª Dr.ª Francisca Azevedo (UFRJ). À direita, o Prof. Dr. Fábio Ferreira (UFF). Ao centro, Marcello Scarrone, mediador do debate.


Na ocasião, a Prof.ª Dr.ª Francisca Azevedo mostrou ao público o porquê do tratamento caricaturarizado de Carlota Joaquina. A historiadora apontou que este perfil deve-se, basicamente, a dois fatores. O primeiro, a questões de gênero, pois os contemporâneos da princesa do Brasil e da Rainha de Portugal realizaram relatos depreciativos pelo fato da personagem não enquadrar-se no papel que esperava-se de uma mulher da época. Carlota intervinha em situações e arranjos políticos reservados aos homens. Era decidida e afrontava-os. "Um dos relatos é o de madame Junot, extremamente preconceituoso em relação às sociedades ibéricas e, assim, ela foi implacável com Dona Carlota. Ela queria que Carlota fosse tal qual uma aristocrata francesa" contou Francisca Azevedo aos participantes do debate e complementou "Oliveira Lima, um dos maiores escritores sobre o período joanino, absorveu as ideias de madame Junot para reconstituir a imagem de Carlota Joaquina." 


Outra razão mencionada por Francisca Azevedo foi a historiografia liberal e a republicana. Inicialmente, Carlota Joaquina tinha a simpatia dos liberais de Portugal, pois sempre desejou abandonar o Brasil e retornar à península ibérica. No entanto, uma vez de volta à Europa, frente ao controle que os liberais tinham de Portugal, a Rainha consorte indispôs-se com este grupo político. Rejeitou assinar a carta constitucional, bem como, posteriormente, apoiou as pretensões absolutistas de D. Miguel. Além de não emoldurar-se no papel social dado às mulheres da época, Carlota Joaquina mostrava-se favorável ao absolutismo. Quando intelectuais liberais debruçaram-se para escrever suas versões da História de Portugal e do Brasil trataram Carlota Joaquina depreciativamente. 

 

No evento, Francisca Azevedo analisou o cartaz do filme “Carlota Joaquina, Princesa do Brasil” (Brasil, 1995), de Carla Camurati. Segundo a historiadora, a imagem reflete o imaginário popular sobre a personagem: luxuria e arrogância.

No evento, Francisca Azevedo analisou o cartaz do filme “Carlota Joaquina, Princesa do Brasil” (Brasil, 1995), de Carla Camurati. Segundo a historiadora, a imagem reflete o imaginário popular sobre a personagem: luxuria e arrogância.

 

Em sua fala, o Prof. Dr. Fábio Ferreira apontou as pretensões de Carlota Joaquina de assumir a regência da Espanha, uma vez que seus familiares estavam aprisionados na França por Napoleão Bonaparte. Narrou que Carlota Joaquina articulou com importantes lideranças políticas da Península e das Américas, a mencionar o portenho Manuel Belgrano como um dos exemplos. Fabio Ferreira mostrou que frente aos benefícios que o Rio de Janeiro recebeu com a presença de D. João, cidades como a do México e Buenos Aires tentaram levar Carlota Joaquina para comandar o Império espanhol a partir dos seus respectivos territórios. O historiador mostrou o perfil de articuladora política da esposa de D. João, bem como dados empíricos que mostram que Carlota destoava das mulheres de então. 


O pesquisador ainda levou ao público que, por diversos momentos, Carlota Joaquina quase alcançou o poder político. Primeiramente, pelos diversos abortos de sua mãe, que não dava descendência varonil à casa de Bourbon havia a expectativa de Carlota Joaquina ser, futuramente, a rainha da Espanha. Porém, quando Carlota tinha praticamente 10 anos, nasceu o primeiro varão dos Bourbon, o futuro Fernando VII, malogrando a possibilidade da então infanta espanhola de vir a chegar ao trono. Prosseguindo, o historiador Fábio Ferreira contou que, por pouco, na conspiração do Alfeite (1806), Carlota Joaquina não tornou-se regente de Portugal, no lugar de D. João. Também, por um triz, na ocasião do aprisionamento de sua família de origem, Carlota Joaquina não foi regente da Espanha. Por fim, por bem pouco, o projeto carlotista não vingou no Prata. Em tom de brincadeira, Fábio verbalizou que "Me dá a impressão que Carlota era azarada! Inúmeras vezes ela flerta com o poder político, quase o alcança, mas, por diversas circunstâncias, ela nunca o alcança." 

 

"A Espanha revogou a lei sálica (que impedia que mulheres chegassem ao tronol) em função de Carlota Joaquina, para que existisse a possibilidade dela vir a torna-se, futuramente, rainha espanhola. Mas, com o nascimento de seu irmão Fernando (1784), anulava-se, ao menos neste momento, a possibilidade de Carlota Joaquina governar a Espanha." disse o historiador Fábio Ferreira.

 

Uma questão levantada pelo público presente foi relativa à possibilidade de Carlota Joaquina ter tido vários amantes. "Se a D. Carlota teve ou não teve, não posso dizer! Pesquisei em arquivos do Brasil, da Argentina e da Espanha e não encontrei documentos que comprovem. Se ela tinha, ela fez tudo muito bem feito, de maneira que não deixasse provas!" disse Francisca Azevedo. Por outro lado, o historiador Fábio Ferreira expôs que "Praticamente ninguém se lembra que D. João chegou a ter uma filha com uma de suas amantes". 


Em tom de um leve bate-papo e em função de recentes pesquisas científicas desenvolvidas no âmbito das universidades brasileiras, o evento trouxe ao público uma Carlota Joaquina diferente da representada por séculos, seja por boa parte da historiografia em língua portuguesa, seja por parte de produções que alcançaram a TV e o cinema brasileiros, que acabaram por enveredar pela abordagem do personagem histórico pelo viés caricatural e depreciativo. Os historiadores Fábio Ferreira e Francisca Azevedo foram categóricos ao afirmar que a Carlota Joaquina que emerge das pesquisas acadêmicas é muito mais interessante e complexa do que a caricatura que é conhecida pela maioria da população. 

 


Representações de Carlota Joaquina nas telas da TV e do cinema nos últimos 30 anos. 

 

A Marquesa de Santos (Rede Manchete, 1984)

 

Personagem forte para uma grande atriz: Bibi Ferreira interpreta Carlota Joaquina na minissérie baseada no livro de Paulo Setúbal e adaptada por Carlos Heitor Cony e Wilson Aguiar Filho.

Personagem forte para uma grande atriz: Bibi Ferreira interpreta Carlota Joaquina na minissérie baseada no livro de Paulo Setúbal e adaptada por Carlos Heitor Cony e Wilson Aguiar Filho.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Dona Beija (Rede Manchete, 1986) 

 

Carlota Joaquina (Xuxa Lopes): austera e sensual na trama baseada no romance do mineiro Agripa Vasconcelos e adaptada para a TV por Wilson Aguiar Filho com direção de Herval Rossano e David Grinberg.

Agripa Vasconcelos e adaptada para a TV por Wilson Aguiar Filho com direção de Herval Rossano e David Grinberg.

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Carlota Joaquina, princesa do Brasil (Brasil, 1995)

 

Na sátira cinematográfica de Carla Camurati é a vez de Marieta Severo interpretar Carlota Joaquina.

Na sátira cinematográfica de Carla Camurati é a vez de Marieta Severo interpretar Carlota Joaquina.


 

 

 

O Quinto dos Infernos (Rede Globo, 2002) 

 

Carlota Joaquina volta às telas em mais uma comédia com tons caricaturais. Desta vez, Betty Lago é quem dá vida à princesa do Brasil. A minissérie foi escrita por escrita por Carlos Lombardi, Margareth Boury e Tiago Santiago, com direção geral de Wolf Maya.

A minissérie foi escrita por escrita por Carlos Lombardi, Margareth Boury e Tiago Santiago, com direção geral de Wolf Maya.

 

Para saber mais sobre Carlota Joaquina no acervo da Revista Tema Livre: 

Entrevista com a Prof.ª Dr.ª Francisca Azevedo 

– Artigo do historiador Fábio Ferreira sobre Carlota Joaquina e o Prata:
"A Presença Luso-brasileira na Região do Rio da Prata: 1808-1822" 

Lançamento do livro "Carlota Joaquina na corte do Brasil" 

Exposição sobre os 200 anos da chegada da corte ao Brasil: "Um Novo Mundo, Um Novo Império: A Corte Portuguesa no Brasil" 

– Veja fotos do Palácio de Queluz, onde Carlota Joaquina passou parte de sua vida em Portugal. 

Paço Imperial: matéria sobre o centro político do Império português no período joanino 

 

 

 

Voltar às notícias

 

 

Uma análise do discurso dos deputados orientais no Congresso Cisplatino

Por Fábio Ferreira

Fatos precursores à instalação do Congresso Cisplatino

Com o processo de emancipação do Vice Reino do Rio da Prata, o território que hoje corresponde à República do Uruguai, designada à época como Banda Oriental, mergulhou em uma árdua guerra civil, que levou à destruição de sua economia e à instabilidade política. A partir de 1811, quando José Gervásio Artigas rompeu com a Espanha e iniciaram-se os conflitos armados em solo oriental, Montevidéu foi controlada, no curto período de seis anos, por governos submetidos aos espanhóis, aos portenhos, às forças revolucionárias de Artigas e aos portugueses.
No que refere-se à presença lusa na Banda Oriental, observa-se que D. João organizou duas expedições militares para conquistar este território. A primeira ocorreu em 1811, no entanto, por pressões da Inglaterra e pela oposição de segmentos locais, o príncipe regente retirou, em 1812, suas forças do Prata. Porém, em 1815, D. João iniciou a organização de nova expedição para conquistar a antiga área de dominação espanhola. Para liderar a segunda invasão foi escolhido o general português Carlos Frederico Lecor, veterano das guerras napoleônicas. Lecor ocupou pacificamente Montevidéu em 20 de janeiro de 1817, após negociações com o Cabildo da cidade.
Uma vez no poder, o general continuou negociando e compondo politicamente com elementos da sociedade oriental, além de agir no sentido de enraizar a presença portuguesa na região. Como exemplo, durante a gestão lusa houve a concessão de títulos, condecorações e promoções na administração pública a segmentos da sociedade oriental, bem como vários casamentos de militares das forças joaninas com mulheres orientais, sendo que o próprio Lecor casou-se com Rosa Maria Josefa Herrera de Basavilbaso, em 1818. Neste mesmo ano, o general tornou-se, pelas mãos de D. João VI, Barão da Laguna.
Sobre a adesão dos orientais, Lecor trouxe para a sua órbita figuras locais de projeção, sendo que, muitos deles, anteriormente, foram coligados aos espanhóis, aos artiguistas e, futuramente, com a independência do Uruguai, permaneceram em posições de destaque na recém-nascida república. Mesmo com as diversas mudanças na conjuntura platina, vários elementos orientais conseguiram estar sempre atuando com relativa significância no jogo político local, ainda que a Banda Oriental fosse controlada por forças tão díspares, como, por exemplo, as de Artigas e as de Lecor.
Dos orientais aliançados ao general português e que tiveram destaque em outros momentos da história oriental, como o Congresso Cisplatino, podem ser citados Fructuoso Rivera, líder de milícias no interior da província e, a partir de 1830, presidente do Uruguai; o padre Dámaso Antonio Larrañaga, que compunha o Cabildo que negociou a entrada de Lecor em Montevidéu, além de ter sido eleito senador para representar a Cisplatina no Rio de Janeiro; Francisco Llambí, jurisconsulto e cabildante em 1817 e, após a independência oriental, ministro da república; o fazendeiro Tomás García de Zúñiga, que pelas mãos do Império do Brasil tornou-se Barão de la Calera; Juan José Durán, membro do Cabildo de 1817; e Jerónimo Pio Bianqui, igualmente cabildante à época da ocupação.
Em 1821, a continuidade da ocupação lusa das terras orientais encontrou-se ameaçada. A Revolução Liberal do Porto – que teve, também, adeptos nos domínios americanos dos Bragança, inclusive em Montevidéu, através de tropas de Lecor – alçou ao cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros e Guerra Silvestre Pinheiro Ferreira, opositor à permanência portuguesa no Prata. Por esta razão, em um dos seus últimos atos no Rio de Janeiro, em 16 de abril de 1821, dez dias antes de retornar definitivamente a Portugal, o monarca ordenou que Lecor realizasse em Montevidéu um congresso inspirado nas Cortes de Lisboa para que a sociedade local decidisse o seu futuro.
Como os interesses de Lecor e dos seus aliados eram pela permanência dos portugueses na região platina, agiram, o general e o estancieiro Juan José Durán, chefe político da província à época, no sentido de que o referido congresso votasse pela incorporação da Banda Oriental ao cetro joanino.
No que refere-se ao contexto oriental, a ordem para a realização do Congresso foi expedida depois de vários anos de conflitos armados que devastaram a Banda Oriental, destruição esta que foi registrada por vários contemporâneos à ocupação de Lecor, como, por exemplo, Saint-Hilaire , Emeric Essex Vidal e Breckenridge . Assim, à época da designação do Congresso, a sociedade oriental vivia relativa paz, conseguindo, inclusive, alguma recuperação econômica e, além disto, interessava a orientais ligados ao setor produtivo a união à Coroa lusa, por esta acenar com perspectivas como a da realização de transações comerciais com os seus vastos domínios, fatores que fortaleciam politicamente o projeto da incorporação ao Reino Unido português.
Deste modo, diante do exposto, qual o posicionamento dos congressistas frente à missão de decidir (ou legitimar o já acertado nos bastidores políticos) o futuro oriental? Seguir com a Casa de Bragança ou abandoná-la? Qual a argumentação escolhida pelos deputados para legitimarem suas escolhas? Enfim, uma multiplicidade de questionamentos podem ser feitos em relação ao Congresso Cisplatino e, no item a seguir, serão demonstrados e analisados alguns deles.

O Congresso Cisplatino e a atuação dos parlamentares orientais

Para a reconstituição das reuniões do Congresso Cisplatino utiliza-se como fonte no presente artigo as suas atas, que encontram-se em Montevidéu, no Archivo General de la Nación. O conjunto documental é manuscrito em espanhol, composto de oitenta páginas, onde estão distribuídas as suas dezenove atas. Além disto, estes documentos apresentam as listagens e assinaturas dos deputados que estiveram presentes nas sessões, os seus discursos, as propostas e votações em questão, que perpassam da mesa diretiva até a decisão pela incorporação ao Reino Unido português, dentre outros elementos.
Sobre as amplas possibilidades analíticas que este conjunto documental oferece, o contato do historiador com a ata de cada sessão fornece-lhe valiosos dados acerca de vários aspectos da sociedade oriental de então. Como exemplo, através das atas identifica-se a boa aceitação que a ocupação portuguesa tinha junto a uma parcela dos segmentos dominantes da sociedade oriental. Igualmente, verifica-se a exclusão das camadas populares do congresso, o temor dos congressistas de que surgisse no território oriental uma nova liderança revolucionária como a de Artigas, além de uma série de aspectos políticos, econômicos e sociais da época.
Expostas as questões acima, as atas demonstram que o Congresso iniciou-se no dia 15 de julho de 1821, contando com doze deputados, e não dezoito conforme estipulado inicialmente. Como congressistas, estiveram na seção de abertura
Juan José Durán, Diputado por parte de esta Capital [Montevidéu], Presidente en esta Junta, como Gefe político de la Província: el Sor. Cura y Vicario D.or D. Dámaso Antonio Larrañaga, y el Sor. D. Tomás Garcia de Zúñiga también Diputados por esta Ciudad, así como su Síndico procurador general D. Gerónimo Pío Bianqui – el Sor. D. Fructuoso Rivera, y el Sor D.or D. Francisco Llambí, Diputado por el vecindario de extramuros – el Sor D. Luis Pérez, Diputado por el Departamento de S. José – el Sor D. José Alagón, Diputado por el de la Colonia del Sacramento – el Sor D. Romualdo Gimeno, diputado p.r el de Maldonado el Sor D. Loreto de Gomenzoro, Diputado por Mercedes como su Alcalde territorial: el Sor D. Vizente Gallegos, que lo es de Soriano y D. Manuel Lagos, del Cerro-Largo […]
Posteriormente, outros deputados apresentaram-se: no dia 16, Mateo Visillac, representante de Colônia do Sacramento e, no dia 18, Alejandro Chucarro, deputado pela vila de Guadalupe, Salvador García, síndico suplente da mesma localidade, Manuel Antonio Silva, síndico de Maldonado e Romualdo Gimeno, também deputado por Maldonado.
Mesmo com o atraso desses congressistas, elegeu-se a mesa diretiva a 15 de julho. Como presidente foi eleito Durán, como vice-presidente, Larrañaga, e como secretário, Llambí. Assim, os primeiros aliados que Lecor conquistou na Banda Oriental estiveram no comando do Congresso.
No segundo dia, a ameaça bélica que circundava os orientais já se fez presente através da seguinte mensagem que Lecor enviou aos congressistas, e que consta da ata da reunião do referido dia:
Señores del Muy Honorable Congreso extraordinario de esta Provincia= S.M. El Rey del reyno unido de Portugal, Brasil y Algarbes, ha tomado en consideración las repetidas instancias, que han elevado á su real Presencia, Autoridades muy respetables de esta Provincia, solicitando su incorporación á la Monarquía Portuguesa, como el único recurso que en medio de tan funestas circuntancias, puede salvar el País de los males de la guerra y de los horrores de la Anarquía. – Y deseando S.M. proceder en un asunto tan delicado con la circunspección q.e corresponde á la Dignidad de su Augusta persona, á la liberalidad, de sus principios, y al decoro de la Nación Portuguesa, ha determinado en la sabiduría de sus Consejos, que esta Provincia, representada en el Congreso extraordinario de sus Diputados, delibere y sancione en este negocio, con plena y absoluta libertad, lo que crea más útil y conveniente á la felicidad y verdaderos intereses de los pueblos que la constituyen. – Si el Muy Honorable Congreso tubiere á bien decretar la incorporación a la Monarquía Portuguesa, Yo me hallo autorizado por el Rey p.a continuar en el mando y sostener con el Ejército el órden interior y la seguridad exterior bajo el imperio de las Leyes. Pero si el Muy Honorable Congreso estimase más ventajoso á la felicidad de los pueblos incorporar la Provincia á otros estados ó librar sus destinos á la formación de un Gob.o independiente, solo espero sus decisiones para prepararme á la evacuación de este territorio en paz y amistad conforme á las órdenes Soberanas – La grandeza del asunto me excusa recomendarlo á la Sabiduría del Muy Honorable Congreso: todos esperan que la felicidad de la Provincia será la guía de sus acuerdos en tan difiiles circunstancias = Montevideo y julio diez y seis de mil ochocientos veinteuno = A los S.S. de Muy Honorable Congreso de esta Provincia = Barón de la Laguna [Lecor]=

Na mensagem de Lecor verifica-se a afirmação do general sobre a existência de autoridades locais que anelavam a união com a monarquia portuguesa, a vincular, ainda, em sua escrita, este desejo à manutenção da ordem e à salvação do território oriental. Associava-se, então, a manutenção da paz à permanência dos portugueses na região, estando o temor à possibilidade do retorno aos conflitos bélicos presente em diversas reuniões do Congresso.
Na sessão do dia 18 foi colocada em discussão pelo presidente, Juan José Durán, a questão da incorporação propriamente dita:
[…] se propuso por el Sor Presidente, como el punto principal p.a que había sido reunido este Congreso – si segun el presente estado de las circunstancias del Pais, convendría la incorporacion de esta Provincia á la Monarquía Portuguesa, y sobre que bases o condiciones; ó si por el contrario le sería más ventajoso constituirse independiente ó unirse á cualquiera otro Gobierno, evacuando el territorio las tropas de S.M.F.
O contato com as atas permite ao pesquisador identificar que Bianqui, Llambí e Larrañaga foram os únicos deputados que discursaram, sendo favoráveis à anexação à coroa bragantina, expondo os seus argumentos sempre fazendo menção à guerra. Neste conjunto documental podemos verificar que em sua fala Bianqui afirmou que transformar a província em um Estado era, no âmbito político, impossível. O deputado acrescentou que para sustentar a independência necessitavam-se de meios, no entanto, o território oriental não possuía população nem recursos para que fosse governado pacificamente. Os orientais não teriam como impedir uma guerra civil, nem ataques externos, nem como conquistar o respeito das outras nações, além de que haveria a emigração dos capitalistas, voltando, assim, a Banda Oriental, a ser o “teatro da anarquia” e “a presa de um ambicioso atrevido”.
Observa-se que Bianqui utilizou o temor existente no imaginário oriental do retorno aos conflitos em sua argumentação, pois se este medo não fosse presente, não haveria razão do congressista ter enfatizado a possibilidade do retorno ao “caos”, nem mencionaria a possibilidade do surgimento de “um ambicioso atrevido”, aludindo, provavelmente, a um possível aparecimento de alguma outra liderança revolucionária como a de Artigas. A ameaça bélica, independentemente de existir ou não, independente do congressista acreditar nela ou não, estava a ser trabalhada intencionalmente em seu discurso no Congresso Cisplatino, afinal as cicatrizes dos conflitos armados da década anterior permaneciam abertas e o território oriental continuava circundado por uma gama de províncias que ainda viviam os horrores das guerras desencadeadas desde a Revolução de Maio.
Bianqui, ao anular a possibilidade da Banda Oriental em constituir-se estado autônomo, apontava, em seguida, a necessidade de incorporar-se a outro estado, excluindo Buenos Aires e Entre Rios em função de seus respectivos conflitos internos. A Espanha também foi descartada, pois segundo o deputado oriental, os pueblos já haviam votado contra ela e que Madri foi incapaz de manter a paz na província. Deste modo, para o congressista, não havia outra opção que não fosse a incorporação à monarquia portuguesa sob uma constituição liberal. Com a manutenção do poder luso, dizia o deputado, impossibilitar-se-ia a anarquia, o setor produtivo continuaria as suas atividades, sendo, assim, restituídos os anos de prejuízos, e os “arruaceiros” teriam que dedicar-se ao trabalho ou então sofrer com o rigor das leis.
As atas também mostram ao pesquisador que, em seguida, Llambí discursou. Ele alertou sobre a alta probabilidade de que com a saída das tropas de Lecor o território oriental viesse a sofrer novas invasões ou, então, mergulharia em uma guerra civil. Sem entrar no mérito se a análise deste parlamentar foi ou não exagerada, ela insere-se perfeitamente no contexto social da Banda Oriental. Por exemplo, mesmo não estando, no momento do Congresso, em armas contra Lecor e os seus aliados, o governo de coalização luso-oriental não poderia confiar totalmente em elementos como Juan António Lavalleja e a família Oribe – apesar de terem existido diálogos e aproximações, ao longo da gestão do general, entre estes diversos atores políticos, não se pode ignorar que os Oribe e Lavalleja iniciaram, em 1825, uma guerra civil contra Lecor e o seu grupo político. Além disto, em relação ao âmbito externo à província, o contato com uma gama de documentos da administração Lecor mostram que os governos limítrofes tinham o interesse de controlar a Banda Oriental e chegaram a elaborar projetos para ocupá-la.
Seguindo com a fala de Llambí, este retomou, corroborando com Bianqui, os conflitos que a Banda Oriental sofreu nos anos anteriores, a afirmar, inclusive, que mais da metade da população foi dizimada, bem como as suas riquezas, e que os orientais perderam o pouco armamento que tinham. Supondo eventuais exageros, inclusive para justificar o seu voto e legitimar a permanência lusa, identifica-se, mais uma vez, a ida aos anos de guerra, traumatizantes e sempre associados a uma gigantesca destruição – o que, por outro lado, não é contrário a outras fontes, como os supracitados relatos dos viajantes da época. Igualmente, detecta-se a ideia de que estes anos foram tão devastadores que a Banda Oriental ainda carregava os pesados danos destes conflitos que duraram praticamente uma década. Portanto, ao desenvolver a sua argumentação neste sentido, provavelmente o parlamentar o fazia por haver público receptor, “terreno fértil” para suas ideias, e que provavelmente não haveria quem se lhe opusesse (ou se o houvesse seria facilmente rebatido).
Llambí também apontou a devastação que a província encontrava-se e utilizou-se desta situação para argumentar a incapacidade desta tornar-se independente, e retomou a questão da estabilidade, já levantada no Congresso: “[…] Un Gobierno independiente pues entre nosotros, sería tan insubsistente, como lo es, el del que no puede ni tiene medios necesarios para sentar las primeras bases de su estabilidad.”
A possibilidade da incorporação a outros estados também foi abordada por Llambí. O congressista listou a Espanha, Buenos Aires, Entre Rios e o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Castela foi descartada por razões como a distância, a sua impossibilidade de resolver as mazelas orientais e, ainda, porque levaria a conflitos armados no interior da província entre seus partidários e seus antagonistas. As guerras em que Buenos Aires e Entre Rios estavam envolvidas impossibilitavam, nas palavras de Llambí, a união da Banda Oriental a estes estados. Assim, o deputado expunha que “A cualquier parte que vuelvo la vista me veo amenazado de los efectos de esta [a guerra]; y si à todos se les presenta con el horroroso aspecto que á mí, ningún mal deberémos temer tanto como él.”
Llambi ainda afirmou que, de fato, a Banda Oriental estava em poder das tropas portuguesas, o que não se podia evitar, e que qualquer resolução dos orientais, por melhor que fosse, podia ser destruída por alguém que pudesse agrupar um pequeno número de combatentes. O aventurar-se nestas contingências seria uma imprudência que os congressistas teriam que responder eternamente aos pueblos.
Identifica-se no discurso de Llambí uma forte dose de pragmatismo ao destacar a fragilidade da província para sustentar-se independente. Se Llambí acreditava em sua argumentação, ou se a mesma foi um meio de justificar o seu voto e de congregar partidários em torno da opção acordada com Lecor, ou simplesmente uma mera encenação, não é o objetivo do presente artigo. Importante é detectar a constante utilização do temor do retorno aos conflitos armados e que o discurso do deputado é um meio para o historiador identificar que a sociedade oriental à época tinha o seu imaginário temeroso no que refere-se às guerras em seu território.
Após a fala de Llambí, conforme constata-se nas atas, Larrañaga foi o deputado que discursou, demonstrando uma posição pragmática e o rechaço em relação à guerra, revelando também uma espécie de trauma no que refere-se aos conflitos armados. Larrañaga afirmou que os orientais encontravam-se, desde 1814, abandonados pela Espanha. Buenos Aires e as demais províncias platinas fizeram o mesmo, deixando a Banda Oriental sozinha em uma guerra muito superior às suas forças e, por esta razão, o religioso anulou qualquer ligação do território com as províncias limítrofes e com a Madri. Assim, detecta-se que a questão dos conflitos bélicos estava presente na argumentação de mais um dos congressistas.
Outro ponto a se observar é que Larrañaga afirmou que após dez anos de revolução, a província estava distante do ponto de partida e que o dever dos congressistas era conservar o que restou do seu aniquilamento e, caso o conseguissem, seriam, então, verdadeiros patriotas. Pragmaticamente, Larrañaga conclamou os deputados a afastarem a guerra e a desfrutarem da paz e da tranquilidade através da união da província à monarquia portuguesa. No entanto, esta união seria sob determinadas condições: o padre defendeu a autonomia da Banda Oriental, propondo que esta fosse considerada como um estado separado, conservando-se, por exemplo, as suas leis e autoridades no conjunto do Império português.
Da mesma forma que os outros deputados, o contato com a ata da sessão que discutiu a anexação permite afirmar que Larrañaga utilizava a possibilidade do retorno à guerra como legitimadora da opção pela permanência dos portugueses na Banda Oriental e, depois do seu discurso, acordava-se a incorporação do território oriental ao Reino Unido português:
Entónces por una aclamacion general los S.S. Diputados dijeron: Este es el único medio de salvar la Provincia; y en el presente estado à ninguno pueden ocultàrse las ventajas que se seguiran de la Incorporac.n bajo condiciones que aseguren la libertad civil […] En este estado, declaràndose suficientemente discutido el punto, acordaron la necesidad de incorporar esta Provincia, al Reyno Unido de Portugal, Brasil y Algarbes, Constitucional, y bajo la precisa circuntancia de que sean admitidas las condiciones que se propondrán y acordarán por el mismo Congreso en sus ulteriores sesiones, como bases principales y esenciales de este acto […]
Assim, no dia 18 de julho de 1821, os congressistas votaram, unanimemente, pela incorporação de Montevidéu e sua campanha ao Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.
Sucintamente, menciona-se que o conjunto das atas também mostra que, no dia 23, denominou-se a província recém anexada de Estado Cisplatino Oriental, e que nesta data decidiu-se que os cisplatinos teriam representação no Congresso Nacional em Lisboa. No dia 31, segundo a documentação, Lecor aceitou a anexação em nome de D. João VI, sendo que no quinto dia de agosto ocorreu o juramento da mesma, comparecendo Lecor, os congressistas, e todas as autoridades e funcionários de Montevidéu. No dia 8 houve a dissolução do Congresso e suas últimas ordens foram no sentido de enviar cópia das atas a Lecor, para informar ao rei e as cortes de Lisboa dos acontecimentos platinos.
Era mantida, assim, a estrutura de poder iniciada em 1817, aquando da ocupação de Montevidéu por Lecor, porém, a partir de 1821, legitimada não pelo Cabildo, organismo político-administrativo de âmbito municipal, mas por um Congresso representante de toda a província, que, a seu turno, encaixava-se nos moldes liberais, doutrina em voga e ascensão nos quadros do Império bragantino, que vivia a lenta agonia do Antigo Regime português.

Conclusão

Deste modo, conclui-se que o temor em relação ao retorno à guerra foi utilizado pelos congressistas para defenderem a incorporação à monarquia portuguesa e para legitimar a permanência da ocupação liderada por Lecor, sendo as atas importantes fontes para reconstituir o discurso dos deputados, seus argumentos para a criação do Estado Cisplatino Oriental e para analisar o temor existente na sociedade local no que refere-se à possibilidade do retorno aos conflitos bélicos.
Provavelmente, inseridos com sucesso na coalização luso-oriental, os deputados orientais utilizaram no Congresso a argumentação do retorno aos conflitos bélicos pelos seus interesses pessoais (e dos grupamentos que eles estavam vinculados) em incorporar a Banda Oriental à monarquia portuguesa. Bianqui, Llambi e Larrañaga empregaram argumentos plausíveis para respaldarem seus discursos, pois estavam inseridos em uma sociedade duramente marcada pelos anos de conflitos e com seu imaginário temeroso no que referia-se ao retorno das guerras. Além disto, não se pode ignorar que a ameaça bélica era um risco eminente não só para a Banda Oriental, mas para toda a região do Prata, visto os combates militares que as províncias limítrofes estavam mergulhadas, ratificando o quão plausível era a argumentação dos congressistas.
Assim, o discurso enfatizando as antagônicas e concretas possibilidades de guerra e de paz que desenhavam-se diante dos orientais, associadas à concreta recuperação do setor produtivo durante a ocupação lusa foi, sem dúvida, altamente persuasivo e influenciador da anexação à coroa portuguesa, em especial em um contexto social em que a população sofreu por longos anos em virtude de questões bélicas e da destruição da província.
Outro ponto é que mesmo que a participação popular tenha sido vedada no Congresso, sendo este constituído por membros dos segmentos dominantes, provavelmente, o que foi discutido em suas reuniões teve repercussão junto à sociedade oriental, criando, portanto, junto à população oriental argumentos favoráveis à atitude dos congressistas de anexarem o território oriental à monarquia portuguesa. Com os discursos dos deputados ecoando pela Banda Oriental, é provável que estes agregariam partidários e defensores de suas ações por eles terem sido importantes agentes que afastaram a guerra da traumatizada e exaurida província.
Sendo assim, a manutenção do poder português acenava ser, ao menos nos idos de 1821, a solução mais conciliatória e a menos conflituosa para a sociedade oriental e para os grupamentos locais mais destacados, representados no Congresso Cisplatino e partícipes da coalizão luso-oriental. No entanto, a opção dos orientais pela incorporação ao Reino Unido português não os livrou de novas guerras. Com a independência do Brasil, a pública adesão de Lecor ao Império e a fidelidade de parte de suas tropas a Lisboa fez com que conflitos bélicos fossem novamente estabelecidos em terras orientais, tendo, por fim, a situação oriental agravado-se após 1825, quando eclodiu a Guerra da Cisplatina.
Finalizando, o Congresso Cisplatino veio a mudar o destino oriental, pois uniu legalmente este território à Coroa de Bragança, oficializando, portanto, a ocupação lusa. Ademais, interferiu na geopolítica platina, mantendo territorialmente Portugal e, depois, o Brasil, no Prata, diretamente vinculados aos assuntos desta região, tendo que lidar com as constantes oposições e mudanças políticas características das províncias limítrofes à época. Agrega-se ainda que o resultado do Congresso, que levou à permanência de portugueses e brasileiros no território oriental, foi fato crucial para a eclosão da Guerra da Cisplatina, logo para a criação da República Oriental do Uruguai tal como os fatos se desencadearam no reinado de D. Pedro I.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E DOCUMENTAIS

ABADIE, Washington Reyes e ROMERO, Andrés Vázquez. Crónica general del Uruguay. La Emancipación, vol. 3. Montevideo: Banda Oriental, 1999.

ACTAS DEL CONGRESO CISPLATINO. Montevideo, 1821. Archivo General de la Nación.

BANDEIRA, Moniz. O expansionismo brasileiro e a formação dos Estados na Bacia do Prata: Argentina, Uruguai e Paraguai, da colonização à Guerra da Tríplice Aliança. Rio de Janeiro: Revan; Brasília: Editora UnB, 1998.

CASTELLANOS, Alfredo. La Cisplatina, la independência y la república caudillesca. Historia Uruguaya. Tomo 3. 1998. Buenos Aires: Ediciones de La Banda Oriental.

DEVOTO, Juan E. Pivel. El Congreso Cisplatino (1821): repertorio documental, seleccionado y precedido de um análisis. Revista del Instituto Histórico y Geográfico del Uruguay, t.XII. Montevideo: 1936.

DONGHI, Tulio Halperin. Historia Argentina de la Revolución de Independencia a la confederación rosista, volume III. Buenos Aires: Editorial Piados, 2000.

DUARTE. Paulo de Q. Lecor e a Cisplatina: 1816-1828. 3v. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1985.

FERREIRA, Fábio. A administração Lecor e a Montevidéu portuguesa: 1817 – 1821. In: Revista Tema Livre, ed.10, 25 abril 2005. Disponível em: http://www.revistatemalivre.com

____________. A atuação do general Lecor na incorporação de Montevidéu e sua campanha à monarquia portuguesa: as divergentes interpretações historiográficas no Brasil e no Uruguai. Jornadas de História Regional Comparada. In: Anais [CD-ROM] da II Jornadas de História Regional Comparada e I Jornadas de Economia Regional Comparada. Porto Alegre: PUCRS, 2005.

___________. Breves considerações acerca da Província Cisplatina: 1821 – 1828. In: Revista Tema Livre, ed.06, 23 agosto 2003. Disponível em: http://www.revistatemalivre.com

___________. Fontes para o estudo da história luso-platina: a correspondência do Barão da Laguna, 1821-1822. III Simpósio Nacional de História Cultural. In: Anais [CD-ROM] do III Simpósio Nacional de História Cultural. Florianópolis: ANPUH-SC; Clicdata Multimídia, 2006.

____________. O General Lecor e as articulações políticas para a criação da Província Cisplatina: 1820-1822. (276p.) Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro, 04/04/2007.

FREGA, Ana. Pertenencias e identidades en una zona de frontera. La región de Maldonado entre la revolución y la invasión lusitana (1816-1820). In: HEINZ, Flavio M.; HERRLEIN JR, Ronaldo. Histórias regionais do Cone Sul. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2003.

GOLDMAN, Noemi. Revolución, república, confederación (1806-1852). Nueva Historia Argentina. Tomo 3. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1998.

GOLIN, Tau. A fronteira: governos e movimentos espontâneos na fixação dos limites do Brasil com o Uruguai e a Argentina. Porto Alegre: L&PM, 2002.

LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.

NARANCIO, Edmundo M. La Independencia de Uruguay. Madrid: Editorial MAPFRE, 1992.

PACHECO, M. Schurmann e SANGUINETTI, M.L. Coligan. Historia del Uruguay. Montevidéu: Editorial Monteverde, 1985.

PADOIN, Maria Medianeira. Federalismo Gaúcho: fronteira platina, direito e revolução. Coleção brasiliana novos estudos, v. 3. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001.

PIMENTA, João Paulo G. Estado e nação no fim dos Impérios Ibéricos no Prata (1808-1828). São Paulo: Hucitec; Fapesp, 2002.

RELA, Walter. Uruguay cronologia histórica anotada: dominación luso-brasilenã (1817- 1828). Montevidéo: Alfar, 1999.

RIBEIRO, Ana. Montevideo, la malbienquerida. Montevideo: Ediciones de la Plaza, 2000.

SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2002.

 

 

 

 

Conheça outros artigos acadêmicos disponíveis na Revista Tema Livre.

 

Leia entrevistas com historiadores de diversas instituições do Brasil e do exterior clicando aqui.

 

 

Voltar à edição nº 14

 

 

 

D. João VI, o general Lecor e a criação da Cisplatina

Artigo de Fábio Ferreira
Mestre em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde defendeu a dissertação intitulada "O General Lecor e as articulações políticas para a criação da Província Cisplatina: 1820-1822."

 

Com o processo de independência dos antigos domínios espanhóis na América e a conseqüente desagregação do Vice Reino do Rio da Prata, a parte denominada Banda Oriental, que corresponde à atual República Oriental do Uruguai, atravessou uma árdua guerra civil, que destruiu grande parte do seu setor produtivo e levou à desorganização a sociedade oriental.

Neste quadro, o príncipe regente D. João tentou estender, em dois momentos, as fronteiras dos seus domínios americanos até o Prata, apossando-se da Banda Oriental. Em 1811, o príncipe realizou a primeira incursão militar nesta área. No entanto, por pressão da Inglaterra, D. João retirou as suas tropas no ano seguinte.

Em 1816 ocorreu a segunda tentativa expansionista, que obteve êxito. Nesse ano, as forças militares do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, lideradas pelo general português Carlos Frederico Lecor1, invadiram o território oriental e conquistaram pacificamente Montevidéu em 20 de janeiro de 1817, após articulações com o Cabildo desse núcleo urbano. A partir de então, Lecor instalou-se na cidade, que passou a ter um governo luso. Concomitantemente, as forças revolucionárias do oriental José Gervásio Artigas resistiam a Lecor, entretanto, em 1820, Artigas foi derrotado, exilando-se no Paraguai do ditador Francia.

Enquanto Lecor realizava a sua administração da Banda Oriental ocorria, em Portugal, mais especificamente no Porto, em agosto de 1820, a Revolução Liberal, que logo chegava a Lisboa e, no ano seguinte, proporcionava agitações em distintas partes do Reino do Brasil, como Pará, Bahia e Rio de Janeiro. Dentre as demandas dos revoltosos estava o estabelecimento das Cortes, a elaboração de uma constituição e o retorno de D. João VI para a Europa.

Em 26 de fevereiro, a guarnição militar do Rio de Janeiro rebelou-se e, com a participação do príncipe D. Pedro, obrigaram D. João VI a jurar a Constituição que estava a ser elaborada em Lisboa. Além disto, o monarca comprometia-se a retornar a Portugal e foi-lhe imposto um novo ministério, em que, dentre outras figuras, estava o liberal Silvestre Pinheiro Ferreira, que ocupou a pasta dos Negócios Estrangeiros e Guerra.2

Em 16 de abril, dez dias antes de retornar para Portugal, D. João VI expediu duas medidas importantes para a região do Prata. A primeira delas foi o reconhecimento da independência das províncias platinas em relação à Espanha. A segunda foi no sentido de resolver a questão da ocupação da Banda Oriental. Assim, ordenou-se a constituição do Congresso Cisplatino para que os orientais votassem o futuro do seu território.

Primeiramente, sobre o Congresso, a idéia deste partiu de Pinheiro Ferreira, que era contrário à permanência dos portugueses na Banda Oriental, argumentando junto ao rei que esta acarretava uma série de prejuízos, seja pela ação de corsários contra o comércio luso, seja pela despesa anual que gerava ao tesouro público.3

Outros fatores apontados pelo ministro liberal que deveria levar-se em conta para o abandono da Banda Oriental era o descontentamento e as insubordinações das tropas lusas estacionadas no Prata, bem como as reivindicações da Espanha em relação ao território oriental. Segundo Pinheiro Ferreira, se D. João VI não resolvesse a questão envolvendo a Banda Oriental antes de partir da América para a Europa, o monarca teria que negociá-la com os espanhóis quando estivesse de volta ao Velho Mundo,4 o que, evidentemente, colocava o rei português sob maiores pressões de Madrid.

Além disto, Pinheiro Ferreira inviabilizava a incorporação do território oriental ao Brasil, afirmando que um decreto não iria transformar os orientais em portugueses, sendo, assim, D. João VI não poderia contar com a fidelidade dos habitantes dessa província e, ainda, o ministro questionava a idéia de que a Banda Oriental desejava unir-se ao Brasil, argumentando que este era o anseio de alguns indivíduos, os aliados de Lecor, que se auto-intitulavam portadores dos desejos da província para fazer o que lhes fosse conveniente. Assim, a única solução que o ministro encontrava era a de que os orientais se reunissem em Assembléia para definir o futuro de sua província.5

Somada à questão de um possível abandono da Banda Oriental, Pinheiro Ferreira sugeriu o envio de João Manoel Figueiredo a Buenos Aires, em missão que mostrasse aos portenhos e aos governos circunvizinhos, como a República de Entre Rios, o desejo de D. João VI de ter relações amigáveis com eles, bem como para incrementar o comércio destes governos com o Reino Unido português. Na proposta do ministro, Figueiredo entraria, uma vez em Buenos Aires, em contato com Chile, Entre Rios, dentre outros governos, e "[…] ao General Barão da Laguna se dará ordem para que coopere com elle [Figueiredo] para restabelecer a boa intelligencia entre aquelles differentes Estados e os Povos do Brazil." Além disto, "Por esta occasião se lhes participará as medidas de liberal conducta que na maneira acima exposta S.M. tem adoptado a respeito da Banda Oriental como huma prova do espírito de Justiça e disinteresse de que o Governo Portuguez se acha animado"6

No próprio dia 16 de abril, Pinheiro Ferreira escreveu a Lecor comunicando que D. João VI ordenava que os orientais votassem pelo futuro do território ocupado, de maneira livre, sob a proteção das armas lusas, mas sem qualquer tipo de pressão. Além disto, Pinheiro Ferreira afirmava que o resultado mais provável do Congresso era o da Banda Oriental constituir-se em um Estado independente, então Lecor ficaria encarregado de acertar com o novo governo a proteção da fronteira e a segurança interna dos orientais. O governador do Rio Grande cuidaria das forças militares responsáveis pela fronteira entre o novo estado oriental e o Brasil.7

A união da Banda Oriental com o Brasil era definida pelo ministro como pouco provável, porém, ele qualificava como algo que não era impossível. Assim, Pinheiro Ferreira expunha que D. João VI desejava que Lecor permanecesse como governador e capitão geral da nova província.8

Por fim, João Manoel Figueiredo portava o ofício que seria entregue a Lecor com as ordens do Congresso Cisplatino e o general deveria ajudá-lo, para que se lograsse a paz com os vizinhos do Brasil. Entretanto, a missão de Figueiredo não foi duradoura. O cônsul apresentou-se ao governo de Buenos Aires em 28 de julho de 1821, porém, menos de um mês depois, em 21 de agosto, o cônsul expirava, nesta cidade, de maneira súbita.9

 

A BANDA ORIENTAL DE D. JOÃO VI E AS RELAÇÕES COM OS VIZINHOS DO REINO DO BRASIL

Para a melhor compreensão das formulações por parte do Rio de Janeiro das ordens para a realização do Congresso Cisplatino é mister a compreensão das relações da Banda Oriental e do Brasil de D. João VI com as repúblicas sul-americanas, tema deste item do artigo.

Sucintamente, sobre as relações de Lecor com os governos limítrofes, é importante observar que eram relacionamentos instáveis, de desconfiança mútua, que variavam de conflitos armados prontos a eclodirem a alianças contra inimigos comuns. Além disto, no que referia-se às relações entre a Banda Oriental e as antigas áreas de dominação espanhola, Lecor tinha o interesse em estar sempre bem informado do que estava a ocorrer nas províncias que compuseram o Vice-Reino do Prata e, até mesmo, em localidades mais distantes, como o Chile e o Peru.

Do mesmo modo, o general buscava manter boas relações, principalmente, com os governos de Buenos Aires e Entre Rios, provavelmente pelo fato de que estes apresentavam grande potencial para rivalizar com os portugueses, por questões como a proximidade geográfica e pelas pretensões destes governos em conquistar a Banda Oriental.

Evidentemente, a atenção dispensada por Lecor aos antigos domínios espanhóis era reflexo da preocupação que existia em setores do Reino Unido português em relação aos seus vizinhos hispânicos. O Correio Brasiliense expunha, em várias de suas edições, que os assuntos referentes aos governos limítrofes eram, depois dos de Portugal, os mais importantes para o Brasil. Observa-se, ainda, que se os assuntos dos vizinhos do Brasil eram relevantes, as questões que envolviam os governos do Prata eram-no ainda mais. O governo de D. João VI tinha interesse pelo que estava a acontecer no espaço platino, buscando informações sobre as províncias desta região. Pinheiro Ferreira entendia que as relações com os vizinhos do Prata era uma das questões mais importantes da sua pasta.10

Assim, além de líder militar e político, Lecor também funcionava como uma espécie de informante do governo do Rio de Janeiro sobre os acontecimentos do antigo Vice-Reino platino e, até mesmo, do Chile e Peru. Por sua vez, o general luso também tinha a sua rede de informantes em diversos pontos do Prata, sendo, deste modo, abastecido com dados concernentes aos fatos ocorridos nos territórios hispânicos.

Em função dos adventos ocorridos no Reino Unido português, em especial após os acontecimentos de fevereiro de 1821 na Bahia e no Rio de Janeiro, Buenos Aires começava a articular os meios para entrar em conflitos armados com Lecor, esperando, somente, o resultado de expedição buenairense enviada a Lima. Os desdobramentos do liberalismo em Portugal e no Brasil só vieram a fortalecer o projeto de Buenos Aires e, ainda, nesta cidade tinha-se a ciência de que restabeleceria-se na Europa a sede da monarquia lusa, que, por sua vez, na concepção portenha, poderia prejudicar o systema americano.11

Além disto, Buenos Aires sabia que no Manifesto Nacional os portugueses apoiavam as queixas da Espanha sobre a ocupação da Banda Oriental, bem como expressavam a sua insatisfação em relação aos altos custos da ocupação do território oriental e o conseqüente desejo de Portugal abandonar a conquista platina. Deste modo, nos planos de Buenos Aires, era chegada a hora de indispor-se com a Banda Oriental portuguesa. Segundo Lecor, os planos dos portenhos era expulsá-lo da Banda Oriental e, ainda, levar às províncias do Brasil a guerra, fomentando a separação do reino americano de Portugal.12

Assim, nesse contexto de desconfianças e ameaças mútuas, foram expedidas pelo Rio de Janeiro as já citadas medidas relativas ao Prata. Aos portenhos, em ofício de 16 de abril, Pinheiro Ferreira mostrava o desejo de D. João VI de ter relações de amizade com os vizinhos do Brasil, sendo que as províncias de Buenos Aires ocupavam o primeiro lugar e, expressava, igualmente, o reconhecimento do rei à independência portenha. No mesmo documento, o ministro português comunicava a realização do Congresso Cisplatino, mas com o cuidado de construir a imagem das Cortes de Montevidéu como feitas da maneira mais livre e popular, sem a menor sombra de coerções e de manipulações.13

Além disto, no ofício, havia a justificativa do reconhecimento da independência dos governos limítrofes não ter sido feita antes pelo monarca, associando-se, assim, esta ação à ascensão do liberalismo no Reino Unido português, bem como a outras questões internas e externas, sem mencionar no documento quais e, ainda, à política dos Estados europeus. Igualmente, o governo de D. João VI anunciava que receberia em seus domínios os agentes portenhos, fossem eles comerciais ou diplomáticos, com todas as honras e considerações.14

Seguidamente a estas exposições, Pinheiro Ferreira afirmava aos portenhos que esperava que o reconhecimento feito por D. João VI gerasse nas províncias vizinhas similar reconhecimento em relação aos domínios lusos.15 No mais, o ofício redigido por Pinheiro Ferreira para o governo instalado em Buenos Aires era enviado, através de cópias, para as províncias do interior, para o Paraguai, Chile e Colômbia.16

Entretanto, as amigáveis intenções do ministro não conquistaram a confiança portenha. Por mais que as comunicações dirigidas a Buenos Aires tenham sido repletas de expressões e vocabulários indicadores de uma política de boa vizinhança e típicos do liberalismo, Martin Rodriguez, que estava a frente do governo portenho, escrevia à Junta de Representantes da Província de Buenos Aires, ao Chile e ao Paraguai expressando a sua desconfiança e ojeriza em relação ao ministro liberal e ao Congresso Cisplatino (Ressalta-se que Martin Rodriguez tomava este posicionamento antes mesmo do congresso ser realizado).17

Na carta a Francia, Rodriguez expunha que acreditava que o reconhecimento das independências era um meio para obrigá-los a consentir na incorporação do território oriental ao cedro de D. João VI. Além disto, Rodriguez entendia a Banda Oriental como parte da nação que Buenos Aires também fazia parte.18

Em Buenos Aires havia a desconfiança do que poderia haver por trás do reconhecimento da independência dos governos do Prata. Suspeitava-se que poderia ser uma espécie de moeda de troca com as forças políticas platinas, para que estas reconhecessem a presença lusa na Banda Oriental, presença que acabou por ser votada pelos orientais no Congresso Cisplatino, conforme será apresentado no próximo item.

 

A CRIAÇÃO DO ESTADO CISPLATINO ORIENTAL

Uma vez expedida pelo governo de D. João VI as ordens para a realização do Congresso e tendo ciência das tensas relações que envolviam o território oriental e, principalmente, o governo de Buenos Aires, é válido ressaltar que Lecor escreveu, em fins de maio de 1821, a Silvestre Pinheiro Ferreira, informando que os habitantes da província temiam que os portugueses de lá saíssem, pois acreditavam que se isto ocorresse, a Banda Oriental seria novamente vítima dos conflitos armados, mergulhando, assim, em uma nova guerra civil.19 Identifica-se, nesta questão, o interesse de Lecor em manter o poder português na Banda Oriental, com a construção de uma argumentação que buscava convencer o ministro liberal da necessidade da permanência da ocupação.

Dias depois, Lecor expediu, em 15 de junho de 1821, as ordens para a convocação do Congresso e de seus deputados. A comunicação do general português foi dada a Juan José Durán, chefe político da província. De acordo com as ordens de Lecor, baseadas nas de Pinheiro Ferreira, os deputados deveriam ser nomeados livremente, sem violência e da maneira mais adequada às circunstâncias e costumes do país – palavra utilizada na documentação para definir a Banda Oriental – de modo que se fosse consultada a vontade geral dos povos. Além disto, os parlamentares deveriam representar toda a província para deliberarem sobre o futuro oriental, de modo a decidir como esta seria governada.20

No documento, Lecor pediu a maior brevidade possível na instalação do Congresso, para que o mesmo fosse instalado ainda em 15 de julho de 1821, logo, um mês depois, e transferia toda a responsabilidade da convocação e do processo eleitoral do Congresso Cisplatino para Durán. Assim, o chefe político da província ficou responsável pela definição do número de deputados que iriam compor o Congresso e a quantidade de parlamentares que cada pueblo ou departamento enviaria a Montevidéu. Ressalta-se que Lecor somente informou que o critério de seleção dos componentes do Congresso deveria ser proporcional ao número aproximado de habitantes de cada parte da Banda Oriental. Após as instruções de Durán, iniciou-se, na Banda Oriental, o processo de seleção dos deputados e seus suplentes para o Congresso Cisplatino.

É importante ressaltar que, quatro dias depois, em 19 de junho, basicamente um mês antes da primeira reunião do Congresso Cisplatino, Lecor escreveu ao conde dos Arcos afirmando que acreditava que o seu resultado seria o de incorporar a Banda Oriental aos domínios de D. João VI. Na carta, além do resultado do Congresso, pois os orientais várias vezes haviam pedido que D. João VI permanecesse no controle definitivo da província, Lecor expunha que estava a preparar o Congresso da maneira que fosse conveniente para resultar na incorporação à monarquia lusa e, assim, esperava a aprovação do rei, mas, também, de D. Pedro, dos seus métodos.21 Nove dias depois, em 28 de junho, Lecor escreveu outra carta ao conde dos Arcos, demonstrando novamente o conhecimento prévio do resultado do Congresso Cisplatino.22

Também confirmando o resultado estavam os ofícios enviados por Martin Rodriguez, em dois de julho de 1821, antes ainda da primeira reunião do Congresso, ao Chile, Paraguai e às províncias platinas:

Sabe el Gobierno por noticias reservadas y reservadisimas q.e ha podido recoger del Brasil y del mismo Montevideo, q.e ha emprezado á plantificarse el plan, que dejó dispuesto S. M. F. al retirarse p.a Europa, de agregar al territorio brasiliense toda la Banda Oriental de este Rio adoptando p.a esto el simulado arbitrio de consultar, por medio de un Cong.o […] 23

Não se pode ignorar o quanto Martin Rodriguez era antipático à ocupação de Montevidéu e ao governo português, nem a sua busca de gerar semelhante rejeição nas províncias que hoje compõem a Argentina e nos governos do Chile e do Paraguai. Entretanto, do mesmo modo, não pode-se ignorar que as informações contidas no ofício de Martin Rodriguez não diferem da das cartas de Lecor. Rodriguez afirmou, antes do resultado do Congresso, que este resultaria na incorporação da Banda Oriental ao Brasil, e que o mentor do plano era D. João VI.

Além disto, no citado ofício, o governador de Buenos Aires expunha que o reconhecimento da independência das antigas colônias de Espanha significava o desejo, por parte de D. João VI, de que, como moeda de troca, os hispânicos reconhecessem a incorporação da Banda Oriental. Também parte do resultado acordado, os portugueses teriam colocado uma série de agentes no interior da Banda Oriental para trabalharem positivamente junto à população o resultado do Congresso Cisplatino.24

Sobre o Congresso, este iniciou-se no dia 15 de julho, "[…] en conformidad de lo dispuesto por S.M.F. El Rey del Reyno Unido de Portugal, Brasil y Algarves y publicado para su observancia y cumplimiento por el Ilmo y Exmo Sor. Barón de la Laguna, comandante en Gefe del ejército pacificador de esta Provincia: llegado el caso de reunirse un Congreso general extraordinario para tratar y decidir sobre la suerte futura del País […]"25 tendo como deputados diversos aliados de Lecor, como o próprio Durán, Fructuoso Rivera e Tomás García de Zúñiga. Além destes, foram congressistas o padre Dámaso Antonio Larrañaga, Jerónimo Pío Bianqui e Francisco Llambí, que compuseram, em 1817, o Cabildo que entregou Montevidéu a Lecor.

Três dias depois da abertura do Congresso Cisplatino, no dia 18 de julho, os congressistas votaram, unanimemente, pela incorporação ao Reino Unido português. Outra questão válida de ressaltar é que os deputados estabeleceram a clara vinculação entre a anexação e a garantia de uma certa autonomia para a província dentro dos quadros da monarquia portuguesa, inclusive com representação no Congresso Nacional, com a manutenção do castelhano como seu idioma oficial e dos limites com o Brasil sendo anteriores ao processo revolucionário do Prata. Além disto, no Congresso determinou-se que o nome do novo território correspondente à Banda Oriental seria Estado Cisplatino Oriental.26

Complementa-se que os deputados estabeleceram como uma das cláusulas da incorporação a permanência de Lecor no poder, definindo que o general continuaria no comando do Estado Cisplatino: "Continuará en el mando de este Estado, el Señor Barón de la Laguna."27 O oriental responsável por certificar-se do cumprimento das condições para a incorporação e resolver juntamente com Lecor eventuais solicitações dos pueblos recaiu sobre Tomás García de Zúñiga28, um dos principais aliados de Lecor, que, inúmeras vezes, chegou a financiar a administração do general com seus próprios recursos financeiros.

Quase um mês depois da sua primeira reunião, em oito de agosto de 1821, o Congresso Cisplatino encerrou-se. As suas últimas ordens foram no sentido de enviar cópia das atas a Lecor, para que o general informasse os últimos acontecimentos ao rei D. João VI, que a esta altura já estava em Portugal, e as Cortes de Lisboa.29 Assim, as desconfianças portenhas de que as forças de Lecor na Banda Oriental permaneceriam, concretizaram-se no citado Congresso. De semelhante modo, concretizavam-se as afirmações contidas nas epistolas de Lecor de que a anexação ocorreria.

 

CONCLUSÃO

Assim sendo, é provável que o reconhecimento da independência das Províncias do Prata esteja relacionado com o Congresso Cisplatino, significando uma espécie de troca, pois o reconhecimento da independência poderia ter sido feito pelo monarca em outro momento. Evidentemente, a ascensão do liberalismo no Reino Unido português não pode ser negada, pois mudava a correlação de forças no âmbito interno e externo dos domínios joaninos, com a ascensão de novos ministros e a mudança de Portugal dentro do jogo diplomático europeu.

Provavelmente, partindo para a Europa, D. João VI desejava resolver definitivamente as pendências existentes no espaço platino, neutralizando, com o reconhecimento da emancipação, a oposição do governo de Buenos Aires ao governo português. Também é provável que significasse que o monarca acreditasse que o resultado do Congresso viesse a desagradar aos portenhos e, para amenizar a ira destes, reconhecia, assim, a sua independência.

Finalizando, de acordo com a documentação, antes mesmo da instalação do Congresso Cisplatino, já havia o conhecimento do seu resultado, mostrando-se que as Cortes de Montevidéu foram um simulacro – utilizando-se aqui as palavras de Martin Rodriguez – de representação. Além disto, não pode-se negar a ação de Lecor e do seu grupo de aliados políticos no Congresso Cisplatino para que se lograsse o resultado que lhes fosse conveniente. Assim sendo, as articulações e a habilidade política do general Carlos Frederico Lecor foram fundamentais para a criação e anexação do Estado Cisplatino Oriental ao Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.

_________________________________________________________________________

Notas

01 – Lecor, de ascendência francesa, nasceu em Portugal na década de 1760, ingressando no final do século XVIII no exército português. Lutou na Campanha do Rosilhão, onde, em 1794, foi ferido gravemente, quase falecendo, no entanto, isto não impediu que o militar participasse das lutas contra Napoleão Bonaparte, liderando, inclusive, a Leal Legião Lusitana. Lecor lutou em território francês e, com a derrota da França, conduziu as vitoriosas tropas portuguesas de volta ao seu país.
Findo os conflitos na Europa e com os interesses da monarquia de Bragança nas questões geopolíticas relativas ao espaço platino, as tropas portuguesas situadas no velho mundo foram enviadas para o Brasil. Lecor, na ocasião Governador da Praça de Elvas, liderou a expedição destinada ao Prata.

02 – NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e constitucionais: A cultura política da independência (1820-1822): Rio de Janeiro: Revan, FAPERJ, 2003, p.249 e SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal: 1807 – 1832. Viseu: Verbo, 2002, p.372.

03 – Silvestre Pinheiro Ferreira. "Memória e Cartas biográficas". Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1876-1877. Volume II, Rio de Janeiro, Tipografia G. Lenzinger & Filhos. 1877. Apud: Devoto, El Congreso Cisplatino (1821): repertorio documental, seleccionado y precedido de um análisis. Revista del Instituto Histórico y Geográfico del Uruguay, t.XII. Montevideo: 1937, p.163-164.

04 – Idem.

05 – Idem, p.164.

06 – Idem, p.167.

07 – Arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, livro "Rio da Prata". Apud: Devoto, op.cit., p.169-171.

08 – Idem.

09 – La Gaceta de Buenos Aires, nº66, 01 de agosto de 1821, p.309 (Acervo da Biblioteca Nacional de Buenos Aires); Carta de Francisco da Costa Pereira ao Barão da Laguna. Buenos Aires, 23 de agosto de 1821, p.1-2. Lata 396, doc.10, v.2, p.98-99 (Acervo do IHGB); Documentos para la Historia Argentina. Correspondencias generales de la província de Buenos Aires relativas a relaciones exteriores (1820-1824), t.XIV. Facultad de Filosofía y Letras. Buenos Aires, 1921. Apud: DEVOTO, op.cit., p.180.

10 – Fundo: Cisplatina, cx. 977, pac. 02, doc.19, p.55-61 (Arquivo Nacional do Rio de Janeiro); Silvestre Pinheiro Ferreira. "Memória e Cartas biográficas". Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1876-1877. Volume II, Rio de Janeiro, Tipografia G. Lenzinger & Filhos. 1877. Apud: Devoto, op.cit., p.163 e COSTA, Hipólito José da. Correio Braziliense, ou, Armazém literário, v.-XVI-XXIX. (1816-1822). São Paulo: Imprensa Oficial do Estado; Brasília: Correio Brasiliense, 2002.

11 – Carta do Barão da Laguna a Silvestre Pinheiro Ferreira. Montevidéu, 4 de abril de 1821, p.1. Lata 396, doc.10, v.2, p.30. (Acervo do IHGB).

12 – Idem.

13 – Arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, livro "Rio da Prata". Apud: DEVOTO, op.cit., p.171 e 172.

14 – La Gaceta de Buenos Aires, nº66, 01 de agosto de 1821, p.309 (Acervo da Biblioteca Nacional de Buenos Aires).

15 – Idem, p.310.

16 – Idem.

17 – Documentos para la Historia Argentina. Correspondencias generales de la província de Buenos Aires relativas a relaciones exteriores (1820-1824), t.XIV. Facultad de Filosofía y Letras. Buenos Aires, 1921. In: DEVOTO, op.cit., p.176.

18 – Carta de Martín Rodríguez a Gaspar Rodríguez Francia, Buenos Aires, 27 de julho de 1821. Apud: DEVOTO, op.cit., p.385-386.

19 – Carta do Barão da Laguna a Silvestre Pinheiro Ferreira. Montevidéu, 25 de maio de 1821, p.1-3. Lata 396, doc.10, v.2, p.35-37. (Acervo do IHGB).

20 – Carta do Barão da Laguna ao Conde dos Arcos. Montevidéu, 19 de junho de 1821, p.1. Lata 396, doc.10, v.2, p.48. (Acervo do IHGB).

21 – Carta do Barão da Laguna ao Conde dos Arcos. Montevidéu, 28 de junho de 1821, p.1. Lata 396, doc.10, v.2, p.49. (Acervo do IHGB).

22 – Documentos para la Historia Argentina. Correspondencias generales de la província de Buenos Aires relativas a relaciones exteriores (1820-1824), t.XIV. Facultad de Filosofía y Letras. Buenos Aires, 1921. Apud: Devoto, op.cit., p.177.

23 – Idem, p.178.

24 – El Argos de Buenos Aires, 21 de julio de 1821. (Acervo da Biblioteca Nacional de Buenos Aires).

25 – ACTAS DEL CONGRESO CISPLATINO. Montevideo, 1821. Archivo General de la Nación., f.1. (Acervo do Archivo General de la Nación, Montevideo)

26 – Idem, f.8v-27v.

27 – Idem

28 – La Gaceta de Buenos Aires, op.cit., p.326. (Acervo da Biblioteca Nacional de Buenos Aires)

29 – ACTAS DEL CONGRESO…, op. cit., f.39 e 39v. (Acervo do Archivo General de la Nación, Montevideo)

_________________________________________________________________________

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E DOCUMENTAIS

Fontes primárias

Archivo General de la Nación – Montevideo

ACTAS DEL CONGRESSO CISPLATINO. Montevidéu, 1821. Archivo General de la Nación.

Arquivo Nacional – Rio de Janeiro

COLEÇÃO CISPLATINA. Caixas 975-979.

Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) – Rio de Janeiro

LECOR, Carlos Frederico (Barão da Laguna). Guerra Cisplatina. Correspondência do Barão da Laguna. 1820 a 1822. Lata 396, doc. 10, 3v. (Acervo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB)

Biblioteca Nacional – Buenos Aires

EL ARGOS DE BUENOS AYRES. Diversos números: 1821-1822.

LA GACETA DE BUENOS AYRES. Diversos números: 1821-1822.

Fontes primárias impressas

COSTA, Hipólito José da. Correio Braziliense, ou, Armazém literário, v.-XVI-XXIX. (1816-1822). São Paulo: Imprensa Oficial do Estado; Brasília: Correio Brasiliense, 2002.

Fontes secundárias

ABADIE, Washington Reyes; ROMERO, Andrés Vázquez. Crónica general del Uruguay, vol. 3. Montevidéu: Banda Oriental, 1999.

ACEVEDO, Eduardo. Anales históricos del Uruguay, t. I. Montevideo: Casa A. Barreiro y Ramos, 1933.

AZEVEDO, Francisca L. Nogueira. Carlota Joaquina na corte do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

BERRA, F.A. Bosquejo histórico de la República Oriental del Uruguay. Montevideo: Francisco Ybarra, 1895.

BRANCATO, Braz Augusto Aquino. Don Pedro I de Brasil, posible rey de España (Una conspiración liberal). Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.

CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: A elite política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

CASTELLANOS, Alfredo. La Cisplatina, la independência y la república caudillesca. Historia Uruguaya, t.3. Buenos Aires: Ediciones de La Banda Oriental, 1998.

CASTRO, Celso; IZECKSOHN, Vítor; Kraay, Hendrik. Nova história militar brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.

DEVOTO, Juan E. Pivel. El Congreso Cisplatino (1821): repertorio documental, seleccionado y precedido de um análisis. Revista del Instituto Histórico y Geográfico del Uruguay, t.XII. Montevideo: 1937.

DUARTE. Paulo de Q. Lecor e a Cisplatina 1816-1828. 3v. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1985.

FERREIRA, Fábio. A administração Lecor e a Montevidéu portuguesa: 1817 – 1821. In: Revista Tema Livre, ed.10, 25 abril 2005. Disponível em: http://www.revistatemalivre.com

___________. Fontes para o estudo da história luso-platina: a correspondência do Barão da Laguna, 1821-1822. III Simpósio Nacional de História Cultural. In: Anais [CD-ROM] do III Simpósio Nacional de História Cultural. Florianópolis: ANPUH-SC; Clicdata Multimídia, 2006.

______________. O General Lecor e as articulações políticas para a criação da Província Cisplatina: 1820-1822. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

______________. La Independencia de Brasil y el Estado Cisplatino Oriental: articulaciones y conflictos políticos. In: Anais do 52º International Congress of Americanists. Sevilla: Universidad de Sevilla, 2006.

______________. A política de D. João VI para as províncias do rio da Prata: o caso da Cisplatina portuguesa. In: Anais do XXIV Simpósio Nacional de História. São Leopoldo: ANPUH; UNISINOS, 2007.

LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.

NARANCIO, Edmundo M. La Independencia de Uruguay. Madrid: Editorial MAPFRE, 1992.

NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e constitucionais: A cultura política da independência (1820-1822): Rio de Janeiro: Revan, FAPERJ, 2003.

PACHECO, M. Schurmann; SANGUINETTI, M.L. Coligan. Historia del Uruguay. Montevidéu: Editorial Monteverde, 1985.

PIMENTA, João Paulo G. Estado e nação no fim dos Impérios Ibéricos no Prata (1808-1828). São Paulo: Hucitec; Fapesp, 2002.

RELA, Walter. Uruguay cronologia histórica anotada: dominación luso-brasileña (1817-1828). Montevideo: Alfar, 1999.

SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal: 1807 – 1832. Viseu: Verbo, 2002.

TORGAL, Luís Reis; ROQUE, João Lourenço. O Liberalismo. MATTOSO, José. História de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.

WASSERMAN, Claudia. (Coord.). História da América Latina: Cinco séculos. Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2003.

 

 

 

 

Conheça outros artigos acadêmicos disponíveis na Revista Tema Livre.

 

Leia entrevistas com historiadores de diversas instituições do Brasil e do exterior clicando aqui.

 

 

Voltar à edição nº 13

 

 

As fugas de escravos da província de São Pedro para o além-fronteira

Artigo de Silmei de Sant'Ana Petiz Professor do curso de História do Centro Universitário Unilasalle. Mestre em história pela UFRGS e doutorando pela Unisinos. Autor do livro: Buscando a Liberdade. Fugas de escravos da Província de São Pedro Para o além-fronteira de 1811 a 1851. Passo Fundo: editora UPF, 2006.

A visibilidade histórica do negro riograndense pode ser entendida como decorrência direta de um enfoque historiográfico contemporâneo que busca recuperar a participação de significativos segmentos populacionais anteriormente excluídos do estudo da própria história. Entre esses estudos se destacam os que procuram aprofundar suas analises com relação à resistência escrava. Ecoando de certo modo o fortalecimento do movimento negro, a produção acadêmica interessa-se cada vez mais pela rebeldia escrava. Afirmando que os cativos não haviam se submetido passivamente aos desmandos senhoriais.

A historiografia brasileira da década de 1980, influenciada por estudos de autores norte-americanos como Eric Williams, Eugene Genovese, Stanley Engerman e Herbet G. Gutman, passaram a investigar a multiplicidade das experiências negras sob o escravismo, buscando as visões escravas da escravidão e da liberdade. Procuraram mostrar como aqueles que estiveram submetidos ao cativeiro tinham valores e projetos – diferentes de seus senhores – e lutavam por eles de variadas formas. Esses estudos contestam o entendimento da resistência escrava somente como fuga, rebelião e violência contra senhores e capatazes.

Autores como Maria Helena Machado, João José Reis e Robert Slenes, têm demonstrado que não é cabível a oposição entre resistência escrava e acomodação, preferindo a utilização do conceito "adaptação", que significa dizer que eram diversificadas as estratégias de acordo com as peculiaridades de cada região e de cada período do escravismo. Em um país de dimensões continentais parece evidente que adaptações teriam que existir, não tendo a escravidão um único padrão mas uma diversidade de possibilidades e enquadramentos. A historiografia mais recente parece ter se conscientizado disso e passou a empreender estudos com marcos espaço-temporais mais limitados, sem a pretensão de generalizar os resultados obtidos para todo o conjunto brasileiro.

Redimensionando a abordagem do tema, estes pesquisadores afastaram-se do debate sobre os modos de produção e passaram a analisar os significados históricos das lutas escravas enfocando o ponto de vista dos escravos. Avançaram no sentido de recuperar as praticas cotidianas, os costumes, as resistências e os modos de sentir, conviver, pensar e agir dos escravos.

Sob essa perspectiva, este texto tem por objetivo contribuir para o estudo da escravidão que existiu na antiga Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Concordamos com a necessidade de perceber que as diretrizes que marcaram as esferas de controle e de reprodução da ordem escravista contextualizavam-se no tempo e no espaço, marcos essenciais para o estudo das experiências históricas na sua singularidade.

A escravidão e as especificidades da fronteira riograndense na primeira metade do século XIX.

Desde os primeiros estabelecimentos populacionais na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, a delimitação das fronteiras resultou em um difícil problema para ser solucionado. A vasta zona da campanha, pouco habitada, foi um cenário de distintos conflitos entre espanhóis e portugueses. Produto de diversos interesses, o estabelecimento de uma linha divisória que delimitaria o território constituiu um verdadeiro dilema para os distintos governos.

A conjuntura da primeira metade do século XIX, na região platina, foi de forte intercâmbio e intercruzamento das relações que podem ser percebidos através da invasão luso-brasileira da Banda Oriental, da Guerra dos Farrapos, da Guerra Grande e do apoio brasileiro a invasão de Flores. Contudo, devemos considerar que a fronteira não será entendida apenas como um espaço de disputa e ocupação territorial, mas também como um espaço de convivências e praticas social.

Compreender a situação histórica da escravidão que existiu nessa zona, exige uma definição previa do espaço fronteiriço, uma vez que a fronteira tende a ser concebida de diferentes formas. Em sentido etimológico está associado a conceitos legais e político, mas é também uma zona de interpenetração e um espaço de permanentes contatos e trocas . Medianeira Padoin (1999) expressa, trabalhamos com a noção de espaço fronteiriço platino como espaço social e economicamente construído e que adquiriu um perfil de região, com um sentido totalizador enquanto espaço de circulação de homens, de idéias, de culturas e de mercadorias.

Este conceito que tomamos define mais os atributos econômicos e sociais do que uma realidade física de uma zona territorial que se cria como limite ou marca frente a outro território. Neste sentido, consideramos a zona geográfica da antiga Província de São Pedro do Rio Grande do Sul como parte integrante da região platina. Sua fronteira foi um espaço propicio ao intercâmbio, as transgressões, deserções e local privilegiado para as fugas de escravos. Ao longo dos mais de 400 quilômetros de fronteira seca entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai constitui-se um terreno fértil para o entrecruzamento da história regional.

Neste espaço fronteiriço a escravidão foi marcada por uma conjuntura muito particular, sobretudo no período analisado, quando esses diversos conflitos exigiram o uso indiscriminado de escravos-soldados, contribuíram para a ocorrência de fugas e favoreceram os constantes aliciamentos de cativos.

Diante dessa conjuntura de profundas vinculações internacionais, o negro escravizado exerceu os mais diferentes papeis: foi "produto" de comércio, foi soldado, foi fugitivo ou desertor, foi matéria de contrabando e por vezes um "companheiro" de longas jornadas acompanhando as peripécias de chefes caudilhos. Viveu e conviveu com constantes intercâmbios e foi, por certo, um sujeito conhecedor das especificidades que fizeram parte dessa região-fronteira.

Os escravos se relacionavam com comerciantes, desertores, e os demais sujeitos que se deslocavam para ambos os lados da fronteira, muitos devem ter conhecido os caminhos e as vantagens obtidas por homens livres que entrecruzavam a vida militar com negócios particulares. Conviveram com os medos e as incertezas de um cenário explosivo sempre sob o perigo da guerra e não devemos desprezar a astúcia daqueles que aprenderam a tirar vantagens dessas circunstâncias através de ações que pudessem minimizar a dor e o sofrimento cotidiano.

Na primeira metade do século XIX o Rio Grande do Sul conheceu seu maior contingente de escravos, sobretudo pela rápida expansão das charqueadas, crescimento das atividades agrícolas, pastoris e comerciais. Os dados censitários da época consideram que pelo menos um terço da população era formada por escravos1. Essa fase de prosperidade foi favorecida pela ocupação de luso-brasileiros que na década de 1820 após a ocupação da Província Cisplatina, se apossaram de extensas reservas de pastagem de gado e arruinaram as charqueadas locais, favorecendo a produção riograndense. Mesmo depois da independência uruguaia em 1828, estancieiros riograndenses continuaram agressivamente a mudarem-se para o Uruguai com escravos, capital e animais.

Nesse período, os negros escravizados podiam ser considerados uma força de mão-de-obra e uma reserva militar. Quando o governo provincial se defrontava com problemas militares, durante as numerosas crises fronteiriças, eles requisitavam ajuda as pecuaristas. Ao menos que a situação se tornasse critica, os escravos seriam os últimos na linha de frente de batalha, permitindo que estes continuassem com suas atividades nas estâncias.

Em 16 de novembro de 1835, o Estado Oriental do Uruguai comunicava através de um decreto, a proibição da introdução de escravos em seu território. Procuravam atingir, sobretudo, aos riograndenses que, com o advento da Revolução Farroupilha, contavam com o Uruguai como depositário de seus bens "móveis", por acreditarem que estariam mais seguros lá. Em oficio remetido pelo Império Brasileiro comunicava-se ao presidente da província: que o ministro das relações exteriores do governo do Estado Oriental do Uruguai, proibia a introdução de africanos no seu território, "quer a titulo de escravos, quer de colonos, feita em embarcações nacionais ou estrangeiras".2.

Medidas como essas foram, entretanto, de caráter limitado posto que a extensa fronteira dificultava qualquer tipo de controle e facilitava o contrabando e os constantes deslocamentos.

A partir de 1835 e durante dez anos a província de São Pedro do Rio Grande do Sul esteve emersa em um violento conflito. A Guerra dos Farrapos participou do cenário mais amplo da política platina da primeira metade do século XIX. As circunstâncias que a produziram estão ligadas à sucessão de lutas entre facções que configuraram a Guerra Grande uruguaia e os intermináveis conflitos entre Buenos Aires e as províncias interioranas na Argentina. Em todos esses acontecimentos foi significativa a presença de negros escravizados utilizados como soldados. Desta forma, por um certo tempo, coexistiram no espaço fronteiriço três grandes confrontos. A extensão dessas guerras afetou o espaço da fronteira através da elevação das fugas, emigrações diversas, deserções, confiscos, etc.

As características da fronteira facilitavam as rápidas incursões militares com arreios de reses e cavalos. A pratica da guerra foi caracterizada por devastações causadas por aprisionamentos e aniquilamento dos recursos do inimigo. Com relação aos escravos as guerras platinas ofereceram condições diversas de resistência, uma vez que nessas circunstâncias afrouxavam-se os meios coercitivos, facilitava-se à mobilidade e aumentava as possibilidades de que os mesmos contassem com a ajuda de terceiros, fato comprovado pela freqüência com que recebiam ativos estímulos de "fora" para rebelar-se. As fugas de escravos riograndense foram expressivas nesse período e não raramente eram denunciadas como facilitadas por espanhóis que se infiltravam entre os cativos com o objetivo de seduzi-los.

O certo é que, tanto riograndenses dissidentes, como uruguaios e argentinos estiveram desejosos por aceitar a participação militar de escravos nas suas causas. Estimulados pela facilidade geográfica, castelhanos tentaram influir na sublevação dos escravos de riograndenses, agravando os temores de senhores que já contavam com constantes conflitos e debilidades de um sistema sob permanente ameaça por parte daqueles que cotidianamente se opunham a escravidão.

Não por um acaso as fugas foram intensas com a passagem do lado brasileiro para o lado oriental, uma vez que do lado uruguaio a legislação amparava a fuga de estrangeiros. Entende-se, com isso, que as fugas além-fronteira foram uma importante característica da resistência praticada pelos escravos do Rio Grande do Sul frente às adversidades sofridas por sua condição. Foram facilitadas pelas guerras que assolaram o Prata quando recebiam maior estimulo externo e aspiravam através dos efetivos militares, a possibilidade de viver como livres.

As guerras platinas e a perspectiva dos escravos.

Na antiga Província de São Pedro, durante a Guerra dos Farrapos ao fugir, os negros não se limitavam, tão somente ao território da província ou do Império.. Muitos audaciosos ultrapassavam os limites e foram refugiar-se nos territórios de outras nações. Essas fugas acarretavam interferências diplomáticas e a inserção de cláusulas específicas de extradição, em instrumentos de tratados internacionais.

Sua importância explicita-se na quantidade de anúncios que aparecem nos jornais do século XIX, onde constam recompensas pela captura e dava-se a descrição do escravo fugitivo. Neste caso, não raramente, aparece a desconfiança de que o escravo dirigia-se para a fronteira.

Logo após a pacificação da província, foram freqüentes os reclames de riograndenses que buscavam informações sobre seus escravos. Entre 1848 e 1849 diversos levantamentos municipais registravam a fuga de escravos da Província de São Pedro para domínios estrangeiros. Esses documentos em seu conjunto registram a fuga de 944 escravos de 378 senhores que haviam se evadido durante o período farroupilha, das mais diversas localidades, tanto de republicanos quanto de legalistas.

O estudo dessas fugas nos remete, por sua vez, ao universo da escravidão e da utilização dos escravos durante o período farroupilha e a Guerra Grande uruguaia, permitindo o estudo das suas motivações e condições de existência.

Os negros fugiam porque a sua luta era por uma causa pessoal, ou seja, pela liberdade. Para estes, a guerras representou uma possibilidade concreta de mudança, ou seja, o abandono de um cotidiano muitas vezes enfadonho e cruel, pelo menos enquanto durasse o conflito em questão. Helga Piccolo, enfatizou essa questão da seguinte forma: "o papel decisivo jogado pela Fronteira para solapar o escravismo afrouxava os laços de dependência, dificultava a coerção e possibilitava a insubordinação"3.

Esse empreendimento crescerá demasiadamente durante os conflitos, levando ao desespero os proprietários riograndenses que não conseguiam coibir as fugas e não encontravam respaldo para as suas preocupações no Estado, que se encontrava debilitado e sem forças para proteger seus interesses.

Existem indícios de que uma boa parte dos escravos conhecessem tal possibilidade, é o que se compreende através de casos, como o do escravo Salvador, do município de Cruz Alta, que ameaçado de ir a leilão, como forma de pagamento por dividas deixada por seu senhor, insurge-se contra tal medida, afirmando que "no caso de ter que servir a alguém, que fugirá para o Estado Oriental"4.

A analise dos documentos sobre as fugas demonstra a existência de redes de relações que se estabelecia na tentativa de localizar os fugitivos ao mesmo tempo em que informam sobre a existência de laços de solidariedade ou de interesses econômicos estabelecidos entre escravos e os demais indivíduos daquela sociedade.

A crioula Antônia, de 25 anos, era rendeira, costureira, lavadeira e gomadeira, fugiu em 08/03/1843 para o Estado Oriental e ali encontrou abrigo na fazenda de um tal Domingos Lavandeiro, muito além do Rio Negro, onde foi vista. Tinha cicatriz em um ombro e marcas de queimadura de fogo"5.

A fuga, neste caso, pode ter sido motivada pelos castigos e evidencia uma clara tentativa de mudança de senhor. Fato que talvez tenha sido facilitado pelos dotes da escrava, que executava tarefas típicas de uma doméstica e de grande beleza física, tinha os pés pequenos, lábios grossos, bunda saltada, era vaidosa e costuma prender o cabelo. Informações que seu senhor fez questão de ressaltar, como que adivinhando o motivo da sedução.

Já o escravo Albino, de 30 anos, pardo, natural de São Paulo, foi considerado por senhor como um bom campeiro, salgueador e lenhador. Continha marcas de surra e sinais de laços pelas costas, "fugiu durante a revolta e consta existir como capataz em uma estância além das pontas do Quarahim, denominado Gesca"6.

Como podemos perceber, o fato de Albino estar residindo em uma outra estância, na condição de capataz, indica que sua aventura lhe surtiu resultado, além disso, parece ter sido bem sucedido por causa de suas habilidades profissionais como foram apontadas por seu senhor de direito.

Colocando-se sob a dependência de um outro senhor os escravos procuravam obter ganhos e nessa situação estabelecia-se, necessariamente, um pacto de cooperação, em que teriam condições de receber certas "regalias" posto que seu "novo senhor" precisa contar com a sua complacência visto que ao aproveitar-se do trabalho do escravo foragido estava em desacordo com a lei e podia a qualquer momento ser denunciado pelo escravo.

Evidenciam a iniciativa própria, de indivíduos nada passivos, ao contrário, espertos, inteligentes, determinados. É o que podemos evidenciar de relatos como o da senhora Bernardina Maria Ferreira, que "indo buscar a sua escrava, Maria, na vila do Salto, em presença do Juiz de Paz (..) foi exigido pela negra que a dita senhora apresentasse o titulo de compra, o que foi logo e prontamente exigido pelo Juiz. Não tendo outra escolha, a senhora necessitou retornar ao Rio Grande , a fim de buscar o documento. Quando voltou a vila do Salto "satisfazendo a vontade do juiz, não apareceu mais à dita escrava e tem-se que a mesma esteja escondida".

Esse caso indica a escrava era conhecedora da realidade fronteiriça, e sabia o que lhes reservava a aventura de se dirigir para o além-fronteira. Nos documentos que analisei encontrei quase sempre expressões do tipo "apresentou-se em Taquarembó", "fugiu procurando abrigo na fronteira", ou "dirigiu-se para o interior do Uruguai". Essas informações dão a entender que a maioria, assim como a preta Maria, sabia o que estavam fazendo, para onde e o que fariam após a fuga.

Há também o indicativo de que o negro buscava na fuga uma possibilidade para a sociabilidade e, mesmo diante da precariedade do que lhe era possível, alcançou nas fugas um momento de encontro. Senhores, vizinhos e parentes narram as peripécias de negros que, separados pela aquisição, mas próximos e com relativo contato, fogem juntos e procuram, na ajuda mutua e na convivência, uma melhor sorte. Em outros casos registram grandes aventuras e a luta de muitos que se aproveitavam das circunstancias bélicas para se afirmar como sujeitos lutando por sua autonomia.

Esse foi o caso do pardo Vicente, que tinha 32 anos de idade quando iniciou a guerra, até então servira como carpinteiro ao capitão Felipe Nery em Rio Pardo. Era uma exceção entre os seus companheiros de cativeiro pois sabia ler e escrever. Além de conhecer serviços de carpintaria era também copeiro e sabia traçar muito bem obras de palha grosseira. Em 1837 achava-se servindo entre os rebeldes da província, talvez tenha ingressado nessas fileiras acompanhando seu senhor, tenha sido capturado pelos farrapos ou mesmo se apresentado espontaneamente após ter fugido. Nunca saberemos ao certo, contudo, já no ano de 1838 por iniciativa própria "desertou" dos farrapos e fugiu em direção a fronteira. Neste mesmo ano foi visto servindo como cabo entre milicianos estacionados em Paysandu. Não satisfeito, em fins do mesmo ano passou para a Província de Entre-Rios e consta que "assistiu" no exército Entre Riano a Batalha do Pago Largo. Nesses anos de fuga, além de trocar de localidades com freqüência, também consta que aprendeu a falar "castelhano muito bem".

Ao escolher o caminho da fronteira Vicente agia conscientemente, provavelmente colocando em pratica um plano antigo. Como morador da vila de Rio Pardo e escravo de um militar, tinha acesso a informações sobre os caminhos a percorrer e os perigos a enfrentar. O fato de ter servido como cabo poucos anos após a fuga, comprova que sua estratégia foi acertada, quando avaliou os perigos que teria que enfrentar.

Ao longo do caminho pode ter parado em abrigos que o tenham aceitado por postar documentos falsos, mais fáceis de serem obtidos por alguém alfabetizado fato que na época era raro mesmo entre os livres. Não se descarta a possibilidade de que estivesse acompanhando outros desertores que também procurassem asilo na Província Oriental do Uruguai. Ele próprio era pardo claro e por certo soube avaliar que essas questões facilitavam, por exemplo, o despistar de bandos armados que se organizavam para capturar negros fugitivos visando rouba-los e vende-los posteriormente. Talvez tenha tido que furtar para obter meios de subsistência e avalia-se que as distâncias devem ter sido maiores para ele, visto que era um mal cavalheiro.

Bastante elucidativo foi o caso do escravo João, um cabra fubá, de 49 anos, que fugiu da estância do senhor José Rufino dos Santos Menezes em 1836, "quando do inicio da guerra". Na ocasião, tinha o oficio de domador: seus dedos dos pés eram bem tortos, como era comum entre escravos que executavam esse oficio. Natural de São Paulo, procurou como destino a Confederação Argentina. Apesar de ser um "bom domador e campeiro", gostava mesmo era de cantar e tocar viola. Após a fuga, foi visto em Corrientes, onde era conhecido como El Moreno Cantador. Pouco tempo depois de ter fugido, arranjou-se com uma negra, também brasileira e fugitiva, com quem casou e teve filhos, ambos faziam do seu modo de vida andar tocando e cantando pelos bailes e festas populares.

A musica também foi uma das predileções do escravo Daniel , um mulato de cara redonda, olhos pretos grandes e cabelo carapina. Tinha sido um escravo doméstico do capitão João Marcos de Araújo Pereira antes de ser vendido à dona Ursula Correia da Câmara em Rio Pardo, cidade onde nasceu . Em 1836 tinha 27 anos quando passou a fazer parte do exército republicano servindo na banda de músicos. Talvez tenha sido um dos primeiros a tocar o hino republicano, composto por um mulato em Rio Pardo, quando essa cidade esteve nas mãos dos farrapos. Em 1839 desertou e consta que tenha passado para o Estado Oriental, onde é conhecido pelo nome de Damião.

Trocar de nome, portar documentos falsos e passar-se por forro foram as principais estratégias utilizadas pelos escravos que fugiam durante a guerra. O escravo Antônio fugiu em novembro de 1845. Tomou a direção da fronteira, passou a se chamar André e no mesmo ano sentou praça nas forças do tenente Pinto quando este comandava o Serro Largo. Seu senhor -o vereador João Francisco Vieira de Braga- sabia do seu paradeiro por intermédio de terceiros e prestou diversas reclamações ao comandante do departamento do Serro Largo que nada fez a seu favor e ainda agravou o seu prejuízo mandando o escravo para o centro da campanha do Estado Oriental.

Os soldados-escravos eram categorias distintas, o uso considerável desse expediente causou grande agitação na província. Em diversos aspectos, certamente, os escravos sabiam disso e souberam obter ganhos pessoais multiplicando as formas de resistência. Segundo relato das autoridades que conviveram com o problema atribuía-se à intensidade das fugas a "mão oculta dos castelhanos" que se aproveitavam da situação para seduzir negros riograndenses.

Esse foi o caso do escravo Joaquim, um africano de 36 anos, cozinheiro seduzido em 1836 por um correntino que o passou ao major Lopes do Corpo do Coronel Diogo Lamas que o tornou seu criado. O próprio comandante Lamas contava, por sua vez, com um assistente de nome Tomas, africano de 38 anos de idade também levado do Rio Grande do Sul.

Obviamente, nem todos os escravos foram bem sucedidos com as fugas, mas é significativa a existência desses casos como os apontados acima, que comprovam a real possibilidade do escravo obter ganhos através de ações próprias, aproveitando da momentânea debilidade da província e as especificidades fronteiriças que como vimos foram forte estimulo a fuga de escravos.

_________________________________________________________________________ Notas

01 – Em 1814 sobre um total de 70.656 habitantes, 20.611 era escravos (29%), 5399 era libertos, com os quais os negros somavam 37% da população.

02 – Conforme Códice, Legislação No.59 pg.286. Lei de escravos do Governo do Império AHRGS.

03 – Caderno de estudos n6, pg.9.

04 – CF Inventário Post-mortem de Joaquim da Cruz Moreira. Cartório de Órfãos e Ausentes de Cruz Alta AHRGS maço 3 n95.

05 – Grupo Documental Estatística, maço 1, lata 531. AHRGS.

06 – Idem.

_________________________________________________________________________ BIBLIOGRAFIA

BAKOS, Margaret Marchiori. A escravidão negra e os Farroupilhas. In PESAVENTO, Sandra J.; DACANAL, José Hildebrando [Orgs.]. A Revolução Farroupilha: História e interpretação. [Série Documenta, 20] Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.

CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional: O negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

CESAR, Guilhermino. Ocupação e diferenciação do espaço. In: DACANAL, José Hildebrando; GONZAGA, Sergius [orgs.]. RS: economia e Política. 2. ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1979.

CLEMENT, Hebe. La Abolicion de la escravatud em América Latina. Buenos Aires: Editora Pleyade, 1991.

GUAZZELLI, Cesar Augusto Barcellos. O horizonte da província: a República riograndense e os caudilhos do rio da prata (1835-1845). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro. Tese de doutorado, 1998.

GEBARA, Ademir. Escravos: fugas e fugas. São Paulo: Revista Brasileira de História, Vol.6 N.12 março/agosto. p. 89-100, 1996.

GUTFREIND, Ieda. A historiografia riograndense. Porto Alegre: ed. Da universidade/UFRGS, 1992.

LARA, Silvia H. Campos da Violência. Escravos e senhores na Capitania do Rio de Janeiro 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

LAYTANO, O negro e o espírito guerreiro nas origens do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Revista do IHGRGS. 1o.Trimestre, 1937.

LIMA, Solismar. Resistência e punição de escravos em fontes judiciais no Rio Grande do Sul: 1818-1833. Porto Alegre: PUCRS. Dissertação de mestrado, 1994.

MACHADO, Maria Helena P. T. Crime e escravidão: Trabalho, Luta, resistência nas lavouras paulistas 1830-1888. São Paulo: EDUSP, 1987.

MAESTRI FILHO, Mario. O escravo gaúcho: resistência e trabalho. [Coleção Tudo é História, 93]. São Paulo: Brasiliense, 1984.

PICCOLO, Helga Iracema Landgraf. A resistência escrava no Rio Grande do Sul. Cadernos de Estudos da UFRGS, n.6, out. 1992.

REIS, João José e SILVA, Eduardo. Negociação e conflito. A resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Prof. Dr. Carlos Gabriel Guimarães (Universidade Federal Fluminense)

A seguir, a entrevista que o historiador Carlos Gabriel Guimarães concedeu a Revista Tema Livre, no dia 16 de dezembro de 2005, no Campus do Gragoatá da Universidade Federal Fluminense. Na entrevista, dentre outros assuntos, o historiador questiona o mito em torno de Irineu Evangelista de Sousa, o Barão/Visconde de Mauá e, ainda, fala da ação dos comerciantes portugueses e ingleses no mundo luso-brasileiro.

Revista Tema Livre – O Sr. é o presidente da Associação Brasileira de Pesquisa em História Econômica (ABPHE). Assim, o Sr. pode falar um pouco sobre a instituição?

Carlos Gabriel Guimarães – Sou o atual presidente da ABPHE, eleito em 2005, com mandato até 2007, quando teremos, em Aracajú, o VII Congresso Brasileiro de História Econômica e a 8ª Conferência Internacional de História de Empresas, sob a organização do Prof. Dr. Josué Modesto dos Passos Subrinho, atual reitor da Universidade Federal de Sergipe e vice-presidente da ABPHE.

A ABPHE surgiu oficialmente em 1993, no I Congresso Brasileiro de História Econômica e 2ª Conferência Internacional de História de Empresas, que foram realizados na USP, e teve como primeiro presidente, o Prof. Dr. Tamás Szmrecsányi da UNICAMP.

Hoje, a ABPHE tem mais de 200 associados, do Amazonas ao Rio Grande do Sul, além de alguns sócios estrangeiros. Destaco aqui que é uma associação que envolve economistas e historiadores, mas, também, temos sociólogos, antropólogos, enfim, acho importante essa diversidade, acho que isso caracteriza a ABPHE.

A ABPHE vem estimulando o retorno das pesquisas em história econômica, após a queda ocorrida, principalmente, entre os anos de 1980 e 1990. Muitos estudos estão sendo realizados, especialmente por historiadores da história econômica social. Vale lembrar que grandes pesquisadores da história como Kátia Matoso, Maria Yeda Linhares, Eulália Lobo e Fernando Novais fizeram suas pesquisas iniciais em história econômica. Chamo a atenção dos jovens historiadores que acham que a história econômica está apenas calcada em números. Lembro que, mais importante que a questão quantitativa, está a pesquisa sobre os atores sociais.

RTL – O Sr. pode falar, resumidamente, sobre o curso que o Sr. é coordenador, a Pós Graduação Lato Sensu em História do Brasil da UFF?

Guimarães – A pós-graduação lato sensu em História do Brasil é uma das especializações oferecidas pelo Departamento de História da UFF. Considero importante que a Universidade Pública ofereça esse tipo de curso, pois auxilia na qualificação profissional da sociedade e promove a mudança da atuação da academia, passando a ser mais próxima da população. Com o curso procuramos realizar esta mudança, com aulas aos sábados e tendo como alunos, principalmente, professores da rede pública e privada dos ensinos fundamental e médio, além de profissionais de outras áreas, como jornalismo, direito e geografia. Muitos alunos trabalham de segunda a sexta, e se esforçam para se atualizarem aos sábados, assim, é um caminho de mão dupla, porque passamos conhecimento, mas temos contato com outra realidade. Por ser um curso pago, temos recebido muitas criticas por parte daqueles que consideram que estamos privatizando a Universidade. Mas é importante ressaltar que da receita do curso, aproximadamente entre trinta e trinta e cinco por cento vai para os cofres da Universidade, para o Departamento de História e para o Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. O restante é para pagar as despesas com professores e funcionários. Infelizmente temos que cobrar, já que não podemos usar a carga horária destinada a outras atividades, como, por exemplo, as aulas na graduação, para atender a esse tipo de curso.

RTL – O Sr. esteve em Portugal fazendo o pós-doutorado. Assim, pode contar-nos, sucintamente, sobre a sua pesquisa lá?

Guimarães – Eu fiz uma pesquisa com bolsa da CAPES, fiquei lá, ao todo, por nove meses, e foi um estudo envolvendo mercadores ingleses em Lisboa e no Brasil na primeira metade do século XIX. Esta pesquisa foi desdobramento da minha tese de doutorado, que foi sobre a Sociedade Bancária Mauá, MacGregor & Cia., sendo que o Mauá é, na verdade, um mito.

RTL – Fale-nos a respeito do mito do Mauá.

Guimarães – Antes de falar do mito, vamos falar um pouco dos comerciantes ingleses, que muitos deles estão ligados ao Mauá, como o Richard Carruthers. Com a pesquisa em Portugal consegui mapear o irmão dele, o Guilherme Carruthers.

O Richard Carruthers, antes de chegar ao Brasil, foi para Lisboa com o irmão, em 1822/23, e depois veio para cá. É uma trajetória que os ingleses faziam no mundo colonial português, a maioria parava em Lisboa e, depois, ia para o Brasil, ou para outras praças dentro do Império Português. Isso significa uma questão política e econômica. No caso dos irmãos Carruthers, o Guilherme ficou em Lisboa e o Richard veio para o Rio de Janeiro e eles se associaram a grandes negociantes portugueses. O Guilherme se associou ao José Bento de Araújo, um dos maiores negociantes do vintismo português. No Rio de Janeiro aconteceu à mesma coisa, o Richard se associou ao famoso João Rodrigues Pereira de Almeida, deputado da Junta de Comércio, acionista do Banco do Brasil e traficante de escravo.

Esta associação dos ingleses com os portugueses possibilita pensar no que chamamos de cultura de negócios, ou seja, perceber que as atividades comerciais (os negócios) estavam ligadas a uma lógica de mercado diferente do mercado capitalista. A associação de um inglês com um negociante e deputado da Junta de Comércio, como era o caso do João Rodrigues Pereira de Almeida, essa rede e essa associação são justamente para poder penetrar nesse mercado e saber como ele funcionava. Não sendo um mercado capitalista, não é um mercado contratual, e tem muito de relação pessoal, proximidade com a política. É lógico que capitalismo também tem isso. Agora, no mercado não capitalista, a política, muitas vezes, é o principal motor, aí tem que estar próximo dos homens que estão nessa política (no Estado), e estes negociantes portugueses estavam lá. Em virtude das pesquisas, tem-se demonstrado a importância do negociante de grosso do Império Português, principalmente a partir de Pombal. Com a chegada da Corte em 1808, os negociante reinos no Rio de Janeiro participaram cada vez mais desse Estado Imperial português, assim como no período de D. Pedro I.

Falando no Irineu Evangelista de Souza, o futuro Barão e, depois, Visconde de Mauá, ele era caixeiro do João Rodrigues Pereira de Almeida, que o recrutou ainda muito garoto, em virtude do seu tio, que era o capitão de navio daquele negociante. O Irineu foi levado pelo seu tio porque perdeu o pai, e quando o Pereira de Almeida faliu, ele vai para a firma do Richard Carruthers. Esta passagem do Mauá envolve muito do que falei anteriormente, das relações pessoais num mercado que na prática não é capitalista. E cuidado com esses “capitalistas ingleses”, pois, principalmente depois de 1850, foi que verificamos uma articulação muito mais capitalista no sentido moderno da palavra para essas firmas inglesas. É interessante, porque as pessoas acham que os ingleses são pragmáticos, objetivos… Toda a historiografia sobre os ingleses no Brasil destaca o quanto eles eram modernos e os portugueses o oposto, ou seja, arcaicos. Não é nada disso, os grandes negociantes portugueses tinham as suas letras assinadas e recebidas nas praças européias. É bom chamar a atenção disto para parar um pouco com essa idéia pejorativa do português “tamancão”, desculpe usar essa palavra, e o inglês, o moderno. Não tinha nada disso, as relações dos ingleses com seus agentes envolviam relações pessoais, familiares.

No tocante ao mito do Mauá, é uma coisa interessante, porque, na verdade, não foi construído pelo próprio Mauá. O Mauá é autor de um livro intitulado “Autobiografia.. Exposição aos Credores”, onde explica o porquê da falência, da quebra do seu banco. Ele está expondo não é para todos, está expondo ao público dele. Agora, quem é o público dele? É a sociedade imperial e, principalmente, a Associação Comercial do Rio de Janeiro.

O problema é que o Mauá foi sendo apropriado, eu falo isso em um texto da Revista de História da Biblioteca Nacional daqui do Rio de Janeiro [edição nº4, outubro de 2005], que o Mauá foi sendo apropriado, tanto por uma esquerda, quanto por uma direita, desculpe-me usar essa demarcação ideológica-política, para justamente ou privilegiar o liberal, o empreendedor que teve um Estado opressor, aí é uma visão à direita, dos liberais, ou então alguém, um brasileiro que competindo contra os estrangeiros, principalmente contra o poderio inglês, precisou do apoio do Estado, porém o Estado negou. É a leitura da esquerda nacionalista velha e datada. Na verdade, não é nada disso.

O Mauá, como já chamei a atenção, com o retorno do Richard Carruhthers para a Inglaterra em 1837, ele vai ser o diretor da firma inglesa Carruthers & Company, e na década de 1840, a firma inglesa vai estar ligada ao tráfico negreiro, como destacam o Robert Conrad e o Luis Henrique Tavares, este último no livro “O comércio proibido de escravos”, quando estes trabalharam com a documentação inglesa do Public Record Office. Eles utilizam, principalmente, as correspondências consulares dos cônsules ingleses no Brasil. Lá estão os cônsules dizendo que várias firmas inglesas estão ligadas ao tráfico, jogando seus produtos para financiar o tráfico negreiro. A Carruthers & Company estava ligada ao grande negreiro Manuel Pinto da Fonseca. Eu achei o Manuel Pinto da Fonseca como sócio da Sociedade Bancária Mauá, MacGregor, e olha que ele foi expulso do Brasil em 1852 por causa do contrabando e, tinha como um dos testamenteiros um sócio e amigo pessoal do Mauá, o José Antonio de Figueiredo Júnior, pai do futuro Visconde de Figueiredo, que no final do Império, foi o organizador do Banco Nacional. O pai do Visconde de Figueiredo e o futuro Barão de Mauá estavam vinculados a um dos negócios mais lucrativos, que era o comércio de carne humana, como diziam os negreiros. E não só o Mauá estava ligado ao tráfico negreiro, mas várias firmas inglesas também, até mesmo os agentes dos Rothschilds no Brasil.

O Mauá teve vários bancos, mas nunca organizou uma holding, ao contrário do que alguns biógrafos dizem. Mauá organizou seu último banco, o Mauá & Cia, em 1867, e nesse banco foi transportado todo os passivos dos seus negócios. Não foi à toa que deu no que deu, ou seja, quando estourou uma crise na Praça do Comércio, como a de 1875, o banco quebrou. É importante salientar que o Banco Mauá & Cia não era o Banco Mauá, MacGregor, que foi o segundo banco organizado pelo Mauá, já que o primeiro banco foi o Banco de Brasil de 1851. Aliás, o primeiro Banco com o nome de Mauá & Cia foi organizado na década de 1850 (em 1856), e se constituiu no principal banco e emissor de notas (moeda) no Uruguai, com “filiais” na Argentina e no porto do Rio Grande na Província do Rio Grande do Sul. Olha o barão de Mauá e a política externa do Império. Paulino Soares de Souza, o Visconde de Uruguai, coladinho com Mauá, que é um mito também no Uruguai, e existe uma praça Mauá em Montevidéu.

O que Mauá estava fazendo lá? Estava lá porque era empreendedor? Mauá estava coladinho com o projeto de expansão do Império brasileiro na Região do Rio da Prata. Quando se pagavam as tropas do Brasil na Guerra do Paraguai era o Banco Mauá que fazia.

Outro grande problema do mito do Mauá é aquela associação dele como industrial, pois isto na verdade não aconteceu. O Mauá organizou algumas empresas, mas tiveram curta duração. O Estaleiro Mauá, por exemplo, que seria uma referência de estaleiro moderno, tem que ter cuidado. Era um conjunto de oficinas, tinha muitos escravos. Ora, cadê o maior abolicionista que os biógrafos e que o filme fala? Não tem nada de abolicionista! O Mauá industrial? Que indústrias ele teve? O Estaleiro Mauá, curta duração. A Luz Esteárica, curta duração. E mais, com muita subvenção do governo imperial. Mas o Mauá sempre foi, como esta lá no registro de matriculas do Tribunal do Comércio do Código Comercial, negociante de grosso, e depois, quando ele organizou os bancos, banqueiro. É o negócio dele, o negócio dele foi o comércio. Com o fim do tráfico negreiro, aqueles capitais de origem negreira vão ser direcionados para a atividade comercial do Rio de Janeiro.

Assim, o Mauá é um mito tanto para a direita, quanto para a esquerda, ou seja, para estes, o brasileiro que precisou do apoio do Estado contra a opressão estrangeira. Opressão estrangeira? Ele era colado com os ingleses! Ou então os liberais defendendo o indivíduo que por si só poderia chegar lá, porém o Estado atrasado… Vamos parar com isto! Ele era um homem do Império. Virou mito, principalmente no século XX, por causa do projeto de desenvolvimento nacional (sinônimo de indústria/industrialização), e aí o Mauá serve para tudo. Ele está tanto no comércio, quanto na industria. Em associações comerciais, em vários locais do Brasil, tem uma sala Mauá. Em associações industriais está, por exemplo, na FIRJAN e na FIESP. Então o Mauá serve para o industrial e para o comerciante… Ele é uma figura mítica. Tratá-lo como empresário no estilo moderno é um grande absurdo, e pior ainda é como os nossos alunos, nossos filhos, nossos netos, lendo livros de história do Brasil, falando da segunda metade do século XIX, a “Era Mauá”…. Parece que dentro daquele Império atrasado teve um período moderno…. Pelo amor de Deus! É um grande equivoco, mas mito é isso.

Bem, Mauá ganha bastante destaque a partir da década de 1920, com Alberto Faria, que faz um livro com uma apologia ao Mauá. Nos anos 30, Lídia Besouchet publica “Mauá e o seu tempo”. Um descendente do Mauá, Cláudio Ganns reedita o livro do Mauá, “Autobiografia. Exposição aos Credores”. Repare bem como o mito vai sendo recriado. Depois, Caio Prado Junior, Celso Furtado, o primeiro marxista, e o outro keyneziano estruturalista, também embarcam no mito. No caso do Celso Furtado, ligado ao Plano de Metas de JK, e um dos teóricos do projeto nacional desenvolvimentista, o resgate do Mauá, o Mauá industrial, era importante. Ora, no Rio de Janeiro, a indústria propriamente dita foi criada depois de 1870, como diz Maria Bárbara Levy, Eulália Lobo, Geraldo Beauclair, e vários historiadores econômicos. Não é a “Era Mauá”. A industria no Rio de Janeiro é pós-Mauá.

Assim, o Mauá era um homem do seu tempo, e mais, o tempo do Mauá é o tempo do apogeu do Império. Depois de 1870 já tem outros grupos mercantis que vão se sobrepor ao Mauá. É lógico que com a crise de 1875 ele quebrou por problemas dele e pelo fato do Estado que, via Banco do Brasil, não o apoiou. Um outro banco que pesquiso, o Banco Rural e Hipotecário do Rio de Janeiro, contou com a ajuda do Banco do Brasil, que emprestou mais de 3.000 contos e conseguiu salvar o Banco Rural e Hipotecário. Não fez isso com o Mauá, mas por quê? É a relação de poder, já não era mais o tempo do Mauá e o seu grupo. A situação estava se modificando.

Leia outras entrevistas concedidas à Revista Tema Livre

Tema Livre Especial: Paço Imperial

Bicentenário da chegada da Corte portuguesa ao Brasil

O Rio de Janeiro e D. João VI, Rei de Portugal, Brasil e Algarves.

Imagem do Paço Imperial e da Praça XV feita por Jean-Baptiste Debret.

Imagem do Paço Imperial e da Praça XV feita por Jean-Baptiste Debret.

 

Em função dos 200 anos da chegada da família real portuguesa ao Brasil, que serão comemorados no próximo ano, 2008, a Revista Tema Livre inicia nesta edição, a de número 12, referente a abril de 2007, uma série de matérias que mostram os vestígios da época de D. João VI no atual Rio de Janeiro. A primeira matéria é sobre o Paço Imperial, edifício em estilo colonial, que ocupa uma área de 3.113 m², e é situado na Praça XV de Novembro, no centro da cidade, que, no período joanino, foi a sede administrativa da monarquia portuguesa.

 

Parte frontal do Paço Imperial visto a partir da Praça XV de Novembro.

Parte frontal do Paço Imperial visto a partir da Praça XV de Novembro.

 

Primeiramente, é importante ressaltar que o então príncipe regente D. João e a sua família partiram de Portugal em direção ao Brasil em novembro de 1807, em virtude da incursão militar que Napoleão Bonaparte realizava ao território peninsular. Em março de 1808, D. João estabeleceu-se no Rio de Janeiro. Uma vez esta cidade sendo a sede do governo bragantino, era a partir do Paço que administrava-se o Brasil, Portugal, os domínios lusos na África e na Ásia, bem como o atual Uruguai, transformado, em 1821, em Estado Cisplatino Oriental, como parte da monarquia portuguesa.

 

Lado esquerdo do Paço Imperial e trecho da Praça XV de Novembro.

Lado esquerdo do Paço Imperial e trecho da Praça XV de Novembro.

 

D. João permaneceu por 13 anos no Rio de Janeiro, até abril de 1821, quando retornou a Lisboa, e deixando no Novo Mundo o herdeiro de sua coroa, o príncipe D. Pedro, que proclama a Independência do Brasil no ano seguinte, tornando-se o primeiro imperador brasileiro.

 

Vista da lateral direita do Paço Imperial e a rua da Assembléia. Ao fundo, a rua Primeiro de Março, antiga Rua Direita.

Vista da lateral direita do Paço Imperial e a rua da Assembléia. Ao fundo, a rua Primeiro de Março, antiga Rua Direita.

 

Além disto, aponta-se que no período em que D. João esteve no Brasil, mais especificamente em 1818, ele foi aclamado rei, sob o título de D. João VI. Observa-se que este foi o único monarca de uma Casa Real européia a receber sua coroa na América e, do mesmo modo, o Rio de Janeiro foi a única cidade da América que foi palco da aclamação de um rei europeu. Também foi obra do governo de D. João, durante a estada da família real na porção americana de seus domínios, a criação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.

 

Lado esquerdo do Paço Imperial e a Praça XV.

Lado esquerdo do Paço Imperial e a Praça XV.

 

Sobre o prédio onde hoje encontra-se o denominado Paço Imperial, observa-se que ele já foi a Casa dos Contos ou da Moeda e, em 1743, iniciaram-se as obras do engenheiro José Fernandes Alpoim, estabelecendo neste sítio a Casa dos Governadores. Em 1763, com a transferência da sede do governo do Estado do Brasil de Salvador para o Rio de Janeiro, o prédio tornou-se o Palácio dos Vice-Reis e, a partir de 1808, Paço Real.

 

Fundos do Paço Imperial. Á direita do leitor, a Rua Primeiro de Março, antiga Rua Direita.

Fundos do Paço Imperial. Á direita do leitor, a Rua Primeiro de Março, antiga Rua Direita.

 

Ainda no que refere-se ao espaço onde o Paço situa-se, ele reproduzia as características de diversas praças do Império português, seja na Europa, seja no Ultramar, guardando uma série de semelhanças com o Terreiro do Paço, em Lisboa. Estava nesta área do Rio de Janeiro uma série de atividades vinculadas ao comércio e ao poder régio.

 

Interior do Paço Imperial.

Interior do Paço Imperial.

 

A praça, ainda hoje, abriga o chafariz de D. Maria I, obra do mestre Valentim da Fonseca e Silva, datada da segunda metade do século XVIII. Onde encontra-se o chafariz desembarcavam os navios oriundos de diversas partes do Império português. Hoje, o atracadouro do antigo porto está em uma das áreas aterradas da Baía de Guanabara. Mencionando a questão dos aterros, se estes não tivessem ocorrido, o mar chegaria bem próximo à atual Primeiro de Março (rua situada nos fundos do Paço Imperial)

 

Arquitetura colonial portuguesa em pleno centro do Rio.

Arquitetura colonial portuguesa em pleno centro do Rio.

 

Retornando ao período de D. João, com a chegada da monarquia bragantina ao Brasil, o prédio sofreu novas reformas, ganhando o seu terceiro pavimento, voltado para o mar. Além de sede do governo e palco de audiências reais, o paço foi o centro dos eventos relacionados à aclamação do então príncipe regente D. João como D. João VI, Rei de Portugal, Brasil e Algarves e, ainda, à recepção de D. Leopoldina da Áustria para o seu casamento com o herdeiro da Coroa portuguesa, o então príncipe D. Pedro.

 

Uma das entradas laterais do Paço.

Uma das entradas laterais do Paço.

 

Além disto, o Paço esteve vinculado a diversos momentos relevantes à história do Brasil e do Império português. Após a partida de D. João VI do Brasil, foi no Paço que aconteceram as articulações políticas entorno do príncipe D. Pedro e o Dia do Fico, que precederam à Independência do Brasil.

 

Pátio Interno do Paço.

Pátio Interno do Paço.

 

Com a separação do Brasil de Portugal, o Paço ganhou a designação de Imperial, que é a utilizada nos tempos atuais. Durante o Império, foi a partir do Paço que os imperadores administraram o Brasil. O prédio também foi palco dos festejos envolvendo as respectivas coroações de D. Pedro I, em 1822, e de D. Pedro II, em 1840. Em 1888, a Lei Áurea, que pos fim à escravidão no Brasil, foi assinada pela princesa Isabel de Orleans e Bragança no Paço Imperial.

 

Chafariz D. Maria I e o Paço Imperial ao fundo.

Chafariz D. Maria I e o Paço Imperial ao fundo.

 

Uma vez proclamada a República, em 15 de novembro de 1889, D. Pedro II e sua família abandonaram o prédio e partiram para o exílio na França. O local que era o centro de decisões da época da monarquia passou a ser sede dos Correios e Telégrafos, sofrendo uma série de intervenções para abrigar a repartição. É válido compreender que a República não queria vincular os seus pontos de poder com os antigos lugares monárquicos. Assim, o Paço foi rejeitado para ser a sede de ministérios e diversos palácios de antigos titulares do Império foram comprados pelo novo governo republicano para os seus ministérios.

 

Chafariz D. Maria I e o prédio da Bolsa de Valores do Rio. À direita, escada rolante que vai para o Mergulhão da Praça XV. Na foto, pode-se perceber claramente o quando a área foi aterrada.

Chafariz D. Maria I e o prédio da Bolsa de Valores do Rio. À direita, escada rolante que vai para o Mergulhão da Praça XV. Na foto, pode-se perceber claramente o quando a área foi aterrada.

 

No que tange às mudanças de nomenclaturas em função do regime político, é importante saber que o espaço onde o prédio situa-se é, desde 1890, designado Praça XV de Novembro, data que refere-se à Proclamação da República. Assim, o antigo centro da monarquia ganhava o nome da data comemorativa ao estabelecimento do regime republicano no país. A atual Praça XV já foi chamada de Largo do Carmo, Campo do Carmo, Terreiro da Polé e várzea da Senhora do Ó.

 

Paço Imperial visto a partir da Praça XV. À esquerda, Palácio Tiradentes, onde funcionou o parlamento brasileiro e, atualmente, o legislativo fluminense.

Paço Imperial visto a partir da Praça XV. À esquerda, Palácio Tiradentes, onde funcionou o parlamento brasileiro e, atualmente, o legislativo fluminense.

 

Quase 50 anos depois, mais especificamente em 1937, durante o governo de Getúlio Vargas, é criada a Secretária do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). No ano seguinte, em 1938, o atual Paço Imperial foi tombado.

 

Parte frontal do Paço.

Parte frontal do Paço.

 

Uma outra data importante para o Paço foi o ano de 1982, quando iniciaram-se as obras para a sua restauração, que retomaram o seu aspecto externo ao da época do Reino Unido português. Em 1985, o Paço tornou-se um centro cultural ligado ao IPHAN e à Secretaria de Patrimônio, Museus e Artes Plásticas, Ministério da Cultura. Também foi na década de 1980 que o prédio voltou a receber a sua designação da época da monarquia: Paço Imperial. Em 1991, foi criada a Associação dos Amigos do Paço Imperial.

 

Lateral direita do Paço, rua da Assembléia e, ao fundo, a rua 1º de Março.

Lateral direita do Paço, rua da Assembléia e, ao fundo, a rua 1º de Março.

 

Atualmente, 22 anos depois da criação do centro cultural, o Paço mantém esta função, abrigando exposições de arte contemporânea, concertos musicais, peças de teatro, seminários, conferências, cinema e biblioteca. Neste período, o Paço recebeu quase 2 milhões de visitantes.

 

Lateral do Paço Imperial à noite. Ao fundo, a Praça XV de Novembro.

Lateral do Paço Imperial à noite. Ao fundo, a Praça XV de Novembro.

 

Assim, o Paço Imperial é um ponto extremamente importante para a cultura e a história do Rio de Janeiro, bem como para a do Brasil e a de Portugal, rememorado, também, o periodo em que D. João VI, Rei de Portugal, Brasil e Algarves estava instalado na cidade. Além disto, o Paço Imperial compõe uma região da cidade do Rio com uma série de outros edifícios relevantes, como o Palácio Tiradentes, o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), a Casa França-Brasil, dentre outros. No entanto, estes sítios são uma outra história.

 

Endereço: Praça XV de Novembro, 48, Centro, Rio de Janeiro – RJ.
Cep: 20010-010
Tel: +55 21 2533-4491 /2533-7762/ Fax: 2533 4359

Funcionamento: Terça a Domingo, das 12h às 18h.
Entrada Franca.

 

Sítios consultados

http://www.arquimuseus.fau.ufrj.br/

http://www.iphan.gov.br

http://www.pacoimperial.com.br/

 

 

Bibliografia

 

BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império: O Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

 

CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista: A vida e a construção da cidade da invasão francesa até a chegada da corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.

 

FERREIRA, Fábio. As incursões franco-espanholas ao território português: 1801-1810. In: Revista Tema Livre, ed.05, 23 abril 2003. Disponível em: http://www.revistatemalivre.com

 

ROBBA, Fábio; MACEDO, Silvio Soares. Praças Brasileiras. São Paulo: Edusp / Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2003.

 

SANTOS, Afonso Carlos Marques dos. Entre o mar e a montanha: a herança colonial portuguesa projetada para o Rio atual. In: LESSA, Carlos (org.) Os Lusíadas na aventura do Rio Moderno. Rio de Janeiro: Record, 2002.

 

SANTOS, Paulo F. Formação de Cidades no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001.

A administração Lecor e a Montevidéu portuguesa: 1817 – 1822

Texto de Fábio Ferreira

Carlos Frederico Lecor: representante de D. João na ocupação de Montevidéu, personificando o antagonismo ao general Artigas.

Carlos Frederico Lecor: representante de D. João na ocupação de Montevidéu.

A monarquia portuguesa, durante o período de sua permanência no Rio de Janeiro, entre 1808 e 1821, tenta, em três momentos, conquistar o que corresponde à atual República Oriental do Uruguai. A primeira tentativa, em 1808, tem, inicialmente, o apoio do príncipe regente D. João, e corresponde ao projeto de Carlota Joaquina em exercer a regência espanhola a partir do Rio da Prata. No entanto, pela ação de Lorde Strangford, representante britânico no Rio de Janeiro, e de D. Rodrigo de Souza Coutinho, ministro de D. João, o plano de Carlota malogra.

Uma segunda tentativa expansionista lusa ocorre em 1811, mesmo ano em que José Gervásio Artigas adere à Revolução de Maio, iniciada em Buenos Aires, e que busca o rompimento com a Espanha. As tropas de D. João invadem o território oriental sob a alegação de preservá-lo aos Bourbon, casa real a qual Carlota pertence e, também, sob o argumento de que as perturbações no território oriental causavam turbulências na fronteira com o Rio Grande. No entanto, mais uma vez por pressão inglesa, D. João retira as suas tropas desse território em 1812.

Em 1816 ocorre a terceira tentativa expansionista lusa, que obtém êxito. As tropas do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves são lideradas pelo então general Carlos Frederico Lecor e invadem o território oriental, conquistando Montevidéu em 20 de janeiro de 1817.

Uma vez estabelecendo-se a conquista e o governo luso de Montevidéu, permanece à frente desta empreitada o general Lecor, que administra o território oriental a partir de Montevidéu até 1825. Assim, nas linhas a seguir serão apresentados alguns aspectos da administração Lecor.

Sobre Carlos Frederico Lecor, líder do projeto expansionista português na região do Prata, nasceu em Faro1, no Algarves. Descendia, pelo lado paterno, de franceses e, do materno, de alemães, sendo destinado por seus progenitores à vida comercial, vivendo, assim, na Holanda e na Inglaterra. Entretanto, opta pela carreira militar, assentando praça no regimento de Artilharia de Faro.

Na última década do século XVIII e na primeira do XIX, Lecor ascende no exército português, tendo tido, dentre outras patentes, as de soldado de artilharia, sargento e capitão. Com as três invasões francesas que Portugal sofre a partir de 1807, lideradas, respectivamente, pelos generais Junot, Soult e Massena, Lecor participa da ação contra os ocupadores e ascende na hierarquia militar durante a guerra contra Napoleão e, ainda, “[…] ostentaba como galardón de su carrera, el haber iniciado en Portugal la reacción contra el invasor. Carlos Frederico Lecor, el único de los oficiales extranjeros que mereciera el honor de comandar una división inglesa a las órdenes de Wellington […]”2

Durante o conflito o então Tenente-Coronel Lecor deserta, assim como outros oficiais lusos, indo para a Inglaterra, onde organiza a Leal Legião Lusitana contra o sistema napoleônico. Lecor luta em território francês e, uma vez havendo a derrota do oponente, as vitoriosas tropas portuguesas retornam ao seu país lideradas pelo marechal-de-campo Lecor.

Assim, com o fim da guerra no velho mundo e com os interesses da monarquia de Bragança nos assuntos americanos, é decidido que tropas sejam enviadas para a América. O Tenente-General Lecor, então Governador da Praça de Elvas3, é escolhido4 para liderar os militares portugueses envolvidos na conquista da Banda Oriental.

Com a conquista lusa de Montevidéu, Lecor fica à frente do governo instalado neste núcleo urbano e, na campanha, travam-se lutas contra Artigas. Uma vez no poder, Lecor aproxima-se de pessoas de destaque de Montevidéu, tendo no seu circulo figuras como, por exemplo, o Padre Larrañaga, que outrora fora aliado de Artigas, além de ter sido o fundador da Biblioteca Pública de Montevidéu, e autor de várias obras no âmbito científico, literário, teológico e político; Francisco Llambi, assessor do Cabildo de Montevidéu em 1815, período em que a cidade está sob o poder das forças artiguistas; e, ainda, Nicolas Herrera, figura controversa na historiografia uruguaia, pelo fato de ter sido aliado do portenho Alvear e, depois, de Lecor. Sobre este oriental, soma-se que, segundo Donghi, quando as forças de Lecor marcham sobre o território oriental, Herrera está ao lado do general, além de que “(…) ahora su función es asesorar a sus nuevos amos en esa conquista pacífica que debe acompañar a la militar.”5

Lecor também tenta compor politicamente com Artigas, entretanto, não obtém êxito. O general português, de acordo com as instruções que recebeu, propõe ao caudilho que venda as suas propriedades e bens legitimamente seus, além do exílio no Rio de Janeiro ou em qualquer outro lugar que D. João autorize e, ainda, o ganho de um soldo, que não exceda o de coronel de infantaria portuguesa. Porém, com Artigas, a “diplomacia” de Lecor malogra, não conseguindo a pacificação do território oriental.6

Para derrotar Artigas, Lecor aproveita-se do contexto oriental, pois à medida que o poderio do caudilho encolhe e o luso cresce, a população demonstra-se mais favorável aos ocupadores e, assim, Lecor militariza a população e organiza-a contra Artigas.7

Entretanto, isto não significa que Lecor obtém unanimidade, pois a resistência artiguista perdura até 1820. Porém, observa-se que Lecor sabe atrair para o seu lado aliados do caudilho8, como, por exemplo, Fructuoso Rivera.

Sobre a administração Lecor, é válido salientar que

“Mediante dádivas y honores, ganó la voluntad de los hombres; profundo conocedor de las flaquezas humanas, halagó a unos con promesas y a otros con realidades; repartió cruces y condecoraciones; distribuyó tierras que no eran de su Rey; conquistó a la sociedad de Montevideo con fiestas y saraos; casó a su oficiales con hijas del país, haciendo él lo propio; seleccionó los hombres para casa cometido; eligió a su gusto los Cabildos, organismos que tenían prestigio popular y que fueron el secreto de su política, y de tal suerte dispuso las cosas, que todos los actos de incorporación a la corona de don Juan VI o cesiones a favor de ella, parecieron siempre hechos espontáneos, debidos a solicitudes y ruegos de nuestro pueblo, que se lisonjeaba en proclamarlo su Rey.”9

Medida tomada por Lecor e apresentada na extração acima é a de incentivar o casamento entre os militares luso-brasileiros com as mulheres de Montevidéu. Observa-se, inclusive, que o próprio Lecor casa-se, em 1818, com Rosa Maria Josefa Herrera de Basavilbaso, que à época possuía 18 anos de idade.

No mesmo ano do seu casamento, Lecor recebe o título nobiliárquico de Barão da Laguna, em virtude das mercês que D. João VI concede pela sua aclamação e coroação como rei de Portugal, Brasil e Algarves. Sobre a origem do Laguna no título do militar português, Duarte afirma que “Acreditamos que, ao conferir o título de Barão da Laguna ao General Lecor, reportara-se o Rei ao fato de que fora naquela povoação catarinense que o Comandante da Divisão de Voluntários Reais iniciara a penosa marcha para atingir Montevidéu.”10

Uma vez no poder, Lecor também distribuí terras entre os ocupadores, tanto as que são de posse dos chefes artiguistas, quanto as abandonadas. Além deste benefício, os invasores adquirem estâncias a baixíssimo custo, tirando proveito da situação em que o território oriental vive. Igualmente os estancieiros criollos que apóiam Lecor são contemplados com essa política.11

No que tange a política de Lecor para os Cabildos, o general, através da sua destreza e de promessas, busca a interferência e, também, a simpatia destes corpos municipais. Lecor mantém os Cabildos e os alcaides de acordo com as instruções dadas pelo Marquês de Aguiar.12 Sobre o general e esta instituição municipal, é válido observar que

“En 1819 dispuso Lecor que se alejase del Cabildo la tercera parte de sus integrantes, a excepción de Juan José Durán y Jerónimo Pío Bianqui, debiéndose elegir los sustitutos y confirmar en sus puestos a los restantes; y el 9 de agosto de 1820, el propio Lecor ordenó la separación de cinco cabildantes que protestaban por el incumplimiento de las bases de incorporación ajustadas por los pueblos del interior con el Cabildo de Montevideo.”13

Ainda sobre os Cabildos, estas instituições “[…] habían perdido el carácter popular que en otras épocas los hiciera respetables, por irregularidades en la forma de su elección e influencia que en sus deliberaciones ejerciera el Barón de la Laguna.”, além de que durante o período do governo luso

“La posición de esos cuerpos municipales respecto de Lecor, no era uniforme. El de Montevideo, nombrado bajo su directa influencia, respondía ciegamente a sus intenciones cuyos secretos conocía; los del interior obedecían también sus directivas, pero sin tener una noción exacta de cuáles eran los planes de que venían a ser instrumentos.”

Assim, desacreditando estas instituições municipais, Devoto afirma que

“En los Cabildos de 1821, podía, sin duda, desde el punto de vista de las formas de su elección, reconocerse organismos legalmente constituidos, pero nombrados bajo la inspiración de Lecor, ¿hasta dónde representaban los intereses y las ideas de los pueblos? ¿Tenían, acaso, competencia para elegir sus diputados [no caso, elegê-los para o Congresso Cisplatino].”14

É válido observar que com o trecho acima, além de questionar a autonomia dos Cabildos, principalmente o de Montevidéu, Devoto apresenta as características de articulador político do general Lecor e a influência do mesmo nas instituições políticas orientais.

A atuação de Lecor à frente do território oriental é definida por Devoto como uma ação política, e que sua administração é baseada em suas articulações. O autor inclusive afirma que a característica política do personagem prepondera sobre a militar, pois, após citar o destaque de Lecor nas lutas da Europa, afirma que “en América [Lecor fue] un General de Gabinete que ganó en el campo de la intriga todas sus batallas” e que “Sus contemporáneos señalaron preferentemente una característica de su personalidad: la astucia. Lecor ‘es un raposo y no un León’, expresó con acierto Lavalleja.”15

A ação política de Lecor no território oriental não é ignorada por Duarte. O autor afirma que “Instalado em Montevidéu, iniciou o General Lecor seu trabalho de sapa, subterrâneo e paciente, implantando uma espécie de quinta-coluna, a fim de fortalecer o partido que representava, e fomentar a oposição à reconquista espanhola”16. O autor também expõe que

“Silencioso, mas dinâmico, caprichoso e astuto, sem parecer, por mais diplomático, que militar, como aparentava à luz do sol pelas revistas, formaturas e desfiles da Tropa, o General escolhido por D. João […] desenvolvia intenso labor num meio estranho, cercado de interesses de todos os matizes.

E, para bem cumprir a tarefa de extrema delicadeza que recebera, Lecor passou a usar a sutileza, a finura na penetração dos sentidos, agindo tanto pela força, como pelo suborno, estes às vezes claro, chocante, outras vezes, ameno e até colorido de malícia… Sempre no afã de arregimentar prosélitos, procurando-os, principalmente, nas agremiações nas quais uma defecção era compromisso passível de morte, em caso de reconquista espanhola ou portenha; era indispensável admitir ambas as hipóteses. Assim, entre os castelhanos buscava adeptos que, mais tarde, pelo próprio instinto de conservação, embaraçariam e afastariam a volta do domínio de Fernando VII, e nisso sua política, embora em círculo muito limitado, evidenciou-se portentosa.”

Assim, verifica-se que a dominação lusa não acontece somente pela força militar, outros componentes, como os de caráter político, são de fundamental importância para a permanência de Lecor no poder. O trecho acima também evidencia o lado político do general, além de que há a existência de um grupo em Montevidéu que dá-lhe suporte e articula com ele, e que existem alianças e negociações entre o militar e os habitantes da cidade ocupada.

Segundo Duarte, a conquista só concretiza-se em função das habilidades pessoais de Lecor:

“[…] o General Lecor emprestou grande contribuição pessoal [à tolerância e simpatia dos orientais em relação as tropas de ocupação], impondo a seus comandados uma disciplina que contrastava com o bárbaro procedimento dos soldados de Otorgués [representante de Artigas em Montevidéu]; sobretudo atuando junto aos párocos, de maneira que estes influíssem na opinião das ovelhas de seus rebanhos […]”

A respeito, é válido observar a relação de Lecor com a Igreja Católica. As forças ocupadoras têm, desde o início, o apoio do padre Larrañaga que, a princípio, pode ser entendido como o representante do clero católico na administração portuguesa de Montevidéu. Larrañaga está ao lado de Lecor em diversos momentos da administração do general, como, por exemplo, no Congresso Cisplatino, e na instalação da Escola de Lancaster na Cisplatina17.

Sobre o Congresso, realizado em julho e agosto de 1821, os seus deputados – Larrañaga é um deles – votam pela incorporação da Banda Oriental à monarquia portuguesa sob o nome de Estado Cisplatino Oriental, sendo, inclusive, a nomenclatura sugerida pelo sacerdote18. Grande parte da historiografia uruguaia aponta os congressistas como aliados de Lecor, e que o resultado do Congresso foi fruto das articulações políticas entre o general e os orientais. O contato com as atas do Congresso, disponíveis no Archivo General de Nación de Montevidéu, permite verificar o processo de articulação política entre Lecor e os congressistas em torno da criação da Cisplatina.

A Escola de Lancaster é implementada devido à atuação de Larrañaga e, com a aprovação do Cabildo, Lecor autoriza a implementação do método no território que está sob a sua autoridade. A Sociedade Lancasteriana de Montevidéu, constituída no dia 3 de novembro de 1821, tem como presidente Lecor

Assim, a participação do padre na constituição da Sociedade Lancasteriana, na adoção do método de ensino, e na criação da Cisplatina, são evidências que mostram a participação do sacerdote no governo luso-brasileiro e a proximidade existente na relação entre Larrañaga e Lecor. O relacionamento entre os dois também evidencia a participação oriental na administração Lecor.

Entretanto, apesar de ocorrer a participação de habitantes locais na administração do general, Lecor também atua na repressão aos seus opositores. Ele ordena, via uma publicação, que em relação aos seus oponentes a ordem é a de que

“[…] tais partidas seriam tratadas como salteadores de estradas e perturbadores da ordem pública. E, no caso de não poderem ser aprisionados os autores de tais atentados, se faria a mais séria represália às famílias e bens dos chefes e elementos dessas partidas, podendo […] [o] Exército português […] queimar as estâncias e levar suas famílias para bordo dos navios da esquadra.”19

Com isso, pode-se perceber a repressão por parte do governo de Lecor aos seus opositores. Autores uruguaios com os quais obtivemos contato caracterizam o governo de Lecor como violento. O que é bem provável, pois a força ocupadora, por mais que tenha um grupo que a apóie, tem os seus oponentes, que precisam ter a sua atuação anulada. Ressalta-se, também, que os opositores agem através da força e em um contexto de guerra, então para silenciar a oposição, emprega-se igualmente a força.

Provavelmente, Lecor, em determinados momentos, usa da força para alcançar os seus objetivos, no entanto, não pode-se ignorar a questão da cooptação, onde Lecor conquista a sociedade montevideana com títulos, festas e promessas.

Durante a administração Lecor, mais precisamente em 1819, é construído um farol na Ilha das Flores, nas imediações de Montevidéu. A alegação é a de que no local ocorrem constantemente acidentes – o que não é falso, inclusive, na ocasião, havia ocorrido um –, no entanto, o farol de Lecor tem um preço: o Cabildo montevideano passa para o Rio Grande vasto território pertencente à Banda Oriental.20

Neste território, de escassa população, mas abundante em gado, os ocupadores fazem vastas doações a oficiais e soldados portugueses e brasileiros, constituindo, deste modo, grande dependência econômica do território doado com o Rio Grande, “[…] a la que se pretendió anexar en 1819 con el denominado Tratado de la Farola que fijaba el límite meridional de aquélla en el río Arapey.”21

Ainda sobre a atuação de Lecor à frente do governo instalado em Montevidéu, observa-se que o personagem atua com relativa autonomia em relação ao monarca português, principalmente nos últimos momentos de união de Portugal e do Brasil. Como exemplo, pode-se citar o Congresso Cisplatino, onde o general age diferentemente das ordens do governo português, bem como procura atender os seus interesses e os do seu grupo de apoio:

“En uso de las amplias facultades que le diera la Corona, Lecor había gobernado la Provincia Oriental de manera absoluta y, en algunos casos, con independencia de la voluntad del Soberano y sus ministros, especialmente en los últimos tiempos en que los graves acontecimientos políticos de la metrópoli, rodearon de atenciones a estos últimos. La celebración del congreso dispuesta por Juan VI, fue encarada por Lecor como un asunto de su interés particular y del de su círculo. El ‘Club del Barón’ llamaron los contemporáneos a ese grupo político integrado en distintas épocas por Tomás García de Zúñiga, Juan José Durán, Nicolás Herrera, Lucas J. Obes, Dámaso A. Larrañaga, Francisco Llambí, Francisco J. Muños, Jerónimo Pío Bianqui, José Raimundo Guerra, entre otras figuras de menor volumen.”22

A respeito da participação de Lecor no Congresso Cisplatino e da conjuntura no território oriental à época do resultado da votação, Duarte afirma que

“Se a incorporação da Banda Oriental aos domínios da Coroa Portuguesa havia sido uma vitória pessoal das qualidades do Barão da Laguna, nem por isso foi ele justamente recompensado de seu árduo trabalho. Por essa época, irrompeu nas fileiras da Divisão de Voluntários Reais o manifesto desejo de retornar a Portugal […]”23

Pode-se constatar na extração acima as dificuldades que as tropas portuguesas estão a causar durante a administração de Lecor. Agrega-se, também, a habilidade política que o general tem que ter para mantê-los e comandá-los de maneira conveniente aos seus interesses.

Nesse momento, a situação do grupamento militar português instalado no território oriental é de insatisfação. As tropas portuguesas são a favor de que se jure a Constituição, enquanto Lecor não apóia o juramento, assim como as tropas americanas24 e, ainda, os lusos reclamam pelo fato de não receberem há vinte e dois meses e desejam retornar para Portugal.

Outra insubordinação que Lecor tem que lidar durante a sua administração é o motim das tropas portuguesas em 20 de março de 1821. Na ocasião, aquela Divisão, na praça de Montevidéu, reivindica o comprometimento do Barão da Laguna com a constituição e, ainda, exige a presença de Lecor para que seja formado um Conselho Militar sob a presidência do mesmo.

Agrega-se, ainda, que é proclamada e jurada a Constituição que viesse a ser realizada pelas Cortes de Portugal, e as forças lusas obrigam Lecor a fazer o mesmo. Estas tropas também solicitam a D. João VI o regresso ao seu país de origem.

Sobre o episódio acima, Duarte25 afirma que a conspiração é chefiada pelo “turbulento” e “sumamente ambicioso, agitado e despótico” Coronel Claudino Pimentel que, tendo perdido uma promoção para o Coronel D. Álvaro da Costa de Sousa Macedo, passa a “formar na facção dos revanchistas”.

Assim, Pimentel lidera o movimento, aproveitando-se do desconhecimento da tropa do que está ocorrendo na Europa. Observa-se ainda que, no caso de Lecor não aderir ao grupamento reivindicador, ele estaria deposto e substituído por Pimentel.

A atitude de Lecor diante de tal episódio é assim definida por Duarte:

“O arranhão na ‘disciplina militar prestante’ a que se sujeitou o Capitão-General, de certo modo foi um expediente hábil e sagaz, atendendo à situação periclitante em que se encontrava à frente dos destinos políticos da Banda Oriental. […] Foi um recurso extremo, empregado somente por aqueles que têm alto sentido político, para safar-se de críticas situações.

E o Barão da Laguna, parecendo vencido nessa batalha contra alguns de seus camaradas ambiciosos, era na verdade o vencedor, pois foi capaz, com uma atitude paciente e tolerante, de impedir o agravamento da situação política em que se encontrava, sem ter em quem escorar sua autoridade, em face dos graves acontecimentos ocorridos fora da sua área de comando, em Lisboa e no Rio de Janeiro, e que fatalmente propiciariam a eclosão de uma revolta declarada, sem precedentes, no seio da Divisão de Voluntários Reais.”26

Com a extração acima verifica-se as características políticas do personagem, apresentando atitudes pensadas, premeditadas e pragmáticas de Lecor.

Esta não é a única insubordinação que Lecor tem que enfrentar enquanto está no poder. Alguns meses mais tarde, mais precisamente na noite de 23 de julho, ocorrem novos problemas com as tropas lusas, em virtude dos soldos atrasados e do desejo de retornarem para Portugal.27

Assim, em 1821, a relação entre Lecor e as tropas lusas tornam-se tensas, estando a aproximação de Lecor com o governo do Rio de Janeiro como um dos fatores, bem como a assinatura da Constituição. Os portugueses são favoráveis a questão constitucionalista e ao movimento que originou-se no Porto, já Lecor não, posterga o seu posicionamento público em relação a Constituição. Sobre a questão, Devoto afirma que “El ejército portugués americano parecía no estar dispuesto a reconocer la Constitución liberal; los ‘Voluntarios Reales del Rey’ eran decididos partidarios de ella.”28

Durante a permanência de Lecor no poder, há também momentos de tensão com os governos limítrofes. O Barão da Laguna cogita e articula uma invasão a Entre Rios. Carreras e Alvear, opositores do governo portenho, buscam o apoio do militar português para ocupar militarmente Entre Rios. No entanto, a possibilidade da ocupação malogra, dentre outros fatores, pelas turbulências ocorridas no interior das tropas de Lecor.29

No que diz respeito a Buenos Aires, quando o General Martín Rodrigues toma conhecimento da ordem para a realização do Congresso Cisplatino, ele redige epistola ofensiva a Lecor, taxando o general português de o “dono do Mundo”30. Em ofício de seis de julho a Estanislao Lopez, líder de Santa Fé, Rodríguez ressalta o perigo do expansionismo luso na região. Acreditando que o Congresso poderia votar pela anexação do território oriental à monarquia portuguesa, o general portenho expõe a Lopez que poderia haver também a apropriação, por parte de Portugal, do território oriental ao Paraná, e que Santa Fé e o Paraguai poderiam vir a ser vítimas da expansão lusa na região.31

Rodrigues, em função do expansionismo luso no espaço platino e das atividades de Lecor neste sentido, “[…] dirigió en abril 1º de 1821, un violente oficio al Barón de la Laguna en el que calificaba de insulto la ocupación de la Provincia Oriental y pedía satisfacciones por las maniobras para invadir Entre Ríos […]” e que “El plan del Gobierno de Buenos Aires era provocar la insurrección en la Provincia Oriental para apoyarla luego”.32 Os portenhos tentam cooptar para a sua causa Fructuoso Rivera, que permanece ao lado de Lecor, e o plano não vinga.

Assim, não só a possibilidade de ocupar Entre Rios causa em Buenos Aires a hostilidade em relação ao Barão da Laguna e a ocupação luso-brasileira. O asilo que Lecor outorga a Carreras e Alvear contribui para o recrudescimento das relações entre o general e Buenos Aires.

A respeito da relação entre os governos luso-brasileiro e portenho, Devoto afirma que

“[…] se habían desarrollado en un terreno de neutralidad hasta el momento en que la protección dispensada en Montevideo a Carrera y Alvear, y posteriormente el apoyo prestado a los planes de Ramírez contra Buenos Aires, llevaron al ánimo de aquel Gobierno el convencimiento de que las aspiraciones de los portugueses en el Río de la Plata – de Lecor y su partido, mejor dicho – eran de una latitud indefinida.”33

Em novembro de 1821, mesmo depois da derrota de Ramírez, Lecor continua a ser uma ameaça a Entre Rios, tanto que o novo governador, Lucio Mansilla, através de ofícios, busca a cordialidade com o general português, evitando, deste modo, a invasão do território entrerriano. Lecor e Mansilla acabam por acordar a neutralidade, o primeiro não interviria em Entre Rios e o segundo faria o mesmo em relação à Cisplatina.34

Com a Independência do Brasil, agrava-se outro ponto de tensão existente na administração Lecor: o contingente militar luso. O Barão e as tropas portuguesas ficam de lados opostos, lutando uns contra os outros até 1824.

A respeito dos últimos anos de vida de Lecor pode-se dizer que após negociações de paz entre portugueses e brasileiros, em 1824, o general retorna a Montevidéu, ficando toda a Cisplatina sob o controle brasileiro, sendo este núcleo urbano o último ponto português na América.

No ano seguinte, o Império do Brasil eleva Lecor a Visconde da Laguna. Entretanto, a partir daí, o general enfrenta uma série de derrotas. Em 1825, os 33 orientais35 declaram a independência da Cisplatina e a reunião desta com as Províncias Unidas. Iniciam-se as lutas com os insurgentes, no que depois vem culminar na declaração de guerra do Brasil às Províncias Unidas do Rio da Prata, em 10 de dezembro de 1825, e a declaração dos portenhos, no primeiro dia de 1826, aos brasileiros. Assim, esse é o primeiro conflito externo do Brasil independente.

É válido observar que antes mesmo da resposta argentina, mais precisamente no dia 18 de novembro de 1825, Lecor é destituído pelo Imperador do governo da Cisplatina. O substituí o Tenente-General Francisco de Paula Magessi Tavares de Carvalho, futuro Barão de Vila Bela.

Lecor fica no comando do Exército do Sul, no entanto, é logo exonerado pelo Imperador, substituindo-o o Marquês de Barbacena. Porém, Lecor retorna ao cargo por mais duas vezes, somando três vezes a sua seleção.

Em 1828, após a intermediação da Inglaterra, finda-se o conflito entre o Brasil e as Províncias Unidas, criando-se a República Oriental do Uruguai. Não havendo mais o conflito entre Portugal e Espanha no território oriental, Brasil e Argentina, nos anos seguintes, exercem a sua influência e interferência na política uruguaia.

Em 1829 Lecor é promovido a marechal-de-exército e, assim, passa para a reserva. Entretanto, apesar da promoção, neste mesmo ano o Visconde da Laguna é submetido a um Conselho de Guerra Justificativo, em função da Guerra da Cisplatina, onde a votação é pela absolvição de Lecor. Após seu julgamento, o militar ainda preside uma comissão que tem o objetivo de reformar o artigo 150 da Constituição do Império, referente ao exército.

No dia 3 de agosto de 1836 falece Carlos Frederico Lecor, no Rio de Janeiro, a contar 72 anos de idade, sendo sepultado na Igreja de São Francisco de Paula. Lecor deixa como viúva a Viscondessa da Laguna, sem descendentes diretos e, segundo Duarte, o militar expira em uma má situação financeira.

 

Em estilo barroco, a Igreja do Largo de S. Francisco, no centro histórico do Rio., onde está enterrado Carlos Frederico Lecor.

Em estilo barroco, a Igreja do Largo de S. Francisco, no centro histórico do Rio., onde está enterrado Carlos Frederico Lecor.

_________________________________________________________________________

Notas

1 – Duarte (1985) afirma que Lecor nasceu no dia 11 de setembro de 1764. No entanto, Saint-Hilaire (2002), que esteve em Montevidéu em 1820, registra em seu diário no dia quatro de novembro a comemoração do natalício de Lecor, afirmando, ainda, que o general é um homem de cinqüenta anos. De acordo com a informação de Duarte, em 1820, Lecor completaria 56 anos. Deste modo, é plausível que Lecor em 1820 estivesse completando 56 anos e aparentasse os cinqüenta atribuídos pelo viajante francês, podendo, assim, proceder a informação de que o ano de nascimento do general é 1764. Fisicamente, Lecor, segundo Saint-Hilaire (Ibid., p.185), era “[…] alto, magro, cabelos louros, rosto moreno e olhos negros, fisionomia fria, mas que traduz bondade.”

2 – DEVOTO, Juan E. Pivel. El Congreso Cisplatino (1821): repertorio documental, seleccionado y precedido de um análisis. Revista del Instituto Histórico y Geográfico del Uruguay, t.XII. Montevideo: 1936, p.117.

3 – O irmão de Carlos Frederico Lecor, João Pedro, também foi governador em Portugal, no caso, de Albufeira, no Algarves.

4 – Segundo Duarte (1985), a escolha recai sobre Lecor em função do Marechal Beresford, que liderou as invasões inglesas a Buenos Aires e Montevidéu, respectivamente, em 1806 e 1807.

5 – DONGHI, Tulio Halperin. Historia Argentina de la Revolución de Independencia a la confederación rosista, volume III. Buenos Aires: Editorial Piados, 2000, p.120.

6 – SOUZA, J.A. Soares de. O Brasil e o Prata até 1828. In: BARRETO, Célia de Barros. O Brasil monárquico: o processo de emancipação. HOLANDA, Sérgio Buarque de. História geral da civilização brasileira, t.II, v.3. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p.363.

7 – LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, p.394.

8 – Op. cit.

9 – DEVOTO, op. cit., p.113.

10 – DUARTE. Paulo de Q. Lecor e a Cisplatina 1816-1828. v. 1. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1985, p.305.

11 – CASTELLANOS, Alfredo. La Cisplatina, la independência y la república caudillesca. Historia Uruguaya. Tomo 3. 1998. Buenos Aires: Ediciones de La Banda Oriental, p.7.

12 – SOUZA, op. cit., p.363.

13 – DEVOTO, op. cit., p.130.

14 – DEVOTO, op. cit., p.130 e 131.

15 – DEVOTO, op. cit., p.112 e 113.

16 – DUARTE, op. cit., p.271.

17 – FERREIRA, Fábio. O General Lecor e a Escola de Lancaster: Método e Instalação na Província Cisplatina. In: Revista Tema Livre, ed.09, 23 set. 2004. Disponível em: http://www.revistatemalivre.com

18 – ACTAS DEL CONGRESSO CISPLATINO. Sessão de 23 de julho de 1821. Montevideo, 1821. Archivo General de la Nación, f.17 e 17v.

19 – DUARTE, op. cit., p.273.

20 – Castellanos observa que D. João VI não ratifica o trato, entretanto, anos mais tarde, a chancelaria brasileira vem a evocá-lo na demarcação dos limites entre o Brasil e o Uruguai.

21 – CASTELLANOS, op. cit., p.7.

22 – DEVOTO, op. cit., p.125.

23 – DUARTE, op. cit., v.2, p.442.

24 – ABADIE; ROMERO, op. cit., p.326.

25 – DUARTE, op. cit., p.415.

26 – DUARTE, op. cit., p.418.

27 – DEVOTO, op. cit., p.140.

28 – DEVOTO, op. cit., p.120.

29 – ABADIE; ROMERO, op. cit., p.326.

30 – DUARTE, op. cit., p.439.

31 – RELA, Walter. Uruguay cronologia histórica anotada: dominación luso-brasilenã (1817-1828). Montevidéo: Alfar, 1999, p.20 e 42.

32 – DEVOTO, op. cit., p.123.

33 – DEVOTO, op. cit., p.119 e 120.

34 – RELA, op. cit., p.22.

35 – Segundo Carneiro (1946), dos 33 orientais, na verdade, somente 17 o eram. Onze eram argentinos, dois africanos, um paraguaio, outro francês e, ainda, um era brasileiro.

_________________________________________________________________________

Bibliografia e fontes

ABADIE, Washington Reyes e ROMERO, Andrés Vázquez. Crónica general del Uruguay. La Emancipación, vol. 3. Montevideo: Banda Oriental, 1999.

ACTAS DEL CONGRESSO CISPLATINO. Montevideo, 1821. Archivo General de la Nación.

AZEVEDO, Francisca L. Nogueira. Carlota Joaquina na corte do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

BANDEIRA, Moniz. O expansionismo brasileiro e a formação dos Estados na Bacia do Prata: Argentina, Uruguai e Paraguai, da colonização à Guerra da Tríplice Aliança. Rio de Janeiro: Revan; Brasília: Editora UnB, 1998.

BEBIANO, Rui. Organização e papel do exército, In: TORGAL, Luís; ROQUE, João (coord.). História de Portugal. volume V. Lisboa: Círculo dos Leitores, 1993.

CALÓGERAS, J. Pandiá. A política exterior do Império. Edição fac-similar. Brasília: Senado Federal, 1998.

CARVALHO, Carlos Delgado de. História diplomática do Brasil. Coleção Memória Brasileira, v. 13. Brasília: Edição fac-similar. Senado Federal, 1998.

CARNEIRO, David. História da Guerra Cisplatina. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1946.

CASTELLANOS, Alfredo. La Cisplatina, la independência y la república caudillesca. Historia Uruguaya. Tomo 3. 1998. Buenos Aires: Ediciones de La Banda Oriental.

DEVOTO, Juan E. Pivel. El Congreso Cisplatino (1821): repertorio documental, seleccionado y precedido de um análisis. Revista del Instituto Histórico y Geográfico del Uruguay, t.XII. Montevideo: 1936.

DONGHI, Tulio Halperin. Historia Argentina de la Revolución de Independencia a la confederación rosista, volume III. Buenos Aires: Editorial Piados, 2000.

__________. Revolución y guerra: formación de una elite dirigente en la Argentina criolla. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2002.

DUARTE. Paulo de Q. Lecor e a Cisplatina 1816-1828. 3v. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1985.

FERREIRA, Fábio. Breves considerações acerca da Província Cisplatina: 1821 – 1828. In: Revista Tema Livre, ed.06, 23 agosto 2003. Disponível em: http://www.revistatemalivre.com

___________. O General Lecor e a Escola de Lancaster: Método e Instalação na Província Cisplatina. In: Revista Tema Livre, ed.09, 23 set. 2004. Disponível em: http://www.revistatemalivre.com

___________. As incursões franco-espanholas ao território português: 1801-1810. In: Revista Tema Livre, ed.05, 23 abril 2003. Disponível em: http://www.revistatemalivre.com

____________. A Presença Luso-Brasileira na Região do Rio da Prata: 1808 – 1822. In: Revista Tema Livre, ed.03, 22 out. 2002. Disponível em: http://www.revistatemalivre.com

____________. A trajetória política de Artigas: da Revolução de Maio à Província Cisplatina. In: Revista Tema Livre, ed.08, 23 abril 2004. Disponível em: http://www.revistatemalivre.com

GOLDMAN, Noemi. Revolución, república, confederación (1806-1852) Nueva Historia Argentina. Tomo 3. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1998.

GOLIN, Tau. A fronteira: governos e movimentos espontâneos na fixação dos limites do Brasil com o Uruguai e a Argentina. Porto Alegre: L&PM, 2002.

LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.

NARANCIO, Edmundo M. La Independencia de Uruguay. Madrid: Editorial MAPFRE, 1992.

PACHECO, M. Schurmann e SANGUINETTI, M.L. Coligan. Historia del Uruguay. Montevidéu: Editorial Monteverde, 1985.

PADOIN, Maria Medianeira. Federalismo Gaúcho: fronteira platina, direito e revolução. Coleção brasiliana novos estudos, v. 3. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001.

PANTALEÃO, Olga. A presença inglesa. In: BARRETO, Célia de Barros. O Brasil monárquico: O processo de emancipação. HOLANDA, Sérgio Buarque de. História geral da civilização brasileira, t.II, v.3. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

PIMENTA, João Paulo G. Estado e nação no fim dos Impérios Ibéricos no Prata (1808-1828).São Paulo: Hucitec; Fapesp, 2002.

RELA, Walter. Uruguay cronologia histórica anotada: dominación luso-brasilenã (1817-1828). Montevidéo: Alfar, 1999.

_________. Artigas: su acción política y militar, 1811 – 1820. Montevidéu: Liga Marítima Uruguaya, 1998.

RIBEIRO, Ana. Montevideo, la malbienquerida. Montevidéu: Ediciones de la Plaza, 2000.

SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2002.

SARAIVA, José Hermano. História de Portugal. Lisboa: Alfa, 1993.

SOUZA, J.A. Soares de. O Brasil e o Prata até 1828. In: BARRETO, Célia de Barros. O Brasil monárquico: o processo de emancipação. HOLANDA, Sérgio Buarque de. História geral da civilização brasileira, t.II, v.3. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colonial (1500 – 1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

_________. Dicionário do Brasil Imperial (1822 – 1889). Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.

A política externa joanina e a anexação de Caiena: 1809-1817

Texto de Fábio Ferreira

1. Introdução

D. João de Bragança

O presente trabalho tem como objetivo abordar brevemente a anexação de Caiena pelo príncipe regente português D. João no contexto europeu e sul-americano do início do século XIX e as características da ocupação joanina na região, dialogando, sempre que possível e em determinados aspectos, com as incursões realizadas pelo príncipe na Banda Oriental.

Assim, o próximo item, para a melhor compreensão do estabelecimento de uma possessão francesa na América do Sul, é dedicado ao corte temporal que compreende entre o primeiro estabelecimento francês no território do atual Brasil, mais especificamente na Baia de Guanabara, até a transmigração da Corte portuguesa para a mesma região.

O terceiro item diz respeito às duas regiões anexadas por D. João durante o seu reinado americano: Caiena e a Banda Oriental, explicitando as razões e as argumentações em torno de tais empreendimentos.

No item seguinte, a capitulação de Caiena e a administração portuguesa da mesma são abordadas, havendo, inclusive, uma breve comparação com o governo do general Lecor em Montevidéu.

O Congresso de Viena e a devolução de Caiena aos franceses são questões apresentadas no item cinco do trabalho, além das manobras por parte dos diplomatas de Portugal e França na restituição e restabelecimento dos limites entre os domínios dos dois países na América.

Assim sendo, nas linhas que se seguem, encontram-se informações a respeito da anexação de Caiena pelos portugueses, sem ignorar o contexto internacional, a geo-política e a política externa joanina na primeira vintena do século XIX.

 

2. O Período Colonial: De Villegaignon ao príncipe regente D. João

Mapa francês da baía de Guanabara, c. 1555.

Mapa francês da baía de Guanabara, c. 1555.

 

A demonstração do interesse francês na América do Sul dá-se já no século XVI com a ocupação da área que é hoje a cidade do Rio de Janeiro pelos gauleses e a fundação da França Antártica em 10 de novembro de 1555, tendo Villegaignon como vice-rei1.

Porém, a ocupação francesa na Guanabara não é duradoura: Em 15 de março de 1560, Mem de Sá ocupa o forte francês na região, culminado com o triunfo português. Apesar do malogro deste primeiro intento, a França não desiste dos seus objetivos no continente sul americano.

Em 1604, novamente há a presença francesa no continente com a expedição de Daniel de la Touche, senhor de La Ravardière, que explora a costa da Guiana e, no ano seguinte, recebe a nomeação para colonizar Caiena2. Entretanto, ela é destruída alguns anos mais tarde pelos portugueses, que queriam fazer valer o tratado de Tordesilhas de 14943. Em 1608 e 1617 há novas tentativas de dominar a mesma região, respectivamente por Robert Harcourt e Edward Harvey, porém todas as duas fracassam.4

Mesmo com tais acontecimentos, os franceses, em 1612, fundam no Maranhão a França Equinocial e o forte de São Luís, tendo a frente do novo projeto La Ravardière e François de Rassily. No entanto, o destino do empreendimento gaulês em terras sul americanas não é diferente dos anteriores: Em 16155, mais uma vez, os portugueses derrotam os franceses.

É válido observar que a defesa do território ao norte do continente sul-americano dá-se durante a União Ibérica (1580 – 1640), quando o rei de Espanha, Felipe II, passa a ser também o monarca de Portugal e seus domínios ultramarinos. Porém, a defesa dos domínios espanhóis na América fica a cargo dos portugueses, conforme explicita Furtado (p.86) “Aos portugueses coube a defesa da parte dessa linha [das Antilhas ao Nordeste brasileiro] ao sul da foz do Amazonas. Dessa forma, foi defendendo as terras de Espanha dos inimigos desta que os portugueses se fixaram na foz do grande rio, posição-chave para o fácil controle de toda a imensa bacia.”. Com o fim da união entre as duas Coroas, a América portuguesa vê-se além dos limites de Tordesilhas. Assim, segundo Vainfas (2000, p.572) “(…) foi no período da dominação filipina que se alargaram as extensões da futura América Portuguesa (…)”

E, neste mesmo período, a era dos Felipes, mais precisamente em 1626, que é constituído, segundo Jorge (1999), o núcleo original do que virá a ser a Guiana Francesa: às margens do rio Sinamari é constituída a primeira colônia gaulesa, que, em 1634, é transferida para a ilha de Caiena.

Ainda segundo o mesmo autor, a manutenção de Caiena nas mãos dos franceses vem a ser uma tarefa árdua para estes:

“(…) no novel estabelecimento malograram-se sucessivamente todos os reiterados ensaios de colonização até 1656, quando a ilha de Caiena foi ocupada pelos holandeses que a exploraram até 1664, data de sua retomada pelos franceses. Os ingleses expulsaram-nos em 1667, ocupando-a até que dela se reapoderaram os holandeses em 1674. Da reconquista pelo vice-almirante conde d’Estrées, em 1676, data a sua ocupação definitiva pela França.”6

Sobre as adversidades da região, é válido observar que, citando Ciro Cardoso, Gomes e Queiroz (2002, p.32) comentam que “(…) as dificuldades de colonização da Guiana Francesa eram diversas: relevo acidentado, correntes marítimas dificultando a navegação, epidemias e pragas nas plantações, subpovoamento, pobreza crônica, etc. Enfim, o fracasso inicial da colonização teve fatores geo-ecológios e históricos.”

As primeiras tentativas de delimitar as fronteiras entre a Guiana Francesa e o Cabo Norte, parte do atual estado brasileiro do Amapá, datam de 16337. Em 1640, com a Restauração, Portugal volta a existir como país independente, e os limites da dominação gaulesa – apesar de todas as adversidades que ela sofreu – na região citada com a América Portuguesa têm como fruto inúmeras discussões entre os dois países europeus ao longo do século XVII.

Segundo Jorge (1999), para os portugueses, o limite entre os seus domínios e o dos franceses era o rio Oiapoque ou Vicente Pinzón, em virtude da doação feita por Felipe IV de Espanha, em 1637, à Bento Maciel Parente da Capitania do Cabo Norte. Porém, para os franceses, os limites entre as possessões dos dois países não dava-se pelo Oiapoque, criam que a França tinha direitos sobre a margem setentrional do Amazonas devido as cartas-patentes concedidas, em 1605, a La Ravardière.

No decorrer do século XVII várias são as atitudes por parte da França que demonstram o seu interesse na região entre o Amazonas e o Orinoco, na atual Venezuela, como, por exemplo, quando os franceses perdem Caiena para os holandeses e, sem possuir território algum nas Guianas, Luís XIV nomeia o duque de Ampville vice-rei da América, tendo tal área entre os dois rios estado sob a sua jurisdição, e também a criação de diversas companhias de comércio que abrangem a área que vai desde as margens do Amazonas até as do Orinoco.8

Diante do impasse, que chega a resultar em conflitos armados entre os dois países, Portugal e França optam pela negociação, que inicia-se em Lisboa no ano de 1698. No entanto, segundo Jorge (1999, p.57), devido à falta de conhecimento de ambas as Coroas litigiosas sobre a região, um tratado provisório é assinado em 4 de março de 1700 por Portugal e França, em que

“(…) deixou em suspenso a atribuição do território compreendido entre a ponta de Macapá e o cabo do Norte e daí pelo litoral até o Oiapoque, permitindo aos nacionais dos dois países estabelecer-se livremente entre aquele rio e o Amazonas, sem que nenhuma das duas Coroas pudesse, por este fato, reivindicar um direito de soberania ou instalar postos militares ou comerciais que implicassem tomada de posse. Esse modus vivendi, baseado na neutralização provisória do território contestado, seria mantido até a conclusão de um ajuste definitivo.”

Porém, conforme evidencia o autor citado acima, devido ao posicionamento português na Guerra de Sucessão espanhola, ao lado da Inglaterra e Holanda e contra a França e Felipe V da Espanha, o tratado provisório é anulado, sendo que tal limite só é definido pelo Tratado de Utrecht, de 11 de abril de 1713.

Por este tratado, garantido pela Inglaterra, segundo Carvalho (1998), a França renuncia as terras do Cabo Norte, assim como a qualquer pretensão em relação à navegação do Amazonas, sendo as duas margens deste rio de navegação única e exclusiva da marinha portuguesa, além do trânsito de Caiena para o sul do Vicente Pinzón ser proibido, igualmente havendo a proibição dos lusos comerciarem na citada cidade.

Porém, segundo Gomes e Queiroz (2002) os franceses não cumpriam o Tratado de Utrecht, o que não era de desconhecimento dos portugueses, e Abreu (1998, p.197) afirma que os gauleses encontraram maneiras de burlar tal trato, “(…) descobrindo mais de um Vicente Pinzón e mais de um Oiapoque, de modo a aproximarem-se o mais possível do Amazonas, seu verdadeiro e constante objetivo.”

Conforme demonstra Jorge (1999, p.59) ao longo do século XVIII, por parte de várias autoridades francesas na Guiana, diversos rios são entendidos como o Vicente Pinzón e o Oiapoque, sempre com o mesmo objetivo citado por Abreu, porém “(…) Portugal e, depois, o Brasil, sempre e invariavelmente, sustentavam que o rio Japoc ou Vicente Pinsão do Tratado de Utrecht era o mesmo e único Oiapoque ou Vicente Pinzón, universalmente conhecido com este nome desde 1596, que se lança no oceano Atlântico ao oeste do cabo de Orange, limite (…) formalmente aceito pelo [Tratado] de Utrecht em 1713”

Após a Revolução Francesa (1789) e a chegada do príncipe regente D. João ao poder (1792), no período de 1797 a 1802, várias são as tentativas de acordo entre portugueses e franceses sobre os seus limites na América, como, por exemplo, o de Paris de 1797 que não é ratificado por Portugal pelo fato de ir contra os seus interesses, e o de Amiens, de 1802, que exclui o país ibérico das negociações, logo o não reconhecimento do tratado.9

Assim, a tentativa por parte da França de estender a Guiana Francesa e o desrespeito à soberania lusitana, em que acordos são celebrados sem a participação de Portugal, são reflexos da posição frágil em que o país chega ao século XIX, além da conjuntura européia, com a polarização de forças entre a Inglaterra e a França napoleônica, que intimidava todo o continente.10

É válido também ressaltar que no período que compreende o final do século XVIII e os primeiros anos do XIX, Portugal, devido ao complicado xadrez europeu, vê-se envolvido em várias guerras, mesmo sempre tendo tentado levar ao máximo uma política de neutralidade. Tropas portuguesas, por exemplo, marcham contra a França, em 1793, na Campanha do Rossilhão, incorporadas ao exército espanhol e, em 1801, Portugal é invadido pelos aliados de outrora, com apoio militar francês, no episódio conhecido como Guerra das Laranjas, em que a praça de Olivença, território português, cai nas mãos do visinho e inimigo.11

Sobre a situação enfrentada por Portugal e o seu reflexo nos tratados e no espaço americano, Jorge (1999, p.60) afirma que “os seus negociadores [dos tratados] não tiveram em mira interpretar o pensamento do Tratado de Utrecht, mas, impor a Portugal, enfraquecido pela guerra, limites novos no território da Guiana.”

Evidentemente, não podemos ignorar as dinâmicas das populações locais na definição de fronteiras, conforme explicitam Gomes e Queiroz (2002) em seu trabalho, entretanto, nesta tentativa de expansão francesa, pode-se constatar a política européia e a utilização de tratados para definições de espaços no continente americano.

 

3. As Anexações Joaninas: Caiena e a Banda Oriental

Napoleão Bonaparte: tentativa de impedir a Europa de negociar com a Inglaterra.

Como foi dito anteriormente, Portugal adentra o século XIX envolvido nas intrigas européias, porém, sempre a buscar a neutralidade. Sobre tal fato, Vicente (1996, p.34) afirma que “D. Maria, o Príncipe Regente e os ministros portugueses entendiam que a neutralidade era a melhor política (…)”. Ferreira (2003) também mostra que “Mesmo em 1803 [com] novos conflitos terem se estabelecido entre a França e a Inglaterra, Portugal consegue permanecer em uma posição que convém-lhe: a de neutralidade. Continua aliado dos ingleses e em paz com os franceses.” Até mesmo Carlota Joaquina, esposa do príncipe regente, tem a mesma postura, segundo Francisca Azevedo, sempre a objetivar a neutralidade portuguesa, inclusive as suas cartas ao pai, Carlos IV, rei de Espanha, seguem esta linha.12

Porém, a política de neutralidade acaba por tornar-se inviável, seja por questões internas, como a força que o partido francês ganha em Portugal, seja por externas, como os desejos expansionistas de Napoleão e a aliança do país ibérico com a Inglaterra.

Diante destes fatos, Junot, a obedecer ordens do líder francês, marcha em direção ao território português, a adentra-lo pela Beira Baixa no dia 17 de novembro de 180713. Sete dias depois, a Corte fica ciente do ocorrido e, assim, a família real parte de Lisboa em direção ao Rio de Janeiro doze dias após a entrada dos franceses no território português. 14

A transmigração da Corte para o Brasil, realizada com apoio inglês, e que segundo Azevedo (2002) torna-se um dos objetivos de Canning desde que assume o Ministério das Relações Exteriores do seu país, não é o único fato da história luso-brasileira neste momento que tem a participação de Londres. Segundo Goycochêa (1963) há a possibilidade do plano da invasão da Guiana Francesa ter sido formulado na capital britânica.

Independentemente se tal incursão foi planejada ou não na Inglaterra, o autor demonstra que D. Rodrigo15, antes mesmo da transferência da Corte para o Rio, já propunha a hostilização da possessão francesa no extremo setentrional da América do Sul.

Lima (1996, p.287), ao citar uma correspondência de 1801 do ministro para o príncipe regente, evidência que há o interesse napoleônico, já nesta época, de transformar a Guiana em uma poderosa colônia que, para D. Rodrigo, seria fatal para o Pará e conseqüentemente para o Brasil.

Assim, feita a travessia do Atlântico, D. João declara guerra a França e anula os tratados celebrados anteriormente com tal país. Sobre tal atitude do príncipe regente, Calógeras (1998, p.243) afirma que “Nulos e de nenhum efeito declarou-os (…) D. João, em seu Manifesto de 1º de maio de 1808, ao romper relações e entrar em guerra contra Napoleão.”

Uma vez tento declarado guerra aos invasores de Portugal, D. João prepara o ataque da possessão dos seus inimigos no continente sul-americano. Conforme explicita o autor, partem do Pará, no dia 6 de novembro de 1808, as hostes comandados pelo tenente-coronel Manoel Marques, que conquista Caiena em 12 de janeiro de 1809.

Sobre os objetivos joaninos em tal anexação, Silva (1986) afirma que a defesa do litoral norte do Brasil, preocupação de D. Rodrigo, é uma das razões de tal atitude por parte do governo português instalado no Brasil; outro argumento era o restabelecimento de limites entre a Guiana Francesa e a América portuguesa de acordo com os interesses lusitanos; além de visar a aniquilação de qualquer ponto gaulês na América do Sul.

Já as razões e justificativas da outra anexação joanina durante a sua estada no Brasil, a da Banda Oriental, ocorrida pela primeira vez em 1811 e em uma segunda no ano de 1816, são outras.

Primeiramente, é válido observar que o desejo de D. João em conquistar essa área faz parte do velho desejo lusitano de possuir ao menos um ponto no Rio da Prata, anelo este que pode ser constatado desde o século XVI e manifesto ao longo dos séculos seguintes16. O temor de que da América espanhola emanassem “(…) as idéias dos ‘novos tempos’ franceses”17 para a região do sul do Brasil é igualmente outra razão apontada por Silva (1986).

Também é pertinente destacar que houveram especulações de que Napoleão – que em 1808 aprisiona toda a família real espanhola, exceto Carlota Joaquina – desejaria conquistar para si o que foi o domínio dos Bourbons na América, além da tentativa do mesmo em subjugar Montevidéu, conforme narra Azevedo (2002, p.177): “[Chegam a esta cidade] delegados franceses com despachos de Napoleão (…) informando da abdicação de Carlos IV em favor de Jose Bonaparte e exigindo a aclamação do rei também nas colônias. [Entretanto] Fernando VII [irmão de Carlota Joaquina] fora proclamado rei e os emissários franceses foram banidos da cidade.”

Porém, é interessante observar que uma vez sob domínio português, há o silêncio por parte de Napoleão para recuperar a Guiana, pois a França não envia esforço militar algum para tentar reaver a possessão perdida, sendo que Lima (1996) atribui tal postura ao fato dos franceses terem como maior inimigo a Inglaterra, a marinha mais poderosa da época. Outra razão que talvez também possa ser apontada como contribuídora para a não tentativa de refutar os portugueses da ilha de Caiena pode ser que Napoleão, por estar tão comprometido com as suas conquistas e guerras na Europa, não tinha condições de atuar no sentido de retomar a Guiana Francesa.

Outro ponto a observar-se no que diz às duas invasões à Banda Oriental e a sua justificativa, é a de que os luso-brasileiros estavam a buscar os limites naturais da América portuguesa. Na incursão de 1811, o direito dos Bourbons na região do Prata é evocado, além do fato de Montevidéu, reduto pró-Espanha, e, por essa razão, estar sob ataque portenho18, que visava conquistar a Banda Oriental, o que acarretou no pedido de ajuda dos montevideanos aos luso-brasileiros e também à perturbações na fronteira com Rio Grande.

Em 1816 as violações continuaram, além de que a região estava a ser governada por Artigas, que na interpretação do Rio de Janeiro o seu governo era sinônimo de anarquia, além da preocupação geopolítica do Rio da Prata tornar-se um bloco político espanhol19. Assim, o General Lecor, veterano das guerras napoleônicas na Europa, marcha em direção à Banda Oriental, conquistando Montevidéu em 20 de janeiro de 181720.

A geopolítica, assim como na região do Prata, também foi um fator que contribuiu para que as tropas luso-brasileiras marchassem em direção à Caiena, conforme explicita Silva (1986) quando cita a preocupação que D. Rodrigo tinha na proteção do litoral norte do Brasil.

Tal receio não é ignorado por Lima (1996, p.286), que mostra o ministro de D. João tendo como questão de suma importância a integridade territorial do Brasil, “(…) e que sob este ponto de vista nenhuma capitania lhe merecia igualmente maior cuidado que a do Pará, em consideração do perigo da proximidade dos franceses num momento de inimizade com a França, e da ameaça da questão sempre aberta do Oiapoque.” Logo o aniquilamento da dominação francesa na Guiana torna-se relevante para o governo português devido a posição estratégica que os gauleses obtinham na América do Sul.

Lima (ibid.) também demonstra em seu trabalho o reconhecimento de D. Rodrigo de que os grandes rios das capitanias amazônicas interligavam-nas com o Mato Grosso; o fácil acesso ao interior do Brasil que o domínio destas citadas capitanias garantiam; além do potencial econômico que possuíam. Quer dizer, uma eventual perda desta região poderia significar grande estrago na configuração do domínio português na América, sendo que quem possuía um ponto bem próximo a esta região e que era hostil ao príncipe D. João era Napoleão Bonaparte.

Evidentemente, as relações de Portugal com a Espanha eram igualmente hostis, além dos dois países possuírem vastos limites na América, porém, em 1808, no mesmo ano da chegada da Corte portuguesa ao Rio de Janeiro, a Espanha sucumbe diante de Napoleão, não constituindo ameaça ao governo português sediado no Brasil e, a partir de 1810, começam os movimentos na maioria das colônias americanas, em que as mesmas não aceitam a dominação das Cortes espanholas.

A Inglaterra, evidentemente, possuía tais condições, porém, era aliada dos portugueses, além do fato de que D. João, uma vez no Brasil, tomou as conhecidas medidas que beneficiaram os aliados britânicos. Assim, os ingleses não teriam razão para atacar os seus aliados, por sua vez, os espanhóis, que diversas vezes ao longo da história envolvem-se em conflitos com os portugueses, tinham que resolver muitos problemas dentro do seu território metropolitano e colonial, logo a dificultar bastante um eventual ataque a Portugal na América, sendo a França o único país que tinha razões para tal atitude e em tais condições.

 

4. A capitulação de Caiena e a dominação portuguesa

Mapa atual: em rosa, o planalto das Guianas, que perpassa pela Venezuela (Guiana Espanhola), Guiana (Guiana Inglesa), Suriname (Guiana Holandesa), Guiana Francesa e Amapá (Guiana portuguesa).

Conforme foi dito anteriormente, D. João, ao chegar ao Brasil, declara guerra à França, sendo o ataque a Caiena o primeiro ato joanino de hostilidade a Napoleão. Entretanto, primeiramente, Portugal trata de redefinir as fronteiras do Brasil com a Guiana Francesa de acordo com o Tratado de Utrecht, para depois adentrar o território guianense, conforme demonstra Goycochêa (1963, p.127):

“Os limites entre o Brasil e a Guiana Francesa, em tais condições, voltaram ao rio Oiapoque ou de Vicente Pinzón, combinados no Congresso de Utrecht em 1713. O que foi estabelecido em Paris (1797), em Badajoz e em Madrid (1801) e mesmo em Amiens (1802), foi anulado, deixou de existir.

Impunha-se depois, como revide à invasão de Portugal, que fosse levada a guerra até ao território indiscutivelmente francês, do Oiapoque ao Maroni, inclusivemente à ilha de Caiena onde é a capital (chef-lieu) da colônia, que se sabia guarnecida e fortificada.”

A expedição que realiza o ataque a Guiana é organizada pelo capitão-general do Pará, José Narciso de Magalhães de Menezes, contando, inicialmente, segundo Lima (1996), com 400 homens e, após passagem pela ilha de Marajó, 500, que partem, sob o comando do tenente-coronel Manuel Marques – que ganhou destaque na guerra entre Portugal e Espanha de 180121, lidera, na incursão à Caiena, as tropas terrestres – em direção ao extremo norte brasileiro.

O papel da Inglaterra ao lado de Portugal em tal invasão não pode ser ignorado, pois, segundo Goycochêa (1963), o ministro do exterior inglês, George Canning, esteve envolvido na articulação de tal ataque junto a D. Rodrigo, além da força naval anglo-lusitana, comandada por James Lucas Yeo, sobrinho de Sidney Smith, ter tido atuação neste advento contra Napoleão e os seus súditos.

As forças que partiram de Marajó chegam ao cabo Norte em 12 de novembro de 180822, a apossarem-se, segundo Calógeras (1998), da margem direita do Oiapoque exatamente um mês depois e, assim, continuam em direção a Guiana Francesa. Victor Hugues, o governador francês de Caiena, ao saber do que estava a ocorrer, envia esforços militares para a fronteira, esforços estes que, segundo Lima (1996) contavam com apenas 40 homens, que não conseguem conter os seus oponentes, e acabam recuando.

Porém, paralelamente, em Caiena, é organizada a defesa da cidade com os diminutos recursos disponíveis pelos franceses. Tais preparos são citados por Lima (ibid., p.292): “(…) em Caiena se faziam preparativos de defesa (…) que (…) constavam de 511 europeus de tropas escolhidas, 200 pardos livres e 500 escravos adrede recrutados, além de um brigue de 14 peças e 80 homens de equipagem. Não era portanto desproporcionado o pessoal de terra, e no dizer dos documentos franceses eram bastantes os víveres e as provisões bélicas.”

Entretanto, a defesa preparada pelos franceses é inútil: a 6 de janeiro de 1809 as hostes saídas do Pará chegam a Caiena, desembarcando aí no dia seguinte, sendo que o governador acaba por assinar a rendição cinco dias após o desembarque23.

Lima (1996) observa que, os portugueses, antes de assinarem o trato com o governador de Caiena, ameaçam estabelecer um sistema em que os escravos da possessão francesa que pegassem em armas contra os senhores guianenses e atacassem as propriedades dos mesmos seriam libertos após o derrube do poder francês na ilha, sendo muito mais por esta razão, e não pela força, que Victor Hugues, possuidor da maior plantação da Guiana Francesa, assina a rendição.

O governador rendido, membros da administração civil e militar, além das suas respectivas famílias e criadagem, retornam para a França, tendo o seu custo bancado pelo príncipe regente. Uma vez de volta à França, segundo Silva (1986), a rendição do antigo governador de Caiena acaba por culminar na prisão perpétua do mesmo.

Sobre a punição de Victor Hugues, Lima (1996, p.292) destaca que

“O conselho de inquirição nomeado pelo imperador dos franceses culpou Victor Hugues de imprevidência e frouxidão na organização da defesa e na operação militar, permitindo por suas delongas o desembarque que lhe não teria sido difícil impedir, e recuando com a flor das tropas antes mesmo do primeiro revés, para assinar às pressas, sem convocar conselho de guerra nem reunir ou consultar as autoridades civis, as condições de uma capitulação cujo teor demonstrava que os aliados não contavam tanto com a imediata eficiência dos seus esforços.”

No tocante a conquista de Caiena pelos portugueses e a sua interpretação negativa por parte do Governador do Pará, Silva (1986, p.) observa que

“Os termos da capitulação foram criticados pelo Governador do Pará, que não concordava com eles, sobretudo no tocante à libertação dos escravos guianenses, os quais se incorporaram no exército aliado, e no referente à vigência única do Código Napoleônico, preferindo o estabelecimento de áreas jurídicas nas quais a autoridade de D. João VI pudesse agir. Não obstante, em janeiro de 1809, lavraram-se os termos da posse definitiva portuguesa da Guiana, embora esta nunca tenha chegado a ser declarada oficialmente parte integrante do território brasileiro, mantendo os guianenses o seu vínculo às leis napoleônicas e não às portuguesas.”

A manutenção das leis napoleônicas no novo território dominado por Portugal podem ser melhor compreendidas se analisadas sob a perspectiva dos objetivos joaninos na anexação de Caiena. Além das razões citadas anteriormente, como, por exemplo, a retaliação aos franceses pela invasão do território peninsular e a anulação da força dos mesmos na América do Sul, Lima (1996) afirma que Portugal não visa com tal advento uma conquista definitiva de Caiena, ao contrario de Montevidéu, onde, nas palavras do autor, os objetivos seriam imperialistas. Anexando o domínio francês, o governo estabelecido no Rio de Janeiro pretendia, no futuro, ao fim das guerras, ter com o que barganhar em convenções e tratados do pós-guerra, e, também, o restabelecimento dos limites entre Brasil e Guiana Francesa de acordo com o Tratado de Utrecht.

Apesar da vitória sobre os franceses, a situação militar portuguesa em partes do território da Guiana não é das mais favoráveis, inclusive, a reconquista em si não sendo impossível, ao contrário, os gauleses não teriam tido muitas dificuldades, porém Portugal tem como aliado o maior poderio naval da época, o que acaba por garantir-lhe a posse da nova conquista e inibir um ataque francês.

Uma vez Caiena sendo capitulada, Manuel Marques, o líder das tropas de terra, administra-a provisoriamente. Já nos primeiros dias da nova administração caienense o governador português constata essa deficiência militar pela qual o novo domínio luso passa, com as forças de ocupação debilitadas, com muitos homens doentes e, diante de tal fato, demanda ao Governador do Pará mais tropas, no que é atendido.

Sobre a atuação de Manuel Marques no comando da Guiana Francesa, Lima (1996, p.298) taxa-a positivamente, afirmando que

“Para administrar a colônia (…) recorreu a um conselho ou junta consultiva e deliberante composta dos habitantes mais reputados pela sua inteligência e probidade, sendo logo por esse meio regulado o valor da moeda portuguesa comparado com a francesa, para não embaraçar as transações mercantis; estabelecido um imposto de patente sobre todas as casas de negócio, para com o seu produto se pagar o soldo à guarnição, e adotadas outras providências urgentes de bom governo.”

O autor ainda cita que diante da desobediência de um grupamento militar desejoso de voltar para o Pará e de abandonar Caiena – ninho de febres malignas, nas palavras do mesmo – Manuel Marques repreende os descontentes apenas com a sua palavra e prestígio militar.

Em março de 1810 assume a administração de Caiena o desembargador João Severiano Maciel da Costa24, que tem a sua atuação elogiada por Jorge (1999, p.61), a afirmar que a mesma “(…) contribuiu poderosamente para o desenvolvimento do comércio naquela região e mereceu as mais lisonjeiras referências de historiadores franceses da Guiana.”

Já Silva (1986) e Lima (1996) demonstram que o governo de Maciel da Costa (1810-1817) gerou tanto detratores, quanto simpatizantes, sendo grande opositor da administração o jornal Correio Brasiliense, que acusava-o de déspota, corrupto e arbitrário. No entanto, “(…) outras fontes mostram-no como um bom administrador, modernizador do centro urbano de Cayenne, tendo-se interessado em fazer remeter ao Brasil grandes quantidades das especiarias da região: cravo, canela, noz moscada, pimenta (…) [e] mudas de uma espécie nativa de cana, ‘a caiena’ (ou caiana) que floresceria nas zonas canavieiras brasileiras.”25

O governo de Maciel da Costa é elogiado com entusiamo por Lima (1996, p.298), conforme pode ser constatado no seguinte trecho:

“A administração de Maciel da Costa (…) constitui uma página honrosa do reinado americano de Dom João VI. Os seus conhecimentos jurídicos e outros, a sua ciência da língua francesa, a sua lhaneza, espírito de justiça e atividade burocrática fizeram dele (…) um governante geralmente tido por modelo, que deixou muito agradáveis recordações quando a possessão foi restituída à França e os antigos senhores a reocuparam.

Não ficou todavia a administração portuguesa extreme de queixas contra ela. Os descontentes são inevitáveis e porventura alguns justicáveis, apesar da colônia ter aproveitado materialmente, quando mais não fosse pela livre exportação e venda com lucros dos seus gêneros coloniais, amontoados inutilmente nos armazéns durante os anos de guerra em que a Inglaterra varria de inimigos os mares com suas esquadras.”

O tratamento dado à administração portuguesa na Guiana é plausível de comparação com a da Banda Oriental, que teve a sua frente, desde 181726, o general Carlos Frederico Lecor, mais tarde Barão e Visconde de Laguna. Ambas geraram construções díspares e, a representar a positiva, destaca-se o viajante Saint-Hilaire (2002, p.187) que, em 1820, esteve em Montevidéu, e em seu diário faz a seguinte observação da administração do general português:

“(…) Montevidéu goza de profunda paz [enquanto Buenos Aires vivia o oposto]. Não mudaram as formas de administração; nem aumentaram os impostos, e a receita é aplicada às necessidades do país e ao pagamento dos funcionários espanhóis. O general escuta e faz justiça a todos, favorece, o quanto pode, os habitantes da região, mantendo uma disciplina severa entre as tropas. [E] É o governo português que [as] paga (…)”

Tratando a ocupação portuguesa da Banda Oriental com, no mínimo, certa reserva – isso quando não é rechaçada – é o que se encontra entre autores uruguaios como Felde (1919) e Acevedo (1933). Como exemplo, Felde trata as medidas por parte do governo luso-brasileiro que visavam tornar a Banda Oriental parte integrante do Brasil e que acabaram por ter apoio de uruguaios, como um pragmatismo dos seus conterrâneos, que tendo o seu país arrazado pelo período de guerra, não tem outra opção senão aceitar a dominação portuguesa, com os aspectos positivos da mesma sendo silenciados.

Outra comparação que pode ser feita entre a ocupação joanina do extremo norte com a do sul é que, embora a segunda tenha tido objetivos imperialistas, caso malograsse, e D. João tivesse que abandonar a conquista platina, ele não exitaria em redefinir a fronteira com a Banda Oriental de acordo com as suas conveniencias, de maneira que não conseguiu na Europa27. Quer dizer, a demarcação territorial conforme os seus interesses também foi preocupação do príncipe regente ao ocupar a Guiana Francesa, que antes de ocupá-la, estende a fronteira de acordo com o Tratado de 1713, conforme foi citado anteriormente.

Ressalta-se também que no sul, Lecor encontra uma região envolvida em guerras no seu interior há algum tempo, debilitada por esta razão, ao contrário do que Manuel Marques depara-se na Guiana Francesa, entretanto, na Banda Oriental há a resistência de uma figura como Artigas, que tinha respaldo popular, um projeto de um país independente na região platina, e que peleja contra a presença luso-brasileira até 1820, ao contrário de Victor Hugues, que assina em janeiro de 1809 a rendição e volta para a França no mês seguinte a capitulação de Caiena.

Entretanto, tanto Artigas, quanto Victor Hugues, são punidos pelos seus fracassos: O primeiro, após a sua derrota, é entregue ao presidente paraguaio Gaspar Rodrigues de Francia, que o confina no Convento de la Merced, saindo meses mais tarde para uma chácara no interior, onde fica a trabalhar a terra com dois escravos;28 já Victor Hugues, julgado pelo regime napoleônico, paga o preço do seu trato com os portugueses com a prisão perpétua.

 

5. O Congresso de Viena e o fim da soberania portuguesa em Caiena

João Severiano Maciel da Costa: governador portugués de Caiena.

Com a queda de Napoleão Bonaparte, começam as discussões diplomáticas em torno da Guiana Francesa. Em 1814, no Tratado de Paris, realizado já no governo de Luís XVIII, esboça-se a possibilidade de Portugal vir a devolver tal região29.

Os gauleses tentam redefinir a fronteira de acordo com o tratado de 1797, entretanto, os portugueses não aceitam tal proposta, levando a questão para o Congresso de Viena (1815), onde a discussão entre os dois países dá-se na delimitação ou não pelo rio Oiapoque. Portugal quer tal rio como fronteira, os franceses querem ultrapassá-lo, a avançar em território que os portugueses entendiam como seu, porém já a fazer concessões no sentido de ocupar uma parcela menor do atual Amapá.

Ainda no Congresso, Portugal tenta condicionar a devolução da Guiana à de Olivença, perdida para a Espanha na Guerra das Laranjas, já que, segundo Silva (1986, p.391) “Deixara de ter qualquer sentido a retenção da longínqua e dificultosa conquista já que, após o retorno à Monarquia, em França, a Guiana não representaria mais, ao olhar da Corte do Rio de Janeiro, um enclave de onde poderiam irradiar, diretamente, as idéias revolucionárias, trajendo em seu bojo virtuais ameaças aos (…) Braganças.”

No entanto, ao final do Congresso, Portugal não consegue a restituição de Olivença, e compromete-se a devolver a Guiana aos franceses, porém sem marcar a data da devolução, conforme demonstrado por Jorge (1999, p.61): “(…) se declarava que a entrega efetuar-se-ia quando as circunstâncias o permitissem, por ser uma convenção particular entre as duas cortes, procedendo-se amigavelmente (…)”

Apesar de ter acordado com a devolução, Portugal consegue que o limite entre o seu domínio americano e o francês de-se pelo Oiapoque, conforme o Tratado de Utrecht de 1713, como pode-se constatar nos artigos CVI e CVII do Ato Geral do Congresso de Viena, extraindo-se a seguir trecho do 107º referente ao Oiapoque como o limite: “(…) S.A.R. le prince régent du Portugal et du Brésil, pour manifester d'une manière incontestable sa considération particulière pour S.M.T.C., s'engage à restituer à Sadite Majesté la Guiane française jusqu'à la rivière d'Oyapock (…) limite que le Portugal a toujours considérée comme celle qui avait été fixée par le traité d'Utrecht.”30

Sobre o acerto realizado na Austria para a devolução da Guiana Francesa e a definição do Oiapoque como fronteira, Lima (1996, p.359) afirma que: “Terá a corte do Rio naturalmente preferido que a questão da fronteira houvesse ficado resolvida, exatamente segundo as suas vistas, no Congresso de Viena, sem mais discussões, dúvidas e sofismas. Obtiveram porém pelo menos os seus plenipotenciários um ponto importantíssimo (…) que era a estipulação da entrega apenas até ao Oiapoque (…)”

O autor ainda observa que é enviado ao Rio de Janeiro, para resolver a restituição, o duque de Luxemburgo, e que mesmo com o acordado em 1815, a França ainda nutre esperanças de chegar ao menos à boca do Amazonas ou de obter maior profundidade territorial, além de que havia o temor em Paris de que o Rio não devolvesse Caiena, nem as propriedades particulares confiscadas ou ocupadas pelos portugueses na Guiana.

Luxemburgo visa resolver logo as pendências com o Rio, além de sair da cidade com a devolução resolvida, entretanto, o governo português está sempre a buscar o retardamento da definição da restituição, pois só a faria quando estivesse certo de que seria realmente o Oiapoque o limite, tendo-o como definitivo, o que a França queria como provisório.

Enquanto ocorrem estas discussões, no ano de 1816, Maciel da Costa, a receber ordens do Rio, devolve os bens dos franceses da Guiana que foram sequestrado pelo fato de não aderirem à dominação portuguesa, e terem ido viver em países inimigos.

Após a delonga, que tem como palco não só a América, mas também a Europa, a entrega de Caiena aos franceses vem a ser resolvida em um tratado celebrado em 28 de agosto de 1817, em Paris, onde “(…) o governo português comprometeu-se a restituir, dentro de três meses, o território da Guiana Francesa até o rio Oiapoque; nele também se determinou a nomeação de uma comissão mista para proceder à fixação definitiva dos seus limites ‘conforme o sentido do artigo 8º do Tratado de Utrecht e as estipulações do Ato do Congresso de Viena.’”31

O governo de Maciel da Costa em Caiena finda-se em 8 de novembro de 181732, após uma dominação portuguesa de oito anos, que teria deixado simpatizantes franceses a lamentarem-se com o fim da mesma, e gerado o seguinte comentário do novo governador francês, Jean-François Carra Saint-Cyr33: “(…) é espantoso (…) que franceses, vendo drapejar as cores nacionais, signo da dominação francesa, vertam lágrimas de saudade pela dominação anterior; faço votos por que, ao término de minha administração, receba demonstrações semelhantes.”34

Uma vez Caiena estando em mãos francesas, os mesmos acabam por agir conforme já esperava a diplomacia lusitana: sempre a postegar a demarcação entre os limites das duas coroas no extremo setentrional da América do Sul.

Segundo Jorge (1999) a indefinição permanece até o final do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, adentrando o Império (1822-1889) e, havendo, já na República, conflitos no extremo norte brasileiro pela região do Contestado, levando, inclusive, em 1895, a invasão francesa do Amapá35.

A questão da Banda Oriental também não termina no período joanino, pois após tornar-se parte do Brasil com o nome de província Cisplatina, a mesma, em 1825, rebela-se contra a dominação brasileira, a tornar-se independente em 1828 com o nome de República Oriental do Uruguai, havendo também o Brasil problemas na definição das fronteiras com o novo país durante o século XIX e a atuação dos diplomatas dos dois países em tal questão.

 

6. Conclusão

Mapa da Guiana Francesa (1763). No detalhe, vê-se a Ilha de Caiena.

Assim sendo, a anexação de Caiena torna-se relevante se entendida dentro de um processo mais amplo, o da questão da política externa joanina, que consiste também na ocupação do território da Banda Oriental e a integração da mesma ao Reino Unido como província Cisplatina em 1821.

As incursões joaninas a essas duas regiões fronteriças aos extremos do Brasil são passíveis de comparação, da mesma forma que o é, por exemplo, a administração de Maciel da Costa em Caiena e a do general Carlos Frederico Lecor em Montevidéu, havendo pontos de interseção – e distanciamento, obviamente – entre os governos desses dois homens designados por D. João para administrar as suas novas conquistas no espaço sul-americano.

No que diz respeito a anexação de Caiena por parte do príncipe regente é válido observar que muito poucas são as informações sobre tal feito tanto na historiografia brasileira quanto na portuguesa, havendo mais dados da conquista joanina em autores mais antigos do país americano, como, por exemplo, Oliveira Lima, Araújo Jorge e Goycochêa, sendo que na do país europeu, em trabalhos como o de Saraiva ou do Dicionário de Torres, as informações encontradas são muito breves.

Até mesmo no trabalho de Sarney Costa, e nas informações disponíveis no sítio da internet do governo do estado do Amapá, ambos de cunho regional, tratam da história da região amazônica, e não aprofundam a ocupação de Caiena de 1809, a abordar com maior enfase questões referentes ao período colonial ou do final do século XIX.

Assim, concluí-se que a história da anexação de Caiena a mando do príncipe regente é algo ainda por escrever, podendo buscar como fonte, por exemplo, as correspondências entre os administradores portugueses da Guiana e o governo do Rio de Janeiro; assim como a de diplomatas, sejam eles do governo português estabelecido no Brasil, da França ou da Inglaterra e os seus respectivos governos; igualmente, se houver, relatos de contemporâneos da anexação, como foi a de Saint-Hilaire sobre a Banda Oriental. A imprensa da época também pode ser utilizada, tanto a do Brasil, quanto a de Portugal, França, Inglaterra e Guiana, para encontrar a repercussão que tal ato e a gerência de Caiena por parte dos portugueses obtiveram nos jornais do início do século XIX; a utilização do acervo da seção de manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e os fundos do Arquivo Nacional localizado na mesma cidade, além do acervo do Itamarati, também podem contribuir para o estudo, assim como a ida aos seus correspondentes no Pará, Caiena, Lisboa, Paris e Londres.

 

7. Notas

1 – VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colonial (1500 – 1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p. 584.

2 – Op. cit., p. 342.

3 – http://www.guyane.fr.st/

4 – SARNEY, José; COSTA, Pedro. Amapá: a terra onde o Brasil começa. Brasília: Senado Federal, 1999.

5 – VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colonial (1500 – 1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p. 227.

6 – Op. cit., p. 56.

7 – http://www.amazonpress.com.br/amapa/dedoc/ap31052001.htm

8 – SARNEY, José; COSTA, Pedro. Amapá: a terra onde o Brasil começa. Brasília: Senado Federal, 1999.

9 – JORGE, A. G. de Araújo. Rio Branco e as fronteiras do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1999.

10 – FERREIRA, Fábio. As incursões franco-espanholas ao território português: 1801-1810”. In: Revista Tema Livre, ed.05, 23 abril 2003. Disponível em: http://www.revistatemalivre.com

11 – Op. cit.

12 – AZEVEDO, Francisca. Entrevista concedida em 10/04/2003. In: Revista Tema Livre, ed.05, 23 abril 2003. Disponível em: http://www.revistatemalivre.com.

13 – FERREIRA, Fábio. As incursões franco-espanholas ao território português: 1801-1810”. In: Revista Tema Livre, ed.05, 23 abril 2003. Disponível em: http://www.revistatemalivre.com.

14 – Op. cit.

15 – Dom Rodrigo nasce em 1755 e tem como padrinho o marquês de Pombal. Em 1778, é nomeado diplomata junto à corte da Sardenha e mais tarde, já em Portugal, torna-se ministro do Ultramar. D. Rodrigo ainda foi secretário de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos de 1796 a 1801, presidente do Real Erário de 1801 até 1803, e ministro da Guerra e Negócios Estrangeiros de 1808 a 1812, sendo que recebe o título de conde de Linhares no ano de 1808. Diante da possibilidade da fragmentação do Império Português, D. Rodrigo recorre às novas idéias ilustradas para propor novas soluções, entretanto, devido à mentalidade tradicional existente na sociedade portuguesa de então, ele encontra vários obstáculos. Partidário da Inglaterra e defensor da concepção de um império luso-brasileiro, tem papel atuante na transferência da Corte para o Rio de Janeiro e na assinatura dos tratados de 1810, sendo que a última medida demonstra a opção pelo Brasil como sede do império português. Vem a falecer em 1812 na cidade do Rio de Janeiro. (Vainfas, 2002.)

16 – Para maiores detalhes ver FERREIRA, Fábio. A Presença Luso-Brasileira na Região do Rio da Prata: 1808 – 1822. In: Revista Tema Livre, ed.03, 22 out. 2002. Disponível em: http://www.revistatemalivre.com

17 – SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Apêncice In: MAXWEL, Kenneth. Condicionalismos da independência do Brasil. In: SERRÃO, José; MARQUES, A.H. Oliveira (coord.). Nova História da Expansão Portuguesa, volume VIII. Lisboa: Estampa, 1986, p. 391.

18 – Buenos Aires estava em processo de emancipação frente as Cortes Espanholas

19 – Para maiores detalhes ver FERREIRA, Fábio. A Presença Luso-Brasileira na Região do Rio da Prata: 1808 – 1822. In: Revista Tema Livre, ed.03, 22 out. 2002. Disponível em: http://www.revistatemalivre.com

20 – Op. cit.

21 – Para maiores detalhes do episódio conhecido como Guerra das Laranjas, ver: FERREIRA, Fábio. As incursões franco-espanholas ao território português: 1801-1810”. In: Revista Tema Livre, ed.05, 23 abril 2003. Disponível em: http://www.revistatemalivre.com

22 – SARNEY, José; COSTA, Pedro. Amapá: a terra onde o Brasil começa. Brasília: Senado Federal, 1999.

23 – LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.

24 – Nasce no ano de 1760, em Mariana, Minas Gerais, e a sua formação é de bacharel em leis pela Universidade de Coimbra. Maciel da Costa, em 1821, com a ida de D. João VI para Portugal, acompanha o monarca, porém é impedido pelas cortes de adentrar o país, voltando para o Brasil, onde foi um dos agentes do Império. Esse personagem ainda é senador e ministro, além de receber, primeiramente, o título de visconde e, depois, marquês de Queluz. Possuidor de várias publicações, em uma delas coloca-se a favor da abolição do tráfico negreiro para o Brasil, além de propostas para o fim do comércio desumano. http://www.arqnet.pt/dicionario/queluzm.html

25 – SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Apêncice In: MAXWEL, Kenneth. Condicionalismos da independência do Brasil. In: SERRÃO, José; MARQUES, A.H. Oliveira (coord.). Nova História da Expansão Portuguesa, volume VIII. Lisboa: Estampa, 1986, p. 391.

26 – FERREIRA, Fábio. A Presença Luso-Brasileira na Região do Rio da Prata: 1808 – 1822. In: Revista Tema Livre, ed.03, 22 out. 2002. Disponível em: http://www.revistatemalivre.com

27 – LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.

28 – VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Imperial (1822 – 1889). Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 424.

29 – SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Apêncice In: MAXWEL, Kenneth. Condicionalismos da independência do Brasil. In: SERRÃO, José; MARQUES, A.H. Oliveira (coord.). Nova História da Expansão Portuguesa, volume VIII. Lisboa: Estampa, 1986.

30 – 107 do Congresso de Viena, disponível em: http://www.histoire-empire.org/articles/congres_de_vienne/acte_du_congres_de_vienne_09.htm

31 – JORGE, A. G. de Araújo. Rio Branco e as fronteiras do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1999, p.61.

32 – http://www.worldstatesmen.org/Fr_Guiana.html

33 – http://www.worldstatesmen.org/Fr_Guiana.html

34 – SARNEY, José; COSTA, Pedro. Amapá: a terra onde o Brasil começa. Brasília: Senado Federal, 1999, p.134.

35 – http://www.amapa.gov.br/amapa-historia/historia-inicio.htm

 

8. Bibliografia e Sítios Consultados

ABREU, J. Capistrano de. Capítulos de História Colonial (1500-1800). Brasília: Senado Federal, 1998.

ACEVEDO, Eduardo. Anales Históricos Del Uruguay. Montevideo: Casa A. Barreiro y Ramos, 1933.

AZEVEDO, Francisca Nogueira. Dom Joaquim Xavier Curado e a política bragantina para as províncias platinas (1800 – 1808). In: Topoi. Revista de História. Rio de Janeiro: Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ / 7Letras, set. 2002, n.5.

AZEVEDO, Francisca. Entrevista concedida em 10/04/2003. In: Revista Tema Livre, ed.05, 23 abril 2003. Disponível em: http://www.revistatemalivre.com

CALÓGERAS, J. Pandiá. A Política Exterior do Império. Ed. Fac-similar, v.I. Brasília: Senado Federal, 1998.

CARVALHO, Carlos Delgado de. História Diplomática do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1998.

DICIONÁRIO Histórico, Corográfico, Heráldico, Biográfico, Bibliográfico, Numismático e Artístico. v. III. Portugal: João Romano Torres, 1904-1915. Disponível em: http://www.arqnet.pt/dicionario.html

FELDE, Alberto Zum. Proceso Histórico Del Uruguay. Montevideo: Maximino Garcia, 1919

FERREIRA, Fábio. A Presença Luso-Brasileira na Região do Rio da Prata: 1808 – 1822. In: Revista Tema Livre, ed.03, 22 out. 2002. Disponível em: http://www.revistatemalivre.com

_________ As incursões franco-espanholas ao território português: 1801-1810”. In: Revista Tema Livre, ed.05, 23 abril 2003. Disponível em: http://www.revistatemalivre.com

FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Editora Nacional, 1977.

GOMES, Flávio dos Santos; QUEIROZ, Jonas Marçal. Entre Fronteiras e Limites: identidades e espaços transacionais naa guiana brasileira – séculos XVIII e XIX. In: Estudos Ibero-Americanos. Porto Alegre: PUCRS, v. XXVIII, número I, 2002.

GOYCOCHÊA, Luís Felipe de Castilhos. A diplomacia de dom João VI em Caiena. Rio de Janeiro: G.T.L., 1963.

JORGE, A. G. de Araújo. Rio Branco e as fronteiras do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1999.

LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.

SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Apêncice In: MAXWEL, Kenneth. Condicionalismos da independência do Brasil. In: SERRÃO, José; MARQUES, A.H. Oliveira (coord.). Nova História da Expansão Portuguesa, volume VIII. Lisboa: Estampa, 1986.

SARAIVA, José Hermano. História de Portugal. Lisboa: Alfa, 1993.

SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2002.

SARNEY, José; COSTA, Pedro. Amapá: a terra onde o Brasil começa. Brasília: Senado Federal, 1999.

VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colonial (1500 – 1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

________. Dicionário do Brasil Imperial (1822 – 1889). Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.

VICENTE, António Pedro. Do rossilhão às invasões francesas, In: TEIXEIRA, Nuno Severiano. O Poder e a Guerra 1914 – 1918. Lisboa: Editorial Estampa, 1996.

http://www.amapa.gov.br

http://www.amazonpress.com.br

http://www.guyane.fr.st

http://www.histoire-empire.org

http://www.worldstatesmen.org/Fr_Guiana.html

 

Para obter mais informações na Revista Tema Livre relacionadas ao primeiro quartel do século XIX, basta clicar nos ícones abaixo: (Em ordem alfabética)

Entrevista com a prof. dra. Francisca Azevedo. Breves considerações acerca da Província Cisplatina: 1821-1828. As incursões franco-espanholas ao território português: 1801-1810. A Presença Luso-brasileira na Região do Rio da Prata: 1808-1822. Moeda e Crédito no Brasil: breves reflexões sobre o primeiro Banco do Brasil (1808-1829)

E, na seção fotos, a exposição virtual Imagens de Portugal: Palácio de Queluz Conheça outros artigos disponíveis na Revista Tema Livre na seção "Temas".

Lançamento do livro “Carlota Joaquina na Corte do Brasil”

Foto do coquetel de lançamento do livro.

Foto do coquetel de lançamento do livro.

“Carlota Joaquina na corte do Brasil”, livro da historiadora da UFRJ Francisca Azevedo, editado pela Civilização Brasileira, teve seu lançamento na Livraria da Travessa, Ipanema, no dia 19 de novembro último.

Buscando um novo olhar sobre a personagem, abandonando as análises que caracterizam-na como vulgar, inculta e adultera, Francisca Azevedo, que teve como fonte de pesquisa 1.453 documentos – como cartas, por exemplo, sendo estas correspondências ativas, passivas e correlatas –, apresenta uma Carlota que é articuladora e líder política, que rompia com as relações tradicionais de gênero da época, porém sem ignorar os aspectos humanos da personagem.

Além da história da própria Carlota Joaquina, paralelamente, o livro trata das relações internacionais da época, que, dentre os seus acontecimentos, há a invasão da Península Ibérica por Napoleão Bonaparte, a transmigração da família real portuguesa de Lisboa para o Rio de Janeiro e o interesse joanino em estender seus domínios até o Rio da Prata.

Assim sendo, a autora, com o seu trabalho, contribui com a investigação histórica, dando uma nova perspectiva de análise à Princesa do Brasil.

livrocarlotaCapa do livro “Carlota Joaquina na corte do Brasil”.
Autor: Francisca L. Nogueira de Azevedo
Editora: Civilização Brasileira
Nº de páginas: 400
Formato: 14x21cm
Preço: R$40,00.

 Leia na integra a entrevista concedida por Francisca Azevedo à Revista Tema Livre, onde a autora fala em primeira mão do seu livro.

– Também veja as fotos do Palácio de Queluz, em Portugal, onde Carlota viveu e morreu.
Conheça artigos referentes ao período/tema disponíveis na Revista Tema Livre:
– Breves considerações acerca da Província Cisplatina: 1821-1828
– As incursões franco-espanholas ao território português: 1801 – 1810
– Moeda e Crédito no Brasil: breves reflexões sobre o primeiro Banco do Brasil (1808-1829)

– A política externa joanina e a anexação de Caiena: 1809-1817.
– A Presença Luso-brasileira na Região do Rio da Prata: 1808-1822.

Breves considerações acerca da Província Cisplatina: 1821-1828

Texto de Fábio Ferreira

1. Introdução

Bandeira do Estado Cisplatino Oriental

Bandeira do Estado Cisplatino Oriental

O presente artigo propõe-se a tratar brevemente os curtos anos de existência da província brasileira da Cisplatina, no território que hoje é a República Oriental do Uruguai, além da influência que a sua existência como parte do Império exerceu nas relações Brasil – Províncias Unidas do Rio da Prata (atual Argentina) no contexto da década de 1820, e a repercussão da província brasileira nas Províncias Unidas e, primeiramente, no Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve e, depois, no Império Brasileiro.

Assim, o próximo item é dedicado à anexação da Banda Oriental ao Reino Unido sob o nome de província Cisplatina, onde são mostradas as articulações políticas por parte do general Lecor para a realização da incorporação.

A influência portenha e dos Trinta e Três Orientais no processo que vem a desencadear a Guerra da Cisplatina, além das articulações políticas dos primeiros em atrair para o conflito Simón Bolívar e os Estados Unidos são tratados no terceiro item do artigo.

O trabalho aborda a seguir a guerra propriamente dita, a partir da declaração da mesma por parte do Brasil, em 1825, aos argentinos; e, também, das negociações políticas, com a participação da Inglaterra, pela emancipação da Cisplatina.

Assim, nas próximas linhas encontrar-se-ão informações acerca do primeiro conflito externo do Brasil e Argentina independentes na região platina, além dos seus fatos precursores.

2. A Província Cisplatina

Mapa do Império do Brasil com a Cisplatina em vermelho.

Mapa do Brasil joanino com a Cisplatina em vermelho.

A região do atual Uruguai, que adentra o século XIX como parte do Vice-Reino do Rio da Prata, a partir de 1817, devido ao projeto expansionista joanino na região platina e ao processo de independência desencadeado nos países hispano-americanos que tem como grande marco o ano de 1810, caí sob o domínio da monarquia portuguesa instalada no Rio de Janeiro.1

À frente dos ocupadores, a governar, primeiramente Montevidéu, depois, em virtude da resistência artiguista, o resto do território oriental, está o general Carlos Frederico Lecor, veterano das guerras napoleônicas que, com o fim dos conflitos na Europa, parte para a América.

A administração Lecor é taxada positivamente por Saint-Hilaire (2002), naturalista francês que esteve na região em 1820; e Lynch (1989) designa-a como favorável aos grandes estancieiros e comerciantes de Montevidéu, conseguindo o apoio dos primeiros pelo restabelecimento da ordem e do respeito à propriedade e, dos segundos, pela estabilidade e pela política de porto aberto.

Em 1821, mais precisamente no dia 16 de abril2, pouco antes de D. João VI retornar para Portugal, é autorizada a realização do Congresso Cisplatino, que teria como função decidir se a Banda Oriental seria anexada ao Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve, ou tornar-se-ia um país independente ou, ainda, se a mesma acabaria como parte de um outro governo.3

Segundo Golin (2002), Lecor não teria aceito as outras duas alternativas que não fosse a de incorporar a Banda Oriental ao Reino Unido e, para isto, altera o número de deputados e o critério de seleção dos mesmos para o Congresso, além de articular com os diversos orientais que teriam voz no encontro.

Assim, a cimeira, que ocorre de quinze de julho a oito de agosto de 18214, tem diversos dos seus membros comprometidos com a posição de Lecor e, como resultado, a aprovação da incorporação da Banda Oriental ao Brasil sob o nome de Província Cisplatina, podendo-se afirmar que o general português teve grande importância na ampliação do território brasileiro até o Rio da Prata.

Silva (1986, p.393) define o Congresso como uma manobra para legitimar a ocupação da Banda Oriental, já que Lecor obtém “(…) o apoio do Conselho Municipal de Montevidéu e de representantes de várias outras localidades (…) dando-lhe um sentido, não de conquista, mas de incorporação no Reino Unido (…) com a aprovação de um Congresso Nacional do Estado Oriental do Rio da Prata”.

O questionamento da idoneidade da votação pela incorporação também está presente em Lynch (1989, p.103), destacando-se o seguinte trecho: “En julio de 1821 un Congreso Oriental subordinado al nuevo régimen votó la incorporación de la Provincia Oriental al imperio portugués como Estado Cisplatino (…)”

A anexação da Cisplatina dá-se, segundo Carvalho (1998), com a região arrasada em razão das guerras que ela foi palco desde 1810, tendo o seu setor produtivo sido devastado e a população bastante reduzida, havendo, nos orientais, um sentimento muito mais de pragmatismo ao unir-se com o Brasil do que ideológico ou subserviente ao Reino Unido.

No entanto, apesar do empenho de Lecor para a anexação e conseqüente ampliação do território brasileiro, na Corte, alguns setores não são favoráveis, sendo que a mesma não é ratificada por D. João VI, que a esta altura já está em Portugal. A reprovação à atitude de Lecor em Lisboa deve-se à preocupação de que a incorporação viesse a acarretar em problemas com Fernando VII, além de que a mesma fora fruto de articulações secretas entre o general e José Bonifácio, no contexto do rompimento do Brasil com o Reino Unido, que de fato vem a ocorrer formalmente no 7 de setembro de 1822.

Com a independência do Brasil, a província Cisplatina vê-se dividida entre os que apóiam a manutenção da sua união com o Brasil, e aqueles favoráveis a mantê-la sob o controle de Portugal, havendo a cisão dos ocupadores entre imperiais e lusitanos.

Os que optam por D. Pedro, têm a frente o general Lecor; as tropas fiéis à D. João VI são lideradas pelo brigadeiro Álvaro da Costa de Souza Macedo, que acreditam que a Cisplatina é, de direito, pertencente a Portugal. Diante do posicionamento antagônico entre as tropas, Lecor parte para Canelones, ficando Montevidéu sob o controle dos lusitanos.

Entretanto, mesmo com os embates, Lecor não se vê impedido de articular com os caudilhos platinos, como o faz com o de Entre Rios, em 1822, e com os diversos líderes da costa do Uruguai, sempre visando a manutenção da presença brasileira na região e o rechaço aos oponentes do seu projeto.

Segundo Carneiro (1946), Lecor, em Canelones, obtém o apoio de diversas figuras orientais, como Rivera5 e Lavalleja6, além de vários governos da campanha e de Colônia e Maldonado. Uma vez obtendo tal suporte, parte para o cerco por terra de Montevidéu. Por mar a cidade é cercada pelo almirante Rodrigo Lobo e por uma esquadra oriunda do Rio de Janeiro e, sitiados, os portugueses, que tinham ao seu lado os Oribe, não resistem por muito tempo.

A questão da independência brasileira face Portugal é complexa, não só na área que constitui a última conquista luso-brasileira, mas em todo o Brasil, até mesmo antes do sete de setembro. Tal cisão seja na Cisplatina, seja no resto do território brasileiro, havendo a não adesão em torno de um projeto único, acaba por dividi-los entre os que optam por Portugal e os que escolhem a independência.

A diferença de projetos para o Brasil, partindo de dentro do próprio país antes mesmo de 1822, é explicitado por Proença (1999, p.36) no seguinte trecho: “[Há] uma nítida separação entre as províncias do Norte, em torno da Baía, que se mantinham fiéis às Cortes, as do Sul separatistas e apoiantes de D. Pedro, e a zona de Pernambuco onde a situação se ia tornando mais confusa, pela existência de uma facção bastante numerosa que perfilhava, não só a separação de Portugal como uma modificação do sistema político brasileiro.”

A diversidade existente no Brasil também é apresentada por Ramos (2002, p.39), citando Macaulay:

“Havia no Brasil quem desejasse um governo central no Rio porque sentia que isso servia melhor as suas necessidades. D. Pedro queria ser imperador, José Bonifácio queria ser primeiro-ministro, milhares de advogados, agricultores e comerciantes da área do Rio – S. Paulo – Minas Gerais preferiam um governo que estivesse ao seu alcance a um governo sediado do outro lado do Atlântico. Os ricos e os políticos activos das províncias distantes entretanto não identificavam necessariamente os seus interesses com os do Rio; no extremo Norte, no Maranhão e no Pará, os laços com Lisboa eram muito fortes (…)”.

A demonstração da inexistência de uma unidade nos antigos domínios portugueses no Novo Mundo em torno de D. Pedro após o sete de setembro é igualmente demonstrado por Saraiva (1993, p.364): “Uma parte da América do Sul continuava fiel a Portugal, sem reconhecer a autoridade do novo imperador: em Montevidéu, um general afirmou reconhecer apenas o poder do rei e na Baía o general Madeira mantinha as cores portuguesas.”

Assim, a província Cisplatina encontra-se dividida entre imperiais e lusitanos, tendo os últimos abandonado a região do Prata somente em fevereiro de 18247 e, Lecor pisa em Montevidéu, a liderar as tropas brasileiras, em 2 de março do mesmo ano, sendo a Cisplatina, segundo Bethell (2001), o último reduto da resistência lusitana na América.

Com a volta de Lecor para Montevidéu, Carneiro (1946, p.36) narra que “(…) jurou-se a constituição política do Império promulgada por D. Pedro I. Por essa constituição o Estado Cisplatino, em situação de confederado, passava a fazer parte do Brasil”.

Entretanto, a contenda entre portugueses e brasileiros, e a retirada dos primeiros do território, acaba por fortalecer o grupamento que objetiva o desligamento da Cisplatina ao Brasil, conforme explicita Golin (2002, p.332): “(…) a retirada das disciplinadas tropas lusitanas enfraqueceu o exército de ocupação. Imediatamente, o movimento pela autonomia da Banda Oriental intensificou suas confabulações, agitou a população e, no ano seguinte, em 1825, desencadeou a sublevação.”

Constatação idêntica faz Duarte (1985), ao afirmar que após a saída dos portugueses e a conseqüente cisão nas tropas de Lecor, os contingentes militares do general ficam em estado lamentável e, ainda, salienta que se foi possível a manutenção da presença brasileira na Cisplatina após a divisão das tropas de ocupação, foi pela habilidade política de Lecor.

Paralelamente ao processo de independência do Brasil e a vitória dos imperiais na Cisplatina, em Buenos Aires são iniciadas as articulações para que as Províncias Unidas reconquistassem o território que, desde 1810, desejavam que fosse seu: a outra margem do Rio da Prata.

Assim sendo, o intento portenho de acabar com o domínio brasileiro na região que outrora fora parte do Vice Reino que tinha Buenos Aires como capital, e o papel desempenhado pelos 33 orientais na independência da província Cisplatina serão abordados no próximo item do trabalho.

3. A participação portenha na emancipação da Cisplatina e os Trinta e Três Orientais

“Juramento de los Treinta y Tres Orientales”, obra do uruguaio Juan Manuel Blanes (1830-1901).

O desejo de Buenos Aires, após a Revolução de Maio de 1810, em conquistar a área do atual Uruguai pode ser evidenciado ao longo desta década, quando, por exemplo, os portenhos apóiam os intentos de Artigas contra os realistas, em 1811, ou quando controlam Montevidéu, em 1814, só abandonando-a por não resistirem à oposição artiguista. As incursões ao território oriental cessam após a invasão comandada por Lecor, em 1816.

Porém, com o advento da independência do Brasil e a sua repercussão na Cisplatina, em 18238, ganha força, nas Províncias Unidas, a idéia de guerrear contra o país recém independente, sendo que, em 4 de agosto, Santa Fé assina um tratado com o cabildo de Montevidéu para expurgar a presença brasileira da Cisplatina e no dia 21 do mesmo mês, Mansilla, governador de Entre Rios no período de 1821-24, que anteriormente assinara tratos com Lecor, intima o antigo tratante a abandonar a província brasileira localizada no Prata.

Um pouco antes das hostilidades com Santa Fé e Entre Rios, as Províncias Unidas enviam, em janeiro de 1823, José Valentim Gomes para negociar com o Rio de Janeiro o que os portenhos entendiam como a restituição da Banda Oriental, entretanto, segundo Carvalho (1998, p.57) “o emissário encontrou decidida repulsa a respeito da separação da Cisplatina do Império”.

A questão envolvendo esse território entendido por brasileiros e argentinos como seus, não faz com que somente as Províncias Unidas enviem emissários para o Rio. O governo sediado nesta cidade envia, em tal período, missões para Buenos Aires e Assunção com o objetivo de aproximar-se mais destes governos, porém malogra em seu intento. Na primeira, o enviado brasileiro só não perde por completo a viagem pelo fato de espionar os liberais refugiados naquela cidade e, na cidade paraguaia, inicialmente sequer é recebido por Francia e, quando o é, de nada resulta o encontro.

Os esforços portenhos não fazem com que Lecor abandone a província anexada, mas mesmo diante da permanência do general, não desistem da desocupação da mesma e, com tal intento, apóiam o plano de Lavalleja de atacar a Cisplatina e rechaçar os brasileiros desta localidade.

No entanto, o primeiro intento do oriental malogra, sendo ele rechaçado da margem esquerda do Prata por Frutuoso Rivera, que, quando Juan Manuel Rosas9 vai à Cisplatina visando uma nova insurreição, debanda para o lado dos portenhos, porém permanecendo no exército brasileiro até o novo ataque de Lavalleja, quando passa a agir ao lado dos insurretos. Ao mudar de lado, Carneiro (1946) afirma que Lecor coloca a cabeça de Rivera a prêmio, assim como a de Lavalleja, a 2.000 e 1.500 pesos respectivamente.

A nova investida tem como ponto de saída a Argentina, e de chegada o atual Uruguai, mais precisamente Agraciada, no dia 19 de abril de 1825, sendo o grupo hostil aos súbitos de D. Pedro I conhecido como Os Trinta e Três Orientais.10

Sobre a chegada e os objetivos do grupo em relação a Cisplatina, Carneiro (ibid, p.38) narra que “(…) às 11 horas da noite, realizavam o desembarque (…) Ao desfraldar a sua bandeira tricolor, com o lema ‘Libertad o muerte’, que os uruguaios empunhariam até 1829, revogando a de Artigas (…) o chefe dos orientais não deixava patente senão que os seus projetos eram de união com as Províncias Unidas (…) e não de independência da Banda Oriental”.

Esse grupo, segundo Lynch (1989), com a sua travessia, visa ativar o latente movimento emancipatório dentro da Cisplatina, tendo os Trinta e Três, com tal ação, o objetivo de anexar a então província brasileira com as Províncias Unidas, entretanto, com alguma espécie de autonomia. Os objetivos portenhos não são muito diferentes, querendo o território à esquerda do Prata para si. O autor ainda observa que o grupo liderado por Lavalleja era financiado por estancieiros da província de Buenos Aires.

Calógeras (1998, p.409), sobre os intentos dos insurgentes, afirma que, inspirado no projeto artiguista, “Lavalleja vinha com o velho programa de Artigas, que todos os pro-homens da província oriental partilhavam: a confederação dentro no quadro das Províncias Unidas”.

Entretanto, o autor frisa que há diferenças substanciais entre os dois projetos: o do caudilho que atuou na Banda Oriental na década de 1810 não aceitava a incorporação a Buenos Aires sem definir previamente um pacto para a união; já o grupo de Lavalleja decreta a reincorporação as Províncias Unidas de maneira incondicional.

Este novo ataque de Lavalleja tem melhor sorte que o primeiro: as tropas brasileiras ficam confinadas praticamente em Montevidéu e Sacramento e, a 25 de agosto de 1825, a assembléia reunida em Florida pelos insurgentes, proclamam “nulos todos los actos de incorporación y juramentos arrancados a los pueblos de la Provincia Oriental [e] quedaba libre e independiente del Rey de Portugal, del Emperador del Brasil y de qualquiera outro poder del universo”11.

É válido salientar que, segundo Carneiro (1946, p.40), os Trinta e Três, ao desembarcarem, não gozavam de crédito, ao contrário, “A ação dos patriotas uruguaios foi tomada como uma loucura ou como ingênua imprudência.”, entretanto, o autor ainda observa que o exército brasileiro estava comprometido por causa da rebelião de Pernambuco, o que acarreta em diversas derrotas.

O sucesso da investida leva a embates entre o cônsul brasileiro em Buenos Aires e o governador desta cidade, que nega a participação portenha na incursão à província Cisplatina e, ainda, ao ataque à representação brasileira na cidade. Tal fato é demonstrado por Carvalho (1998, p.58) no seguinte trecho: “Em Buenos Aires, era atacado o consulado brasileiro (29 de outubro) e o nosso representante transladava-se para Montevidéu. Já então a ofensiva uruguaia era apoiada por tropas argentinas, apesar de nota diplomática conciliadora e cordial (…)”

O ataque de 29 de outubro e a participação dos buenairenses neste curioso ato de hostilidade ao Brasil são detalhados por Calógeras (1998, p.416) da seguinte maneira: “(…) às dez e meia da noite, uma turba guiada por uma banda, de música, e aos gritos de ‘morram os portugueses, morra o Imperador do Brasil, morram os amigos do tirano, morra o Consul’, tinha atacado impunemente o consulado”. O autor ainda afirma que tal ato teve o revide de soldados da marinha brasileira, que desrespeitam, no Rio, a bandeira argentina.

A rivalidade para com os brasileiros não fica estrita a manifestações a porta do consulado em Buenos Aires. Soma-se a isso o fato de que a cidade serve de refúgio aos opositores brasileiros na Cisplatina, conforme relata Carneiro (1946) que, quando a polícia de Lecor descobre conspiradores contra o Império, muitos deles fogem é para tal núcleo urbano argentino.

Neste mesmo ano de 1825, segundo Golin (2002) as Províncias Unidas tentam trazer Simón Bolívar12 para o conflito do Rio da Prata, intimando o Brasil a desocupar a margem esquerda do rio e, caso não o fizesse por bem, teria que fazer à força. Uma vez tendo sucesso a empreitada, Bolívar e seus aliados marchariam até o Rio de Janeiro, deporiam D. Pedro I e proclamariam uma república.

Bolívar chega a cogitar a sua participação nessa união de forças contra o Império, porém, devido a problemas na região que libertou do domínio espanhol, opta por permanecer aí, tendo sido a sua participação no evento apenas diplomática, via o seu representante no Rio de Janeiro, que crítica o expansionismo brasileiro.

Não é só Simón Bolívar que os portenhos tentam trazer para o seu lado e contra o Império: Segundo Carvalho (1998), o ministro das relações exteriores do governo Rivadavia13 busca apoio nos Estados Unidos, a evocar a Doutrina Monroe e a vincular D. Pedro I a Portugal e, assim, sob esta ótica, o conflito teria a interferência européia, o que é rechaçado pela doutrina. Entretanto, o intento de Buenos Aires não é vitorioso, pois os Estados Unidos entendem o embate entre os dois países como americano e não europeu.

Mesmo diante destes fatos e das derrotas brasileiras nas batalhas do Rincón das Gallinas e do Sarandí – tendo à frente Frutuoso Rivera –, o Brasil não oficializa a guerra, a tratá-la como uma insurreição dentro da sua província localizada no Rio da Prata.

Lavalleja, segundo Carneiro (1946), querendo terminar logo com os embates, chega, inclusive, a propor a Lecor, após a vitória de Rivera em Rincón das Gallinas, a intervenção do veterano das guerras napoleônicas junto ao Imperador para que fossem retiradas do território oriental as tropas brasileiras, porém, o militar nega-se a tal.

Entretanto, em 4 de novembro de 1825, o Império recebe o comunicado de que as Províncias Unidas entendiam a Cisplatina como parte do seu território e, assim, o Rio de Janeiro declara guerra aos portenhos em 10 de dezembro de 1825. A resposta argentina é dada menos de um mês depois: É declarada guerra ao Brasil no primeiro dia de 1826.

4. A Guerra Cisplatina: 1825-1828

Lecor: o general comanda Montevidéu de 1817 até meados da década de 1820.

Lecor: o general comanda Montevidéu de 1817 até meados da década de 1820.

Apesar do Brasil ter declarado guerra aos argentinos em 1825 e, eles, aos brasileiros no primeiro dia do ano seguinte, ambos os envolvidos sabiam que estavam a adentrar em uma ação bélica já desgastados, devido aos seus processos de independência e, no caso das Províncias Unidas, soma-se o embate interno entre Unitários e Federais que trouxe-lhes grandes prejuízos.

O Império, neste conflito, objetiva manter a sua configuração, além de possuir um projeto político de não permitir a criação de grandes países no continente e, com a eventual perda da Cisplatina para as Províncias Unidas, esta, obviamente, teria o seu território ampliado.

Soma-se a tal questão a preocupação do controle do estuário do Rio da Prata, acesso muito mais eficaz ao oeste do Rio Grande, Santa Catarina, Paraná e sudoeste do Mato Grosso, do que o terrestre e, caso o Rio da Prata ficasse nas mãos das Províncias Unidas, o Império temia pela sua integridade nas áreas brasileiras citadas acima.14

No entanto, Calógeras (1998) taxa o conflito bélico pela manutenção da Cisplatina como uma preocupação dinástica de D. Pedro I e não como anseio dos brasileiros, sendo a guerra contrária aos desejos dos últimos, que precisam de estabilidade e paz para progredirem, além de boas relações com os seus vizinhos hispânicos para evitar contendas.

O conflito, desde o seu início, não é apoiado pela Inglaterra, havendo, inclusive, a sua intervenção para que ele não ocorresse ou fosse abreviado, no entanto, os ingleses não são bem sucedidos neste momento, conforme demonstra Lynch (1989, p.105): “(…)Gran Bretaña tenía una considerable influencia sobre los gobiernos de Río de Janeiro y de Buenos Aires, pero no había sido capaz de impedir la guerra y encontraba dificultades para restablecer la paz.”

Entretanto, isto não significa que a Inglaterra seja favorável a manutenção da Cisplatina sob o poder imperial, nem argentino, ao contrário, interessa-lhe a criação de um terceiro estado na região, conforme explicita Padoin (2001, p.62):

“Enquanto isso, ou por detrás desse panorama de rivalidades estava a atuação inglesa, preocupada com o crescimento e fortalecimento dos novos Estados que estavam se estruturando (…) especialmente do Brasil e da Argentina (…) Caso fosse consumada a vitória de um desses Estados, não só fortaleceria suas pretensões hegemônicas, como seria ‘o senhor’ no domínio do comércio para o mercado mundial, especialmente nessa importante Bacia do Prata. Assim, a Inglaterra (…) apoiou através de sua habilidade diplomática a independência da Banda Oriental/Cisplatina, mantendo seu tradicional espaço de influência”.

Ainda sobre a participação inglesa em tal advento, Carvalho (1998, p.58 e 59) afirma que “Canning [ministro inglês] era favorável à separação da Cisplatina. [Em 1826] deu-se a primeira intervenção britânica. Sugeria a cessão da Banda Oriental mediante indenização e declaração de independência de seu território. A recusa de D. Pedro o fez considerar como um inimigo da Inglaterra.”

A guerra, segundo Golin (2002), teve respaldo popular no Brasil, ao menos no seu início. Nas Províncias Unidas idem, pois quando Rivadavia cogita tirar o seu país do conflito, dando a hegemonia da área litigiosa aos brasileiros através de um tratado, a população de seu país veta a idéia.15

Porém, esse não é o posicionamento de Rivadavia no seu discurso ao assumir o poder, ao contrário, mostra-se favorável ao conflito bélico, que, por sua vez, não é uma unanimidade no país que guerreia com o Brasil.16

No Império, a unanimidade em torno dos seus também não ocorria: Lecor, que passa a ser taxado de incompetente devido às derrotas brasileiras, e o governador do Rio Grande, brigadeiro José Elpidio Gordilho Velloso de Barbuda, mostram publicamente as suas divergências em virtude do conflito.

Assim, dessa guerra, Lecor sai derrotado: em 12 de setembro de 182617 substituí-o a frente do exército imperial o tenente-general Filiberto Caldeira Brant Pontes, que, quatro meses mais tarde, recebe o título de marquês de Barbacena.

Padoin (2001) observa que não é só do lado brasileiro que figuras políticas saem derrotadas do conflito, como foi com Lecor. O embate, do lado argentino, leva ao enfraquecimento dos unitários, que estão no poder na figura de Rivadavia, e ao fortalecimento dos federalistas, agremiação a qual Rosas é ligado.

A repercussão negativa, no Brasil, é crescente, fato é que, D. Pedro I, dois meses após a substituição de Lecor, vai até a Cisplatina devido à impopularidade da guerra, e antecipa a sua volta para o Rio de Janeiro em virtude do falecimento de sua esposa, Dona Leopoldina18.

É válido observar que neste momento a guerra já é bastante questionada no Império, a contribuir no desgaste da imagem do Imperador, sendo tal associação feita por Bethell e Carvalho (2001), e observada por Ramos (2002, p.55) da seguinte maneira: “(…) este conflito e o seu resultado funcionou contra o imperador no espírito dos seus novos súbditos, ‘pois o povo não podia perceber nenhum sentido nessa guerra’. Além disso, ‘o recrutamento para a tropa foi enérgico e provocou constrangimentos e indignações sem conta’, recorda Francisco Iglesias.”

No entanto, o conflito platino não é o único fator desgastante da imagem de D. Pedro I, soma-se à guerra a questão da sucessão em Portugal, por causa do falecimento de D. João VI a 10 de março de 182619 e o temor por parte dos brasileiros da recolonização, já que o seu imperador torna-se o rei D. Pedro IV em Portugal e chegou, inclusive, a cogitar a união das duas coroas. A insatisfação dos seus súditos americanos é demonstrada, mais uma vez, em Ramos (ibid.):

“(…) no caso da herança portuguesa, ao saber-se rei, D. Pedro IV julgou (…) que era possível guardar as duas coroas. Tal facto violava a Constituição de 1824, não convinha nem apetecia aos brasileiros por parecer um acto de recolonização. De resto, o Conselho de Estado rejeitou (…) tal possibilidade. (…) D. Pedro (…) abdicou [o trono português] em D. Maria da Glória [porém] pareceu insatisfatória para os interesses do Brasil, pois logo se pensou (…) que os interesses de D. Pedro se iam dividir entre os problemas de Portugal e os do império.”

Assim, a imagem do primeiro Imperador do Brasil torna-se cada vez mais desgastada. A situação em Portugal não encerra-se com a carta de 1826 nem com a sua abdicação em favor da filha de apenas sete anos; na Cisplatina, a guerra continua com os seus problemas para os brasileiros: derrotas, convocações compulsórias, contratação de mercenários, enfim, a contenda estava a consumir as divisas imperiais, além de trazer problemas com a Inglaterra e França, no que será mostrado mais adiante.

A situação interna das Províncias Unidas também não era das mais tranqüilas à época do conflito. Lynch (1989) observa que a constituição centralista de 1826, promulgada por Rivadavia, gera conflitos com as províncias e com os federalistas, fazendo com que o líder portenho tenha a necessidade de retirar tropas do palco da guerra para pelejar no interior do seu território.

Sobre a repercussão do embate nos dois países em conflito, Padoin (2001, p.61) afirma que “Essa guerra provocou a instabilidade de Buenos Aires, com o enfraquecimento dos unitários no poder (…), além de no Brasil o Governo Imperial ser pressionado por críticas quanto aos gastos feitos em uma luta que servia para dar continuidade à política anterior da Coroa portuguesa”.

No Império, a manter a guerra e a buscar a solução do contingente insuficiente, o Imperador encontra como solução para tal problema a contratação de mercenários, na sua maioria, europeus pobres que visam vida melhor na América.

Entretanto, tal decisão, segundo Bethell e Carvalho (2001, p.705), não foi das mais acertadas por parte de D. Pedro I, ao contrário, “(…) foi desastrosa, pois, além de não evitar a derrota, gerou no Rio de Janeiro, em junho de 1828, o motim de vários milhares de mercenários irlandeses e alemães.” sitiando a cidade por dois dias.

Sobre o mecenato, Lemos (1996, p.115) afirma que “O grosso dos mercenários foram mesmo os alemães recrutados (…); colonos que, fugindo da hedionda miséria européia, sujeitavam-se ao serviço militar brasileiro, por algum tempo, como forma de pagar a viagem para cá, e cujo manifesto interesse eram campos e lavouras.”

O autor também afirma que tal premissa é válida para os soldados, não os oficiais, pois os últimos viriam para o Brasil pelo “estilo aventureiro” ou, ainda, veteranos das guerras napoleônicas que estavam desempregados e, na busca de empregos, pleiteavam a vinda para o Brasil.

Observa-se que a marinha brasileira também incluí-se como força onde seus quadros foram compostos por homens contratados para a Guerra Cisplatina, assim como os portenhos, conforme afirma Lemos (ibid, p.141), que após fazer tal afirmação descreve a marinha dos oponentes do Brasil da seguinte maneira: “(…) a esquadra buenairense era comandada pelo irlandês William Brown e guarnecida unicamente por europeus, auxiliados por alguns índios (…)” e, diante desse fato, o autor salienta o papel importante dos mercenários, em ambos os lados, na guerra pela Cisplatina.

A participação de ingleses em ambas as forças navais também pode ser constatado em Waddell (2001), que afirma que na busca de recompensas, muitos acabam por abandonar a marinha mercante do seu país de origem e, assim, ingressam na guerra, sendo os ingleses, segundo Bethell e Carvalho (2001), a maioria dos marinheiros de ambos os lados.

No que diz respeito às forças navais, o Brasil, maior marinha latino-americana à época, sofre várias derrotas no Prata pelo fato das suas embarcações serem inadequadas para o rio que as batalhas tinham palco.20 Porém, apesar dos fracassos, o Brasil chega a bloquear Buenos Aires, no que gera a insatisfação inglesa e francesa, que vêem os seus negócios na região prejudicados.

Principalmente para a Inglaterra, país cuja livre navegação do Prata era fundamental para o seu interesse comercial, o conflito entre os dois países americanos torna-se prejudicial, pois os dois maiores compradores dos seus produtos no novo mundo estavam mergulhados nessa contenda, além da dúvida de como seria solucionada a navegação do citado rio em circunstâncias beliculosas, daí a mediação inglesa desde o início do conflito.

Sobre o envolvimento britânico no conflito, e de como o mesmo prejudica-os, gerando o interesse pela paz, Lynch (1989, p.105) observa que:

“(…) Gran Bretaña tenía ‘motivos de interés propio al igual que benevolencia’ para buscar una fórmula de paz. La guerra estaba perjudicando el comercio británico en el Atlántico sur y los comerciantes sufrían graves pérdidas debido al bloqueo brasileño de Buenos Aires y al aumento de la piratería. Y políticamente Canning daba una curiosa importancia a la conservación de al menos una monarquía en las Américas, salvando a Brasil de si mismo y de sus vecinos republicanos.”

Soma-se ao citado acima, a preocupação britânica de que havia a possibilidade do Brasil ou das Províncias Unidas recorrerem a ajuda dos Estados Unidos e, uma vez recebendo o apoio norte-americano, este país teria vantagens comerciais em detrimento da Inglaterra.

Então, cada vez mais, com o passar e a indefinição da guerra, é conveniente aos ingleses, e também as duas partes beligerantes, o estabelecimento da paz e, assim, a diplomacia britânica, tanto no Rio de Janeiro, quanto em Buenos Aires, começa a trabalhar neste sentido. Pela parte do governo brasileiro, discute tal questão, conforme pode ser constado em Carvalho (1998), o Marquês de Queluz, que durante o período joanino foi o administrador português de Caiena.

Paralelamente ao empate entre os dois países sul americanos na guerra, Rivera, em 1828, conforme narra Lynch (1989), recruta forças guerrilheiras e, a avançar pelo rio Uruguai, conquista as missões brasileiras, tendo, assim, com que negociar junto ao Brasil. Tal invasão, segundo Carvalho (1998), também resulta no retardamento da assinatura de um acordo entre brasileiros e argentinos, pois diante da conquista do território dos inimigos, os segundos passam a postergar a solução definitiva do caso.

No que tange o ataque de Rivera ao Brasil, Padoin (2001, p.62) afirma que mais do que ter um instrumento de barganha para com o Império, conforme cita Lynch (1989), Rivera tem como propósito “(…)torna-las [as missões brasileiras] mais uma das Províncias Unidas, conforme o projeto artiguista”, além de que, com tal ataque, o governo brasileiro acaba por abrir mão do controle da Cisplatina.

Diante de tais fatos, o tratado de paz entre o Brasil e as Províncias Unidas do Rio da Prata, mediado pela Inglaterra, é assinado em 27 de agosto de 1828, quando ambos desistem das suas pretensões na região que outrora fora a Banda Oriental e que foi a província Cisplatina. Fica acordado o reconhecimento de um novo país na região litigiosa, a República Oriental do Uruguai.

Ainda sobre o acordo em que os dois países americanos reconhecem a independência da então província Cisplatina, é válido salientar que a Inglaterra recebe o aval de navegar livremente pelo estuário do Rio da Prata pelo período de quinze anos.21

Sobre o acordo celebrado entre as duas partes beligerantes, e a independência da província Cisplatina como Uruguai, destaca-se o seguinte trecho de Lynch (1989, p.105 e p.106): “El vehículo de la independencia [da Cisplatina] fue la mediación británica que se inició en 1826 y reforzó los esfuerzos de los patriotas. (…) Fue un reconocimiento de los hechos el que Brasil y las Provincias Unidas firmaran un tratado de paz (27 de agosto de 1828), declarando la independencia de la Provincia Oriental. En 1830 el Estado Oriental del Uruguay tuvo su primera constitución, que culminó y completó la lucha por la independencia.”

Entretanto, o autor observa que o novo país independente estava longe dos ideais de Artigas, esquecendo a reforma agrária, e havendo a exclusão do sufrágio de diversos setores da sociedade, que participaram inclusive da guerra pela cisão com o Brasil, como, por exemplo, peões, vaqueiros, trabalhadores assalariados, soldados rasos e gaúchos.

5. Conclusão

Bandeira dos 33 orientais: as cores vermelha, azul e branca já eram usadas desde os tempos de Artigas, não só na Província Oriental, mas, também, em outras partes do Prata.

Bandeira dos 33 orientais: as cores vermelha, azul e branca já eram usadas desde os tempos de Artigas, não só na Província Oriental, mas, também, em outras partes do Prata.

Assim sendo, a província Cisplatina torna-se parte integrante do Império Brasileiro menos por questões ideológicas do que pragmáticas, havendo por parte dos orientais o desejo da resolução da situação de penúria que estavam a enfrentar, pelo seu território ter sido palco de conflitos desde 1810.

Sobre o não aportuguesamento da região, Ferreira (2002) citando Felde, afirma que a ocupação luso-brasileira foi efetivamente militar, ignorando a possibilidade de realizar benefícios materiais e intelectuais na área ocupada.

No que tange a Guerra Cisplatina, ela pode ser entendida como um conflito entre duas nações em processo de formação, no caso, Brasil e Argentina, que a esta época estavam a definir o seu território nacional, tentando manter, na maioria das vezes, a hegemonia de cidades que foram a capital dos antigos domínios coloniais sobre o país independente, além da manutenção da configuração do território colonial: no caso brasileiro, o Rio de Janeiro luta para manter a sua supremacia sobre as demais províncias e, no argentino, Buenos Aires sobre o antigo Vice Reino do Rio da Prata,.

Pode-se dizer que neste aspecto a formatação do Brasil Imperial assemelha-se praticamente com a recebida de Portugal em 1822, tendo sido perdida apenas a Província Cisplatina. Já as Províncias Unidas não conseguem manter a configuração do Vice Reino em 1810, pois o domínio colonial platino dos espanhóis, hoje, forma o Paraguai, parte da Bolívia, Uruguai e Argentina, além de que a configuração do último esteve diversas vezes comprometida, havendo, ao longo do século XIX, vários momentos de cisão, como quando as suas províncias fecham com Artigas, abandonando Buenos Aires, ou quando a mesma, em meados do século, separa-se do resto do país.

Evidentemente, o Brasil do século XIX também passa por momentos em que a sua integridade esteve em jogo, seja durante o período de D. Pedro I, seja durante a regência, porém, o resultado final foi a integridade e a manutenção – exceto no caso da Cisplatina – das configurações herdadas em 1822.

Ressalta-se ainda que a Guerra contribuiu para o desgaste de figuras de ambos os lados, no Brasil, de Pedro I, que abdica em 1831 com a sua imagem comprometida, nas Províncias Unidas, dos unitários, que assiste a chegada ao poder do federalista Rosas, que permanece aí até 1852, governando ditatorialmente, entretanto, contribuindo enormemente para a formatação da atual Argentina.

O resultado da Guerra foi favorável aos britânicos, que vêem o seu projeto da criação de um estado “tampão” no Rio da Prata, favorecendo os seus interesses comerciais nesta parte do globo. Evidentemente, tal criação não era o desejo do Brasil e das Províncias Unidas ao início do conflito, entretanto, com o Uruguai, os brasileiros saem do Rio da Prata – conforme desejavam os argentinos e os ingleses – e as Províncias Unidas não estendiam o seu território a outra margem do rio – o que não anelavam os brasileiros e ingleses. Pode-se perceber na assinatura do trato entre os dois países beligerantes forte dose de pragmatismo, pois já não possuíam condições para pelejar e se não obtinham a configuração territorial ideal ao fim do conflito, ao menos não permitiam que o seu rival também a obtivesse.

Entretanto, os conflitos na região do Prata não terminam com a Guerra da Cisplatina, durante o século XIX vários são os embates travados entre os quatro países da região, Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, além da questão da demarcação de limites entre os países dessa região virem sempre a tona e a ocorrência da intervenção de um na política do outro, como, por exemplo, os partidos uruguaios colorados e blancos receberem, respectivamente, o apoio dos brasileiros e argentinos, e o apoio dado aos farroupilhas por facções uruguaias e por Rosas.

Finalizando, o conflito cisplatino dá-se no contexto da formação de dois países, Brasil e Argentina, sendo a primeira grande guerra das nações em formação, além de repercutir internamente de forma negativa para os seus governos.

6. Notas

1 – Para maiores detalhes, ver: FERREIRA, Fábio. A Presença Luso-Brasileira na Região do Rio da Prata: 1808 – 1822. In: Revista Tema Livre, ed.03. Disponível em: http://www.revistatemalivre.com

2 – GOLIN, Tau. A fronteira: governos e movimentos espontâneos na fixação dos limites do Brasil com o Uruguai e a Argentina. Porto Alegre: L&PM, 2002, p.328.

3 – Disponível em: http://www.ufpel.tche.br/fae/siteshospedados/A17TAMBARA.htm

4 – GOLIN, Tau. A fronteira: governos e movimentos espontâneos na fixação dos limites do Brasil com o Uruguai e a Argentina. Porto Alegre: L&PM, 2002, p.328.

5 – Frutuoso Rivera é natural de Montevidéu, tendo nascido nesta cidade em 1788. Luta ao lado de Artigas, depois do Brasil, que promove-o de coronel a brigadeiro, e a partir de 1825 contra o mesmo. É o primeiro governante do Uruguai independente, até 1834, funda o partido Colorado, teoricamente mais próximo ao Brasil, e retorna ao poder em 1838. Nos anos de 1840 luta contra Rosas e tenta mais uma vez voltar ao poder em seu país, no que fracassa, exilando-se na capital do Império. Em 1853 integra uma junta governativa do seu país, porém, no ano seguinte, falece. Vainfas (2002, p.303) define-o como exemplo da “(…) oscilação das identidades políticas e nacionais da Cisplatina, entre o Brasil e o Uruguai, bem como a constante inversão de papéis e alianças que marcaria muitas lideranças política dessa ex-província brasileira, espremida entre o Brasil e a Argentina.”

6 – Juan Antonio Lavalleja (1784-1853), considerado um dos 33 orientais, lutou ao lado de Artigas, no que culminou, por um curto tempo, na sua prisão por parte do novo governo que se instala na Banda Oriental, ficando preso durante três anos na ilha das Cobras, no Rio de Janeiro, e ganha a sua liberdade em 1821. Após os adventos de 1825-1828, disputa a presidência do seu país com Rivera, entretanto é derrotado e exila-se em Buenos Aires, de onde alia-se com Oribe contra aquele que derrotou-o no pleito. Na guerra civil que dura de 1843 à 1851 é aliado dos Blancos contra os Colorados. Chegaria ao poder via a junta designada para comandar o seu país em 1853, porém falece antes. CARNEIRO, David. História da Guerra Cisplatina. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1946 e Disponível em: http://www.bartleby.com/65/la/Lavallej.html e http://www.todo-argentina.net/biografias/Personajes/juan_antonio_lavalleja.htm

7 – GOLIN, Tau. A fronteira: governos e movimentos espontâneos na fixação dos limites do Brasil com o Uruguai e a Argentina. Porto Alegre: L&PM, 2002, p.332.

8 – Op. cit., p.100.

9 – Nascido em 1793 na província de Buenos Aires, chega a frente das Províncias Unidas em 1829, permanecendo aí até 1852. É válido observar que é um personagem controverso na historiografia argentina, na qual gerou construções dispares, como, por exemplo, a de Domingo Sarmiento, contemporâneo de Rosas, que em seu livro “Civilização e Barbárie” ojeriza-o; e a interpretação dada pelo revisionismo histórico, que resgata a figura de Rosas, em um intento de modificar a galeria de heróis nacionais. Vários dos autores do revisionismo defendiam Rosas, a atribuirem-lhe legitimidade popular; defensor da soberania nacional contra os interesses imperialistas franceses e ingleses; e a sua tirania era justificada pela sua contribuição a unidade nacional. Assim, esse personagem histórico fomentador de tantas construções dispares na historiografia de seu país, chegou ao poder sob a bandeira do federalismo, apoiou os farroupilhas contra o Império, e declarou guerra ao Brasil em 1851, termina a sua vida exilado em Londres depois que perde o poder na Argentina. Vem a falecer na capital inglesa em 1877.

10 – Segundo Carneiro (1946), dos 33 orientais, na verdade, 17 o eram. Onze eram argentinos, dois africanos, um paraguaio, outro francês e, ainda, um era brasileiro.

11 – CARVALHO, Carlos Delgado de. História diplomática do Brasil. Coleção Memória Brasileira, v. 13. Brasília: Edição fac-similar. Senado Federal, 1998, p.58.

12 – Simón Bolívar nasce em Caracas em 24 de julho de 1783. Estuda no exterior e, na sua formação, sofre influência de Rousseau e Napoleão Bonaparte. Ao retornar a sua cidade de origem, participa dos movimentos de emancipação da atual Venezuela, assim como dos atuais Panamá, Colômbia, Equador, Peru e Bolívia. Fica conhecido como “El Libertador”. Após ser presidente de diversos países que ele participa da independência da Espanha, Bolívar morre em 17 de dezembro de 1830, em uma fazendola perto de Santa Marta, Colômbia. Disponível em: http://www.its.utas.edu.au/users/creyes/simon_bolivars_home_page.htm e http://www.auburn.edu/~jfdrake/teachers/gould/bolivar.html e http://www.bolivarmo.com/history.htm

13 – Bernardino Rivadavia (Buenos Aires, 20/05/1780 – Cádiz, Espanha, 02/09/1845), ligado ao partido Unitário, ocupa a presidência das Províncias Unidas de 08/02/1826 à 07/07/1827. Disponível em: http://www.historiadelpais.com.ar/

14 – Disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/multirio/historia/modulo02/cisplatina.html

15 – Disponível em: http://www.historiadelpais.com.ar

16 – GOLIN, Tau. A fronteira: governos e movimentos espontâneos na fixação dos limites do Brasil com o Uruguai e a Argentina. Porto Alegre: L&PM, 2002.

17 – Op. cit., p.126.

18 – A esposa de D. Pedro I falece em 8 de dezembro de 1826.

19 – Disponível em: http://www.arqnet.pt/dicionario/joao6.html

20 – Disponível em: http://www.geocities.com/ulysses_costa2000/oconflitonacisplatinap.html

21 – Disponível em: http://www.rio.rj.gov.br/multirio/historia/modulo02/cisplatina.html

7. Bibliografia e sítios consultados

BETHELL, Leslie. A independência do Brasil. In: BETHELL, Leslie (org.) História da América Latina: da Independência até 1870. v. III. São Paulo: EDUSP; Imprensa Oficial do Estado; Brasília: Fundação Alexandere de Gusmão, 2001.

BETHELL, Leslie; CARVALHO, José Murilo de. O Brasil da independência até metade do século XIX. In: BETHELL, Leslie (org.) História da América Latina: da Independência até 1870. v. III. São Paulo: EDUSP; Imprensa Oficial do Estado; Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2001.

CALÓGERAS, J. Pandiá. A política exterior do Império. Edição fac-similar. Brasília: Senado Federal, 1998.

CARVALHO, Carlos Delgado de. História diplomática do Brasil. Coleção Memória Brasileira, v. 13. Brasília: Edição fac-similar. Senado Federal, 1998.

CARNEIRO, David. História da Guerra Cisplatina. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1946.

DICIONÁRIO Histórico, corográfico, heráldico, biográfico, bibliográfico, numismático e artístico. v. III. Portugal: João Romano Torres, 1904-1915. Disponível em: http://www.arqnet.pt/dicionario.html

DUARTE. Paulo de Q. Lecor e a Cisplatina 1816-1828. v. 2. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1985.

FERREIRA, Fábio. A Presença Luso-Brasileira na Região do Rio da Prata: 1808 – 1822. In: Revista Tema Livre, ed.03. Disponível em: http://www.revistatemalivre.com

GOLDMAN, Noemi; SALVATORE, Ricardo (comp.). Caudillismos Rioplatenses: nuevas miradas a un viejo problema. Buenos Aires: Editorial Universitária de Buenos Aires, 1998.

GOLIN, Tau. A fronteira: governos e movimentos espontâneos na fixação dos limites do Brasil com o Uruguai e a Argentina. Porto Alegre: L&PM, 2002.

LEMOS, Juvêncio Saldanha. Os mercenários do imperador: a primeira corrente migratória alemã no Brasil (1824-1830). Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1996.

LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.

LYNCH, John. Las Revoluciones Hispanoamericanas: 1808-1826. Barcelona: Editorial Ariel, 1989.

PADOIN, Maria Medianeira. Federalismo Gaúcho: fronteira platina, direito e revolução. Coleção brasiliana novos estudos, v. 3. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001.

PROENÇA, Maria Cândida. A independência do Brasil. Lisboa: Colibri, 1999.

RAMOS, Luís António de Oliveira. D. Pedro imperador e rei: experiências de um príncipe (1798 – 1834). Lisboa: Inapa, 2002.

SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. Brasília: Senado Federal, 2002.

SARAIVA, José Hermano. História de Portugal. Lisboa: Alfa, 1993.

SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Apêndice In: MAXWEL, Kenneth. Condicionalismos da independência do Brasil. In: SERRÃO, José; MARQUES, A.H. Oliveira (coord.). Nova História da Expansão Portuguesa, volume VIII. Lisboa: Estampa, 1986.

VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Imperial (1822 – 1889). Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.

WADDELL, D.A.G. A política internacional e a independência da América Latina. In: BETHELL, Leslie (org.) História da América Latina: da Independência até 1870. v. III. São Paulo: EDUSP; Imprensa Oficial do Estado; Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2001.

– Para obter mais informações na Revista Tema Livre relacionadas ao primeiro quartel do século XIX, basta clicar nos ícones abaixo:
(Em ordem alfabética)

Entrevista com a prof. dra. Francisca Azevedo.

As incursões franco-espanholas ao território português: 1801-1810.

A Presença Luso-brasileira na Região do Rio da Prata: 1808-1822.

Moeda e Crédito no Brasil:
breves reflexões sobre o primeiro Banco do Brasil (1808-1829)

E, na seção fotos, a exposição virtual Imagens de Portugal: Palácio de Queluz.

Prof. Dr. João Paulo Pimenta (USP)

Entrevista com o historiador João Paulo Pimenta

 

Professor da USP e doutor por esta mesma instituição, João Paulo Pimenta tem realizado, ao longo de sua trajetória acadêmica, pesquisas e publicações envolvendo o Brasil e a América Espanhola no século XIX. Deste modo, a Revista Tema Livre apresenta ao seu público a entrevista realizada, por e-mail, com o historiador da USP, onde são tratados assuntos concernentes às independências latino-americanas e à formação do Estado Nacional na América Latina. Igualmente, na entrevista, são abordadas questões concernentes à historiografia do Brasil, da Argentina e do Uruguai, assim como ao ocaso dos Impérios Ibéricos no Prata e à província Cisplatina.

Revista Tema Livre – Primeiramente, o Sr. trabalhou, tanto no seu mestrado, quanto no seu doutorado, com questões envolvendo o Brasil e a América Espanhola no primeiro quarto do século XIX. Deste modo, perguntamos-lhe como surgiu este interesse?

João Paulo Pimenta – Por um lado, esse interesse surgiu da constatação de que as diferentes historiografias a respeito da independência e da formação do Estado nacional brasileiro sempre tocaram, "de raspão", no tema dos impactos causados pela política hispano-americana naqueles dois movimentos, sem que isso conduzisse a análises pormenorizadas. Claro que, até hoje, nenhum historiador pôde negar que, nas primeiras décadas do século XIX, as trajetórias históricas da América portuguesa e da América espanhola se cruzaram, e alguns esboços de quando, onde, como e porquê isso se deu chegaram a ser feitos. Sendo esse um topos obrigatório da realidade geral que eu pretendia estudar, pareceu-me que o seu aprofundamento analítico indicava para uma importante demanda de pesquisa, e fornecia um excelente pretexto para a problematização de temas muito relevantes.

Por outro lado, não há como negar que vivemos, nesta primeira década de século XXI, um momento ainda propício a inquietações intelectuais que, conscientemente ou não, contribuam para um arrefecimento das fronteiras nacionais, inclusive no plano da investigação histórica especializada. Avaliando retrospectivamente o que tenho feito, reconheço que minha obra expressa bem uma tendência a problematizar a história contra a circunscrição nacional de temas, a diálogos críticos com variadas tradições intelectuais nacionais, e ao tratamento de fontes primárias de diferentes procedências espaciais. Creio que de tais investigações resulta, no entanto, mais do que uma necessária crítica a distorções nacionalistas ou nacionalizantes impostas à História, simplesmente uma história "em seus devidos lugares"; isto é, um olhar global e totalizador sobre os processos de independência da América ibérica e a presença, neles, da questão das identidades coletivas. O que não deixa de ser uma forma de olhar típica da realidade atual.

RTL – Além disto, o Sr. pode nos contar, sucintamente, sobre a influência dos processos de independência e de formação dos Estados Nacionais da América Espanhola no Brasil?

Pimenta – Se minhas investigações partiram justamente da constatação de um consenso historiográfico em torno do reconhecimento de que houve impactos nada desprezíveis de uma realidade sobre a outra, até o momento elas conduziram a duas conclusões gerais diretamente derivadas dessa constatação, e articuladas entre si: em primeiro lugar, a historiografia não estava errada ao destacar tais impactos, pois de fato um espectro significativo de determinações provenientes da política hispano-americana a partir da crise de 1808 foi sendo absorvido no mundo luso-americano (nesse ponto, minhas pesquisas não se voltam contra a tradição; pelo contrário, dão continuidade a ela); em segundo lugar – e aí sim ao revés do que afirmava a maioria esmagadora das obras que tocaram na questão – esse espectro não é redutível aos exemplos "negativos", pelos quais a América espanhola "ensinou" a América portuguesa a evitar fenômenos que aquela começou a conhecer antes que esta, e que nos termos da época podiam ser referidos como "exemplos sangrentos" de "desordem", "destruição", "anarquia", "guerra civil", etc. Também houve, sobretudo nos anos que imediatamente envolvem a independência do Brasil, exemplos "positivos", pelos quais a América espanhola pôde se converter em exemplo benéfico de viabilização de um mundo sem metrópoles.

Trata-se, desse modo, de fenômeno complexo e multifacetado. Essa complexidade, por fim, só pode ser devidamente compreendida quando relacionada a elementos de política externa dos governos americanos e europeus da época, a rotas comerciais, a fluxos humanos e de livros, jornais, informações, boatos e idéias. O resultado dessa dinâmica interação entre Brasil e América espanhola no começo do século XIX – e que não se limita, obviamente, ao desfecho da crise dos impérios ibéricos, mas diz respeito ao movimento em si – chamei de "experiência hispano-americana", reelaborando uma categoria analítica bem construída por Reinhardt Koselleck.

RTL – E qual foi a repercussão da Independência do Brasil na América Espanhola?

Pimenta – Eis uma questão fundamental, cuja resposta satisfatória ainda nos escapa quase que totalmente. Em minha dissertação de mestrado, finalizada em 1997 e posteriormente publicada em livro, levantei alguns elementos em torno dos conflitos políticos e identitários posicionados na intersecção da bem-sucedida construção de um Brasil monárquico com as fracassadas tentativas de construção de um governo central em Buenos Aires e que agregasse a maioria dos territórios do antigo Vice-Reino do Rio da Prata; mas foram apenas alguns elementos, já que esta não era a questão central daquele trabalho. Mais recentemente, escrevi alguma coisa e comecei a orientar trabalhos de estudantes de graduação e pós-graduação voltados diretamente a espaços como a Venezuela, o México e o Peru, além, claro, do mesmo Rio da Prata, onde sem sombra de dúvida a política luso-americana exerceu maior impacto do que em qualquer outra parte. Se da análise de uma "experiência luso-americana" resultou uma contribuição historiográfica satisfatória, as muitas "experiências luso-americanas" presentes no mundo hispânico ainda aguardam o empenho dos historiadores. Mas não tenho dúvida que tais "experiências" existiram e foram significativas.

RTL – Especificamente sobre o espaço platino, que o Sr. trabalhou em seu livro "Estado e nação no fim dos impérios ibéricos no Prata (1808-1828)", fale-nos, resumidamente, sobre o ocaso desses impérios nesta região da América.

Pimenta – Ele só pode ser compreendido de modo abrangente e total; portanto, avaliando-se e integrando-se os resultados da pesquisa especializada voltada para cada um dos espaços específicos que à época compunham as unidades políticas, econômicas, sociais e culturais em contato. Não se trata, apenas, de Brasil e Rio da Prata, mas também dos muitos "Brasis" e "Rios da Prata" existentes. E a região vulgarmente chamada de banda oriental representa, nessa direção, uma síntese de muitos vetores e determinações históricas. Essa é uma forma de analisar as coisas que vai muito além de noções tradicionais (mas nem por isso desprovidas de utilidade para outros estudos) como "fronteira", ou de métodos (por ventura igualmente válidos) de "comparações" ou "conexões". Trata-se, simplesmente, de respeitar a abrangência do fenômeno a ser estudado – a crise e dissolução dos impérios ibéricos na América.

O que, nas primeiras décadas do século XIX, integrava aqueles espaços em uma mesma unidade histórica? Longevos contatos fronteiriços, disputas territoriais, guerras, relações diplomáticas e complexos produtivos compartilhados; mas também – e aí me refiro especificamente à conjuntura inaugurada com as guerras napoleônicas na Europa – a possibilidade real de quebra da unidade dinástica em Portugal e Espanha, de desintegração dos seus respectivos domínios americanos, de inserção destes no novo desenho político-econômico mundial, de ampliação dos espaços de crítica política, da crescente complexidade dos próprios meios de atuação política, etc. Em suma: a partir de 1808 a unidade das Américas espanhola e portuguesa enfrentava uma mesma situação de fundo, ainda que para tanto mobilizassem esforços que, de parte a parte, encontrariam soluções diferenciadas e específicas. Talvez isso possa ser visto como a defesa de uma compreensão do contexto americano da época de modo menos fragmentado e isolado do que de costume, sem implicar, evidentemente, o abandono da investigação específica – apenas a sua re-significação de acordo com uma unidade histórica mais ampla.

RTL – Fale-nos também sobre o mito das origens nas historiografias do Brasil, da Argentina e do Uruguai, bem como a crítica a esta produção historiográfica.

Pimenta – Aprendemos, todos nós, a fazer História de acordo com premissas estabelecidas no século XIX, e segundo as quais os significados das realidades passadas só podem ser devidamente compreendidos como singulares, únicos, jamais repetíveis. Ora, no caso das historiografias ibero-americanas, tais premissas se conjugam com o advento das narrativas nacionais, que elevaram a nação à condição de sujeito máximo da história, devidamente destacado das demais ao seu redor. Muito embora muitas e profundas renovações historiográficas tenham sido observadas em diferentes países, inclusive com a crítica direta às presunções fundadoras atribuídas a determinados acontecimentos por representantes das historiografias nacionais, ainda carregamos muito fortemente as implicações decorrentes dos limites impostos por aquela concepção histórica. Sem que sejamos nacionalistas stritu sensu, a tendência é fazermos uma história de países, ou pelo menos hipertrofiada em temas que não costumam transcender as fronteiras nacionais da historiografia onde eles foram concebidos.

No que me toca mais diretamente, não pretendi fazer dessa crítica (ademais já realizada por grandes autores como Carlos Real de Azúa, José Carlos Chiaramonte e François-Xavier Guerra) o escopo principal de meu trabalho, apenas o seu pretexto inicial. Acredito que toda operação intelectual de desmanche de outras concepções modelares deve oferecer como alternativa algo equivalente, e que, nesse caso, envolve o empenho em olhar para além de um movimento de independência, ou de um tempo-espaço específico. Deve-se atribuir sentido ao que é (obviamente) específico por aquilo que ele possui de típico, em meio ao cenário americano mais amplo. Mas isso é muito difícil, já que tal empenho pressupõe justamente um bom domínio das historiografias nacionais que, de algum modo, tocaram na questão geral.

RTL – No que refere-se à Cisplatina, o Sr. pode nos falar sobre a produção periódica realizada em Montevidéu. Perguntamos-lhe, assim, sobre a influência e o peso político desses jornais, se eles podem ser considerados como brasileiros e, ainda, quem eram seus editores?

Pimenta – O pouco que sei a respeito dessa obliterada produção periódica publiquei em alguns pequenos artigos, e que são, no meu entender, muito mais um indicativo de uma demanda de pesquisa fundamental do que a resolução de um problema histórico que está apenas esboçado. O periodismo surge na banda oriental com as invasões inglesas de 1806 e 1807, adquire forte sentido político já com a formação da junta revolucionária de Buenos Aires em 1810 e doravante representa um mecanismo de luta política imprescindível para os muitos e diversificados agentes atuantes naquele cenário. Conforme afirmei acima, a região é uma síntese de muitos vetores e determinações históricas que aproximam as Américas espanhola e portuguesa, o que está sobejamente espelhado nessa produção impressa.

Mais especificamente, quando o grupo de Carlos Frederico Lecor cria a "província Cisplatina", em 1821, pretendendo mantê-la como uma parte do Reino do Brasil, é na imprensa periódica que ensaios políticos importantíssimos são feitos: periódicos são criados e fechados, editores subsidiados e perseguidos, e manifestações de descontentamento cada vez mais abertas em relação à própria política portuguesa encontram espaço de publicização, mostrando contradições do sistema. Trata-se, evidentemente, de uma imprensa portuguesa diretamente vinculada ao Brasil, mas isso não parece ter sido suficiente para valorizá-la historiograficamente enquanto tal; já na historiografia uruguaia, o período vulgarmente conhecido como de "dominación luso-brasileña" tampouco goza de grande prestígio entre os estudiosos. Se estou correto nesse diagnóstico, nos dois casos ainda percebemos efeitos nocivos da persistência de concepções estritamente nacionais da história das independências. Mas sou otimista em relação à reversão desse quadro, inclusive ao constatar um aumento significativo nos estudos brasileiros e uruguaios a respeito da banda oriental. A agenda continua aberta.

RTL – Por fim, abandonando o Prata e partindo para outras áreas da América Espanhola que fazem fronteira com o Brasil, o Sr. pode falar um pouco sobre as relações políticas e diplomáticas brasileiras com países como o Paraguai, a Bolívia e a Venezuela no período trabalhado em sua tese de doutorado?

Pimenta – As relações diplomáticas de fato entre esses países só serão organizadas algum tempo após suas respectivas independências, isto é ao longo das décadas de 1820 e 1830, o que vem também merecendo atenção de estudiosos, principalmente os voltados à história política das relações internacionais. No entanto, durante os anos anteriores, existiram várias formas de relacionamento entre autoridades políticas atuantes nessas regiões, e que infelizmente ainda nos são pouco conhecidas. Há que se pesquisar documentação de províncias fronteiriças, há que se entender os pontos de contato dos "brasis" não somente pela bem-conhecida fronteira do Rio Grande, mas também as de São Paulo, Mato Grosso, Rio Negro e Pará com o Alto Peru, o Peru, a Nova Granada, a Venezuela e o Caribe. Novamente, nessas lacunas nos vemos às voltas com mazelas das fronteiras historiográficas nacionais. Mas já estou ficando repetitivo: reafirmo que sou otimista em relação ao preenchimento dessas lacunas em um futuro próximo, pois cada vez mais historiadores de diferentes países, voltados às independências americanas, buscam a integração de suas pesquisas. Afinal, vivemos no século XXI…

Leia outras entrevistas concedidas à Revista Tema Livre

As revoluções de Maio e Liberal do Porto no Estado Cisplatino Oriental

Artigo de Fábio Ferreira
Doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF)
Mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Bacharel em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

 

 

Introdução

O mundo ibero-americano assistiu no curto período de 1810 a 1820 a duas grandes revoluções que mudaram drasticamente suas configurações e seus destinos políticos. O primeiro dos acontecimentos é a Revolução de Maio, que eclodiu no dia 25 do citado mês do ano de 1810, tendo como palco a cidade de Buenos Aires. O outro é a Revolução Liberal do Porto, que ocorreu na citada cidade portuguesa em 24 de agosto de 1820.

Em razão da Revolução de Maio foram quebradas centenárias relações políticas e econômicas entre a região platina e a Espanha, bem como foram alteradas definitivamente as configurações territoriais das unidades políticas espanholas nesta porção da América, culminando na criação de vários países na área que outrora configurava o Vice-Reino do Rio da Prata.

Já a ação dos liberais portugueses buscou por termo ao absolutismo luso, dando a Portugal um período sob a égide liberal. Além disto, a Revolução de 1820 deu ao reino ibérico uma constituição, fez com que D. João VI retornasse à Europa e culminou na separação do Brasil do Reino Unido português.

Contudo, tanto a Revolução do Porto, quanto a de Maio, tiveram importantes desdobramentos em áreas que vão além de Portugal, do Brasil e da cidade de Buenos Aires, como, por exemplo, Angola, no caso português, e do Paraguai e do Alto Peru, no portenho. No entanto, ressalta-se que o território que, atualmente, corresponde à República Oriental do Uruguai, denominado, à época, de Banda Oriental, guarda a especificidade de ter sido diretamente atingido pelas ações revolucionárias de Buenos Aires e do Porto.

Deve-se, ainda, entender a Banda Oriental das primeiras décadas do século XIX como uma área de interseção e de indefinição entre os mundos luso-brasileiro e espanhol, gravitando, portanto, ora em torno de Lisboa e do Rio de Janeiro, ora de Madri e de Buenos Aires.

A indefinição da Banda Oriental não dava-se apenas no sentido de sob qual centro de poder ibero-americano esta região estaria ou não vinculada. Abarcava a falta de precisão e a porosidade de suas fronteiras, o relevante trânsito de pessoas e de mercadorias com o Rio Grande português e o espanhol Vice Reino do Prata, assim como era significativo o número de portugueses e espanhóis estabelecidos no território oriental.1

Diante destas evidências, o presente artigo irá analisar as influências das revoluções portenha e portuguesa nos rumos do território oriental, fazendo com que este viesse a compor ora o mundo hispano-americano, ora o luso-brasileiro. Para a melhor compreensão daqueles conflitos é válido retomar o ano de 1808, por este estar intrinsecamente vinculado à revolução platina e a demandas dos revoltosos do Porto.

 

1808, a Revolução de Maio e a Banda Oriental

Em primeiro lugar, observa-se que 1808 foi o ano em que, em função da invasão de Napoleão Bonaparte a Portugal, o príncipe regente D. João, sua consorte Carlota Joaquina, e a corte lusa chegaram ao Rio de Janeiro, transformando a capital da antiga colônia americana em centro do Império português.

Concomitantemente, neste mesmo ano, após cogitarem fugir para o México, a família real espanhola foi capturada por Napoleão, que colocou à frente do governo da Espanha seu irmão, José Bonaparte, que veio a ser transformado em rei dos espanhóis, porém, isto não significou que a totalidade dos castelhanos tenham-no aceito como seu soberano. Iniciava-se, assim, um movimento de resistência à dominação francesa. Em finais de 1808, foi organizada pelos antagonistas dos irmãos Bonaparte, na cidade de Sevilha, uma junta central, que buscava governar em nome do rei cativo, Fernando VII, irmão de Carlota Joaquina.

Evidentemente, os acontecimentos ibéricos tiveram seus desdobramentos na porção americana controlada pela Espanha. Neste quadro, os governos coloniais depararam-se diante de uma gama de opções, que iam do juramento de fidelidade a José Bonaparte à independência completa, ou, ainda, abarcavam projetos que incluíam a submissão à resistência espanhola, representada na Junta de Sevilha, ou a Carlota Joaquina.2 Finalmente, entre as possibilidades existentes, encontrava-se a dos americanos criarem e submeterem-se a Juntas feitas no próprio continente, compostas por elementos nascidos no Novo Mundo, que governariam em nome do monarca encarcerado.

Neste contexto, foi estabelecida uma Junta de Governo em Montevidéu, que tinha o objetivo de tirar a Banda Oriental do controle do vice-rei Santiago de Liniers, que governava a partir de Buenos Aires. Por sua origem francesa, Liniers era acusado de ser favorável aos Bonaparte.

Outro fator que veio a fortalecer a Junta montevideana, fazendo com que a mesma recebesse forte apoio local, foi a rivalidade entre as cidades-porto de Montevidéu e Buenos Aires. Porém, a duração desta Junta foi efêmera, pois após Sevilha substituir, em 1809, Liniers por Baltasar Hidalgo de Cisneros, Montevidéu a dissolveu.

Importante fator que veio a mudar a direção dos acontecimentos do mundo espanhol foi a eliminação de Sevilha e de tantos outros pontos de resistência a Napoleão na Espanha. Deste modo, em janeiro de 1810, a Junta central retirou-se para Cádiz e transformou-se em Conselho de Regência, que buscava, dentre outras atividades, a organização das Cortes, composta por membros de todo o Império espanhol. Todavia, o Conselho de Regência necessitava ser reconhecido pelo Novo Mundo.

Como o futuro da Espanha era incerto, os defensores do sistema espanhol encontravam-se repletos de dúvidas. Ao mesmo tempo, os criollos desejavam controlar o processo político americano. Assim, Cisneros foi obrigado a aceitar o cabildo abierto em Buenos Aires e, em 22 de maio de 1810, o cabildo portenho foi encarregado de estabelecer uma Junta, fazendo-o dois dias depois, e entregando sua presidência ao Vice-Rei.

Entretanto, antes mesmo do seu funcionamento, a Junta gerou uma série de oposições em setores da sociedade portenha. Assim, em 25 de maio, acabou por ser criada uma Junta sem a participação de Cisneros. No seu lugar, a presidência foi ocupada pelo coronel Cornélio de Saavedra. A partir daí, iniciava-se a Revolução de Maio.

A Junta portenha jurou fidelidade a Fernando VII, mas não ao Conselho de Regência. Neste momento, a figura que passou, individualmente, a ter maior projeção, foi Mariano Moreno, um dos secretários da Junta de Buenos Aires. Porém, meses mais tarde, Moreno acabou por renunciar ao seu cargo, aceitando posto diplomático na Europa, posição esta que ele nunca ocupou devido ao naufrágio que o vitimou no caminho ao Velho Mundo.

Agrega-se que a Junta de Buenos Aires estabeleceu a igualdade básica entre brancos e índios, bem como os espanhóis peninsulares começaram a ser discriminados em funções públicas e no cálculo das suas contribuições financeiras. Indivíduos que compunham a resistência à Junta foram executados, podendo-se mencionar como exemplo o caso de Liniers.

Além disto, a Junta reivindicava a autoridade sobre todo o Vice-Reino do Prata, mas esta demanda não significou a adesão de todas as frações que o compunham. Montevidéu, por exemplo, por sua rivalidade política e econômica com Buenos Aires, optou por aderir ao Conselho de Regência. Semelhantemente, o Paraguai e o Alto Peru não submeteram-se aos portenhos.

As expedições ao Alto Peru permaneceram nos anos seguintes à Revolução de Maio. Já o Paraguai estabeleceu, em 1811, sua própria Junta, após ter derrotado expedição militar proveniente de Buenos Aires e que era liderada por Manuel Belgrano. Neste mesmo ano, na Banda Oriental, José Gervásio Artigas, membro do exército espanhol, abandonou suas fileiras e aderiu aos insurgentes de Buenos Aires, passando a ser o responsável pela revolução no território oriental.

Os estancieiros foram um importante ponto de apoio de Artigas, podendo ser mencionados os casos de Tomás García de Zúñiga, Juan José Durán e Frutuoso Rivera, que atuaram, por anos seguidos, ao lado do líder oriental e, posteriormente, de D. João VI e de D. Pedro I. Influiu na decisão dos estancieiros por Artigas fatores como este ser originário de uma família proprietária de terras e sua reconhecida capacidade militar, devido aos seus sucessos em impor a lei e a ordem no campo durante o período colonial espanhol. Já os comerciantes posicionaram-se, majoritariamente, contra Artigas e favoráveis à Espanha, por crerem que ficando ao lado dos europeus poderiam conseguir vantagens monopolistas junto aos seus aliados ibéricos.

As tropas de Artigas obtiveram várias vitórias no interior da Banda Oriental e nos povoados menores, cercando, em seguida, Montevidéu, fiel à Espanha, onde encontrava-se o vice-rei Francisco Javier Elío. Deste modo, diante da concreta ameaça dos artiguistas, Elío recorreu à ajuda da corte portuguesa, que prontificou-se a ajudá-lo, enviando forças militares lideradas pelo general Diego de Souza para o auxílio dos realistas.

É válido observar que mesmo que D. João tenha prestado este apoio a justificar que as perturbações na Banda Oriental estavam a causar turbulências na fronteira com o Rio Grande, e de que com tal marcha estaria a garantir a integridade dos domínios dos familiares de Carlota Joaquina, o príncipe português tinha pretensões de estender seus domínios americanos até o Prata, sendo que o pedido de ajuda de Elío era um excelente argumento para que tropas lusas ocupassem o território platino.

No entanto, Elío e os portenhos assinaram, em 20 de outubro de 1811, um acordo em que os buenairenses comprometeram-se a abandonar a Banda Oriental, em cessarem seu apoio a Artigas e, ainda, reconheceram o domínio espanhol na região. No trato, também estipulou-se a retirada das forças portuguesas do Prata.

Portugal, chamado por Elío ao conflito, mas excluído das negociações entre o Vice Rei e Buenos Aires, permaneceu na Banda Oriental, a ignorar o que foi estabelecido entre as duas partes contratantes. Ambos não tinham poder bélico para que as tropas portuguesas evacuassem a área e, assim, recorreram à Inglaterra, que era capaz de fazê-lo, seja militar, seja diplomaticamente.

Como o desejo dos patriotas portenhos e de Elío de que as forças joaninas saíssem da Banda Oriental coincidia com os interesses dos ingleses, seja em razão do seu comércio na região, seja pela aliança com a Espanha, Castlereagh, secretário britânico de assuntos exteriores, e Lord Strangford, ministro inglês no Rio de Janeiro, agiram no sentido de Portugal abandonar o Prata, no que lograram êxito.

Além de Portugal, Artigas era contrário ao acordo entre Elío e os portenhos, pois os seus aliados de Buenos Aires o ignoraram completamente ao celebrar o acordo e, ainda, deixaram a Banda Oriental nas mãos dos espanhóis. Por isto, Artigas partiu para Entre Rios, sendo acompanhado por milhares de pessoas, no episódio que ficou conhecido como Êxodo do Povo Oriental.

Também neste contexto e como desdobramento da Revolução de Maio, Artigas foi aclamado Chefe dos Orientais e iniciou o projeto da Liga Federal, que incluía, além da Banda Oriental, Entre Ríos, Santa Fé, Corrientes e regiões de Córdoba. Esta união era independente de Buenos Aires, constituía um sistema no qual as províncias teriam plena soberania e o governo central fraco, sendo incapaz de controlar as unidades provinciais.3

A centralista Buenos Aires convocou, em 1813, uma Assembléia Constituinte onde as províncias teriam, teoricamente, voz e, em virtude disto, Artigas realizou o Congresso Oriental, com a função de definir o posicionamento dos seus conterrâneos junto aos portenhos.

O resultado foi o estabelecimento das "Instrucciones del Año XIII", que continham a reivindicação da agora, sob o ponto de vista artiguista, Província Oriental (não mais Banda Oriental), pela independência, república e federalismo. Pelo teor da proposta, os deputados orientais sequer foram recebidos pela Assembléia Constituinte, fato que levou Artigas a romper com os portenhos e a declarar guerra aos mesmos.

Em decorrência, Buenos Aires atacou Montevidéu e, mais tarde, em 20 junho de 1814, o substituto de Elío, Vigodet, igualmente vinculado aos espanhóis, foi derrotado. Três dias depois, liderados por Alvear, os portenhos entraram na cidade, permanecendo aí até 1815, quando Artigas a retomou, passando, então, a governar toda a Província Oriental e concretizando o projeto da Liga Federal.

Apesar de Artigas estar à frente da citada Liga, na prática, seu poder era restrito ao território oriental, arrasado e destruído pelos anos de guerra, resultado dos conflitos gerados na Banda Oriental pela Revolução de Maio. Paralelamente, no mundo luso-brasileiro começavam os preparativos militares para a conquista da margem esquerda do Prata, advento que lançou a Banda Oriental para a órbita de Lisboa e do Rio de Janeiro.

 

A Banda Oriental portuguesa

Para liderar as tropas portuguesas na ocupação de Montevidéu e da campanha oriental, D. João designou o general português Carlos Frederico Lecor, veterano das guerras napoleônicas. Os militares que compunham a missão, que contou com cerca de 12.000 homens, eram de aproximadamente 4.000 portugueses, denominados Voluntários do Príncipe, e de indivíduos oriundos do Brasil, que somavam 8.000.4

Como justificativa do ataque luso-brasileiro, o governo instalado no Rio de Janeiro argumentava que agia desta maneira pelas constantes perturbações e pelo desrespeito dos artiguistas à fronteira com o Rio Grande e, ainda, que Artigas desejava conquistar parte desta capitania. Além destas justificativas, somava-se o antigo anelo luso de estender seus domínios ao Prata.

As tropas de Lecor partiram do Rio de Janeiro em 12 de junho de 18165, atravessando a fronteira entre o Rio Grande e a Banda Oriental alguns meses depois. Em 20 de janeiro de 1817, após articulações políticas com o Cabildo de Montevidéu, composto, nesta altura, por figuras como o padre Dámaso António Larrañaga, Jerónimo Pío Bianqui, Francisco Llambí e Juan José Durán6, Lecor e suas tropas entraram neste núcleo platino sem disparar um único tiro. Posteriormente, Lecor conseguiu o apoio de outros personagens igualmente relevantes no âmbito local, como, por exemplo, Tomás García de Zúñiga e Frutuoso Rivera.

Uma das contrapartidas oferecidas a este grupamento para que apoiassem ao invasor era a de que eles teriam suas posições na administração pública mantidas. Além disto, é importante pensar em todas as outras regalias que poderiam ser obtidas caso se estivesse ao lado dos portugueses, por serem os novos donos dos jogos de poder.

Como exemplo, pode-se mencionar que diversos orientais receberam do governo português condecorações, títulos nobiliárquicos e promoções na administração pública, bem como estes individuos estiveram presentes em uma série de organismos da Banda Oriental, como a Sociedade Lancasteriana de Montevidéu, a Junta Superior de Real Hacienda e o Cuerpo de Cívicos de Montevideo.

Evidentemente, não só parte dos segmentos locais mais abastados beneficiaram-se com a ocupação, mas, de semelhante modo, os ocupadores recebiam uma série de vantagens com o apoio dado pelos elementos locais. Pode-se incluir como relevantes benefícios o conhecimento que esses orientais possuíam do funcionamento da administração pública, suas redes clientelares na Banda Oriental, e a ajuda financeira dada ao governo de Lecor, pois o general tomou empréstimos de importantes figuras locais, tais como do estancieiro Tomás García de Zúñiga e do comerciante Francisco Juanicó.7

Neste contexto, Lecor adotou a política de realizar casamentos entre militares de suas tropas e mulheres orientais, sendo que ele mesmo casou-se, em 1818, com Rosa Maria Josefa Herrera de Basavilbaso, pertencente a uma das famílias mais importantes da Banda Oriental. Neste mesmo ano, em virtude das mercês que D. João VI concedeu ao ser aclamado e coroado rei de Portugal, Brasil e Algarves, Lecor tornou-se Barão da Laguna. Provavelmente, o general foi agraciado pelo monarca pelo fato do militar ter realizado com sucesso a integração política dos ocupadores com grande parte da sociedade oriental.

Paralelamente à administração de Montevidéu por Lecor, Artigas resistia aos portugueses no interior e proporcionava ataques ao Rio Grande. Entretanto, o caudilho perdia cada vez mais posições, até que, em 1820, na Batalha de Tacuarembó, o líder oriental partiu para Entre Rios e, posteriormente, exilou-se no Paraguai, onde passou o resto de sua vida.

Observa-se, portanto, que, em 1820, encerrava-se a atuação política de Artigas, importante personagem vinculado à Revolução de Maio e o grande protagonista deste movimento na Banda Oriental. Por fim, com a saída de Artigas de cena, Lecor passava a controlar todo o território oriental.

Aparentemente, o general o faria tranquilamente, porém, neste mesmo ano de 1820, ocorria no mundo luso-brasileiro advento que viria a ocasionar grandes turbulências no mundo português, a marcar definitivamente o futuro do Reino Unido português e da Banda Oriental: A Revolução Liberal do Porto.

 

A Revolução Liberal do Porto

Sobre este movimento luso, na madrugada de 24 de agosto de 1820, militares portugueses estabelecidos no Porto foram para as ruas desta cidade e, em praça pública, declararam iniciada a revolta e criaram um Conselho Militar. Os militares posicionaram-se favoráveis ao estabelecimento das Cortes e desejavam a elaboração de uma constituição.8

Em 15 de setembro, com a participação de segmentos do exército, foi a vez de Lisboa ser o centro das agitações liberais. Nesta data, estabeleceu-se um governo interino, que derrubou o oficial, e que aderiu aos revoltosos do Porto. Assim, Portugal passou a contar com dois núcleos revolucionários, um no Porto e o outro em Lisboa. Após articulações políticas, estes dois grupos uniram-se, tendo havido a entrada dos membros da Junta do Porto na cidade de Lisboa no dia 1º de outubro.

Pode-se entender que a partir do advento ocorrido no Porto iniciou-se o processo que pôs fim à sociedade de Antigo Regime em Portugal, sendo que estas agitações e insatisfações derivavam de fatores como a permanência de D. João VI na América, além da grave crise econômica que Portugal enfrentava, com o decréscimo das atividades ligadas ao comércio, à indústria e à agricultura. Igualmente, estavam o aumento da miséria e a influência direta da Inglaterra nos assuntos de Portugal, ressaltando-se que essas questões vinham gerando desagrados e posicionamentos públicos pela sua resolução havia anos.

Agrega-se que neste momento foi consagrado o liberalismo em Portugal, e houve a busca de construir uma nação de cidadãos, com a igualdade perante a lei e com os mesmos direitos e deveres. Conseqüentemente, havia a extinção de privilégios e os particularismos das monarquias do Antigo Regime. Tentava-se, de semelhante modo, implementar a reforma das instituições jurídicas, políticas e econômicas da sociedade lusa.

As Cortes da década de 1820 foi a primeira instituição parlamentar do liberalismo português, que, no período de 1820-1823, conseguiu exercer, através do poder legislativo, grande influência na sociedade portuguesa, inclusive tendo retirado significativa força do monarca.

Um outro fator a apontar-se é que a Revolução do Porto colocava Portugal ao lado das também liberais Espanha, Itália e Grécia, sendo que os seus respectivos governos buscavam uma articulação em conjunto, tentando uma união política e a criação de uma espécie de "internacionalismo liberal". Por outro lado, os governos europeus contrários ao liberalismo uniram-se, criando a Santa Aliança, que tinha o propósito de opor-se e de provocar a queda política dos revoltosos.

Além disto, a ascensão dos liberais na Espanha, que ocorreu primeiro que em Portugal, teve grande influência no Reino Unido de D. João VI, com a implementação das mesmas instruções para a eleição dos deputados à Constituinte, o emprego de decretos similares ou baseados no do reino vizinho, e a venda da Constituição espanhola no Brasil e em Portugal.

Neste quadro, em 17 de outubro de 18209, chegava ao Rio de Janeiro a notícia da revolução iniciada no Porto, que dividiu o governo luso instalado no Brasil em opositores e favoráveis à convocação das Cortes e ao retorno da família real a Portugal, que permanecia na América desde 1808.

No primeiro dia de 1821 houve no Reino do Brasil, mais especificamente no Grão Pará, a primeira manifestação favorável ao liberalismo. Um pouco mais de um mês depois, em 10 de fevereiro, foi a vez da Bahia ser o campo de ação dos revolucionários, que declaravam sua fidelidade ao rei e, ao mesmo tempo, à futura Constituição portuguesa. Após os acontecimentos na Bahia, espalhavam-se no restante do atual Nordeste brasileiro adesões ao liberalismo e a reivindicação de juntas de governo que substituíssem as nomeadas por D. João VI.10

Em 26 de fevereiro, a guarnição militar do Rio de Janeiro rebelou-se e obrigou D. João VI a jurar a Constituição que estava a ser elaborada em Lisboa. Em virtude destes fatos, o monarca comprometia-se a retornar a Portugal e foi-lhe imposto um novo ministério. Para os Negócios Estrangeiros e Guerra foi designado o liberal Silvestre Pinheiro Ferreira, personagem que pela sua atuação no ministério teve importantes conseqüências para a criação da Cisplatina, questão que será analisada posteriormente.

 

A Revolução Liberal portuguesa em Montevidéu e a criação do Estado Cisplatino

Algumas semanas depois, ecos da Revolução do Porto chegaram à Banda Oriental, gerando motins na parcela lusa das tropas de Lecor. No dia 20 de março de 1821, tendo como líder o coronel António Claudino Pimentel, do 1º Regimento de Infantaria, por volta da meia-noite, três regimentos que encontravam-se fora de Montevidéu entraram pelo portão da cidade e ocuparam sua praça. Imediatamente, as tropas que estavam nos quartéis incorporaram-se aos insurgentes.11

Os rebelados reclamavam da sua situação de 22 meses sem pagamento do soldo e que, após cinco anos na América, desejavam retornar à Europa, pedindo, assim, ao rei e à nação que outros militares os substituíssem no Prata. Os militares lusos também protestavam contra decreto que desligava-os do exército português.12

Outra exigência dos revoltosos era a presença de Lecor para que se jurasse a Constituição que viesse a ser redigida e jurada em Portugal. Caso não aparecesse, o general era ameaçado pelos seus homens de ser destituído do poder.

Inicialmente, Lecor alegou que não poderia comparecer por estar enfermo, entretanto, coagido, acabou por ceder aos revoltosos. O general comprometeu-se com os militares portugueses a realizar os pagamentos dos soldos atrasados, a remetê-los a Portugal, e declarando publicamente que viria a obedecer às Cortes de Lisboa e a reconhecer a Constituição que viesse a ser jurada.13

Os rebelados criaram um Conselho Militar e entregaram sua presidência a Lecor. Os demais membros seriam oficiais de cada corpo da divisão eleitos por votos da oficialidade. Uma vez compostos os quadros, seriam nomeados o seu vice-presidente e secretário. Claudino Pimentel terminou por ocupar a vice presidência do Conselho.

Relatando em suas páginas a insubordinação dos militares de D. João VI, a Gaceta de Buenos Ayres estimava que na praça de Montevidéu tinham se reunido 1955 homens, sendo que alguns eram a favor da deportação de Lecor para o Rio de Janeiro. Além disto, o periódico relatava que um oficial português, apelidado de Placa, embarcou para Portugal para representar a divisão lusa de Montevidéu junto às Cortes.14

No Rio de Janeiro, no dia 16 de abril, D. João VI expediu duas medidas importantes para a região do Prata. Uma foi o reconhecimento da independência das províncias platinas em relação à Espanha. A outra foi no sentido de solucionar a questão da ocupação da Banda Oriental, que seria decidida no Congresso Cisplatino, congresso este a ser composto por elementos originários do território oriental.

Sobre o Congresso, ressalta-se que ele foi um relevante momento de ação conjunta de Lecor com os seus aliados orientais, bem como está intimamente vinculado à ascensão do liberalismo nos quadros do Reino Unido português, que levou à nomeação de Silvestre Pinheiro Ferreira como ministro de D. João VI.

Primeiramente, destaca-se que Silvestre Pinheiro Ferreira era contrário à manutenção das forças joaninas na Banda Oriental. O liberal argumentava junto ao rei que a ocupação proporcionava alto custo a Portugal e acarretava em sérios prejuízos ao comércio português, em virtude da ação de corsários.

De semelhante modo, não devem ser ignoradas a busca dos liberais portugueses de terem boas relações com a também liberal Espanha, sendo que este reino reivindicava, ainda neste momento, a soberania sobre o território oriental. Então, se D. João VI não resolvesse a questão envolvendo a Banda Oriental antes de partir da América, teria que negociar com os espanhóis quando voltasse à Europa, o que, evidentemente, colocava-o em uma situação mais delicada e suscetível a pressões.

Além disto, Silvestre Pinheiro Ferreira não cria no sucesso da incorporação do território oriental ao Reino do Brasil, afirmando que um decreto não iria transformar os orientais em portugueses, sendo assim, D. João VI não poderia contar com a fidelidade dos habitantes desta província.15

Diante desses fatos, D. João VI acabou por ordenar que se realizasse em Montevidéu o Congresso Cisplatino. Uma vez instalado o congresso, os deputados orientais decidiriam entre três opções, sendo uma delas a oficialização da ocupação luso-brasileira no Prata, unindo a Banda Oriental ao cetro joanino. Outra opção era a emancipação política do território oriental, constituindo um novo país no Prata. Por fim, os parlamentares discutiriam sobre a possibilidade de uma nova união entre os orientais e os governos ou de Buenos Aires, ou de Entre Rios, ou de Madri. Deste modo, a Banda Oriental deparava-se, novamente, com uma série de distintos projetos políticos.

Como os interesses políticos e econômicos de Lecor e dos seus aliados eram pela permanência dos portugueses no Prata, o general luso e o estancieiro Juan José Durán, chefe político da província à época, agiram no sentido de que o citado Congresso votasse pela incorporação da Banda Oriental ao cetro de D. João VI.

O contato com as atas do Congresso Cisplatino16, que estão no Archivo General de La Nación, em Montevidéu, permite-se constatar que, em 18 de julho de 1821, os congressistas votaram, unanimemente, pela anexação do território oriental à monarquia lusa. Também no Congresso, os deputados determinaram que o território recém anexado passaria a ser designado Estado Cisplatino Oriental, estabelecendo-se uma série de condições para que a união ocorresse, buscando a preservação das especificidades orientais dentro dos quadros da monarquia portuguesa.

Mantinha-se, deste modo, o castelhano como idioma oficial e as rendas locais deveriam ser aplicadas na própria província. Preservavam-se as leis locais, desde que não fossem conflitantes com a constituição portuguesa que estava a ser elaborada em Lisboa. Os empregos e cargos da Cisplatina eram reservados aos seus naturais ou àqueles que haviam contraído matrimônio na região, portanto, com a política de casamentos empregada por Lecor, diversos portugueses e brasileiros poderiam ocupar posições em cargos públicos da província. Dentre as condições estabelecidas, também havia a garantia da manutenção de Lecor no poder, pois, no congresso, acordava-se que: "Continuará en el mando de este Estado [Cisplatino Oriental], el Señor Barón de la Laguna."17

No entanto, em Lisboa, antes mesmo do resultado final do Congresso Cisplatino, as Cortes indicavam que o seu posicionamento seria o de abandonar a Banda Oriental.18 Ao tomar conhecimento da incorporação, já residindo em Portugal, Silvestre Pinheiro Ferreira posicionou-se contra esta medida. O ministro enviou oficio a Lecor em 22 de dezembro de 1821, manifestando sua indignação em relação à anexação e à ação de Lecor neste processo.19

Silvestre Pinheiro Ferreira exigia que Lecor deveria enviar a Lisboa uma exposição circunstanciada dos fatos e chamava a atenção para a importância da questão envolvendo a Cisplatina nas relações com a Espanha. O ministro liberal ainda informava que o futuro do Estado Cisplatino seria decidido pelas Cortes portuguesas, que Lecor seria substituído no Comando das armas no território oriental, além de que o general deveria repassar à Secretária de Estado informações concernentes ao mais novo estado da monarquia lusa.20

Diante do posicionamento de Lisboa em relação à Cisplatina, ocorreu a missão de Lucas José Obes no Rio de Janeiro, junto a D. Pedro e José Bonifácio. Político e advogado oriental, durante os anos da administração de Lecor, Obes possuía posição de destaque na sociedade montevideana. Ao final do Congresso Cisplatino, Obes foi selecionado pelos congressistas para representar o novo estado em Lisboa.

Na rota para a Europa, a embarcação em que Obes encontrava-se realizou uma paragem no Rio de Janeiro, em 27 de fevereiro. Na cidade, Obes apresentou-se a D. Pedro para que o príncipe decidisse se ele ficaria no Brasil ou se seguiria viagem para Portugal. D. Pedro decidiu que o oriental deveria permanecer no Rio de Janeiro.21

Durante sua estada na capital do Reino do Brasil, Lucas José Obes conseguiu o apoio do governo do Rio de Janeiro à criação do Estado Cisplatino – apoio que não fora dado por Lisboa – e em troca do posicionamento de D. Pedro e José Bonifácio, Obes colocava-se ao lado dos desejos emancipacionistas do Brasil.

Paralelamente, as relações entre Lecor e a parcela portuguesa de suas forças militares agravavam-se, sendo que, ao longo de 1821 e 1822, foram vários os motins gerados pelos lusos. À medida que o Estado Cisplatino aproximava-se do Rio de Janeiro, a situação das tropas portuguesas tornava-se mais tensa, até que, em setembro de 1822, para não ser destituído do poder, Lecor e os seus aliados tiveram que abandonar Montevidéu, indo para o interior cisplatino.

Ao mesmo tempo, o governo do Rio de Janeiro rompia com o de Lisboa, sendo que D. Pedro era aclamado como o primeiro imperador do Brasil no dia 12 de outubro de 1822. Vencia, assim, em oposição aos desejos dos revoltosos do Porto, a idéia de uma nação brasileira, separada de Portugal.

A partir de então, aqueles que não fossem favoráveis à independência deveriam sair do Brasil e, em províncias como a Cisplatina, a Bahia, o Maranhão e o Pará instalavam-se oposições ao sistema de D. Pedro I. A partir de então, a antiga Banda Oriental mergulhou em uma guerra entre os militares favoráveis a D. Pedro, liderados por Lecor, e que controlavam todo o interior do Estado Cisplatino, e os fiéis a D. João VI, liderados pelo também militar D. Álvaro da Costa, que controlavam Montevidéu.

Montevidéu só foi reocupada por Lecor em março de 1824, quando a cidade platina finalmente tornou-se parte do Império do Brasil, sendo o último ponto português na América. No entanto, a comunhão entre a Cisplatina e o Brasil não foi duradoura, pois em 1825 eclodiu a Guerra da Cisplatina, que resultou na criação da República Oriental do Uruguai, em 1828.

 

Conclusão

Assim sendo, diante do exposto, identifica-se que tanto a revolução iniciada em Buenos Aires, quanto a no Porto, tiveram significativos desdobramentos na Banda Oriental. Conclui-se que a Revolução de Maio fez o território oriental mergulhar em uma guerra entre patriotas e espanhóis, bem como fez com que os portugueses entrassem no conflito platino, seja em 1811, seja em 1816.

Além disto, Maio de 1810 fez com que a figura de José Gervásio Artigas emergisse na Banda Oriental, liderando o processo de autonomia da província. Pode-se, ainda, afirmar que o processo da Revolução portenha na Banda Oriental culminou na invasão lusa liderada por Lecor, lançando, assim, o território oriental para a órbita dos governos de Lisboa e do Rio de Janeiro.

No que tange à Revolução Liberal do Porto, esta foi responsável pela mudança da política joanina para o Prata, questão fundamental para a organização do Congresso Cisplatino, que, ao contrário do que desejava e previa o liberal Silvestre Pinheiro Ferreira, uniu o território oriental ao Reino Unido português. Observa-se que esta união fez com que a Banda Oriental fosse palco de novas guerras, seja entre brasileiros e portugueses, seja entre brasileiros, portenhos e orientais, a partir de 1825.

Agrega-se que outro desdobramento da revolução lusa na Banda Oriental foi a quebra da hierarquia militar através dos diversos motins que Lecor teve que enfrentar no seio de suas tropas, advento que veio a ameaçar seriamente o futuro da ocupação luso-brasileira.

Por fim, além dos supracitados adventos que marcaram a história da Banda Oriental, deve-se ressaltar como significativo desdobramento das revoluções de Maio e do Porto, a criação da República Oriental do Uruguai.

 

Bibliografia e documentação

Archivo General de la Nación – Montevidéu

ACTAS DEL CONGRESSO CISPLATINO. Montevidéu, 1821.

Arquivo Nacional – Rio de Janeiro

Fundo: Coleção Cisplatina. Caixas 975-979.

Biblioteca Nacional – Buenos Aires

LA GACETA DE BUENOS AYRES. Diversos números: 1821-1822.

Biblioteca Nacional – Rio de Janeiro

GAZETA DO RIO DE JANEIRO. Diversos números: 1816-1822. Seção Periódicos.

"Três atas do cabildo de Montevidéu sobre a entrada ali de tropas portuguesas e posse dada ao general Lecor do governo da Praça e capitania". Localização: 07,4,062. Seção: Manuscrito.

Fontes primárias impressas

COSTA, Hipólito José da. Correio Braziliense, ou, Armazém literário, v.XXVII. (1821). São Paulo: Imprensa Oficial do Estado; Brasília: Correio Brasiliense, 2002.

Bibliografia

ABADIE, Washington Reyes; ROMERO, Andrés Vázquez. Crónica general del Uruguay, vol. 3. Montevidéu: Banda Oriental, 1999.

AZEVEDO, Francisca L. Nogueira. Carlota Joaquina na corte do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

BERBEL, Márcia Regina. A nação como artefato: Deputados do Brasil nas Cortes portuguesas, 1821-1822. São Paulo: Hucitec: Fapesp, 1999.

BRANCATO, Braz Augusto Aquino. Don Pedro I de Brasil, posible rey de España (Una conspiración liberal). Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.

BUSHNELL, David. A Independência da América do Sul Espanhola. In: BETHELL, Leslie (org.) História da América Latina: da Independência até 1870. v. III. São Paulo: EDUSP; Imprensa Oficial do Estado; Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2001.

CASTELLANOS, Alfredo. La Cisplatina, la independência y la república caudillesca. Historia Uruguaya, t.3. Buenos Aires: Ediciones de La Banda Oriental, 1998.

DEVOTO, Juan E. Pivel. El Congreso Cisplatino (1821): repertorio documental, seleccionado y precedido de um análisis. Revista del Instituto Histórico y Geográfico del Uruguay, t.XII. Montevideo: 1937.

DONGHI, Tulio Halperin. Historia Argentina de la Revolución de Independencia a la confederación rosista, volume III. Buenos Aires: Editorial Piados, 2000.

DUARTE. Paulo de Q. Lecor e a Cisplatina 1816-1828. 3v. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1985.

FERREIRA, Fábio. A trajetória política de Artigas: da Revolução de Maio à Província Cisplatina. In: Revista Tema Livre, ed.05, 22 out. 2002. Disponível em: http://www.revistatemalivre.com

______________. Comerciantes e estancieiros: a participação dos segmentos econômicos orientais na expansão da fronteira luso-brasileira em direção ao Prata. In: 1er Congreso Latinoamericano de Historia Económica 4as Jornadas Uruguayas de Historia Económica, 2007, Montevidéu. Anais [CD-ROOM] do 1er Congreso Latinoamericano de Historia Económica 4as Jornadas Uruguayas de Historia Económica. Montevidéu, 2007.

______________. O General Lecor e as articulações políticas para a criação da Província Cisplatina: 1820-1822. (276p.) Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro, 04/04/2007.

FREGA, Ana. Pertenencias e identidades en una zona de frontera. La región de Maldonado entre la revolución y la invasión lusitana (1816-1820). In: HEINZ, Flavio M.; HERRLEIN JR, Ronaldo. Histórias regionais do Cone Sul. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2003.

GOLDMAN, Noemi. Revolución, república, confederación (1806-1852) Nueva Historia Argentina. Tomo 3. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 1998.

GOLIN, Tau. A fronteira: governos e movimentos espontâneos na fixação dos limites do Brasil com o Uruguai e a Argentina. Porto Alegre: L&PM, 2002.

LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.

LYNCH, John. Las Revoluciones Hispanoamericanas: 1808-1826. Barcelona: Editorial Ariel, 1989.

NARANCIO, Edmundo M. La Independencia de Uruguay. Madrid: Editorial MAPFRE, 1992.

NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e constitucionais: A cultura política da independência (1820-1822): Rio de Janeiro: Revan, FAPERJ, 2003.

PACHECO, M. Schurmann; SANGUINETTI, M.L. Coligan. Historia del Uruguay. Montevidéu: Editorial Monteverde, 1985.

PADOIN, Maria Medianeira. Federalismo Gaúcho: fronteira platina, direito e revolução. Coleção brasiliana novos estudos, v. 3. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001.

SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal: 1807 – 1832. Viseu: Verbo, 2002.

TORGAL, Luís Reis; ROQUE, João Lourenço. O Liberalismo. MATTOSO, José. História de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.

VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Colonial (1500 – 1808). Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

_________. Dicionário do Brasil Imperial (1822 – 1889). Rio de Janeiro: Objetiva, 2002.

_________________________________________________________________________

Notas

1 – Para maiores detalhes sobre a presença de portugueses no território oriental, ver: FREGA, Ana. Pertenencias e identidades en una zona de frontera. La región de Maldonado entre la revolución y la invasión lusitana (1816-1820). In: HEINZ, Flavio M.; HERRLEIN JR, Ronaldo. Histórias regionais do Cone Sul. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2003.

2 – Para maiores informações acerca do projeto de Carlota Joaquina tornar-se regente espanhola no lugar de Fernando VII, ver: AZEVEDO, Francisca L. Nogueira de. Carlota Joaquina na corte do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

3 – Maria Medianeira. Federalismo Gaúcho: fronteira platina, direito e revolução. Coleção brasiliana novos estudos, v. 3. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2001.

4 – DONGHI, Tulio Halperin. Historia Argentina de la Revolución de Independencia a la confederación rosista, volume III. Buenos Aires: Editorial Piados, 2000.

5 – Fundo Ministério dos Negócios Estrageros. Legajo 39. Revolução de Montevidéu. Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Apud: Archivo Artigas, Montevideo: Impremex S.A., 1948, p.2.

6 – "Três atas do cabildo de Montevidéu sobre a entrada ali de tropas portuguesas e posse dada ao general Lecor do governo da Praça e capitania". Localização: 07,4,062. Seção: Manuscrito. Biblioteca Nacional.

7 – La Gaceta de Buenos Ayres,nº48.28 de março de 1821. Acervo da Biblioteca Nacional de Buenos Aires.

8 – SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal: 1807 – 1832. Viseu: Verbo, 2002; BRANCATO, Braz Augusto Aquino. Don Pedro I de Brasil, posible rey de España (Una conspiración liberal). Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999; VARGUES, Isabel Nobre; RIBEIRO, Maria Manuela Tavares, Ideologias e práticas políticas. In: TORGAL, Luís Reis; ROQUE, João Lourenço. O Liberalismo. MATTOSO, José. História de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, 1998.

9 – SERRÃO, op.cit. NEVES, op.cit.

10 – BERBEL, op.cit. e SERRÃO, op.cit.

11 – La Gaceta… op.cit., nº48, p.222, 223 e 235.

12 – Idem.

13 – Idem.

14 – Idem.

15 – Silvestre Pinheiro Ferreira. "Memória e Cartas biográficas". Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1876-1877. Volume II, Rio de Janeiro, Tipografia G. Lenzinger & Filhos. 1877. Apud: DEVOTO, Juan E. Pivel. El Congreso Cisplatino (1821): repertorio documental, seleccionado y precedido de um análisis. Revista del Instituto Histórico y Geográfico del Uruguay, t.XII. Montevideo: 1937.

16 – ACTAS DEL CONGRESSO CISPLATINO. Montevidéu, 1821. Archivo General de la Nación, AGN.

17 – Idem.

18 – COSTA, Hipólito José da. Correio Braziliense, ou, Armazém literário, v.XXVII. (setembro de 1821). São Paulo: Imprensa Oficial do Estado; Brasília: Correio Brasiliense, 2002.

19 – Ofício de Silvestre Pinheiro Ferreira al Barón de la Laguna. Diciembre 22 de 1821. Apud: DEVOTO, op. cit.

20 – Idem.

21 – Sindico General de este Estado á todos los pueblos. Apud: DEVOTO, op.cit.

 

Conheça outros artigos acadêmicos disponíveis na Revista Tema Livre.

Leia entrevistas com historiadores de diversas instituições do Brasil e do exterior clicando aqui.

 

 

Voltar à edição nº 13

 

 

 

Secuestros y tráfico de esclavos en la frontera uruguaya: Estudio de casos posteriores a 1850

 

Artigo de Eduardo R. Palermo
Docente, Historiador. Mestre em História pela UPF – Passo Fundo, RS

Director del Centro de documentación histórica del Río de la Plata-Rivera- Uruguay

 

 

"Anteayer fue conducido a la cárcel de esta villa un pardo brasilero de nombre Sergio, peón contratado al estilo del Imperio, es decir para pagar su libertad, del estanciero Fermiano Cardozo. A propósito del contrato de ese peón, se nos viene a la mente la idea de cuando desaparecerá de nuestros protocolos internacionales ese infamante tratado que nos obliga a devolver los esclavos al Brasil, sino también admitir esos contratos en que aquellos infelices se obligan servir un largo número de años bajo el falso nombre de peones por un mísero salario que deben dejar en manos del señor para amortizar la cantidad en que se ha convenido la manumisión".1

Esta nota aparece publicada en un periódico de la villa de San Fructuoso de Tacuarembó, a escasos 100 kilómetros de la frontera uruguayo – brasilera en octubre de 1880. Por si sola derriba las afirmaciones en cuanto a la inexistencia de esclavos en territorio oriental con posterioridad a 1852. El caso es que en las zonas rurales y en menor grado en las villas y poblaciones cercanas a la frontera el fenómeno de la utilización de mano de obra servil, trabajadores esclavizados, continuaba existiendo en contraposición a las leyes uruguayas y a las afirmaciones de sus gobernantes.

Esto requiere algunas explicaciones previas. Los territorios fronterizos con Brasil estaban poblados mayoritariamente por propietarios de ese origen, desde 1821 en forma masiva, dada la práctica de repartos de tierras realizadas por el General Carlos Federico Lecor y seguida por Fructuoso Rivera durante los primeros años de la década de 1830. Durante la Revolución Farroupilha (1835-1845) muchos estancieros se refugiaron en los campos fronterizos uruguayos, adquiriendo nuevas estancias, trasladándose con sus ganados y esclavos.

En el período 1843-1851 todo el territorio uruguayo, excepto Montevideo, quedo bajo la dominación del Gobierno del Cerrito encabezado por Manuel Oribe, su política de prohibir la exportación de ganado en pie al Brasil (1848), el combate al contrabando de haciendas y la declaración efectiva de la abolición de la esclavitud en 1846, promovieron la reacción de muchos hacendados riograndenses sintiéndose afectados en sus intereses económicos, reclamando ante el gobierno Imperial acciones concretas.

Paralelamente desde 1846 se activó desde territorio riograndense la fuga de cautivos dada su consideración de libres en territorio oriental, no obstante, la mayoría de los trabajadores esclavizados "fujões" eran incorporados al ejército de línea y luego de un período de actuación, en principio de 5 años, se los consideraba libres.

Probablemente esas situaciones promovieron la intervención imperial en el Plata, conjuntamente con sus planes estratégicos de controlar el crecimiento del poder de Juan Manuel de Rosas y evitar una eventual guerra en gran escala. Su participación definió la victoria del Partido Colorado asediado en Montevideo desde 1843 y la posterior derrota de Rosas a manos de su antiguo aliado Urquiza. El enfrentamiento uruguayo culmina con la firma de los Tratados de 1851, impulsados en Río de Janeiro por el representante oriental Andrés Lamas. Los cinco tratados: Límites, Comercio y navegación, Alianza, Prestación de socorros y Extradición, representaron la conjunción de los intereses del Imperio con el de los estancieros riograndenses que desde 1850 reclamaban por las medidas adoptadas por Oribe.

Estos tratados acabaron creando las condiciones legales para que los hacendados riograndenses continuasen utilizando la región al norte del Río Negro como invernada de ganados destinados a los saladeros de Bagé, Pelotas y Jaguarao. Las excelentes pasturas y los precios accesibles de las tierras sumados a las garantías legales ahora respaldadas por el gobierno Imperial constituyeron un fuerte argumento para el retorno masivo de hacendados riograndenses. Las estancias en sus manos sumaban más de 1600 leguas cuadradas, es decir 4 millones de hectáreas, con una población estimada en 1 millón de bovinos.

El propio Lamas, creador de este afrentoso conjunto de tratados se lamentará de su creación reiteradas veces,

"los criadores riograndenses monopolizando el terreno sobre las líneas fronterizas monopolizan el ganado para alimentar los saladeros de su provincia, no solo por el hecho de la ocupación de la tierra, sino por los gastos, embarazos y trasbordos que con violación de los tratados se ha agobiado a los productos de los saladeros orientales. A estos establecimientos los han herido de muerte, los han arruinado, los extinguirán del todo si el presente estado de cosas no se modifica sustancialmente. Una extensa zona del territorio oriental fronterizo está convertida, exclusivamente, en criadero de ganado, de materia prima, para alimentar los saladeros riograndenses".2

Los números reflejan con claridad estas opiniones, en 1850-51 se exportaron 619 mil arrobas de charque, en 1851-52, 256 mil, en 1852-53 disminuyó a 231 mil y al año siguiente cayó aún más, 212 mil arrobas. La creciente industria saladeril oriental que unos años antes había crecido he incorporado tecnología estaba quebrada, condenada a muerte. En 1854-55 las exportaciones bajaron a 126 mil arrobas.3

En contrasentido las existencias de ganado de cría introducido desde RGS por propietarios brasileños a Uruguay superaba el medio millón de cabezas. Para el mismo período analizado, la exportación de charque de Río Grande se mantuvo en cifras muy importantes: 1851-1 millón 900 mil arrobas, en 1852 – 1 millón 493 mil arrobas, en 1853 – 1 millón 755 mil arrobas, en 1854 – 1 millón 400 mil arrobas.4 En otras palabras en 1851, mientras Río Grande exportaba 22 mil toneladas de charque, el Uruguay exportaba 7200 toneladas, en 1854 Río Grande exportaba 16 mil toneladas y nuestro país apenas 2400 toneladas. Este fue el efecto inmediato y devastador del tratado comercial.

Como corolario se firmó el Tratado de Extradición, el cuál esencialmente apuntaba a la recuperación de los esclavos refugiados en territorio oriental, lo cuál constituía una clara ilegalidad. Esto permitío la continuidad del fenómeno esclavista desde Río Grande hacia la región Norte especialmente, siendo una extensión de la producción ganadera y de la cría de ganados la reproducción de esclavos para luego ser vendidos en territorio brasileño, especialmente en Pelotas.

El bajo valor de las tierras, estimulo a los aventureros a convertirse en el Uruguay, en terratenientes por poco dinero. En estas tierras casi desiertas, se instalaron los nuevos propietarios con sus familias y sus esclavos. Los brasileños emigrados continuaban considerándose súbditos del Imperio e ignorando la legislación uruguaya, trasladando una esclavitud apenas disfrazada. En 1857, "estimava-se que os riograndenses possuíssem cerca de 30% do território oriental. Em meados do séc. XIX, o Uruguai estava convertido num imenso campo de engorda de gado para a indústria de charque brasileira. Convertido em invernada dos estancieiros riograndenses que necessitavam cada vez de mais terras, tendo em vista sua exploração extensiva, a fronteira norte da República Oriental, transformara-se em um apêndice econômico do Império." A tal punto llegó la situación que el Senador de São Paulo, Silva Ferraz, afirmará em 1859: "ao passar para o outro lado do Jaguarão senhores, o traje, o idioma, os costumes, as moedas, pesos e medidas, tudo, até a terra é brasileiro".5

Un censo de los propietarios brasileros en la frontera ordenado en 1850 por el gobierno imperial reveló la dimensión de la situación: frontera del Chuy, 35 hacendados con 342 leguas cuadradas, 154 propietarios en Cerro Largo y Treinta y Tres, en el distrito de Cerros Blancos 87 estancieros con 331 leguas, en Arapey grande y chico, cuchilla de Haedo y Cuareim 281 propietarios.6 La lista general de propietarios brasileros en la frontera revela la existencia de 1181 propietarios que sumaba 3403 leguas de campo, es decir 8 millones y medio de hectáreas pobladas que alimentaban los saladeros fronterizos. "En la hora actual, el Brasil, después de continuados y pacientes esfuerzos domina con sus súbditos, que son propietarios del suelo, casi todo el Norte de la República: en toda esa zona hasta el idioma nacional se ha perdido ya, puesto que es el portugués el que se habla con más generalidad." José Pedro Varela.7

El análisis de los datos estadísticos de 1880 en los departamentos de la frontera, Salto (incluye Artigas), Tacuarembó (incluye Rivera) y Cerro Largo (incluye Treinta y Tres) permiten afirmar que los propietarios extranjeros superan en número y valor de capitales a los nacionales. Dentro de ese sector los brasileños son los más numerosos con valores muy cercanos a los 26 millones de pesos. Adicionalmente en estos departamentos ocurre una alta concentración de los capitales norteños, ya que esa cifra representa el 70,15 % del total de los capitales brasileros en el país en ese año.

La frontera Norte, abrasilerada y comprometida por sinnúmeros de problemas entre los cuáles se destacan: la extranjerización de la tierra, el contrabando, la persistencia de formas semi serviles y aún serviles de trabajo, un alto índice de delincuencia y la permanente fricción entre las autoridades a resultas de los permanentes reclamos de los hacendados brasileros, dueños de la tierra, a lo que debemos sumar las profundas vinculaciones y alianzas políticas entre caudillos y partidos a ambos lados de la frontera, representaba uno de los principales obstáculos para crear la "unidad nacional" o más bien para consolidar el poder centralista del grupo agro exportador montevideano.

Este problema no puede ser situado en exclusiva en los propietarios brasileros, sino en la falta de poder real del Estado Oriental para hacer valer sus leyes y prerrogativas en su propio territorio.

LA PERMANENCIA DE FORMAS ESCLAVISTA

Andrés Lamas, promotor intelectual de los Tratados de 1851, en nota a Silva Paranhos, en Río de Janeiro, afirmaba en 1856 que los hacendados traen esclavos a territorio Oriental bajo contratos que a veces se extienden por 30 años, con ello convierten al esclavizado en colono y cuando conviene lo llevan al otro lado de la frontera, haciéndose costumbre que se los bautizara allí para que nazcan esclavos.

"Varios brasileros de los que ocupan la mejor parte del territorio oriental fronterizo han introducido notable número de personas de color para el servicio y manejo de sus establecimientos. Estas desgraciadas personas de color entran en la calidad ostensible de personas libres, ligadas al servicio del introductor por contratos de locación de servicios….En el momento en que por cualquier circunstancia le conviene al poseedor de la persona de color, le hace trasponer la frontera y transpuesta cae el mentiroso y audaz disfraz con que se ha burlado las leyes de la República y la desamparada víctima vuelve a asumir su pública condición de esclavos. Las infelices personas de color que se introducen en la República, a la sombra de fraudulentos contratos…no solo son tratados como esclavos…sino que sufren allí, en aquel territorio en que nadie puede ser esclavo, la última y peor desgracia de la esclavitud, la de que la madre se vea arrebatar el fruto de sus entrañas para que la marca del cautiverio destruya en el la condición de hombre…los hijos de las personas de color introducidas…son traídos al Río Grande y allí bautizados como nacidos de vientre esclavo. Muchas veces ni aun traídas son las míseras criaturas, las sustituyen por otras en las pilas bautismales o no las sustituyen siquiera y obtienen una falsa fé de bautismo.De esta manera en algunos establecimientos del Estado Oriental no solo existe de hecho la esclavitud sino que al lado del criadero de vacas se establece un pequeño criadero de esclavos".8

En las estancias ubicadas en los departamentos fronterizos, particularmente en Cerro Largo y en Tacuarembó donde predominaba el brasileño, la mano de obra podía considerarse esclava. Podía catalogarse de esclavitud encubierta bajo el genérico y amplio nombre de "contratos de trabajo" de 15 a 30 años de plazo.9

El cronista de un diario montevideano (1852) en viaje por los departamentos de la frontera comenta: "Entre varias cosas que han llamado mi atención me he fijado con especialidad en la desventaja en que se encuentran nuestros compatriotas dedicados a la cría de ganado, respecto de los hacendados Brasileros en la República. Mientras que uno de nuestros estancieros se ve obligado a pagar 10 o 12 pesos mensuales por el salario de un peón, los Brasileros tienen ese peón por el insignificante de 5 pesos; pues que traen sus negros contratados desde el Brasil, donde aprovechándose del ascendiente de amos, obligan a los infelices esclavos a celebrar un contrato en que carecen absolutamente de libertad".10

En los archivos de la curia en Tacuarembó ubicamos partidas de bautismo de 7 cautivos adultos procedentes de África, realizadas en 1850 y en agosto de 1852.11

La presencia de esclavizados aún figura en los bautismos de Tacuarembó en años posteriores y suponemos se extiende en el tiempo aunque la denominación de esclavo se sustituye por "moreno africano" o "negro", en 1866 encontramos el bautismo de Casimira, no dice que sus padres sean esclavizados, pero en el margen del acta el cura asentó, "Casimira, la esclava de Bálsamo".12

En el caso de la parroquia de San Eugenio del Cuareim (Artigas), predominan los bautismos y matrimonios de indígenas, prácticamente la palabra esclavo no se utiliza, en general se los denomina "negros", "morenos" o "africanos", luego "mulatos" o "pardos".

Interesa destacar que en 1860 se registra el matrimonio de José, 60 años, natural de la costa de África con Rita, afrodescendiente brasileña de 50 años, "ambos esclavos de Feliciano da Costa". Al margen el cura dispuso además "negros pobres". Este es uno de los pocos casos en que figura la palabra esclavo, los curas evidentemente no hacían uso de este término habida cuenta que legalmente desde 1846 no existía más la esclavitud, no obstante, cada tanto la fuerza de la costumbre permitía que emergiera la realidad.

Esa realidad social de la frontera contaba con el reconocimiento del parlamento, en la sesión del 26 de marzo de 1860, el diputado Vázquez Sagastume declaraba ilegales los contratos celebrados en el Brasil entre patrones y peones, sosteniendo: "informes que debo juzgar como muy exactos han hecho llenar a mi conocimiento, y es casi del dominio público, que la ciudadanía oriental se está extinguiendo en el Norte del Río Negro; que contra lo expreso de la Constitución de la República y lo establecido por la liberalidad de nuestras Leyes, la esclavatura es un hecho en algunas partes: que la mayor parte de los estableci-mientos de campo situados al Norte del Río Negro están servidos por brasileros; unos como esclavos, y otros esclavos con el nombre de peones, que vienen del Brasil por contratos que hacen registrar en alguna Oficina Pública. En esa localidad tan importante de la República, puede decirse que ya no hay Estado Oriental: los usos, costumbres, el idioma, el modo de ser, todo es brasilero: puede decirse, como continuación del Río Grande del Sud".13

En 1872 el Jefe Político de Tacuarembó recuerda a los comisarios de las diversas seccionales que "se prohíbe la entrega de esclavos fugados del Brasil" razón para creer que está era una práctica que se continuaba en el tiempo, y luego aconseja: "para evitar la costumbre inmoral de llevar negros libres de este Estado a esclavizarlos en el Brasil, se ordena a los comisarios de frontera apersonarse a los transeúntes que vayan acompañados de tales negros a fin de averiguar si lo hacen de libre y espontánea voluntad"14

Ese mismo año (1872) el Maestro director de la Escuela de varones de Rivera y secretario de la Junta Económica y Administrativa solicitaba por escrito al Jefe Político local la devolución de una cautiva fugada de Livramento ya que su amo era el Teniente Dinarte Correa un influyente militar, esto para evitar molestias y mantener las normas de buena convivencia entre las dos poblaciones. La esclava fue devuelta a su amo en la línea divisoria acompañada por un guardia civil.15

El diario El Siglo de Montevideo manifiesta en octubre de 1877, que en Tacuarembó fue comprada la libertad de esclavizados fugitivos del Brasil que desde hacia algún tiempo permanecían detenidos por la justicia a solicitud de su propietario, Desiderio Antúnez Maciel, estos eran Adán Martínez y Pedro Piriz. Cabe decir que Desiderio tenía sus campos en la zona de Vichadero, departamento de Rivera y él y varios familiares fueron denunciados por tener criaderos de cautivos en sus estancias.16

LOS CONTRATOS DE PEONAJE (1850-1860)

Resulta interesante profundizar aspectos de lo que estamos relatando con el análisis de los contratos de peonaje correspondientes al departamento de Cerro Largo. Estos contratos estipulados por ley son sin dudas una prolongación disfrazada de la esclavitud. No tenemos por que dudar de la voluntad positiva del legislador, pero queda claro que la frontera tiene sus propias normas de funcionamiento y las autoridades locales rara vez verificaron la información disponible y no se sorprendieron ante algunos contratos claramente vergonzosos como el de niños menores de 4 años por ejemplo.

Este documento se compone de 183 contratos realizados entre 1850 y 1860, 65 % de estos se concentran entre 1853 y 1856, la edad promedio es 25 años, los extremos etáreos son 66 años y 2 años, existe una marcada masculinización de los contratos, solo el 28 % son mujeres, su edad promedio es de 22 años, 25 % de los contratos femeninos figuran sin edad pero podemos inferir por los montos de los mismos que su edad es la del promedio o menor, el valor promedio es de $ 697.17

A los efectos de hacer inteligible el análisis del documento, hemos agrupado los datos siguiendo el criterio de establecer una escala de edades (de 1 a 9 años, de 10 a 17, de 18 a 24, de 25 a 29 y de 30 a 49 años), la duración promedio de los contratos y el monto estipulado de los mismos, con lo cuál lo resumimos en los siguientes aspectos:

– La mayoría de los contratos son de individuos en plenitud de su fuerza laboral (18 a 49 años) que representan el 64,5 % del total, mientras que púberes y adolescentes representan el 13 %. Un 18 % de los contratos figuran sin edad, pero podemos inferir que son individuos mayores de 18 años de acuerdo a los montos que se fijan.

– El promedio general de duración de los contratos fue de 17 años, el valor promedio de los mismos fue de 687 patacones, pero debemos señalar que estos promedios varían según los sectores etáreos:

De los 32 contratos sin determinar edad, los datos que se desprenden son: duración promedio de los contratos – 17 años y monto promedio 668 patacones. Entre los contratados figuran niños de 2, 3, 4 y 6 años, con plazos de 20 a 22 años de extensión, valorados en 1000 patacones, en cuanto a la finalización de los mismos los casos extremos se sitúan entre 1895 y 1900. En cuanto a los sexos, 29,5 % son mujeres, marcando así un claro predominio del sexo masculino.

Lamentablemente aún no sabemos si estos contratos fueron cumplidos en su totalidad, parece poco probable que la validez de los mismos se sustentara ante la justicia y pensamos se hayan extinguido con el cambio de residencia o la muerte del contratante.

A modo de ejemplo transcribimos uno de los contratos, correspondiente a un propietario riograndense con campos en Vichadero, actual departamento de Rivera: "Bagé 25 de Noviembre de 1852: Digo eu João Borges, que entre os meus bens que possuo livres desempedidos ha bem assim hum escravo crioulo de nome Jose, de idade de vinte annos, profissão campeiro com o qual tenho contratado darlhe sua liberdade como esta o face para que delha gose desde ja como se livre nasceu, este faso pela quantia de quinhentos patacões em prata en que foi judicialmente avaliado, ficando o mesmo obrigado a satisfaserme esta quantia de 500 patacões no prazo de dez annos a contar de hoje em servisos pessoais por ele prestados como peão de fazenda que posuo no Estado Oriental do Uruguai em lugar denominado Vigiadeiro a razão de cinqüenta patacões annuais, obrigandome a darlhe vestiario e comida a minha conta. E pelo mencionado crioulo Jose foi dito que aseitava a liberdade que lhe foi conferida com as condições assinadas e que também se obriga a não abandonar o serviço que seu Patrão em quanto não ouver satisfeito pela forma que fica declarada a importância por que foi liberto, e que no caso de abandono de serviço se seguira huma multa de cem patacões alem da constituição imediata da quantia correspondente ao tempo que faltar para o completo do prazo estipulado. Para firmeza e segurança de todo empedido de pessoa o presente em duplicata para serem entregues a cada hum dos interessados que abaixo assignao, a saber arrogo do crioulo Jose por não saber escrever o faz Francisco Jose Ferrerira Camlay na presença das duas testemunhas abaixo firmadas. Villa de Bage, 24 de novembro de 1852."18

De la lectura de este contrato se desprende que la relación entre el plazo y el monto del mismo es abusivo, 50 patacones por año, vale decir $ 4,16 por mes, casi un tercio del salario de un peón libre, o el equivalente a una vaca por mes. En 1859 el departamento de Tacuarembó registraba más de un millón de cabezas bovinas y en comparación, los salarios que se pagaban a los peones camperos en el Uruguay oscilaban entre 10 y 12 pesos mensuales.19

Estos contratos de peonaje fueron discutidos y condenados en el parlamento uruguayo por representar una forma encubierta de esclavitud. El presidente Bernardo Berro, denunció la cláusula del tratado de Comercio y prohibió la celebración de contratos de trabajo por más de 6 años. El 11 de noviembre de 1861, el Ministro de Gobierno Enrique de Arrascaeta envió a los jefes políticos de los departamentos fronterizos una orden por la cual: "No procederá V. S. a registrar contrato alguno por servicio personal con colonos de color introducidos del Brasil, sin serle antes presentada por el colono la carta de libertad que justifique su condición de hombre libre. Los peones deberán ser traídos a la presencia de V. S. y les hará saber que en la República no hay esclavos, y que ellos como los demás habitantes son completamente libres sin otra obligación para con su patrón que las que se imponen por el contrato. Los contratos entre los patrones y los peones de color no podrán exceder del plazo de 6 años".20

El proyecto de ley fue tratado en Comisión de Legislación y sufrió modificaciones, aunque finalmente no fue aprobado. Es interesante notar que ante la constatación de las denuncias de esclavitud disfrazada y de pérdida de soberanía en la zona de frontera, "al Norte del Río Negro, puede decirse que no hay Estado Oriental, los usos, las costumbres, el idioma, el modo de ser, todo es brasilero" decía Vázquez Sagastume, las modificaciones propuestas fueron reducir el plazo de los contratos a 10 años y "2ª) Que el salario por el servicio personal a que se refieran no sea menor de ocho pesos mensuales"21. Observamos que esta modificación representa un aumento del 100 % en el salario de los contratos de peonaje para el caso citado anteriormente.

Parece claro que la vigencia de los derechos personales asegurados por la ley de abolición de 1846, que involucraba a toda persona sometida a esclavitud en territorio nacional, no era tomada en cuenta por los legisladores. El problema radicaba en la frontera y el Estado Oriental carecía de una política de fronteras, pero además las vinculaciones políticas entre Estado Imperial y fuerzas políticas orientales triunfantes en la Guerra Grande (Divisa Colorada) operaban como justificativa en algunos sectores para no afectar los intereses de los propietarios brasileros.

El presidente Berro en 1862, en el marco de la desbrasilerización de la frontera, decreta la nulidad de los contratos de peonaje, limita a 6 años los existentes y prohíbe en lo sucesivo admitir nuevos contratos. Junto a la denuncia del Tratado de Comercio de 1851 este aspecto terminó provocando la airada protesta de los hacendados fronterizos y promovió la reacción armada del General Venancio Flores (Colorado) quien aprovecha los resentimientos de los hacendados para derrocar al gobierno.

Los sucesos políticos de 1863-1865 y las vinculaciones del gobierno uruguayo de Flores con los países vecinos en la guerra del Paraguay y subsecuentes procesos revolucionarios internos hicieron que las medidas anteriores tuvieran una aplicación incierta, especialmente en la región de frontera donde el tema estaba más difundido. El triunfo de Flores en la guerra civil determinó la anulación de las medidas de Berro y un retorno al status quo anterior en relación a estos temas.

Adicionalmente es importante remarcar que a partir de los Tratados de 1851 la Justicia oriental se enfrentó a un problema de difícil resolución, decidir en que casos los esclavos huídos de Brasil y reclamados por sus amos o por la Cancillería Imperial podría ser devueltos. Si bien este tema no es el central de nuestra exposición, del estudio de dichos expedientes hemos obtenidos datos valiosos sobre las complejas relaciones políticas tanto en la frontera como a nivel de los poderes políticos. La documentación es muy numerosa y sumada a la vinculada a los robos y secuestros nos permiten tener una visión de conjunto de la situación vivida entre 1852 y 1880 en los territorios fronterizos.

SECUESTROS Y TRAFICO SUBREGIONAL

En julio de 1854 el representante diplomático oriental en Río de Janeiro, Andrés Lamas, dirige una nota de reclamo al gobierno Imperial por el secuestro de 9 personas negras en Tacuarembó, el hecho ocurrió: "en la noche del 14 de abril ppdo., una gavilla compuesta de once hombres capitaneados por el brasilero Fermiano José de Mello asaltó diversas casas en las inmediaciones de aquella villa y arrebató de ellas a varias personas de color con el objeto presumido de reducirlas a esclavitud en el territorio brasilero para donde las condujo".22

Esa "gavilla" compuesta de 11 hombres entre quienes se reconoció además a "Emilio, hijo de la viuda Brígida que vive sobre la costa del Tacuarembó chico (por lo tanto vecino del pueblo) y a un indio a quien nombran Yuca Tatú", secuestró a: Antonio Tavares, negro libre desde 1836, "propietario de una chacra, donde vivía y desde donde fue secuestrado, intentó resistir el ataque y fue herido en la cabeza con un golpe de sable", Manuel, negro libre desde 1845, Juana, negra libre desde 1845, los negros Antonio y José, el negro Evaristo Borrego que servia en la infantería de Tacuarembó, dos negras de nombre Juana y Laureana, Antonio Piñeiro y su mujer María los cuales fueron liberados por su avanzada edad 70 y 60 años respectivamente. La denuncia del secuestro fue registrada ante el Delegado de Policía de Bagé hacia donde se habría dirigido el grupo.

Hemos estudiado al menos 30 expedientes completos, que representan el 50 % de las denuncias y de las cuáles han permanecido registros, ya que en muchos casos el expediente sustanciado no existe en los archivos consultados sino solamente la carátula del mismo, lo que nos permite pensar que la cifra podría elevarse sustancialmente. De este estudio que complementamos con datos provenientes de otras fuentes documentales podemos inducir que el secuestro de ciudadanos orientales, afrodescendientes libres y de esclavos huidos del territorio de Brasil fue una práctica constante en la frontera oriental complementada con otras estrategias también denunciadas como el bautismo en ciudades riograndenses de niños nacidos en territorio oriental, hijos de esclavos en su mayoría, para mantener así su condición de tal.

En noviembre 1854 Lamas denuncia a un hacendado fronterizo y al cura de Santa Ana do Livramento por "haber sido raptadas 5 criaturas nacidas de vientre libre en el Estado Oriental y bautizadas como esclavas" en dicha villa el 4 de agosto de 1854. El Capitán Chagas, brasilero, propietario de estancias y esclavos de este lado de la frontera, hizo que el padre Joaquín Ferreira los bautizara en su casa y luego se trasladaron a Livramento donde se realizó el registro correspondiente en el libro parroquial, con lo cuál pasaron a condición de esclavos. El Presidente de la Provincia de RGS, condena el acto y reconoce: "proceder com todo o rigor da Lei, não só contra aqueles indivíduos que fossem ao Estado Oriental raptar gente de cor, para os introduzir nesta Província como escravos, mas também contra os que roubassem crianças de ventre livre para nas freguesias da fronteira os batizarem como cativos e bem assim contra os padres que ministrassem esse sacramento".23 24

Estas situaciones ocurren especialmente a partir de 1852, concomitantes con el fin del tráfico esclavista transatlántico y que acarreará una fuerte demanda de mano de obra servil y el consecuente tráfico ilegal, tanto para los saladeros fronterizos en Río Grande del Sur como para el desarrollo de la cafeicultura en Río de Janeiro y San Pablo.

Maestri25 indica con respecto a la dotación de esclavos de Pelotas durante la Revolución Farroupilha, que la misma cayó a poco menos de 31 mil hacia 1846, una disminución de 9 mil esclavos que sin dudas afectó el potencial productivo de la zona. Culminada la guerra se realizan compras masivas a tal punto que en 1858 el número de "cativos" alcanza los 72 mil, buena parte de los mismos adquiridos en el marco del tráfico ilegal. "Nos anos 1845-52 enquanto se extenguia a escravidao no Uruguay, o contrabando de cativos de criadores sulinos e uruguayos, desde os departamentos setentrionais daquele pais, para o Rio Grande do Sul contribui certamente para a a elevaçao da populaçao cativa sul riograndense".

Este número elevado de esclavizados permitió la singularidad de que esta Provincia "tornou-se, possivelmente, importante exportador de cativos". Este autor sostiene que si después de 1850, Rio Grande do Sul, exportó esclavos y paralelamente se mantuvo el crecimiento de dicha población hasta 1880, "restaria a única hipótese de a expansão pelo crescimento natural…acrecida…pelo contrabando de cativos afro-uruguaios, ou homens livres uruguaios de origem africana".

Efectivamente muchas de las denuncias permiten comprobar las afirmaciones de Maestri a la vez que rastrear los caminos del tráfico subregional y el destino de los infelices secuestrados que culminan en Río de Janeiro o en lugares más lejanos.

En agosto de 1866 solicita el apoyo de la Legación Oriental en Río, el afrodescendiente Matías Correa, declarando que "fue esclavo del brasilero Juan Correa y trabajaba en la estancia de la costa de San Luis propiedad de dicho Correa y hoy de sus herederos. Quedó libre después de 1842, y aunque trabajo como peón en la dicha estancia algún tiempo mas, vino después como libre que era a trabajar por su cuenta en la villa de Rocha. En esa villa se casó con Donata Barrios, liberta…Vivía en un rancho… De allí fue tomado con otro compañero llamado Juan Correa por los años de 1856 o 1857… y a pesar de sus reclamaciones y de las suplicas… los condujeron a la frontera del Chuy y de alli al Río Grande donde los entregaron a Manuel Correa, hijo de su antiguo amo, quien lo recibió y los trato como esclavos. Como esclavos el dicho Correa los mando vender a Río de Janeiro, donde sin embargo de haber declarado siempre que era libre fue vendido como esclavo y ha vivido y se encuentra en esclavitud."26

En la medida que las denuncias alcanzaban un grado importante de detalles los traficantes con el auxilio de las autoridades políticas y policiales locales obtenían documentos, reputados como falsos por la representación diplomática oriental, con la cual trasladaban "su mercancía" a otras regiones. Tal es el caso de "la negra Gregoria, oriental, libre, de 14 años, vendida como esclava en Río Grande y de allí enviada a Río de Janeiro con el nombre de María Tomasa". Según la denuncia "el 17 de setiembre de 1857 a las 2 y media de la mañana Gregoria fue secuestrada de su casa por el capitán Joaquin Jose Mollina, llevada a Jaguarão y de allí a Rio Grande donde la vendió como su esclava" y se la remitió a Río de Janeiro con el nombre de Maria Tomasa. Se solicita su captura allí, ocurrido esto, la justicia ordena que sea devuelta a su amo por ser esclava y su propietario exhibir los documentos correspondientes. El gobierno Brasilero responde que a instancia de la información que poseen, Maria Tomasa no es oriental y es esclava.27 28

El gobierno Imperial no podía ser omiso ante el número elevado de denuncias que le hacia llegar la cancillería, no obstante las demoras en las respuestas, finalmente se terminaba reconociendo la existencia de tales hechos delictivos.

"Estatística relativa ao decennio de 1ero de Janeiro de 1857 ao ultimo de Dezembro de 1866 das pessoas livres que foram arrebatadas do Estado Oriental e reduzidas a injusto cautiverio no território desta Província".
Sigue la lista de personas:
 
    Nombres Naturalidade Residencia
Leonor, preta e seus filhos María e Honorato Estado Oriental Alegrete
 Adao, preto  Estado Oriental  Pelotas
 Francisca, preta e seus tres filhos  Estado Oriental  Pelotas
 Liborio, pardo  Estado Oriental  Pelotas
 Valerio, pardo  Estado Oriental  Pelotas
 Faustino Rodríguez, pardo  Estado Oriental  Pelotas
 Francisco, pardo  Estado Oriental  Pelotas
 Jose Maria, preto  Estado Oriental  Pelotas
 Hilario, pardo  Estado Oriental  Conceiçao do Arroio
 Claudina, parda  Estado Oriental  Bage
 Rosaura, preta e seus tres filhos  Estado Oriental  Bage
 Reina Rodríguez e seu filho Pancho  Estado Oriental  Sao Leopoldo29

 

Varios documentos como el antes citado se repiten en años posteriores y van confirmando la existencia de una persistente acción de secuestros y ventas ilegales de personas, los números en los registros son de algunas decenas, pero ello permite suponer que se elevaría a cientos los casos totales, ya que solamente aquellos denunciados o reconocidos por las autoridades diplomáticas o provinciales llegaron hasta nosotros.

Las denuncias también nos permites reconstruir la secuencia de los "negocios de tráfico con carne humana". El caso del afrodescendiente Juan Vicente es indicativo de este procedimiento. Nacido en Cerro Largo de vientre libre, sirvió como soldado en el ejercito oriental al mando del capitán Zoilo Gutierrez, hallándose como policía en Mansavillagra fue capturado por una partida del ejercito brasilero que evacuaba el territorio nacional en 1852 y conducido por el capitán Oroño a una casa situada a 5 leguas de Jaguarao. En esta casa lo tuvieron con grillos algunos meses obligándolo por medio de frecuentes castigos a aprender portugués, lo que nunca lograron completamente por que lo resistió .Después lo llevaron a Pelotas donde no pudieron venderlo por que era notoriamente oriental, de allí lo trasladaron a Río Grande donde obtuvieron un pasaporte de esclavo con el cual lo trasladaron a Río de Janeiro y lo pusieron a la venta en la Rua da Quitanda. En esa circunstancia y junto a otros cautivos allí depositados la policía realizo un allanamiento y se exigió que presentaran los pasaportes, lo cual no quiso cumplir el dueño de Juan Vicente y lo escondió en el almacén de tabacos de la Rua de San Pedro, vuelto luego al lugar la venta se demoró por que para sacarlo de Río debía pasar por la inspección policial. Finalmente fue vendido a Joao José Riveiro Silva quien lo llevó a su chacra no Caminho Velho do Botafogo, de donde se fugo para refugiarse en la Legación Oriental. El procedimiento de secuestro y su legalización como esclavizado lo cumplió haciendo el circuito Jaguarão, Pelotas, Río Grande y Río de Janeiro.30

Este trayecto se repite muchas veces en las denuncias, del territorio oriental a Bagé, Alegrete, Jaguarão, Camaqua y otras poblaciones para luego ser trasladados en algún momento a Pelotas donde eran negociados.

La cancillería denuncia el secuestro, en la noche del 20 de abril de 1858 de una afrodescendiente oriental, Emilia de 20 a 30 años con sus dos hijos menores siendo trasladados al Jaguarão. Allí el principal responsable de estos crímenes es un anciano de nombre Terra que la vendió como esclavizada por 600 patacones. Este tráfico era común y reconocido públicamente en Jaguarão. Denunciado el hecho ante la policía de aquel lugar Emilia desapareció enseguida, siendo vendida en Pelotas y de allí trasladada a Río Grande y luego a Río de Janeiro "este nuevo crimen de los traficantes de carne humana y esta nueva tolerancia con que las autoridades alientan este odioso tráfico en la Provincia de Río Grande del Sur….es intolerable por las autoridades de la República Oriental"31

El Cónsul oriental en Pelotas denuncia la esclavización de Petrona, afro-oriental libre y su hijo por Federico de Freitas. Días después de la denuncia, la misma y su hijo desaparecen. "Petrona fue llevada a la ciudad de RG en el vapor Especulación, allí fue depositada ocultamente en el almacén de Fco. Manuel Barboza, …de allí fue sacada de noche y embarcada en el patacho Cyro, que la llevó a bordo de bergantín Ligeiro que estaba a salir para este puerto de Río de Janeiro y en el que quedó embarcada clandestinamente". Denunciada esta situación ante el jefe de policía de Río Grande este ordena el rescate de Petrona y su hijo. Pero el jefe de policía de Pelotas, Alejandro Viera da Cunha en vez de detener al traficante cuando se realiza la denuncia, le expidió un pasaporte para embarcarla como esclava hacia Río de Janeiro "que esta siendo el lugar en que se obtiene mayor provecho y seguridad para el fruto maldito de esos nefandos crímenes. Ved ahí un ejemplo nuevo del espíritu, por regla general inspira a las autoridades locales en las reclamaciones sobre personas de color".32

Petrona finalmente será embarcada a Río de Janeiro, pues el documento expedido en Pelotas por el Jefe de Policía la hace figurar con otro nombre. Este será un recurso frecuente para legalizar los secuestros.

El apoyo de las autoridades brasileras era explícito y con pretendidos fundamentos legales, así ocurrió en el caso de Joaquín, quien solicita protección del vicecónsul oriental allí aduciendo que es oriental y libre, para lo cual presentó 3 testigos. El subdelegado de Pelotas desconoció este procedimiento basado en el artículo 75, numeral 2 del código de proceso criminal que dice "no se admite denuncia del esclavo contra su señor".33

En algunos casos las propias autoridades estaban involucradas en la compra – venta de los secuestrados. Son varios los casos donde los secuestradores y negociantes son autoridades policiales o militares. Tal es el caso denunciado el 13 de enero de 1857 fue asaltada la casa de Justo Costa en el arroyo Monzón por dos brasileros secuestraron a José Rodríguez empleado de Costa y se lo llevaron amarrado, en el camino asaltaron otra casa y se llevaron otro negro a la frontera del Jaguarão. El segundo secuestrado fue entregado en dicho lugar a Luis de Farías Santos quien le pago 12 onzas de oro. José Rodríguez fue vendido a Jerónimo Viera Costa, delegado de policía de Jaguarão. "Este Sr. Delegado de policía, que a lo que parece negocia con carne humana, lo vendió a la ciudad de Río Grande consignado al comerciante portugués Joao Agostinho da Silva, el cual lo embarcó hacia Río de Janeiro." En Jaguarão existe 1 hombre llamado Manoca Diogo, "que estaba tomando a comisión el robo de negros en el Estado oriental mediante porcentaje". Con fecha 19 de mayo de 1857 se le contesta a Lamas que fueron citados los negociantes de esclavos Cordeiro, Baptista, Antonio da Rocha e Souza y Tinoco Medeiros con quienes no pudo aclararse nada sobre el esclavo vendido ya que no se poseían señas ni ficha de esa persona. Lamas responde que Viera da Costa lo compro el 17 de enero de 1858 en Jaguarao, lo embarco el 18 en el vapor especulación para Río Grande y días después fue enviado a Río de Janeiro.34

Los detalles de cómo se realizaron los negocios revelan que los mismos era llevados adelante sin mayores discreciones, en verdad se trataba de una comercialización legal en territorio brasileño. Para la cancillería oriental y los viceconsulados no era tarea simple llevar adelante las denuncias, en muchos casos las mismas carecen de señas particulares de los afectados, pero en compensación hay lujos de detalles sobre la forma y características del transporte y venta de los afrodescendientes. Estos detalles permitieron que algunas de las denuncias no pudieran ser dejadas de lado y fueron efectivamente reconocidas como secuestros reales y comercio ilegal.

La existencia legal de los contratos de trabajo en territorio oriental, más allá de las condenaciones políticas, dificultaba los reclamos sobre el tráfico de esclavos. Aún en 1866, Lamas afirmaba: "los hombres de color introducidos en territorio oriental para el servicio de los establecimientos que posee los brasileros en este territorio son considerados esclavos en RGS, aún en los casos en que fueron introducidos por medio de contratos registrados en los vice consulados de la republica y que en consecuencia, desde que los dichos hombres de color vuelven a ser traídos a la provincia de RGS, lo que se verifica sin dificultad, vuelven a su anterior condición de esclavos y siendo tratados como tal se venden, se compran e incluyen como cosa en los inventarios y particiones de herencias".35

Especialmente en los departamentos fronterizos las relaciones políticas y el poder económico de los hacendados riograndeses hacían que las autoridades locales no adoptaran las medidas ajustadas a la legislación vigente. Por otra parte la realidad social de la época marcaba una clara diferencia entre los aspectos jurídicos y la aplicación de las órdenes emanadas desde el Gobierno nacional, órdenes que muchas veces demostraban una ambigüedad tal que ambientaba la interpretación más o menos libre de las leyes por los poderes locales. Tal es el caso del Jefe Político de Cerro Largo en 1853, quién constata que: "existen en algunas estancias de Brasileros porción de esclavos introducidos furtivamente, en el territorio de la República que en virtud del tenor espreso de la circular espedida por orden del Gobierno Imperial publicada por la presidencia del Rio Grande fecha 7 de Agosto de 1852 y comunicada a esta Jefatura en 15 de Octubre del mismo por el ministerio de V.E deben quedar manumitido dichos esclavos según el espíritu de nuestras leyes y la prevención espresa del Gobierno Imperial a sus súbditos. Considero de mi deber dar este paso y llevar a efecto la manumisión de estos siervos pero reflexionando sobre el estado de nuestra política con el Imperio por la suspensión de el deslinde del territorio, y deseoso de no crear embarazo al Gobierno pido una resolución que me sirva de regla en este caso".36

La respuesta del Ministerio de Gobierno establece, "Contéstese con la instrucción acordada". Cuál era dicha instrucción, "respecto de los contratos con que son introducidos al territorio de la República, las gentes de color en calidad de peones de Brasileros; ha resuelto se diga a V.E. que en aquellos contratos, la única intervención que debe tener la autoridad, es asegurarse de la libre voluntad de los contratantes, sin entrar a avalorar la conveniencia que forma siempre la materia de los contratos entre personas libres"37

Lo acordado era en definitiva respetar los contratos realizados en Brasil entre patrones y esclavizados, respetándolos en la medida que se debe reconocer el acto voluntario entre hombres libres. Realmente la respuesta es paradojal ya que considera al esclavo como hombre libre por la firma de un contrato que llevaba por tal una cruz o el dedo pulgar del infeliz. ¿Qué otra opción restaba al esclavo que aceptar lo que se imponía?

Los compromisos asumidos por el Estado a partir del Tratado de Extradición impusieron una situación de difícil explicación, por un lado se reclaman las personas secuestradas, se pide considere el gobierno brasileño libres a todos los esclavos introducidos a territorio oriental por medio de contratos de trabajo, se acusa que dichos contratos son una forma de esclavitud disfrazada pero no se derogan los mismos, salvo en el gobierno de Berro, adoptando una postura de respeto a los tratados internacionales que se transforma en temor y connivencia con el gobierno imperial.

En 1874 en Memorando elevado al gobierno imperial con motivo de rectificar el Tratado de extradición de 1851 Carlos María Ramírez dice: "no pueden sostenerse más las cláusulas relativas a la extradición de esclavos ya que las mismas está fuera de todo principio de derecho internacional. Las naciones que recibieron del pasado la pesada herencia esclavista no pueden imponerla a aquellos países que no tienen este problema" – "no puede reconocerse como delito la fuga del esclavo, es ocioso demostrar que el delito legal del esclavo fugitivo no se encuentra en esas indeclinables condiciones, ¿se justifica entonces la extradición de esclavos como observación de los deberes generales de buena vecindad?, esa es una de las razones que más pesaron en la celebración de las estipulaciones vigentes".38

Afirmaciones esas que la vida cotidiana de las ciudades de frontera se encargaban de transformar, tal como citáramos anteriormente con el caso de la joven cautiva refugiada en Rivera y que a instancias del Maestro de la escuela fuese devuelta a su propietario para mantener las relaciones cordiales entre ambas ciudades.

En un territorio donde la frontera seca es extensa y los cursos de agua fronterizos no son un impedimento mayor para su paso, el tránsito de la mano de obra en general, la servil en particular, los ganados y bienes, fue intenso a partir de la segunda década del siglo 19.

Particularmente después de 1851, con los Tratados firmados, se hizo muy difícil controlar el contrabando, robos y secuestros donde estaban involucrados hacendados y autoridades de ambos lados de la línea divisoria. Paralelamente esta frontera estaba sometida a constantes desmanes por parte de las tropas de línea brasileras y los salteadores que reiteradamente usaban inteligentemente la frontera para refugiarse luego de sus delitos.

El libre tránsito y la escasa consolidación de los poderes nacionales del Estado, a uno y otro lado, hizo de estos territorios el escenario propicio para que los jefes militares y políticos, erigidos en caudillos rurales, omnipotentes por la posesión de las armas, detentaran el poder y lo utilizaran a su real saber y entender.

Las ventajas comparativas de la utilización de mano de obra esclava en las haciendas fronterizas donde obtener trabajadores asalariados era difícil y caro, empezó a declinar en la medida que el Estado nacional comenzó su proceso de centralización y concentración del poder entorno a la burguesía montevideana y con la dictadura militar desde la mitad de la década de 1870 hasta finales del siglo 19. El código rural, el alambramiento de los campos, la policía rural armada con Remington y la cárcel para los que no pudieran demostrar que tenían trabajo fijo, presionó fuertemente para establecer mano de obra asalariada.

El cercamiento de los campos promovió la expulsión de los ocupantes de la tierra sin título y de los pequeños propietarios que se transformaron en asalariados rurales en competencia por acceder a un empleo, esto determinó en parte la baja de los salarios altos de otrora y la pérdida de las ventajas comparativas del esclavo. Este proceso en la frontera fue lento y no implicó la desaparición de los contratos de peonajes en forma inmediata, pero promovió el trabajo asalariado.

_________________________________________________________________________

Notas

1 – El Norte – 10/10/1880 – Tacuarembó, Biblioteca Nacional. (BN). Montevideo.

2 – Barrán, José y Nahum, Benjamín. Historia rural del Uruguay moderno. Montevideo, Banda Oriental, 1967, p.51 – V.1.

3 – Barrán – Nahum. Historia rural del Uruguay moderno. Ob.cit. p.20.

4 – Una arroba equivale aproximadamente a 11 quilos 500 gramos.

5 – Bleil, S., Pereira Prado,F. "Brasileiros na fronteira uruguaia: economia e política no século XIX". En: Simposio Fronteras en el espacio platino. 2das.jornadas de Historia económica. Montevideo, Udelar, 1999. Edición en Cd.

6 – Da Costa Franco, Sergio. Gentes e coisas da fronteira sul. Ensayos históricos. Porto Alegre. Sulina. 2001.

7 – Varela, José Pedro. La Legislación escolar. 2da. Edición. Montevideo, Imp. El Siglo Ilustrado, 1910, p.137.

8 – AGN. Ex. AGA. Relaciones Exteriores. Caja 102.Carpeta 124 A. pp.1 a 5.

9 – Barrán – Nahum. Historia rural del Uruguay moderno. Ob.cit. p.36.

10 – Diario La Constitución, 29 de diciembre de 1852. Nº 146. Biblioteca Nacional.

11 – Archivo parroquial de Tacuarembó. Libro de bautismo. 1850-1852.

12 – Archivo parroquial de Tacuarembó.Libro de bautismos, 1866, acta 754.

13 – Citado en: Barrán – Nahum, Historia rural del Uruguay moderno, Ob.cit. pp.87.

14 – AGN. Jefatura Politica de Tacuarembó. 1872.

15 – AGN. Actas de la Comisión Auxiliar de Rivera. 1866 – 1883.

16 – Diario El Siglo, 20 de octubre de 1877. Biblioteca Nacional.

17 – Museo Histórico Nacional. Archivo del Coronel José Gabriel Palomeque. Tomo III. 1862. Cf. Palermo, Eduardo. (2005) "Vecindad, frontera y esclavitud en el norte uruguayo y sur de Brasil" En: Memorias del simposio La ruta del esclavo en el Río de la Plata, p.93 a 115. Montevideo,UNESCO, 2005. Cf. Borucki, Alex, Chagas, K y Stalla, N. Esclavitud y trabajo entre la guerra y la paz. Una aproximación al estudio de los morenos y pardos en la frontera del Estado oriental (1835 – 1855). Montevideo, Pulmón, 2004.

18 – Archivo General de la Nación. Montevideo. Fondo AGA. Caja 1003 – 1852 – hoja 2.

19 – Barrán, Nahum. Historia rural del Uruguay moderno. Ob. Cit. Apéndice documental. p.332.

20 – Barrán ; Nahum. Historia rural del Uruguay moderno. Ob.cit. p.36.

21 – Barrán y Nahum. Historia rural del Uruguay moderno. Ob.cit. p.87.

22 – AGN. Caja 106. Exp. 35 – Nota de Andrés Lamas a Antonio Paulino Limpo de Abreu. Río de Janeiro. 4 de julio de 1854.

23 – AGN. Caja 106. Exp. 72- Nota de Andrés Lamas a Antonio Paulino Limpo de Abreu. Río de Janeiro.19 de enero de 1855.

24 – AGN. Caja 106. Exp. 72- Copia 49 de Nota del Presidente de Rio Grande del Sur, Joao Lins Vieira Cansansao do Sinimbú a Antonio Paulino Limpo de Abreu. Porto Alegre.12 de dezembro de 1854.

25 – Maestri, Mario. Deus e grande o mato e maior. Passo Fundo, UPF, pp.153 a 167.

26 – AGN. Caja 107. Exp. 289- Nota de Andrés Lamas al Ministro de Relaciones Exteriores de Uruguay, Alberto Flangini. Río de Janeiro.20 de agosto de 1866.

27 – AGN. Caja 89. Exp. 163- Nota del Vizconde de Maranguape al Sr. Andrés Lamas. Río de Janeiro, 22 de julio de 1858.

28 – AGN. Caja 89. Exp. 163- Nota de Andrés Lamas al Consejero Vizconde de Maranguape. Río de Janeiro.31 de agosto de 1858.

29 – AGN. Caja 129- Expediente 427.Secretaria de Governo em Porto Alegre, 24 de julio de 1867.

30 – AGN. Caja 106- Expediente 58. 24 de setiembre de 1854.

31 – AGN. Caja 89 – Expediente 182. 31 de agosto de 1858.

32 – AGN. Caja 89 – Expediente 185. 4 de octubre de 1858.

33 – AGN. Caja 89 – Expediente 187. 4 de octubre de 1858.

34 – AGN. Caja 102 – Expediente 128. 11 de abril de 1858.

35 – AGN. Caja 107. Expediente 315. Nota de Lamas a Flangini. 27 de setiembre de 1866.

36 – AGN. AGA. Caja 1004. hoja 2. Febrero 24 de 1853.

37 – AGN- AGA. Caja 1004. Nota al Jefe Político de Cerro Largo. 14 de marzo de 1853.

38 – AGN- Caja 101. Expediente 370. 29 de mayo de 1874.

 

 

Conheça outros artigos acadêmicos disponíveis na Revista Tema Livre.

 

 

Leia entrevistas com historiadores de diversas instituições do Brasil e do exterior clicando aqui.

 

 

Voltar à edição nº 13