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Coração de D. Pedro chega ao Brasil

Niterói, 21 de agosto de 2022

Da redação

Imagem do coração de D. Pedro I

Em função dos 200 anos da independência brasileira, o coração do primeiro imperador do Brasil chegará ao país amanhã. A relíquia estava no Porto desde a década de 1830, seguindo o pedido de D. Pedro, que faleceu em Queluz (nas proximidades de Lisboa), em 1834, mas que queria que o seu coração estivesse na cidade situada no norte de Portugal.
Pela fragilidade do material, especialistas criticam o seu translado até o Brasil. Há, por exemplo, o risco do órgão ser dissolvido. Além disso, qualquer descuido envolvendo a temperatura ou a pressurização da aeronave da Força Area Brasileira (FAB) que trará o coração poderá gerar grave avaria.  No entanto, a câmara municipal do Porto votou favoravelmente ao pedido brasileiro, que pediu a vinda do órgão, que chegará a Brasília em voo da FAB amanhã (22/8) e, na terça (23), estará em solenidade no Palácio do Planalto. O coração ficará exposto no Itamaraty e, no dia 8 de setembro, retornará a Portugal.

 

Restos mortais de D. Pedro
Essa não é a primeira vez que os restos mortais do imperador brasileiro e rei português são utilizados em celebrações atreladas à Independência. Em 1972, no sesquicentenário, o governo Médice trouxe parte da ossada de D. Pedro. Os restos mortais foram expostos em várias cidades brasileiras, até serem depositados no Monumento da Independência, em São Paulo. Agora, no bicentenário, o coração ficará apenas em Brasília. 

 

 

Conhecimento e cultura 

Arte da série de lives da revistatemalivre.com

No ano do bicentenário da independência do Brasil, a revistatemalivre.com realiza série sobre o assunto. No canal do YouTube já estão disponíveis 15 entrevistas com pesquisadores de universidades brasileiras e estrangeiras, somando mais de 18h de lives.

 

Confira a programação das próximas semanas (de 22 a 31 de agosto):

 

Segunda, 22 de agosto, às 19h
Convidado: Prof. Dr. Javier Fernández Sebastián (Universidad del País Vasco)
UNA HISTORIA INTELECTUAL Y CONCEPTUAL DE LAS INDEPENDENCIAS

 

Quarta, 24 de agosto, às 19h
Convidada: Prof.ª Dr.ª Ana Paula Medicci (UFBA)
SÃO PAULO E A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL.

 

Segunda, 29 de agosto, às 19h
Convidado: Prof. Dr. Fábio Ferreira (UFF)
A INDEPENDÊNCIA DO BRASIL NO URUGUAI: O CASO DO ESTADO CISPLATINO ORIENTAL.

 

Quarta, 31 de agosto, às 19h
Convidado: Prof. Dr. Frederico Lustosa da Costa (UFF)
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL DO TEMPO DA INDEPENDÊNCIA.
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Não perca nenhum episódio. Se inscreva clicando em https://www.youtube.com/revistatemalivre

 

 

 

 

Brasil: 200 anos da Independência

Niterói, 31 de julho de 2022.
Da Redação

 

A série da revistatemalivre.com cresceu e entra em nova fase, com lives duas vezes na semana.

 

Arte da série de lives da revistatemalivre.com

 

“Brasil: 200 anos da Independência”, série de lives da revistatemalivre.com que estreou em maio no YouTube, cresceu e deixará de ocorrer apenas uma vez por semana (às quartas, às 19h). A partir de agosto, nessa nova fase, as entrevistas acontecerão duas vezes na semana, às segundas e quartas, mantendo o horário das 19h.

 

No próximo mês, entre os muitos prismas que o processo de Independência pode ser analisado, as lives tratarão dos impactos da emancipação brasileira de Angola à fronteira Oeste do Brasil, passando por áreas como Goiás, São Paulo, Pará e Uruguai, que, à época, era designado de Estado Cisplatino Oriental. 

 

Além da reverberação do Ipiranga em várias regiões, em agosto serão debatidas a literatura que fazia-se, tanto no Brasil, quanto em Portugal, à época, assim como o perfil da administração pública em torno de 1822. A história conceitual da Independência e a análise da memória e das imagens produzidas sobre esse episódio histórico também ganharão destaque no mês que se inicia-se amanhã.
  

 

Confira a programação de agosto:

 

Segunda, 01 de agosto

Título: "Os impactos da Independência do Brasil em Angola"

Convidado: Prof. Dr. Gilberto da Silva Guizelin (UFPR)

 

 

 

 

Os 200 anos da Independência do Brasil

Niterói, 04 de maio de 2022.
Da Redação.

Como é de conhecimento público, nesse ano, completam-se 200 anos da Independência do Brasil. Depois da realização das séries de entrevistas sobre os bicentenários da criação do Estado Cisplatino Oriental e das emancipações do México e do Peru, que ocorreram ao longo de 2021, a revistatemalivre.com inicia hoje o ciclo dedicado ao Brasil no seu canal do YouTube
O bicentenário brasileiro é oportunidade para agregar pesquisadores de diversas instituições nacionais e estrangeiras para discutirem o complexo processo de independência brasileiro sob vários prismas, abarcando questões econômicas, políticas e culturais, que envolveram diversos atores e grupos sociais de norte a sul do Brasil. Constitui-se em momento de reflexão e análise da sociedade brasileira e sua história.

As conversas ocorrerão, quinzenalmente, no canal da revistatemalivre.com no YouTube às 19h. Para assisti-las, basta clicar aqui

 

 

A estreia
Logo mais, às 19h, "Brasil: 200 anos da Independência" tratará das influências de Napoleão Bonaparte no Brasil da primeira metade do século XIX, além dos mercenários franceses que lutaram ao lado de D. Pedro I, da imigração francesa para o Rio de Janeiro e a influência da França no campo intelectual brasileiro, além de muito mais. O convidado é o historiador francês Patrick Puigmal (Universidad de Los Lagos/Chile).

A próxima conversa ocorrerá no dia 18 de maio, também às 19h, e a convidada é a historiadora norte-americana Kirsten Schultz (Seton Hall University/EUA). O título do bate-papo é “A Versalhes Tropical: a corte portuguesa no Rio e a Independência”. Não deixe de participar.

 

 

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Outros bicentenários

Já estão disponíveis no YouTube todas as lives das séries sobre a Cisplatina, o Peru e o México. Assista clicando em https://www.youtube.com/revistatemalivre?sub_confirmation=1

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Base de dados sobre os Palmares disponibiliza milhares de fontes históricas através da web

O mais conhecido quilombo brasileiro ganhou a base de dados Documenta Palmares, que reúne milhares de documentos históricos, centenas de obras e vários mapas sobre a sua história. A base é um instrumento de pesquisa sobre o mais importante movimento de resistência à escravidão da história do Brasil, sendo o resultado de pesquisas desenvolvidas pela Prof.ª Dr.ª Silvia Hunold Lara (Unicamp) nos últimos 15 anos. O site possui três sessões:

 

a) “Fontes” possibilita o acesso a mais de mil cópias digitais de documentos manuscritos e impressos que mencionam explicitamente os Palmares, produzidos entre 1595 e 1800, guardados por arquivos e bibliotecas brasileiros e estrangeiros. 

b) “Obras” disponibiliza informações sobre mais de 500 obras históricas, arqueológicas e literárias, livros didáticos, bem como materiais audiovisuais ou coletâneas que reuniram documentos sobre os Palmares, produzidos entre 1600 e 2021. 

c) “Mapas”, elaborada em coautoria com Felipe Aguiar Damasceno, permite visualizar a localização aproximada de alguns mocambos, vilas, aldeias indígenas, arraiais militares, sesmarias e trajetos de expedições para os quais há algum tipo de referência geográfica na documentação.

 

            Os mecanismos de busca permitem localizar, checar e cruzar dados e informações, tanto sobre os acontecimentos ocorridos ao longo do século XVII, quanto sobre o modo como foram narrados e lembrados ao longo do tempo, desde meados do século XVIII até nossos dias.

            Ao invés de oferecer uma narrativa linear ou uma explicação acabada sobre os habitantes dos mocambos e os eventos que eles protagonizaram, o site coloca à disposição dos interessados a matéria prima do historiador. Constitui, assim, uma plataforma que permite aprofundar e renovar os estudos sobre os Palmares que, até hoje, vêm sendo realizados com base em um conjunto relativamente reduzido de fontes, geralmente impressas.

 

 

Saiba mais sobre a base de dados no vídeo a seguir

 

 

 

 

Assista à entrevista com a Prof.ª Dr.ª Silvia Hunold Lara

 

 

 

 

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Cem anos da morte da princesa Isabel

Ao sancionar em 1888 uma das mais emblemáticas normas brasileiras — a Lei Áurea —, Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bourbon e Bragança, popularmente nominada princesa Isabel, "a Redentora", lapidou por definitivo seu nome entre os mais importantes da história nacional. No centenário de sua morte, ocorrida em 14 de novembro de 1921, a personalidade isabelina reflete uma mulher extremamente religiosa (engajada, crente e fiel), espiritualizada, letrada, otimista, autoritária e que buscou o reconhecimento de que estava apta a reinar — o que aconteceu por três vezes ao assumir interinamente o comando do Império, em meio a períodos de grande agitação social e política.

Filha de Dom Pedro II e Teresa Cristina de Bourbon, a princesa imperial, nascida em 1846, no Rio de Janeiro, só se tornou definitivamente a herdeira presuntiva do Império após a morte prematura de seus dois irmãos homens: o primogênito D. Afonso Pedro, falecido aos 2 anos, e D. Pedro Afonso, com pouco mais de 1 ano.

Com o caráter moldado por D. Pedro II para ser sua sucessora, a princesa imperial, assim como seu progenitor, adorava leitura, ciência, química, fotografia.

— Dom Pedro II era um conservador, parecido com seu avô D. João VI, já Dona Isabel era mais parecida com seu avô D. Pedro I, que era dos rompantes. Por ser mulher, era muito tolhida na sociedade em que viveu e na sua época era a única na política — explica o historiador Bruno da Silva Antunes de Cerqueira, coautor da obra Alegrias e Tristezas: estudos sobre a autobiografia de D. Isabel do Brasil, com a historiadora Fátima Argon.

A trajetória da princesa está documentada pelo Arquivo do Senado, em Brasília. Os registros revelam de congratulações a preocupações e apontam que muitos parlamentares não vislumbravam o comando em definitivo do Império nas mãos de uma mulher. 

Diferentes momentos da vida da Princesa Isabel (Imagens: Acervo da Biblioteca Nacional, do Arquivo Nacional e do Museu Imperial de Petrópolis)

Em agosto de 1850, as duas câmaras das Casas parlamentares se reuniram no Paço do Senado para a sessão de reconhecimento da princesa imperial como sucessora de seu pai, Dom Pedro II, no trono e na Coroa do Brasil. Dez anos depois, ao completar 14 anos, ela fez o juramento, diante da Assembleia Geral, como herdeira presuntiva do Império, no qual assegurou “manter a religião católica apostólica romana, observar a constituição política da nação brasileira, e ser obediente às leis, e ao imperador”.

Nos seus 18 anos, a princesa encontrava-se diante dos preparativos para seu casamento, firmado com o príncipe franco-germânico Luís Filipe Maria Fernando Gastão d'Orléans, o Conde d’Eu.

— Pensava-se no Conde d'Eu para minha irmã [princesa Leopoldina] e no Duque de Saxe para mim. Deus e os nossos corações decidiram diferentemente, e a 15 de outubro tinha eu a felicidade de desposar o Conde d'Eu — registrou a princesa Isabel.

A escolha do esposo da herdeira imperial, repudiada por alguns parlamentares, causava uma preocupação redobrada.

— Por ela ser mulher, os senadores e deputados, que eram absolutamente machistas, achavam que o marido é que iria mandar — esclarece o historiador Antunes de Cerqueira.

 

Casamento da princesa Isabel com o Conde d'Eu (Foto: Reprodução/União Monárquica Brasileira)

 

Em maio de 1871, foi aprovada pela Câmara e encaminhada ao Senado a proposta de outorga de consentimento para que o imperador pudesse deixar o país, em viagem à Europa por motivo do estado de saúde da imperatriz.

Tal autorização legal conclamava, na ausência de Dom Pedro II, a governança por parte da princesa imperial, pela primeira vez, como regente.

A manifestação ensejou debates no Plenário do Senado, com a defesa da proposta pelo presidente do Conselho de Ministros (primeiro-ministro), o senador Visconde do Rio-Branco (BA):

— O motivo é muito atendível e imperioso: a saúde de Sua Majestade a Imperatriz. (…) Nós, porém, pensamos que não há razão alguma para recear que uma ausência tão curta do chefe do Estado ponha em perigo a nação brasileira.

O senador J. M. Figueira de Mello (CE) não só defendeu a saída do imperador, como ratificou total e completamente as atribuições de poder moderador e de chefe do Poder Executivo à princesa.

Na contramão, o senador Zacarias de Góes e Vasconcellos (BA) demonstrou preocupação com a viagem, "diante de iminente reforma acerca da questão do estado servil" — que em alguns meses daria origem à Lei do Ventre Livre — e com as atribuições atribuídas no projeto à futura regente imperial.

Também contrário à saída do imperador, o senador Silveira da Motta (GO) foi convicto em propor ao menos uma data-limite para retorno, citando a “incerteza com que a regência continuará a funcionar como realeza temporária”.

Ao assegurar que o chefe do Estado estava sempre pronto a cumprir seus altos deveres, o presidente do Conselho de Ministros mais uma vez ponderou que “para o gabinete não é duvidoso que a regência, no caso de que se trata, compete à herdeira presuntiva da Coroa”.

Assim, em 19 de maio foi outorgado o consentimento ao imperador. No dia seguinte, Dona Isabel — assim chamada por ser alteza — fez seu juramento como regente diante da Assembleia Geral. Foi durante essa primeira regência que a princesa se tornou, aos 25 anos, a primeira senadora do Brasil, título assegurado a ela pela Constituição do Império.

 

Juramento da Princesa Isabel, no interior do Palácio do Conde dos Arcos (Pintura: Victor Meirelles)

O fim da escravidão nos Estados Unidos, em 1865, reforçou o espírito abolicionista no Brasil, onde por longos anos temeu-se a guerra civil em decorrência da procrastinação da abolição.

— Nessa primeira regência Dona Isabel era uma menina. Visconde do Rio-Branco, primeiro-ministro, é que detinha todo o poder. A Lei do Ventre Livre era obra sua, mas é claro que ele dá crédito à Dona Isabel, porque ele era um monarquista contumaz — explica Antunes de Cerqueira.

A par do comando de Rio Branco, a princesa imperial tinha completa noção do que fazia, conhecia o jogo político e sabia quem iria votar a favor ou contra à proposta da primeira lei abolicionista, segundo o historiador.

Muito esperada, a votação do projeto por deputados e senadores foi marcada por conflitos que perpassaram interesses políticos, partidários e escravocratas. 

Apenas dois dias após ter sancionado a Lei do Ventre Livre — que fixou a data de 28 de setembro de 1871 como o marco a partir do qual as mulheres escravizadas dariam à luz crianças livres —, a princesa imperial, grávida, fez sua primeira fala à Assembleia Geral, congratulando-se com os parlamentares pela extinção gradual do elemento servil.

— Esta última reforma marcará uma nova era no progresso moral e material do Brasil. É empresa que exige prudência, perseverantes esforços e o concurso espontâneo de todos os brasileiros. Tenho fé em que seremos bem sucedidos, sem prejuízo da agricultura, nossa principal indústria, porque esse cometimento é a expressão da vontade nacional, inspirada pelos mais elevados preceitos da religião e da política. O governo fará quanto lhe cumpre para a mais pronta e perfeita execução de tão importantes reformas, dedicando-lhes a mais solícita atenção — afirmou a regente.

Pouco tempo depois de Isabel ter encerrado sua primeira regência, o magistrado Sayão Lobato externou em sessão no Senado seus agradecimentos pelo tempo em que atuou como ministro da Justiça durante a primeira governança da princesa. Com Isabel, ele disse ter sido honrado com sua “graciosidade, extrema bondade e continuadas provas de confiança”.

 

harge do periódico 'Semana Ilustrada', em 1871, na sanção da Lei do Ventre Livre (Imagem: Biblioteca Nacional Digital)

 

Do fim da primeira regência até 1876, a princesa Isabel esteve completamente tomada pela vida íntima, assombrada pela dificuldade de gerar herdeiros. O primeiro aborto ocorreu em outubro de 1872, sucedido pela perda de um filho no parto, em 1874. Somente em outubro do ano seguinte nasceu o primeiro herdeiro da princesa, chamado Pedro de Alcântara em homenagem ao avô imperador.

Poucos meses depois, em março de 1876, a princesa imperial foi nomeada com totais poderes regente pela segunda vez, a partir de nova viagem do imperador. A segunda experiência no trono não lhe foi fácil, tornando-se ainda mais pesada com o registro de mais um aborto.

As eleições do final daquele ano foram marcadas por fraudes e violência. Sua extrema ligação com a Igreja a manteve na linha de severas críticas. A princesa também esteve no comando em um difícil período de pós-epidemia de varíola e de vindoura grande seca, que deixaram centenas de milhares de mortos.

Na abertura dos trabalhos legislativos do ano seguinte, a regente abrandou os acontecimentos turbulentos do período eleitoral e tratou do orçamento para o biênio 1877-1878. Aos parlamentares, ela assegurou que o governo procurou reduzir os gastos, mas que seria necessária a decretação de meios que fizessem desaparecer qualquer desequilíbrio entre a receita e a despesa:

— Causas conhecidas explicam o fato de não ter a receita pública atingido o algarismo em que foi calculada. Para segurança do crédito nacional, cumpre não confiar unicamente no aumento natural da renda. As obras de viação férrea e outras votadas exigem despesas a que não pode por si só fazer face a receita ordinária. E porque não fora prudente usar largamente dos recursos do crédito, atenta à nociva influência que os empenhos contraídos exercem sobre o presente e o futuro, é de bom conselho atender somente aos melhoramentos, que não possam ser adiados.

 

Princesa Isabel e seu primogênito, 1876. (Foto: Biblioteca Nacional)

 

Impossibilitada de comparecer à abertura da segunda sessão legislativa, em meados de junho de 1878, coube ao ministro e secretário de Estado dos negócios do Império, Antonio da Costa Pinto e Silva, transmitir aos parlamentares as palavras da regente, que não se esquivou de tratar da forte seca que assolava regiões do país.

— A prolongada falta de chuvas em algumas províncias do Norte e na de S. Pedro do Rio Grande do Sul acarretou sobre elas as provações inerentes a semelhante flagelo. O governo, auxiliado pela caridade particular, tem acudido as populações daqueles pontos do Império com gêneros alimentícios, autorizando ao mesmo tempo os presidentes a despenderem o que for preciso para aliviar os sofrimentos das classes mais necessitadas; e estudará os meios de prevenir, quanto for possível, os graves efeitos desse mal, de que periodicamente são vítimas, com especialidade as províncias do Norte.

Pouco tempo depois, o senador Góes de Vasconcellos, ao criticar a ausência do imperador, renegou afirmativas de que D. Pedro II não faria falta por ter deixado regente em seu lugar.

— Não procede a escusa. A virtuosa princesa, embora tenha, pela Constituição, plenos poderes para governar, é, afinal, simples regente, adstrita à vontade, às prescrições, aos conselhos do chefe ausente; não pode afastar-se daquilo que presuma ser a mente do augusto viajante. Demais a sua saúde não é muito vigorosa, segundo consta dos jornais, que, de vez em quando, anunciam que a princesa acha-se impedida de sair à rua e dedicar-se aos trabalhos de seu elevadíssimo cargo.

O machismo enraizado na época colocava recorrentemente em xeque as competências da princesa imperial. “Apático” era a palavra que definia o governo de Dona Isabel, segundo Góes de Vasconcellos, ao passo “que ela não governava como imperatriz, mas apenas como regente”.

— Ainda, se as circunstâncias do país fossem favoráveis, mas sendo críticas e cheias de dificuldades muito sérias, deverá estar à testa do governo quem ocupa efetivamente o trono, e não sua augusta filha. Ele, o sábio, o mais ilustrado dos monarcas do mundo, esse é quem devia estar no país à frente dos negócios — completou o senador.

Com o fim de sua segunda regência, a princesa voltou-se por completo à vida familiar. Em janeiro de 1878 veio o segundo herdeiro, príncipe D. Luís. Em Paris, em agosto de 1881, nasceu o terceiro filho, D. Antônio.

 

Plenário do Senado em 1888 (Foto: Antônio Luiz Ferreira e Alberto Henschel)

 

Com a partida de D. Pedro II para a Europa por recomendações médicas, aos 40 anos a princesa imperial iniciou a terceira e última regência, em julho de 1887, período tomado pelo crescimento do movimento abolicionista. Com seu apoio, não foram poucos os projetos pelo fim da escravidão apresentados na Câmara e no Senado.

Na presidência do Conselho de Ministros, o Barão de Cotegipe (BA) — líder da bancada escravagista — trabalhou pelo retardo das reformas que culminariam na abolição dos escravizados. O período foi ainda mais conturbado pela insubordinação militar no Exército brasileiro.

Em abril de 1888, a própria princesa imperial comandou, em cerimônia no Palácio de Cristal, a libertação dos últimos escravizados no município de Petrópolis.

— Fez o Gabinete todo e parlamentares subirem a serra para mostrar poder. Ela estava mostrando para aqueles homens o que era capaz de fazer — relata o historiador Antunes de Cerqueira.

Nessa mesma época, em uma manobra inteligente, a regente — certamente já bem mais madura politicamente — destituiu todo o gabinete e nomeou como novo presidente do Conselho dos Ministros o conservador pró-abolição João Alfredo Correia de Oliveira, em um ato que ela mesma nomeou de “golpe”.

Crítico da regente imperial, o liberal senador Saraiva (BA) destacou que a princesa queria que o ministério tivesse um homem da confiança dela, isto é, “um chefe de polícia que a deixasse dormir tranquilamente no seu palácio de Petrópolis”.

O senador Leão Velloso (BA) contestou comentários, dentro e fora do Parlamento, sobre os atos de Sua Alteza.

— No procedimento da Coroa nada se pode notar que não ache apoio nas doutrinas seguidas em outros países, ou não se harmonize perfeitamente com alguns precedentes.

Populares se reúnem em frente ao Paço Imperial no dia da sanção da Lei Áurea

 

Na abertura de sessão legislativa de maio de 1888, além de tratar de questões caras ao Brasil — como segurança pública, estado sanitário do país, educação, renda pública e organização militar —, a regente imperial não deixou de destacar a ânsia pelo fim da escravidão.

— A extinção do elemento servil, pelo influxo do sentimento nacional e das liberalidades particulares, em honra do Brasil, adiantou-se pacificamente de tal modo que é hoje aspiração aclamada por todas as classes, com admiráveis exemplos de abnegação da parte dos proprietários. Quando o próprio interesse privado vem espontaneamente colaborar para que o Brasil se desfaça da infeliz herança, que as necessidades da lavoura haviam mantido.

A princesa conclamou os parlamentares a não hesitarem “em apagar do direito pátrio a única exceção que nele figura em antagonismo com o espírito cristão e liberal das nossas instituições”.

Não demorou e, em 8 de maio, o gabinete de Correia de Oliveira encaminhou à Câmara dos Deputados a proposta de lei para a completa extinção da escravidão no Brasil. Bem recebido pelas duas Casas, o projeto foi aprovado pelos deputados dois dias depois. Quando chegou ao Senado, no dia 11, foi constituída comissão especial para apresentar parecer sobre a proposta.

 

Assinatura da Lei Áurea por Sua Alteza Real Princesa Isabel (Pintura: Victor Meirelles)

 

A urgência com que a matéria foi tratada nas duas Casas legislativas incomodou os escravagistas, que não se conformavam com a perda dos escravizados e de não haver qualquer previsão de ressarcimento aos seus então proprietários.

O senador Paulino de Souza (RJ), ao confessar-se vencido pelo projeto da Lei Áurea, lembrou que em 1885 “achávamos em plena propaganda abolicionista” e que a proposta que os parlamentares iriam votar era “inconstitucional, antieconômica e desumana”.

— Pois bem, é o governo regular do Brasil que, em contraposição àquele governo revolucionário, faz decretar, de um dia para outro, a abolição imediata, pura e simples, sem uma garantia para os proprietários, espoliando-os da propriedade legal, abandonando-os a sua sorte nos termos do nosso interior, entregando-os à ruína, expondo-os às mais temerosas contingências, sem também por outro lado tomar uma providência qualquer a bem daqueles, que voltam em grande parte à miséria e ao extermínio, nos primeiros passos de uma liberdade, de que, não preparados convenientemente, dificilmente saberão usar a seu benefício.

O senador afirmou “iludirem-se” aqueles que acreditavam remover uma grande dificuldade com a lei da abolição do elemento servil.

— Pelo contrário, é agora que recrescem, com a desorganização do trabalho e com a entrada de 700 mil indivíduos não preparados pela educação e pelos hábitos da liberdade anterior para a vida civil, as contingências previstas para a ordem econômica e social.

Com apoio de muitos no Plenário, o senador Dantas (BA) assegurou aos pares que a abolição da escravidão não marcaria para o Brasil uma época de miséria, de sofrimentos, de penúria.

— Uma simples consideração, porque a discussão longa virá depois, bastará para tranquilizar os que se aterrarem com os presságios dos honrados senadores que me precederam: dentro de espaço de 17 anos, 800 mil escravos têm desaparecido do Brasil. Pois bem, senhores, é justamente neste período que se nota maior riqueza no país, grande aumento de trabalho e com ele maior produção, e, como consequência, considerável aumento na renda pública.

As reformas liberais não poderiam representar, na opinião do parlamentar, um perigo ao Brasil, mas seriam “o complemento, o remate, a consequência natural do passo que estamos dando”.

O presidente do Conselho de Ministros, Correia de Oliveira, completou:

— Tem-se ainda apelado para os transtornos que desta proposta hão de provir. Sei bem que não se extirpa do organismo social um cancro secular sem que perturbações se operem. Nunca mais há de abrir-se, porém, a cicatriz desta ferida: e sobre ela se levantará — o patriotismo e o bom senso dos brasileiros o indica — o grande edifício da crescente prosperidade de nossa pátria.

 

 

Carta original da Lei Áurea (Lei Imperial 3.353) assinada pela princesa

 

No domingo de 13 de maio de 1888, apenas três dias após a deliberação do texto abolicionista na Câmara, o Senado aprovou a proposta, sancionada no Paço Imperial poucas horas depois pela regente imperial, aclamada a “Redentora”.

Sem poder agir publicamente pela abolição até janeiro de 1888, quando pôde externar seu abraço à causa já nacionalmente disseminada, a princesa Isabel agia na surdina — como em 1886, quando impediu a destruição do Quilombo do Leblon, portanto dois anos antes da completa abolição da escravidão.

— As pessoas não queriam dizer que a Lei Áurea, fruto de uma luta popular, dos líderes abolicionistas, que eram negros e brancos letrados, também foi uma luta palaciana. Isso ninguém queria reconhecer. Uma das coisas que mais incomodavam era o fato de que Dona Isabel tinha poder como mulher, porque era regente do Império, e ela atuou — expõe o historiador Antunes de Cerqueira.

Os chefes do movimento abolicionista (Joaquim Nabuco, André Rebouças e José do Patrocínio) eram três homens isabelistas, lembra ele:

— Isso tinha alguma significação: indica que eles queriam o terceiro reinado para implementar as reformas de que eles mesmos eram os baluartes. Ora, se o terceiro reinado não veio, como é que eles ou Dona Isabel podem ser culpados pelo pós-abolição? — questiona.

Os escravocratas denominaram a abolição como o “golpe de estado da Lei de 13 de maio”. Antunes de Cerqueira afirma que, ao sancionar a Lei Áurea, a princesa imperial fez algo que seu pai nunca faria. Tal discussão esteve em debate no Senado na época.

O senador Chistiano Ottoni (MG) tomou a palavra para retificar o que chamou de “inexatidões flagrantes”, como apontar Sua Alteza Imperial como a única que poderia decretar a lei de 13 de maio, “visto que seu pai seria incapaz de igual energia”.

— Ora, a verdade histórica é que o nome que há de ser citado no futuro como o primeiro autor da libertação é o do Sr. D. Pedro II. O começo da evolução, a aurora desse movimento, foi a carta escrita em 1866 pelo nosso ministro da Justiça aos sábios franceses prometendo a reforma; e desta carta declarou há dias o Sr. deputado Joaquim Nabuco que possui a minuta por letra do Imperador. Está, pois, a sua iniciativa mais que averiguada.

— Na verdade, os homens tinham asco dela por ser uma mulher com poder, ser a herdeira do trono. Ia ser a imperatriz, estar acima de todos eles, mandar. Eles eram machistas — diz o historiador Antunes de Cerqueira.

 

 

Isabel, o Conde d'Eu e o escritor Machado de Assis na Missa Campal da Abolição da Escravatura, em 17 de maio de 1888 (Foto: Antonio Luiz Ferreira, Coleção de Dom João de Orleans e Bragança/IMS)

 

A despeito de sancionar o ato abolicionista incondicional, a princesa continuava na mira das críticas, em especial da imprensa, muitas vezes agressiva. "Carola" e "retrógrada", por suas práticas religiosas, eram algumas das palavras que constantemente maculavam sua imagem.

Em meio à agitação política e econômica, a regente — favorável ao sufrágio feminino — acompanhava o crescimento de adesões a pedidos, de diferentes direções, para requerer mudanças na forma de governo.

Em setembro de 1888, o Papa Leão XIII concedeu a Rosa de Ouro à princesa Isabel. A honraria era destinada a personalidades católicas de grande destaque e benemerência, e foi outorgada a ela especialmente pela assinatura da Lei Áurea.

Tal fato acirrou ainda mais os debates no Senado, onde os parlamentares discutiram uma possível jura ou manifestação de obediência da regente à Santa Sé.

— Devo declarar que a notícia não é exata: não houve tal juramento — garantiu o presidente do Conselho, senador Correia de Oliveira.

A possibilidade de um futuro governo monárquico em definitivo nas mãos de uma mulher também inflava os debates na Casa.

O senador Soares Brandão (PE) explanou sobre o fato de mulheres oferecerem, em muitas partes do mundo, um reinado mais esplêndido do que os homens.

— Se é certo que elas não têm a grande virtude política de governo, que ordinariamente podem ter os homens (a de perdoar as injúrias); se são mais sensíveis, mais vingativas, mais nervosas, também é certo que têm sobre os homens uma imensa superioridade: não têm ciúmes, não têm invejas, os seus ministros não lhes fazem sombra; podem, pois, gloriar-se com o governo deles.

O retorno de Dom Pedro II ao comando do país, em agosto de 1888, não perpetuou por muito tempo sua governança, sucedida pela Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889.

— A República não foi feita contra a família imperial, mas claramente contra Dona Isabel, em seu terceiro reinado (os republicanos diziam que a abolição foi um confisco de propriedade e queriam indenização), e contra os negros. A República foi uma forma de impedir a politização do movimento abolicionista e ascensão dos negros — defende Antunes de Cerqueira.

Com a notícia da República, em vários lugares do país, como Rio de Janeiro, São Luís, Florianópolis e Cuiabá, os negros fizeram, nos dias subsequentes, rebeliões que terminaram com muitos mortos.  

— Os negros entendiam que Dona Isabel era legítima para reinar, porque ela, na verdade, do ponto de vista político, ameaçou seu próprio trono com a abolição. Eles achavam que mesmo ela sendo mulher, loira, branca e de olho azul, tinha legitimidade. A Guarda Negra da Redentora, que existia no Brasil inteiro, foi assassinada pela República Velha. São heróis anônimos — completa o historiador.

 

 Isabel, o Conde d'Eu e seus netos, na França, década de 1910. (Foto: Arquivo Nacional)

 

Com a República, chegou o exílio da família imperial, que desembarcou em Lisboa em dezembro do mesmo ano. Não tardou e semanas depois a imperatriz Teresa Cristina faleceu na cidade do Porto. A princesa Isabel e a família se mudaram para a França. Dom Pedro II morreu em dezembro de 1891, quando a princesa passou a ser reconhecida pelos monarquistas como a nova imperatriz.

Em 1920, o presidente da República, Epitácio Pessoa, deu fim ao banimento da família imperial. Com a saúde deteriorada, sem poder retornar ao Brasil, a princesa morreu em 14 de novembro de 1921, aos 75 anos, tendo sido inicialmente enterrada na França.

Ao declarar Isabel como “um grande nome da nossa história”, o senador Tobias Barreto (RN) pronunciou-se após sua morte:

— Parece que foi ironia do destino reservar a uma mulher o papel de consumar a grandiosa obra que os nossos homens de Estado durante 66 anos não souberam levar a cabo por si sós; ou então quis o destino que essa mulher constituísse um símbolo de bondade, para ficar na história, representando a forma incruenta pela qual realizamos uma verdadeira revolução, que a outros tinha custado caudais de sangue.

Isabelista, o senador afirmou que a princesa não era possuída da timidez do pai:

 — Quando lhe afrontavam os sentimentos, sabia defendê-los de viseira erguida.

Apesar de, poucos dias depois da morte de Isabel, ter sido apresentado projeto à Câmara dos Deputados para a repatriação de seu corpo, somente em 1953 os restos mortais chegaram, em navio de guerra, ao Brasil. Assim como o Conde d’Eu, ela foi reenterrada em 1971 na Catedral de São Pedro de Alcântara, em Petrópolis, santuário cuja obra foi iniciada pela própria princesa imperial, em 1884.

Está em andamento um pedido à Igreja de processo de beatificação de Isabel, enquanto no Congresso tramitam projetos de lei que sugerem a inserção de seu nome no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria.

— Os 100 anos de morte de Dona Isabel rememoram uma personagem nebulosa, fulcral, querida da população. Ela participou do processo abolicionista, mas isso foi negado e mal interpretado no próprio tempo em que ela viveu. A história dessa personagem explica um Brasil atual e também um Brasil que não veio — conclui Antunes de Cerqueira.

Fonte: Agência Senado

 

 

Saiba mais sobre o 13 de maio assistindo a entrevista a seguir

 

 

 

 

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Há 200 anos, o território que é hoje o Uruguai tornava-se parte do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves

Niterói, 08 de agosto de 2021

No dia 08 de agosto de 1821, portanto, há exatos 200 anos, o Congresso Cisplatino era dissolvido. Sua última ordem foi a de enviar cópias de suas atas ao general português Carlos Frederico Lecor para que o militar as enviasse a D. João VI e às Cortes de Lisboa. Porém, muitos leitores devem estar se perguntando o que foi esse Congresso? Qual a sua relação com o título do texto? Quais informações estavam contidas nas atas?
Para a obtenção das respostas, é necessário recuar a 1816, quando D. João invadiu a Banda Oriental, denominação que o território que é hoje o Uruguai tinha na época. Para conduzir o governo português da área ocupada, foi designado o general Lecor, que a administrou através de coalização com uma série de setores da sociedade local. Com a eclosão, em 1820, do movimento liberal em Portugal, e consequentemente com a drástica mudança nos destinos da política do Reino Unido português, que incluiu o retorno de D. João VI à Europa e o estabelecimento das Cortes Gerais em Lisboa para a elaboração de uma constituição, o recém empoçado ministro dos Negócios Estrangeiros e Guerra, Silvestre Pinheiro Ferreira, quis definir o futuro da ocupação militar no Prata.
Foi ordenado que em Montevidéu se estabelecessem Cortes, no modelo das de Lisboa, para que a sociedade local decidisse o futuro da invasão. Unidos, Lecor e atores locais montaram um jogo de cartas marcadas para que as Cortes de Montevidéu, ou Congresso Cisplatino (nome como as reuniões que se iniciaram em julho de 1821 ficaram conhecidas pela historiografia), decidissem pelo que lhes interessava: a união do que é hoje o Uruguai à monarquia portuguesa – fato histórico que teve o seu bicentenário nesse ano. 
O Congresso Cisplatino iniciou-se em um domingo, no dia 15 de julho de 1821. Três dias depois, os deputados votaram, unanimemente, pela incorporação. No dia 23, por decisão dos congressistas, a antiga Banda Oriental passou a chamar-se Estado Cisplatino Oriental. No dia 31, Lecor aceitou a incorporação em nome de D. João VI. No quinto dia de agosto ocorreu o juramento de incorporação, participando, do ato, Lecor, os congressistas e todas as autoridades e funcionários de Montevidéu. No dia 8 de agosto de 1821, uma quarta-feira, houve a dissolução do Congresso Cisplatino e a ordem para que fossem enviadas a Lecor as suas atas, pois o general deveria mandá-las para Lisboa. Nos documentos, a votação dos deputados, bem como o argumento dos aliados de Lecor, para que o território que é hoje o Uruguai se tornasse parte do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. 
Aparentemente, Lecor e seus atores sociais alcançavam os seus objetivos. Porém, a História é sempre mais complexa e, com 200 anos de vantagem, sabemos que o projeto cisplatino não vingou. O Reino Unido português dividiu-se, o Brasil tornou-se um Império a parte e, em 1825, eclodiu a Guerra da Cisplatina, que resultou na criação da República Oriental do Uruguai.

 

Bicentenário da criação do Estado Cisplatino Oriental
Em razão dos 200 anos da Cisplatina, a Revista Tema Livre aproveitou a oportunidade para debater esse episódio histórico e realizou uma série de lives com historiadores de diversas instituições da Argentina, Brasil, EUA e Uruguai. Assista à série completa no nosso canal do YouTube. Acesse: https://www.youtube.com/revistatemalivre

 

Lista dos episódios
1) Live de abertura: "Los partidarios de la corona española en la Cisplatina"
Convidada:  Prof.ª Dr.ª Ana Ribeiro (Investigadora, actual Vice Ministra de Educación y Cultura de Uruguay)

 


2) “Antes da Cisplatina: Sacramento, Montevidéu e os interesses portugueses no Rio da Prata”
Convidado: Prof. Dr. Fabrício Prado (College of William and Mary)

 


3) "O Congresso Cisplatino: a incorporação de Montevidéu e a sua campanha à monarquia portuguesa"
Convidado: Prof. Dr. Fábio Ferreira (Universidade Federal Fluminense – UFF)

 


4) Panfletos, jornais e a linguagem política na Cisplatina.
Convidado: Prof. Dr. Murillo Dias Winter (USP/FAPESP)

 


5) Live de enceramento: "El ciclo revolucionario en Iberoamérica. El Río de la Plata y Brasil en el escenario Atlántico"
Convidada: Prof.ª Dr.ª Marcela Ternavasio (Instituto de Estudios Críticos en Humanidades/Universidad Nacional de Rosario/CONICET)

 


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Há 30 anos, criação do Mercosul pôs fim às tensões históricas entre Brasil e Argentina

Neste ano, completam-se 30 anos que os presidentes do Brasil, da Argentina, do Uruguai e do Paraguai, reunidos em Assunção, assinaram o documento de criação do Mercosul. Desse ato, nasceu um bloco regional que hoje, se fosse um único país, surgiria como a 9ª maior economia do planeta. Sozinho, o Brasil é a 12ª economia mundial, pelas estatísticas do Fundo Monetário Internacional (FMI).

Documentos guardados no Arquivo do Senado mostram que os senadores, de Brasília, acompanharam com atenção a histórica cerimônia internacional de 26 de março de 1991, na qual Fernando Collor, Carlos Menem, Luis Lacalle e Andrés Rodríguez firmaram o Tratado de Assunção.

— Na solenidade, o presidente Collor disse: 'Começamos a escrever nossa própria modernidade'. De fato, o tratado tem um grande significado — discursou, no dia seguinte, o senador Marco Maciel (PFL-PE).

— O processo de integração pode ser a chave para uma inserção mais competitiva de nossos países no mundo. O Mercosul propiciará economias de escala e otimizará vantagens comparativas, levando à redução dos custos de produção. O projeto estimulará ainda os fluxos de comércio entre os quatros países e tornará os investimentos mais atrativos na região, com consequências positivas para o combate à inflação e a qualidade de vida da população — prosseguiu o parlamentar.

Por força do Tratado de Assunção, gradativamente, os quatro países eliminaram ou reduziram tributos alfandegários nas transações entre si e também unificaram impostos de importação e exportação incidentes no comércio com outras nações.

 

 

Tribuna da Imprensa noticia em 1991 a criação do Mercosul (imagem: Biblioteca Nacional)

 

Para além dos benefícios econômicos, a criação do Mercosul permitiu que as desconfianças e as tensões diplomáticas entre o Brasil e os países platinos, em especial a Argentina, finalmente chegassem ao fim. Era uma situação que se iniciara na época colonial (quando Portugal e Espanha disputavam o território sul-americano), persistira no Império (quando se travaram as Guerras da Cisplatina e do Paraguai e houve interferências brasileiras na política uruguaia) e se renovara logo nos primórdios da República (quando os vizinhos do Cone Sul não viram com bons olhos o protagonismo diplomático do Barão do Rio Branco na América do Sul).

— Mesmo a aliança entre o Brasil e a Argentina para enfrentar Solano López [na Guerra do Paraguai] foi, ao que se sabe agora, uma aliança de emergência entre parceiros que se olhavam com desconfiança, mas que naquela época temiam um inimigo [em comum] que se expandia e avançava — afirmou, em 1980, o senador Alberto Lavinas (PDS-RJ).

No início da década de 1940, na ditadura do Estado Novo, o presidente Getúlio Vargas ensaiou uma aproximação com os argentinos. Os planos eram promissores, mas acabaram indo por água abaixo quando o Brasil e a Argentina decidiram assumir posições distintas na Segunda Guerra Mundial. Enquanto os brasileiros entraram no conflito ao lado dos aliados, os argentinos optaram pela neutralidade.

Em 1985, numa audiência pública no Senado, o presidente da Petrobras, Carlos Theóphilo de Souza e Mello, disse uma curta frase que revelou o tamanho da rivalidade econômica que separava o Brasil e a Argentina:

— A Argentina tem dificuldades sérias de atingir os mercados internacionais pelas suas águas muito rasas. Isso é muito bom para o Brasil. As águas do Rio da Prata exigem um volume muito grande de dragagem para um calado de oito a dez metros. Eles hoje estão estudando um porto mais fora da barra do Rio da Prata, para ver se conseguem calados melhores, de 12 metros, de modo a chegar com seus produtos ao mercado externo com vantagens competitivas em relação ao Brasil.

 

 

Os presidentes Collor, Rodríguez, Menem e Lacalle na assinatura do Tratado de Assunção (Foto: Gabinete senador Fernando Collor)

 

No mesmo ano, o senador José Ignacio Ferreira (PMDB-ES) tratou de uma suposta corrida armamentista que havia no Cone Sul:

— Não faz sentido o Brasil e a Argentina lançarem-se em uma competição tecnológica que pode conduzir às armas nucleares. Em vez disso, os países devem juntar-se para resolverem a questão da dívida externa, do analfabetismo, do saneamento básico, das favelas.

Em 1991, o senador Pedro Simon (PMDB-RS) citou um caso quase prosaico do histórico descompasso entre brasileiros e argentinos:

— Os dois países se davam tão mal no passado que nós fizemos no Rio Grande do Sul uma estrada de ferro com bitola estreita, diferente da bitola larga da Argentina, só para dificultar uma possível invasão do Brasil pelos argentinos. Havia coisas dessa natureza.

Simon via o dedo das potências mundiais nesse afastamento. Para ele, “os do Norte” criavam “fuxicos” que não tinham razão de existir entre o Brasil e a Argentina. O senador Dirceu Carneiro (PSDB-SC), num pronunciamento em 1993, reforçou essa tese:

— O Tratado de Assunção teve a extraordinária virtude de enterrar uma história de longos anos de relações de desconfiança mútua. O setor militar sempre alimentou a hipótese de um conflito entre o Brasil e a Argentina e, para tal, sofreu a interferência do Primeiro Mundo, com interesses evidentemente próprios e pragmáticos, investindo numa desunião progressiva entre os países, fazendo com que virássemos as costas aos nossos vizinhos. Durante todo esse período, o Brasil não considerou a cultura nem a riqueza das trocas comerciais com os países limítrofes. Em todo esse período, tivemos os nossos olhos votados para a Europa, para os Estados Unidos, para o Atlântico.

 

 

Mensagem em que o presidente Collor pede ao Congresso que ratifique o tratado do Mercosul (imagem: Arquivo do Senado)

 

Os primeiros passos da aproximação entre Brasil e Argentina foram dados em 1979, quando os países resolveram a disputa em torno de projetos hidrelétricos na Bacia do Rio Paraná. A partir de então, só houve avanços. Em 1980, assinaram um acordo sobre o uso pacífico da tecnologia nuclear. Em 1982, o Brasil manifestou apoio às reivindicações argentinas na Guerra das Malvinas. 

Em 1985, os presidentes José Sarney e Raúl Alfonsín aproveitaram a cerimônia de inauguração da Ponte Tancredo Neves, entre Foz do Iguaçu e Puerto Iguazú, para assinar a Declaração do Iguaçu, que previu a integração entre os dois países. O Brasil e a Argentina haviam acabado de sair de ditaduras militares, e a redemocratização facilitou a aproximação.

— Verificamos que há um avanço como nunca tinha havido — avaliou Simon. — Se compararmos todos os presidentes da República, desde o primeiro, Deodoro, veremos que todos juntos não visitaram a Argentina tantas vezes quanto o presidente Sarney visitou. Havia a interrogação em relação ao presidente Collor, se ele se dedicaria de corpo e alma à causa da integração. Afinal, ele fez uma campanha tão dura e tão ácida contra o presidente Sarney. Justiça seja feita. Ele assumiu no dia 15 de março [de 1990]; no dia 16, o presidente Collor e o presidente Menem assinavam convênios no Palácio do Planalto. Os dois faziam questão de demonstrar que defenderiam, que lutariam, que haveriam de avançar com a causa da integração Brasil-Argentina.

A Declaração do Iguaçu é considerada o embrião do Tratado de Assunção. O Uruguai e o Paraguai, que assistiram aos vizinhos assinando acordo atrás de acordo a partir de 1985, perceberam que a aliança era promissora e decidiram somar-se ao grupo. Foi assim que o degelo acelerado das relações bilaterais entre Brasil e Argentina deu origem ao Mercosul.

— Os dois presidentes [Sarney e Alfonsín], desde a inauguração da Ponte Tancredo Neves, estão decididos a encaminhar a economia dos dois países para um integração com que possam chegar a um futuro marcado. A integração começa com os dois. Depois virá o Uruguai. Depois será a vez do Chile. Foi a integração, pelo Mercado Comum Europeu, que salvou a Europa da pobreza e da dependência. Assim, me parece que a solução para a pobreza do nosso país e da nossa região é a sua integração em um mercado comum — disse, em 1989, o senador Ney Maranhão (PMB-PE).

Outro motivo que levou à criação Comunidade Econômica Europeia (antecessora da atual União Europeia), em 1958, foi justamente uma rivalidade histórica. A Alemanha e a França haviam protagonizado, sempre em lados opostos, as batalhas mais sangrentas da história da Europa, incluindo as duas guerras mundiais. Quando ambas as economias foram umbilicalmente conectadas, a tentativa de destruição mútua se transformou num mau negócio. Alemães e franceses nunca mais se enfrentaram. 

 

 

Presidentes José Sarney e Raúl Alfonsín, precursores da integração Brasil-Argentina (foto: Victor Bugge)

 

Os papéis históricos do Arquivo do Senado indicam, no entanto, que o Mercosul não foi unanimidade. Alguns parlamentares encararam o novo bloco com ceticismo, ressalvas e até temores. Em 1992, o senador Gerson Camata (PDS-ES) afirmou que fazendeiros gaúchos estavam comprando terras no Uruguai e deixando de plantar no Brasil e que empresas como Autolatina, Cofap e Brahma estavam passando a produzir na Argentina para exportar para o mercado brasileiro:

— Criou-se um oba-oba em torno do Mercosul, que ficou, eu diria, como a 'escola de samba campeã do ano'. Na realidade, os termos do Tratado de Assunção são desfavoráveis aos interesses do Brasil. O que estamos ganhando no primeiro ano? Começamos a perder bilhões de dólares nessas trocas com a Argentina, o Uruguai e o Paraguai. Estamos abrindo mão do poder de tomar decisões, abrindo mão do nosso mercado, em favor desses países, que são menores. Estamos perdendo empregos, renda e impostos.

No pronunciamento, Camata avisou que o Brasil ainda tinha tempo para abandonar o Mercosul:

— Felizmente para o Brasil, o tratado prevê que qualquer um dos seus integrantes dele poderá se retirar desde que o denuncie. Quanto mais cedo o Brasil denunciar esse tratado, melhor será.

Ainda em 1992, o senador Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP) afirmou que, apesar de ser partidário da integração do Brasil com os países vizinhos, o Mercosul tinha efeitos colaterais que não poderiam ser ignorados:

— Recentemente, fui ao interior de São Paulo, a São José do Rio Pardo, onde encontrei uma situação de desânimo. A cebola, base de riqueza da região, fora completamente deslocada pela importação da Argentina. Ora, dentro de pouco tempo estaremos totalmente presos pelo Tratado de Assunção. Se não tomarmos as medidas pertinentes no tempo oportuno, a integração, que é um fato positivo, terá um custo muito alto, capaz de destruir localmente certas bases de riqueza.

 

 

O palácio que abriga a sede do Mercosul, em Montevidéu, diante do Rio da Prata (foto: Mercosul)

 

Também um ano após a cerimônia em Assunção, o senador Nelson Wedekin (PDT-SC) criticou o fato de o tratado ser exclusivamente comercial:

— Ao privilegiar os aspetos mercadológicos, o Tratado de Assunção subestimou uma perspectiva que poderia ser bem mais abrangente. O conceito que defendemos é o da integração dos povos dos quatro países. Nossos esforços se devem somar para a busca do crescimento econômico e do progresso social, e não só para realçar a economia na óptica do empresariado. Por enquanto, o Mercosul está dentro desses limites estreitos. Ninguém até hoje sequer cogitou de uma aliança dos países membros para negociar em conjunto a dívida externa. O Mercosul poderia ser um espaço privilegiado que produzisse a reativação das nossas economias e uma política de distribuição de renda e riqueza. Não se espere isso, entretanto, das elites dos quatro países membros, que, quando muito, são capazes de vislumbrar o Mercosul como mero pacto de ampliação dos seus negócios.

Apesar das críticas de alguns senadores, o Congresso Nacional ratificou o Tratado de Assunção em setembro de 1991, seis meses depois do encontro dos presidentes no Paraguai.

Com o tempo, o Mercosul deixou de ser exclusivamente econômico e passou a se dedicar também a aspectos culturais e sociais. As escolas de ensino médio do Brasil, por exemplo, ficaram obrigadas a oferecer aulas de espanhol. Estudantes universitários de um país puderam dar prosseguimento aos estudos em outro país do bloco. O governo criou em Foz do Iguaçu, na fronteira com a Argentina e o Paraguai, a Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), que forma alunos dos países do Mercosul em cursos voltados para o desenvolvimento regional.

O tempo de trabalho e contribuição previdenciária em qualquer país do bloco passou a ser contabilizado para fins de aposentadoria. Os trâmites migratórios para turistas do bloco foram facilitados, dispensando a apresentação do passaporte. Os trâmites para residência temporária e permanente também ficaram menos burocráticos. As placas de veículos foram uniformizadas, para permitir um deslocamento mais ágil entre os países.

De acordo com a consultora legislativa Maria Claudia Drummond, que no Senado acompanha o Mercosul desde a assinatura do Tratado de Assunção, o bloco ajudou o Brasil a abrir-se para o mundo:
 
— Até então, o Brasil era um país fechadíssimo, tanto em exportações quanto em importações. A abertura ocorreu primeiro para os países do Mercosul, e não para o mundo de uma vez. Em função do Mercosul, foi um processo que se fez de forma controlada, aos poucos.
 
Ela observa que os brasileiros de uma forma geral têm pouco conhecimento sobre o bloco:
 
— Na Argentina, no Uruguai e no Paraguai, o Mercosul é bem mais conhecido. Como os territórios são menores e as pessoas atravessam mais a fronteira, o Mercosul é mais real para elas. Até mesmo o interesse acadêmico pelo Mercosul é mais forte nesses países. Aqui no Brasil, o desinteresse é total e isso vem se acentuando nos últimos anos.

Para o economista Luciano Wexell Severo, professor na Unila e coordenador do Observatório da Integração Econômica da América do Sul, o desinteresse dos cidadãos contribui com o enfraquecimento do bloco:

— Como o Brasil tem um território muito grande, existe uma aparência de autossuficiência. Mas não é assim. Hoje 85% dos itens que o Brasil exporta para os países do Mercosul são industrializados, como carro, carroceria, motor, cerveja e calçado. São itens que geram mais emprego, renda, arrecadação tributária e tecnologia do que produtos primários, como soja, celulose e carne, que exportamos para a China. Muitas vezes o trabalhador dessas indústrias não sabe que a integração com a Argentina, o Uruguai e o Paraguai é importante para ele. Esse trabalhador, por isso, não faz pressão política a favor do Mercosul. Isso é ruim porque o Brasil dificilmente terá uma economia pujante, com todos os benefícios sociais decorrentes disso, sem essa aproximação com os nossos vizinhos.

A Venezuela tornou-se a quinta nação integrante do Mercosul em 2012, mas foi suspensa em 2016, por ter descumprido acordos e tratados. A Bolívia está em processo de admissão desde 2015.

Fonte: Agência Senado

Reportagem e edição: Ricardo Westin

Pesquisa histórica: Arquivo do Senado

Edição de multimídia: Bernardo Ururahy

Edição de fotografia: Pillar Pedreira

 

 

 

 

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Extra, extra: parlamento derruba planos de D. Pedro I de restringir a liberdade de imprensa

D. Pedro I vivia em guerra com os jornais que criticavam o seu governo. Das 12 ocasiões em que discursou no Parlamento, em duas o imperador cobrou dos senadores e deputados uma lei que reduzisse a liberdade de imprensa e lhe permitisse punir e calar as “folhas” oposicionistas.

— O abuso da liberdade de imprensa, que infelizmente se tem propagado com notório escândalo por todo o Império, reclama a mais séria atenção da assembleia. É urgente reprimir um mal que não pode deixar em breve de trazer após de si resultados fatais — afirmou D. Pedro I em 1829.

O imperador pedia a aprovação de um projeto de lei restritivo que havia sido apresentado em 1827, mas vinha sendo levado em banho-maria pelo Parlamento. Diante da cobrança imperial, os parlamentares se viram obrigados a desengavetar essa proposta de Lei de Imprensa.

Documentos históricos hoje guardados no Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que o projeto rachou os senadores. Para os governistas, a liberdade desfrutada pelos jornais estava mais para libertinagem e punha em risco a existência do Império recém-fundado (independente em 1822) e ainda não consolidado. Para os senadores oposicionistas, ao contrário, a imprensa livre era um dos requisitos para a sobrevivência da nação.

No fim, a oposição conseguiu barrar o ímpeto autoritário de D. Pedro I. A Lei de Imprensa de 1830 — a primeira do tipo aprovada pelo Parlamento brasileiro — concedeu aos jornais muito mais autonomia do que desejava o monarca.

 

 

Trecho do discurso pronunciado por D. Pedro I no Parlamento em 1830: desejo de amordaçar a imprensa (imagem: Falas do Trono/Biblioteca do Senado)

 

No Senado, a base governista tentou até o fim evitar a derrota do imperador.

— É lícito a cada um mostrar a sua opinião, mas é do nosso dever sustentar este governo e prevenir revoluções. Portanto, devemos castigar a quem atacar — argumentou o senador Carneiro de Campos (BA).

— O governo da Inglaterra é forte e justiceiro — discursou o senador Visconde de Cayru (BA), referindo-se ao grande modelo de Monarquia da época. — Quando há abuso da imprensa, o escritor é punido com pesada multa. Conforme a gravidade do caso, até é desterrado para a Nova Holanda [Austrália], sendo o transporte marítimo a ferros no porão do navio.

Para Cayru e Carneiro de Campos, jornais tendenciosos envenenavam a opinião pública e até poderiam persuadir os cidadãos a pegar em armas contra o governo, levando à dissolução do Império. Os autores de “folhas incendiárias”, portanto, deveriam ser levados ao banco dos réus e exemplarmente castigados.

Os senadores oposicionistas, por sua vez, argumentavam que os jornais não tinham tal poder e tão somente refletiam — e não criavam — a opinião pública. De acordo com esses parlamentares, a imprensa deveria ser o mais livre possível para que o monarca pudesse conhecer os verdadeiros anseios dos súditos e, assim, melhor governar o Brasil.

— A liberdade de imprensa é o esteio e o paládio do governo monárquico constitucional representativo. Sem ela, o governo não pode progredir — afirmou o senador Marquês de Caravelas (BA).

— A liberdade de imprensa é o veículo da felicidade de toda a sociedade, porque daqui é que vêm as luzes a todo o Império — acrescentou o senador Marquês de Queluz (PB). — Havemos nós de pôr uma mordaça ao cidadão? Será justo proibir-se-lhe que fale do governo, conhecendo qualquer defeito, quando das suas reflexões podem resultar melhoramentos? Eu quereria que a lei não punisse o escritor filósofo.

 

 

Jornal Astrea faz crítica ao autoritarismo de D. Pedro I sem citar o nome do imperador (imagem: Biblioteca Nacional Digital)

 

As tendências despóticas de D. Pedro I já eram explícitas. A sua medida mais rumorosa foi o fechamento arbitrário da Assembleia Constituinte em 1823. O imperador ficou irritado com os termos da Constituição em elaboração, que lhe dava menos poderes do que ele desejava. No ano seguinte, impôs uma Constituição ao seu gosto.

Mesmo com a Constituição de 1824 em pleno vigor, D. Pedro I adiou a convocação do Senado e da Câmara o máximo que pôde. As duas Casas do Parlamento só começariam a funcionar em 1826. Nesse interregno de dois anos, ele pôde comandar o país livremente, sem precisar dividir o governo com o Poder Legislativo.

No vácuo parlamentar, D. Pedro I assinou com Portugal o tratado de reconhecimento da Independência, que previa uma pesada indenização a ser paga pelos brasileiros. Ele também entrou na malfadada Guerra da Cisplatina, ao fim da qual o atual Uruguai conseguiu se libertar do Brasil. Ambos os episódios abalaram profundamente as finanças públicas, o custo de vida, o orgulho nacional e a confiança da população no soberano.

Mesmo quando o Parlamento se formou, o imperador relutou a repartir o poder. Ao escolher os ministros, por exemplo, ele recorria a pessoas do seu círculo de relações, e não a deputados da maioria parlamentar. As elites reagiram escrevendo na imprensa e votando na Câmara contra o monarca.

No início, o Senado não foi palco dessa reação pelo fato de ser naturalmente governista. Enquanto os deputados eram eleitos no voto, os senadores vitalícios eram escolhidos pelo próprio D. Pedro I a partir de uma lista tríplice. Ele, claro, só selecionava gente de sua confiança.

Sem assinar os textos, deputados recorriam aos jornais para disseminar as críticas ao monarca que não ousavam pronunciar da tribuna da Câmara. As leis da época permitiam o anonimato na imprensa.

Como a Constituição estabelecia que a pessoa do imperador era “inviolável e sagrada”, os ataques por texto se davam de forma camuflada. O expediente mais comum era chamá-lo de “tirano”, “déspota” e “absolutista” sem citar o seu nome. Por vezes, a referência direta era a reis de outras nações e outros tempos, como o francês Luís XIV. O contexto, porém, deixava claro que o alvo era D. Pedro I. Os jornais mais atrevidos recorriam à palavra “Poder” — anagrama de “Pedro”.

A imprensa oposicionista também alertava para o risco de o monarca tentar reunificar o Brasil a Portugal e rebaixar o novo Império à velha condição subalterna de Colônia. A hipótese não era de todo fantasiosa. Diante da morte de D. João VI em Lisboa em 1826, D. Pedro I havia despachado sua filha mais velha, D. Maria da Glória, para assumir o trono português, o que deixava os interesses das duas Coroas perigosamente embaralhados.

 

 

Slogan indica posicionamento do jornal Astrea contrário ao governo de D. Pedro I (imagem: Biblioteca Nacional Digital)

 

Nas discussões da Lei de Imprensa de 1830, os senadores governistas sugeriram a punição de quem escrevesse contra o monarca inclusive ataques dissimulados. O Visconde de Cayru discursou:

— Seria nula e irrisória a lei se unicamente punisse os ataques diretos. Só loucos rematados ou pessoas com tédio à vida poderiam publicar impressos em que diretamente afirmassem que se pode desobedecer ao chefe da nação. A esse respeito, os arteiros e temerários só inculcam malignas ironias, alegorias, epigramas, parábolas e romances, que são ainda de maior perigo, espalhando-se pelo vulgo. Muitas vezes, tais ataques indiretos são tão pungentes e evidentes que parecem apontar com o dedo os objetos contra os quais os mal-intencionados dirigem os seu tiros, ainda que os não nomeiem.

Outro ponto defendido pelo apoiadores de uma Lei de Imprensa dura foi a inclusão dos livros entre os escritos passíveis de processo judicial. Em reação, os adversários argumentaram que essa ideia não fazia sentido porque a população do Império era majoritariamente analfabeta — segundo o Censo de 1872, o primeiro do Brasil, não sabiam ler e escrever por volta de 80% das pessoas livres; entre os escravizados, o índice era de 99%.

— O livro que tivesse para cima de 100 páginas, este poderia circular. O povo não o lê nem quer que se lhe leia um livro assim. Lê folhas avulsas, e não livros, mormente se são dos que exigem mais aturada reflexão. Portanto, o livro pode muito bem passar, porque à liberdade de imprensa deve dar-se toda a extensão — disse o Marquês de Caravelas.

Apropriando-se justamente do argumento do analfabetismo, os governistas apresentaram outra ideia para tentar calar os adversários de D. Pedro I. Eles pediram que a futura Lei de Imprensa punisse também os desenhos. O senador Saturnino (MT) discursou:

— Quem duvida que pela estamparia se pode fazer, e de fato se tem feito, uso da poderosa arma do ridículo para abater, desacreditar e ainda transtornar os atos do governo dos quais muitas vezes pode depender a segurança do Estado?

Recorrendo a eufemismos, ele ainda tocou na delicada questão das gravuras pornográficas:

— Quem também duvida que a estamparia fornece o meio de espalhar pinturas indecentes, que corrompem a moral pública, principalmente na mocidade pouco acautelada, e que pela vulgarização de tais estampas se excitam paixões das quais podem resultar grandes males à sociedade?

 

 

Charge francesa trata da briga de D. Pedro I com o irmão D. Miguel pelo trono português: imperador jamais permitiria tal caricatura na imprensa brasileira (imagem: Honoré Daumier)

 

Um dos argumentos mais recorrentes dos aliados de D. Pedro I no Senado foi a Revolução Francesa, de 1789, marcada tanto pela convulsão social quanto pelo guilhotinamento do rei e pela derrubada do absolutismo monárquico. Apoiados nesse episódio, os senadores governistas sugeriram que a Lei de Imprensa punisse não só a palavra escrita, mas também a falada. Cayru continuou:

— O abuso nas palavras é a maior arma dos traidores. A hórrida prova se viu na Revolução da França tanto pela devassidão dos impressos malignos como pela verbal propagação de doutrinas subversivas em clubes, corpos de guarda, sociedades e até pelas inflamatórias pregações dos saltimbancos. Guardemo-nos dos horrores dos que, com gritarias, açulavam [incitavam] a plebe na França a enforcar nas lanternas das ruas, apelidando “aristocratas”, as pessoas mais distintas por seus títulos e serviços à nação. Para que fazermos ilusão, se este mesmo mal está entre nós e sobre nós?

Para os senadores da oposição, esse discurso do medo era balela.

— Não tem paridade o exemplo. Será o mesmo entre nós, uma nação pacífica, que uma nação revoltosa que não conhece lei, mas só o impulso do seu delírio em fermentação? — rebateu o senador Borges (PE). — Digo que, em tal caso [sendo as falas enquadradas na Lei de Imprensa], eu ficarei tremendo e não falarei mais, porque de minhas simples palavras se pode interpretar mal. Eu figuro um exemplo: se eu estiver fazendo um elogio a um ministro e der uma risada sardônica, será delito?

A imprensa no Primeiro Reinado era muito diferente da imprensa de hoje. Os jornais não noticiavam os acontecimentos, mas defendiam causas. A historiadora Tassia Toffoli Nunes, autora de uma dissertação de mestrado na Universidade de São Paulo (USP) sobre a liberdade de imprensa naquele tempo, explica:

— Os jornais foram espaços que as elites criaram para expor suas ideias políticas. Certas publicações faziam a defesa do governo; outras, a crítica. Para usar uma expressão da atualidade, o que se dava por meio da imprensa era uma guerra de narrativas. Sendo uma guerra, muito do que se publicava, claro, não era verdade. E não existiam jornais grandes, consolidados, profissionais. Eles normalmente rodavam algumas edições e desapareciam, sendo logo substituídos por novos títulos.

 

 

Em artigo, jornal Astrea pede a aprovação de uma lei que garanta a liberdade de imprensa (imagem: Biblioteca Nacional Digital)

 

D. Pedro I se preocupava com os jornais oposicionistas porque sabia que, mesmo a população sendo majoritariamente iletrada, a imprensa tinha, sim, influência sobre a sociedade. Foi por essa razão que, durante os três séculos do período colonial, Portugal jamais autorizou que se instalassem tipografias ou circulassem jornais no Brasil. A imprensa só foi permitida em 1808, quando D. João VI transferiu a sede do governo português de Lisboa para o Rio de Janeiro. Jornais e panfletos, de fato, acabaram sendo importantes na disseminação das ideias que levaram à Independência.

Ciente dessa influência, o soberano adotou a estratégia de apoiar jornais governistas que se contrapusessem às “folhas incendiárias”. Na Assembleia Constituinte de 1823, o deputado Carneiro da Cunha (PB) acusou D. Pedro I de pedir aos presidentes (governadores) das províncias que assinassem e distribuíssem nas repartições públicas o jornal O Regulador Brasileiro, escancaradamente pró-imperador.

Numa das edições, o jornal procurou criminalizar o mundo da política afirmando que, para o bem do Brasil, o Parlamento a ser criado pela Constituição não deveria ser autônomo, mas, sim, obediente ao monarca, uma vez que este seria o único capaz de fazer frente aos “abusos” dos legisladores.

Em 1829, o senador Borges disse que, a mando do governo, dois jornais publicavam fake news contra os parlamentares da oposição:

— Toda esta cidade [Rio de Janeiro] sabe como têm sido tratados os membros do Corpo Legislativo. E não vimos essa Gazeta do Brasil, que não teve outra tarefa mais que injuriá-los? E, se ela acabou, não vão aparecendo já certas alegorias nessa outra gazeta intitulada O Analista, que coincide com a primeira, porque admite injúrias muito palpáveis, apesar de se não publicarem os nomes das pessoas a quem são dirigidas?

Com frequência, o próprio D. Pedro I saía em defesa de seu governo nos jornais e assinava artigos disfarçado sob pseudônimos como Ultra Brasileiro, Constitucional Puro, Inimigo dos Marotos e Piolho Viajante.

Quando estava menos propenso aos argumentos, porém, ele podia partir para a violência. É conhecido o episódio em que seu braço-direito e ministro José Bonifácio de Andrada e Silva arbitrariamente mandou fechar jornais adversários no Rio de Janeiro. Episódio nebuloso foi o atentado contra o jornalista Luís Augusto May, do jornal oposicionista A Malagueta. May foi atacado em casa por homens encapuzados e por pouco não foi assassinado. A suspeita recaiu sobre Bonifácio.

 

 

Jornal governista O Regulador Brasileiro pede mais poderes para D. Pedro I e menos poderes para o Parlamento (imagem: Biblioteca Nacional Digital)

 

De acordo com o historiador Antonio Barbosa, professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB), a tendência despótica do imperador é explicada pelo momento histórico mundial em que ele viveu:

— No caso de D. Pedro I, o autoritarismo e os embates constantes com o Parlamento e a imprensa não podem ser interpretados como falha de caráter. Ele foi criado e educado para ser um monarca absolutista, como haviam sido seu pai, sua avó e todos os seus antepassados em Portugal. Quando chegou a sua vez de assumir o trono, contudo, a história acabava de virar a página, saindo do tempo do absolutismo, em que o rei governa em nome de Deus e tem poderes ilimitados, e entrando no tempo do liberalismo, em que o rei precisa seguir a Constituição e negociar com o Parlamento. O grande marco mundial dessa mudança foi a Revolução Francesa. D. Pedro I não soube lidar com a mudança dos ventos da história.

Barbosa acrescenta que o autoritarismo do primeiro imperador do Brasil também se explica pelo contexto nacional:

— Em 1822, existiam vários projetos de Brasil que disputavam a hegemonia. O plano de D. Pedro I, em que o país independente seria uma Monarquia, não era o único. Houve grupos que lutaram para que o país se transformasse numa República e grupos que se mobilizaram para que o Brasil continuasse fazendo parte de Portugal. Para fazer o seu projeto prevalecer, D. Pedro I entendeu que precisava agir com mão de ferro.

 

 

Embora educado para ser absolutista como D. João VI, D. Pedro I foi obrigado a dividir o poder com o Parlamento (imagem: Debret/The New York Public Library)

 

Diante da resistência de D. Pedro I a aceitar a partilha do poder característica dos governos constitucionais, até mesmo o Senado, aliado natural do imperador, no fim da década de 1820 mudou de lado, juntou-se à Câmara e tornou-se adversário. Foi assim que a Lei de Imprensa de 1830 saiu do Parlamento diferente da desejada pelo monarca.

Apesar de prever até nove anos de prisão para quem cometesse abusos em jornais, livros, desenhos e discursos, inclusive críticas indiretas ao imperador, a nova lei estabeleceu que os réus seriam julgados por tribunais do júri — isto é, por cidadãos comuns, e não por juízes. Isso, na prática, acabou por anular todo o rigor contido na letra da lei. Ao contrário dos juízes, os cidadãos comuns normalmente estavam afastados das brigas políticas e costumavam absolver os jornalistas processados.

A historiadora Tassia Toffoli Nunes diz:

— Pouco depois da aprovação da lei, houve juízes e professores de direito que a criticaram a avaliando que ela levava à impunidade dos redatores. Isso quer dizer que o Parlamento conseguiu fazer frente à tendência absolutista e arbitrária de D. Pedro I e favoreceu a liberdade de imprensa.

Ela chama a atenção para o fato de a censura prévia das publicações não ter sido aventada em momento algum das discussões no Parlamento:

— Nem mesmo os senadores e deputados mais conservadores do Primeiro Reinado chegaram a propor a censura prévia. Esse tipo de abuso só seria colocado em prática no Brasil muito tempo mais tarde, no Estado Novo [1937-1945] e na ditadura militar [1964-1985]. Nesses dois períodos ditatoriais da República, regredimos a uma prática arbitrária característica dos tempos da Colônia.

Logo após a aprovação da Lei de Imprensa de 1830, o jornalista Líbero Badaró foi assassinado em São Paulo. Nas páginas de seu jornal, O Observador Constitucional, Badaró não poupava D. Pedro I. Embora não se tenha atestado o envolvimento do monarca, o crime comoveu a opinião pública e contribuiu para minar ainda mais o governo. Meses depois, em 1831, o imperador viu-se forçado a abdicar do trono.

A partir de 1830 e até o fim do Império, a imprensa brasileira foi, na prática, livre. O oposto de seu pai, D. Pedro II jamais se incomodou com as críticas publicadas. Foram frequentes as charges que o retrataram em situações ridículas. Um dos apelidos que os jornais adversários lhe deram foi Pedro Banana. Até mesmo fake news contra ele circularam sem sofrer repressão.

 

 

Embora jornais o ridicularizassem, D. Pedro II não perseguia a imprensa (imagem: Biblioteca Nacional Digital)

 

Numa carta à princesa Isabel, D. Pedro II explicou:

“Entendo que se deve permitir toda a liberdade nestas manifestações [da imprensa] quando não se dê perturbação da tranquilidade pública, pois as doutrinas exprimidas nessas manifestações pacíficas se combatem por meios semelhantes, menos no excesso. Os ataques ao imperador, quando ele tem consciência de haver procurado proceder bem, não devem ser considerados pessoais, mas apenas manejo ou desabafo partidário”.

Reportagem e edição: Ricardo Westin

Pesquisa histórica: Arquivo do Senado

Edição de multimídia: Bernardo Ururahy

Edição de fotografia: Pillar Pedreira

Montagem da Capa: Aguinaldo Abreu

Fonte: Agência Senado

 

 

SAIBA MAIS – Assista à conversa entre os Profs. Drs. Fábio Ferreira e Isabel Lustosa intitulada "O nascimento da imprensa no Brasil: entre D. João VI e D. Pedro I"

 

 

 

 

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As CPIs ao longo da História do Brasil

Niterói, 19 de maio de 2021.
Da Redação.


Depoimento de PC Farias à CPMI que resultou no afastamento de Collor /Fonte: Agência Câmara de Notícias.

Recorrentemente, as Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) estão nos noticiários e nas rodas de conversa dos brasileiros. No entanto, quando surgiu a primeira CPI do Brasil? Talvez influenciados pela memória, muitos pensem que foi no período posterior ao Regime Militar (1964 – 85), em especial a de PC Farias (1992) e a dos Anões do Orçamento (1993), que foram marcantes para aqueles que viveram os anos de 1990. Porém, quem apostou na própria memória, errou. Como a história não é uma ciência exata, pode-se entender que, dependendo do prisma, já nos anos iniciais do Império, o Brasil assistiu à sua primeira CPI. Dependendo da interpretação, foi na Era Vargas (1930 – 45), que houve a primeira Comissão Parlamentar de Inquérito.

Primeiro, há de se apontar as razões para duas possibilidades de interpretação. Sobre os que entendem que o surgimento deu-se no Império, o argumento baseia-se no fato de que, em 1826, um grupo de deputados e senadores uniram-se para fiscalizar o Banco do Brasil, que vivia uma séria crise, não muito diferente do contexto político e econômico do país à altura. Embora à época não tenha sido usado o termo CPI, mas comissões auxiliares, na prática a atuação conjunta dos parlamentares foi a da fiscalização, cerne das CPIs atuais.

 

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Para os que arrogam que foi durante a Era Vargas que o Brasil teve a sua primeira CPI, o argumento consiste no fato de que na constituição de 1934 já havia a previsão do estabelecimento de Comissão Parlamentar de Inquérito com a função fiscalizadora, ou seja, com a mesma designação e fins dos dias atuais. Os Estados também foram autorizados a realizarem as suas respectivas CPIs, sendo apenas o de São Paulo e o do Mato Grosso que declinaram dessa possibilidade. Curiosamente, em um período de exceção surgia a possibilidade de instalação de CPIs nos âmbitos nacional e estadual.

De acordo com a carta magna de 1934, apenas a Câmara dos Deputados tinha a prerrogativa de criar uma CPI, desde que se tivesse um terço dos membros da casa. Diferentemente dos dias de hoje, o Senado Federal não tinha tal competência. Em 1935, a partir de requerimento assinado por 106 parlamentares, foi estabelecida a CPI relativa às “condições de vida dos trabalhadores urbanos e agrícolas”.]

 

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Advogado e opositor ao governo federal, o deputado baiano João Mangabeira foi quem pediu a criação da comissão, que, uma vez instalada, além da sua participação, teve como presidente o advogado Victor Russomano (deputado pelo Rio Grande do Sul) e, como vice, o oposicionista José Augusto Bezerra de Medeiros (Rio Grande do Norte), além de outros membros como o empresário carioca Eduardo Duvivier, o paulista Aniz Badra, intitulado deputado classista (modalidade de parlamentar existente no período), que representava empregados da lavoura e pecuária, e o baiano Lima Teixeira, classista representante dos empregadores da lavoura e da pecuária, dentre outros nomes.

Em 1937, com o Estado Novo, o Brasil ganhou uma nova constituição, que não previa CPIs. Estas só foram retomadas na carta de 1946. Durante o Regime Militar surgiram as Comissões Parlamentares Mistas de Inquéritos (CPMIs), compostas por deputados e senadores, que, por sua vez, tinham um determinado período de tempo para realizarem suas investigações.

 Em foto do acervo do Arquivo Nacional, o Palácio Tiradentes, no centro do Rio: palco da CPI de 1935.

Ao longo do século XX, o Brasil teve CPIs que investigaram os mais distintos temas, que incluíram de questões separatistas (em 1965 em relação ao Acre) à fuga de cérebros (1968), passando pela devastação da Amazônia (1979 e 1989), Violência Urbana (1980) e corrupção (infelizmente, inúmeras, impossíveis de se pontuar).  

 

 

 

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GETÚLIO

Cartaz do filme Getúlio.

Cartaz do filme Getúlio.

Direção: João Jardim/Roteiro: George Moura

Elenco:  Tony Ramos, Drica Moraes, Alexandre Borges, Thiago Justino, Alexandre Nero, Jackson Antunes, Clarice Abujamra, Fernando Eiras e Daniel Dantas.

Coprodução: Globo Filmes, Copacabana Filmes, Fogo Azul Filmes, Midas Filmes.

O filme de João Jardim aborda os últimos dias de vida do presidente Getúlio Vargas (Tony Ramos), com o profundo entrelace entre a vida pessoal do personagem, o seu governo democrático e a História do Brasil. 
A película inicia-se com o famoso atentado a Carlos Lacerda (Alexandre Borges) na rua Tonelero, em Copacabana, que resulta no assassinato de militar da Aeronáutica. Nas próximas horas do filme, o espectador assiste à investigação criminal e, em especial, as consequências na política nacional e para Vargas do crime em questão. Pouco a pouco, vai-se, nesse thriller político e psicológico, desvendando-se um Vargas fragilizado não só politicamente, mas, também, emocionalmente, cansado das intrigas típicas dos jogos de poder. Vai-se, assim, descortinando um personagem que os âmbitos político e pessoal estiveram, por décadas, intrinsecamente ligados. Em seu crepúsculo, seja como homem público, seja como indivíduo, um inocente Vargas descobre paulatinamente o quão perto de si estava o “mar de lama”, expressão utilizada por seus opositores, que a política brasileira e o Catete estavam mergulhados. O filme termina com o já conhecido desfecho trágico da situação, para, em seguida, brindar o público com várias imagens da época.
Brilhantemente, Tony Ramos e Drica Morais interpretam, respectivamente, o personagem título e a sua filha. Mesmo não guardando semelhanças físicas com o presidente em questão, vê-se, em Tony Ramos, Getúlio Vargas. Drica passa ao público o drama de Alzira, filha que vê o declínio político e pessoal de seu pai. Alexandre Borges faz o ferrenho opositor do líder máximo da nação. Jackson Antunes dá vida ao vice, Café Filho, desejoso de poder, mesmo que para isso venha a trair Vargas. Enigmático, Thiago Justino interpreta Gregório Fortunato.
Importante pontuar que as lentes de Jardim captam com maestria a beleza ímpar do Palácio do Catete. Valendo-se do cenário em que os fatos históricos se desenrolaram, o diretor realiza vários takes, que apontam a dramaticidade do momento da História do Brasil e dos Vargas.
Assim, Vargas é uma produção brasileira que traz ao público parte da história republicana em um interessante filme, valorizado, também, pela beleza estética da película, pelos ótimos atores que interpretam com maestria personagens históricos e com roteiro que prende o espectador do início ao fim. Vale muito assistir! 

 

Saiba mais sobre a Era Vargas clicando aqui.

 

Tony Ramos como Vargas.

Tony Ramos como Vargas.

 

 

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Rio Antigo

Costuma-se dizer que, depois de Paris, o Rio de Janeiro é a cidade do mundo mais retratada em ilustações e fotografias. Se a afirmação é verdadeira, não importa. Fato é que o acervo fotográfico dedicado à antiga capital do Brasil é extenso e farto, favorecendo, desse modo, a construção da presente seção. Buscando compartilhar um pouco do passado com o público, abaixo, fotos do Rio, divididas em sub-seções: Região Central, Zona Sul, Zona Norte e Zona Oeste. Agora é rolar a barra e curtir belíssimas fotos que trazem parte da história da cidade maravilhosa, "coração do meu Brasil".

 

Região central da cidade
Cinelândia

 

Palácio Monroe.

Palácio Monroe, que sediou o Senado Federal.

 

Vista área do Monroe.

Vista área do Monroe: ao fundo, o aeroporto Santos Dumont e, do outro lado da baía, a cidade de Niterói.

 

 

Cinelândia à época da destruição do Monroe (1976)

Cinelândia à época da destruição do Monroe (1976)

 

 

 

Antigo Largo da Mãe do Bispo: área destruída, compondo, atualmente, a Cinelândia.

Antigo Largo da Mãe do Bispo: área destruída, compondo, atualmente, a Cinelândia.

 

 

Palácio Pedro Ernesto visto a partir do Municipal.

Palácio Pedro Ernesto visto a partir do Municipal.

 

Morro do Castelo

 

Ladeira da Misericórdia: no alto da via localizava-se o Lgo do Castelo, com o prédio do Colégio dos Padres Jesuítas. Após a demolição do morro (1922), restou, ao lado da Igreja de N. Sra. do Bonsucesso, pequeno trecho da rua.

Ladeira da Misericórdia: no alto da via localizava-se o Lgo do Castelo, com o prédio do Colégio dos Padres Jesuítas. Após a demolição do morro (1922), restou, ao lado da Igreja de N. Sra. do Bonsucesso, pequeno trecho da rua.

 

 

Herança colonial: Igreja dos Jesuítas.

Herança colonial: Igreja dos Jesuítas.

 

 

Destruição do morro do Castelo (1922): derrubada da igreja de S.-Sebastião.

Destruição do morro do Castelo (1922): derrubada da igreja de S.-Sebastião.

 

 

Igreja de Santa Luzia. Ao fundo, explanada do Castelo.

Igreja de Santa Luzia. Ao fundo, explanada do Castelo.

 

 

 

Largo de São Francisco

 

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Prédio do IFCS: 1850.

 

Prédio para abrigar a exposição de 1922.

Prédio do IFCS: 1890.

 

Prédio para abrigar a exposição de 1922.

Prédio para abrigar a exposição de 1922.

 

Década de 1940.

Década de 1940.

 

Igreja do Largo de São Francisco (década de 1930).

Igreja do Largo de São Francisco (década de 1930).

 

 

Vista de parte do Largo de São Francisco.

Vista de parte do Largo de São Francisco.

 

 

Zona Sul
 

 

Vista área do Leblon, Ipanema, Lagoa e morro do Corcovado (1938).

Vista área do Leblon, Ipanema, Lagoa e morro do Corcovado (1938).

 

 

Lagoa Rodrigo de Freitas (1957)

Lagoa Rodrigo de Freitas (1957)

 

 

 

Zona Norte

 

Prédio da Fundação Oswaldo Cruz, em Manguinhos.

Prédio da Fundação Oswaldo Cruz, em Manguinhos.

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O Quinze

Direção/Roteiro: Jurandir de Oliveira
Elenco:  Juan Alba, Karina Barum, Jurandir de Oliveira, Soia Lira e Maria Fernanda
Produção: Brasil, 2004 (1h40min)

o-quinzeO filme é adaptação do romance homônimo de Rachel de Queiroz, que tem como base a seca de 1915, que assolou o sertão cearense. A película é uma oportunidade do espectador entrar em contato com a literatura brasileira, com uma parte da História do Brasil e com a cultura do Nordeste do país – sendo a trama, inclusive, a história dos antepassados de muitos que, hoje, estão em capitais como Fortaleza, Rio de Janeiro e São Paulo.
A obra cinematográfica mostra momento da história do Ceará repleto de adversidades, quando a seca expulsa uma série de habitantes da região de Quixadá, desestruturando a economia e diversas famílias. Para sobreviver à seca e ter capital para migrar, o vaqueiro Chico Bento desfaz-se de seus bens e sonha com uma vida melhor para os seus, cogitando ir para a Amazônia e viver da borracha. Porém, o personagem está longe de lograr o seu plano de uma vida melhor.
Impossibilitado de abandonar Quixadá pelos caminhos de ferro, Chico, a esposa, Cordulina, a filha adotiva Mocinha e seus quatro meninos partem por terra, enfrentando duro percalço no trajeto, que inclui a fome, o consumo de pouca água, que, a seu turno, é de péssima qualidade, e a dilapidação dos poucos bens que possuem – basicamente uma mula e quantidade ínfima de dinheiro – para sobreviverem nas vias que cortam o sertão do Brasil. No entanto, a mais dura adversidade que Chico enfrenta é ver sua família ser dilacerada. Em função da fome, Josias come mandioca brava, vindo a falecer. Mocinha se separa dos familiares diante de oportunidade de trabalho. Pedro desaparece, acreditando-se que partiu com tropeiros, mas, na verdade, a família que se desfaz pelo interior do Ceará não sabe o que realmente aconteceu com o menino. Manuel (Duquinha) é, em Fortaleza, dado à sua madrinha Conceição.
Por outro lado, o drama de Chico Bento vai além de assistir ao esfacelamento da sua família. Em uma sociedade patriarcal, inserida em um mundo onde a maioria esmagadora busca apenas sobreviver e o pragmatismo das ações é importante estratégia para não morrer, pesa nos ombros de Chico a responsabilidade pelo bem estar da família, prover o sustento dos seus, bem como recai-lhe a tentativa de salvar o filho que, envenenado, agoniza frente aos seus olhos. Também, segundo a película, é sobre Chico que incide a palavra final sobre dar ou não o seu filho Duquinha para Conceição.
Após passar por campo de concentração em Fortaleza para os flagelados, com a ajuda de Conceição, Chico consegue ir para São Paulo. Entretanto, a esta altura, sobra-lhe apenas a mulher e um filho. Partem. Deixam sua terra de origem. Em seguida, vem o fim da seca, oportunidade de recomeço para os que ficam e sobreviveram à seca.

Uma outra Carlota: evento realizado na Biblioteca Nacional apresenta novo perfil de Carlota Joaquina, fruto de recentes pesquisas desenvolvidas no âmbito das universidades brasileiras.

Niterói, 19 de setembro de 2013. 

 


A Biblioteca Nacional teve como convidados, na última terça-feira (17) , para o ciclo de debates "Biblioteca Fazendo História", os historiadores Francisca Azevedo (UFRJ) e Fábio Ferreira (UFF). O evento ocorreu no auditório Machado de Assis e teve como tema "Carlota Joaquina e as conspirações na corte". O debate, mediado por Marcello Scarrone, durou quase duas horas e foi transmitido, ao vivo, através do Instituto Embratel. 

 

À esquerda, a Prof.ª Dr.ª Francisca Azevedo (UFRJ). À direita, o Prof. Dr. Fábio Ferreira (UFF). Ao centro, Marcello Scarrone, mediador do debate.

À esquerda, a Prof.ª Dr.ª Francisca Azevedo (UFRJ). À direita, o Prof. Dr. Fábio Ferreira (UFF). Ao centro, Marcello Scarrone, mediador do debate.


Na ocasião, a Prof.ª Dr.ª Francisca Azevedo mostrou ao público o porquê do tratamento caricaturarizado de Carlota Joaquina. A historiadora apontou que este perfil deve-se, basicamente, a dois fatores. O primeiro, a questões de gênero, pois os contemporâneos da princesa do Brasil e da Rainha de Portugal realizaram relatos depreciativos pelo fato da personagem não enquadrar-se no papel que esperava-se de uma mulher da época. Carlota intervinha em situações e arranjos políticos reservados aos homens. Era decidida e afrontava-os. "Um dos relatos é o de madame Junot, extremamente preconceituoso em relação às sociedades ibéricas e, assim, ela foi implacável com Dona Carlota. Ela queria que Carlota fosse tal qual uma aristocrata francesa" contou Francisca Azevedo aos participantes do debate e complementou "Oliveira Lima, um dos maiores escritores sobre o período joanino, absorveu as ideias de madame Junot para reconstituir a imagem de Carlota Joaquina." 


Outra razão mencionada por Francisca Azevedo foi a historiografia liberal e a republicana. Inicialmente, Carlota Joaquina tinha a simpatia dos liberais de Portugal, pois sempre desejou abandonar o Brasil e retornar à península ibérica. No entanto, uma vez de volta à Europa, frente ao controle que os liberais tinham de Portugal, a Rainha consorte indispôs-se com este grupo político. Rejeitou assinar a carta constitucional, bem como, posteriormente, apoiou as pretensões absolutistas de D. Miguel. Além de não emoldurar-se no papel social dado às mulheres da época, Carlota Joaquina mostrava-se favorável ao absolutismo. Quando intelectuais liberais debruçaram-se para escrever suas versões da História de Portugal e do Brasil trataram Carlota Joaquina depreciativamente. 

 

No evento, Francisca Azevedo analisou o cartaz do filme “Carlota Joaquina, Princesa do Brasil” (Brasil, 1995), de Carla Camurati. Segundo a historiadora, a imagem reflete o imaginário popular sobre a personagem: luxuria e arrogância.

No evento, Francisca Azevedo analisou o cartaz do filme “Carlota Joaquina, Princesa do Brasil” (Brasil, 1995), de Carla Camurati. Segundo a historiadora, a imagem reflete o imaginário popular sobre a personagem: luxuria e arrogância.

 

Em sua fala, o Prof. Dr. Fábio Ferreira apontou as pretensões de Carlota Joaquina de assumir a regência da Espanha, uma vez que seus familiares estavam aprisionados na França por Napoleão Bonaparte. Narrou que Carlota Joaquina articulou com importantes lideranças políticas da Península e das Américas, a mencionar o portenho Manuel Belgrano como um dos exemplos. Fabio Ferreira mostrou que frente aos benefícios que o Rio de Janeiro recebeu com a presença de D. João, cidades como a do México e Buenos Aires tentaram levar Carlota Joaquina para comandar o Império espanhol a partir dos seus respectivos territórios. O historiador mostrou o perfil de articuladora política da esposa de D. João, bem como dados empíricos que mostram que Carlota destoava das mulheres de então. 


O pesquisador ainda levou ao público que, por diversos momentos, Carlota Joaquina quase alcançou o poder político. Primeiramente, pelos diversos abortos de sua mãe, que não dava descendência varonil à casa de Bourbon havia a expectativa de Carlota Joaquina ser, futuramente, a rainha da Espanha. Porém, quando Carlota tinha praticamente 10 anos, nasceu o primeiro varão dos Bourbon, o futuro Fernando VII, malogrando a possibilidade da então infanta espanhola de vir a chegar ao trono. Prosseguindo, o historiador Fábio Ferreira contou que, por pouco, na conspiração do Alfeite (1806), Carlota Joaquina não tornou-se regente de Portugal, no lugar de D. João. Também, por um triz, na ocasião do aprisionamento de sua família de origem, Carlota Joaquina não foi regente da Espanha. Por fim, por bem pouco, o projeto carlotista não vingou no Prata. Em tom de brincadeira, Fábio verbalizou que "Me dá a impressão que Carlota era azarada! Inúmeras vezes ela flerta com o poder político, quase o alcança, mas, por diversas circunstâncias, ela nunca o alcança." 

 

"A Espanha revogou a lei sálica (que impedia que mulheres chegassem ao tronol) em função de Carlota Joaquina, para que existisse a possibilidade dela vir a torna-se, futuramente, rainha espanhola. Mas, com o nascimento de seu irmão Fernando (1784), anulava-se, ao menos neste momento, a possibilidade de Carlota Joaquina governar a Espanha." disse o historiador Fábio Ferreira.

 

Uma questão levantada pelo público presente foi relativa à possibilidade de Carlota Joaquina ter tido vários amantes. "Se a D. Carlota teve ou não teve, não posso dizer! Pesquisei em arquivos do Brasil, da Argentina e da Espanha e não encontrei documentos que comprovem. Se ela tinha, ela fez tudo muito bem feito, de maneira que não deixasse provas!" disse Francisca Azevedo. Por outro lado, o historiador Fábio Ferreira expôs que "Praticamente ninguém se lembra que D. João chegou a ter uma filha com uma de suas amantes". 


Em tom de um leve bate-papo e em função de recentes pesquisas científicas desenvolvidas no âmbito das universidades brasileiras, o evento trouxe ao público uma Carlota Joaquina diferente da representada por séculos, seja por boa parte da historiografia em língua portuguesa, seja por parte de produções que alcançaram a TV e o cinema brasileiros, que acabaram por enveredar pela abordagem do personagem histórico pelo viés caricatural e depreciativo. Os historiadores Fábio Ferreira e Francisca Azevedo foram categóricos ao afirmar que a Carlota Joaquina que emerge das pesquisas acadêmicas é muito mais interessante e complexa do que a caricatura que é conhecida pela maioria da população. 

 


Representações de Carlota Joaquina nas telas da TV e do cinema nos últimos 30 anos. 

 

A Marquesa de Santos (Rede Manchete, 1984)

 

Personagem forte para uma grande atriz: Bibi Ferreira interpreta Carlota Joaquina na minissérie baseada no livro de Paulo Setúbal e adaptada por Carlos Heitor Cony e Wilson Aguiar Filho.

Personagem forte para uma grande atriz: Bibi Ferreira interpreta Carlota Joaquina na minissérie baseada no livro de Paulo Setúbal e adaptada por Carlos Heitor Cony e Wilson Aguiar Filho.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Dona Beija (Rede Manchete, 1986) 

 

Carlota Joaquina (Xuxa Lopes): austera e sensual na trama baseada no romance do mineiro Agripa Vasconcelos e adaptada para a TV por Wilson Aguiar Filho com direção de Herval Rossano e David Grinberg.

Agripa Vasconcelos e adaptada para a TV por Wilson Aguiar Filho com direção de Herval Rossano e David Grinberg.

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Carlota Joaquina, princesa do Brasil (Brasil, 1995)

 

Na sátira cinematográfica de Carla Camurati é a vez de Marieta Severo interpretar Carlota Joaquina.

Na sátira cinematográfica de Carla Camurati é a vez de Marieta Severo interpretar Carlota Joaquina.


 

 

 

O Quinto dos Infernos (Rede Globo, 2002) 

 

Carlota Joaquina volta às telas em mais uma comédia com tons caricaturais. Desta vez, Betty Lago é quem dá vida à princesa do Brasil. A minissérie foi escrita por escrita por Carlos Lombardi, Margareth Boury e Tiago Santiago, com direção geral de Wolf Maya.

A minissérie foi escrita por escrita por Carlos Lombardi, Margareth Boury e Tiago Santiago, com direção geral de Wolf Maya.

 

Para saber mais sobre Carlota Joaquina no acervo da Revista Tema Livre: 

Entrevista com a Prof.ª Dr.ª Francisca Azevedo 

– Artigo do historiador Fábio Ferreira sobre Carlota Joaquina e o Prata:
"A Presença Luso-brasileira na Região do Rio da Prata: 1808-1822" 

Lançamento do livro "Carlota Joaquina na corte do Brasil" 

Exposição sobre os 200 anos da chegada da corte ao Brasil: "Um Novo Mundo, Um Novo Império: A Corte Portuguesa no Brasil" 

– Veja fotos do Palácio de Queluz, onde Carlota Joaquina passou parte de sua vida em Portugal. 

Paço Imperial: matéria sobre o centro político do Império português no período joanino 

 

 

 

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Chatô, o Rei do Brasil

Cartaz do filme "Chatô, o rei do Brasil".

Cartaz do filme “Chatô, o rei do Brasil”.

Direção: Guilherme Fontes/Roteiro: João Emanuel Carneiro, Matthew Robbins e Guilherme Fontes (Baseado em Chatô, o Rei do Brasil, livro de Fernando Morais)

Elenco: Marco Ricca, Andréa Beltrão, Paulo Betti, Leandra Leal, Eliane Giardini, Zezé Polessa, Gabriel Braga Nunes, Walmor Chagas, José Lewgoy.

Produção: Guilherme Fontes Filmes/Brasil, 2015, 1h42.

 

O próprio filme já tem história. Em 1995, no contexto do chamado renascimento do cinema nacional, cujo marco é “Carlota Joaquina, Princesa do Brasil”, o ator Guilherme Fontes anunciou que realizaria a cinebiografia do empresário Assis Chateaubriand (1892 – 1968), também conhecido como Chatô. A base da obra cinematográfica era o livro homônimo do escritor Fernando Morais. A estreia estava prevista para 1997.

Porém, não foi isto o que aconteceu. A película só estreou 20 anos depois, ou seja, em 2015. O leitor que, eventualmente, não conhece a história envolvendo a produção – que não é o objetivo do presente texto – provavelmente se questionará a razão da demora. Neste longo período, além de não conseguir finalizar o filme ainda na década de 1990, houve uma série de acusações contra Fontes, como a de que este teria empregado mal o dinheiro que recebeu via leis de incentivo fiscal e a polêmica chegou aos tribunais. Muitos disseram que a cinebiografia sequer existia. Finalmente, após idas e vindas na justiça, o filme estreou em 2015 nos cinemas brasileiros e hoje está disponível na Netflix.

Cinelândia e Palácio Pedro Ernesto no centro do Rio: parte da bela reconstituição de época do filme.

Cinelândia e Palácio Pedro Ernesto no centro do Rio: parte da bela reconstituição de época do filme.

Em relação aos seus méritos, pode-se elencar, por exemplo, que em termos quantitativos, a produção incrementou o número de filmes nacionais, gerou empregos e movimentou economicamente a indústria cinematográfica do Brasil. Além disto, trouxe um respeitável time de atores, o filme é bonito no aspecto estético, em suas externas tem bela reconstituição do Rio da época e retoma importantes personagens da história nacional. Também mostra ao público o quão promiscuas podem ser as relações entre empresas privadas e o poder político. Em conjunto com a história de vida do personagem, Fontes perpassa por parte da história do Brasil e dos veículos de comunicação do protagonista, como seus jornais, revistas e emissoras de rádio e televisão. Está no filme, dentre outros tópicos, parte da história da TV Tupi, dos Diários Associados, da constituição do acervo do MASP e alianças e conflitos entre Chatô e Getúlio Vargas, bem como com os militares de 64, devido às dificuldades das já combalidas empresas do personagem-título de obterem verbas governamentais, sendo preteridas a favor de grupo empresarial concorrente que, então, colocava no ar sua TV com parte de capital norte-americano – em provável alusão ao caso Time-Life.

Cena que remete à inauguração da tv brasileira, em 1950.

Cena que remete à inauguração da tv brasileira, em 1950.

Sobre os vários problemas da obra, estão uma série de situações mal explicadas ou pseudocômicas, que serão, algumas delas, elencadas. Uma é que a cinebiografia não apresenta ao público em que momento de sua trajetória empresarial Chateaubriand “deu o pulo do gato”, transformando seus veículos de comunicação em empresas extremamente poderosas e influentes na sociedade brasileira de então. Não se sabe o quanto do êxito logrado pelo paraibano foi fruto de seu primeiro casamento ou de suas chantagens a outros empresários ou de suas articulações políticas ou até que parte da história o seu projeto empresarial era viável economicamente.

Igualmente sem explicação, “do nada”, como um flash no meio do filme, mostra-se Chatô contra a construção de Brasília, mas sem dizer o porquê. Teria Chatô um possível perfil udenista? Ou, então, já sabia das alianças de JK com empreiteiras para erguer a nova capital? Os que já conhecem os últimos meses de vida Vargas, conseguem identificar o atentado da Tonelero, porém, Gregório Fortunato vira Terêncio e, em um passe de mágica, Chateaubriand assume o papel de Lacerda, inclusive atacando veementemente Vargas na imprensa – no caso, na TV Tupi.

Personagem que participa do show que o moribundo Chatô vê-se envolvido.

Personagem que participa do show que o moribundo Chatô vê-se envolvido.

O aspecto pseudocômico está em tentativas inócuas de fazer graça com cenas que não possuem comicidade alguma – ou que talvez só façam as crianças do jardim de infância rirem – como a aplicação de uma injeção nas nádegas de Chatô. O tom de caricatura é exagerado, inclusive em várias interpretações, dando-se ao público personagens tão ridículos e caricatos como os das novelas mexicanas e inundando a tela de “canastrice”.

Outro ponto é que o Chateaubriand de Fontes é desnecessariamente devasso. Se Chatô fosse um filme como as pornochanchadas da década de 1970 haveria lógica mostrar as peripécias sexuais do personagem e, quiçá, seus respectivos detalhamentos. Porém, em uma cinebiografia que traz de forma pincelada e sem nexo fatos da vida de um personagem histórico, sem apresentar vários porquês de posicionamentos políticos ou como se concretizaram importantes medidas da trajetória empresarial de Chatô, seria melhor dedicar o tempo do sexo à consistência do filme.

Para completar as oportunidades perdidas para a realização de uma cinematografia nacional de extrema qualidade, está a opção de narrar a trajetória de Chateaubriand no seu leito de morte, quando, em seus devaneios, o protagonista repassa sua vida em um julgamento em uma espécie de programa de auditório tosco. Adota-se tom teatralizado, tons farsescos, podendo até serem interpretados como paródias da vida pública nacional. Talvez o diretor tenha tomado esta via para agradar a um determinado público, que está mais preocupado com o formado do que com o conteúdo.

Depois de quase duas horas, não se sabe se o que foi assistido foi a um filme de história, comédia ou drama. Mas fica a certeza de ter estado diante de um filme “trés chatô”! Em suma, foi perdida a chance de fazer-se algo realmente bom, que prendesse o espectador do início ao fim, agregando à película parte da história do Brasil, bem como o talento dos técnicos e artistas envolvidos no projeto, resultando, assim, em um produto que poderia, inclusive, ter representado o país no Oscar. Mas, não deu. Enquanto isto, perde-se cada vez mais público para os patéticos blockbusters hollywoodianos, para as redes sociais e até mesmo para a invasão de Pokémons.

Marco Ricca e Paulo Betti caracterizados, respectivamente, como Assis Chateaubriand e Getúlio Vargas.

Marco Ricca e Paulo Betti caracterizados, respectivamente, como Assis Chateaubriand e Getúlio Vargas.

Uma análise do discurso dos deputados orientais no Congresso Cisplatino

Por Fábio Ferreira

Fatos precursores à instalação do Congresso Cisplatino

Com o processo de emancipação do Vice Reino do Rio da Prata, o território que hoje corresponde à República do Uruguai, designada à época como Banda Oriental, mergulhou em uma árdua guerra civil, que levou à destruição de sua economia e à instabilidade política. A partir de 1811, quando José Gervásio Artigas rompeu com a Espanha e iniciaram-se os conflitos armados em solo oriental, Montevidéu foi controlada, no curto período de seis anos, por governos submetidos aos espanhóis, aos portenhos, às forças revolucionárias de Artigas e aos portugueses.
No que refere-se à presença lusa na Banda Oriental, observa-se que D. João organizou duas expedições militares para conquistar este território. A primeira ocorreu em 1811, no entanto, por pressões da Inglaterra e pela oposição de segmentos locais, o príncipe regente retirou, em 1812, suas forças do Prata. Porém, em 1815, D. João iniciou a organização de nova expedição para conquistar a antiga área de dominação espanhola. Para liderar a segunda invasão foi escolhido o general português Carlos Frederico Lecor, veterano das guerras napoleônicas. Lecor ocupou pacificamente Montevidéu em 20 de janeiro de 1817, após negociações com o Cabildo da cidade.
Uma vez no poder, o general continuou negociando e compondo politicamente com elementos da sociedade oriental, além de agir no sentido de enraizar a presença portuguesa na região. Como exemplo, durante a gestão lusa houve a concessão de títulos, condecorações e promoções na administração pública a segmentos da sociedade oriental, bem como vários casamentos de militares das forças joaninas com mulheres orientais, sendo que o próprio Lecor casou-se com Rosa Maria Josefa Herrera de Basavilbaso, em 1818. Neste mesmo ano, o general tornou-se, pelas mãos de D. João VI, Barão da Laguna.
Sobre a adesão dos orientais, Lecor trouxe para a sua órbita figuras locais de projeção, sendo que, muitos deles, anteriormente, foram coligados aos espanhóis, aos artiguistas e, futuramente, com a independência do Uruguai, permaneceram em posições de destaque na recém-nascida república. Mesmo com as diversas mudanças na conjuntura platina, vários elementos orientais conseguiram estar sempre atuando com relativa significância no jogo político local, ainda que a Banda Oriental fosse controlada por forças tão díspares, como, por exemplo, as de Artigas e as de Lecor.
Dos orientais aliançados ao general português e que tiveram destaque em outros momentos da história oriental, como o Congresso Cisplatino, podem ser citados Fructuoso Rivera, líder de milícias no interior da província e, a partir de 1830, presidente do Uruguai; o padre Dámaso Antonio Larrañaga, que compunha o Cabildo que negociou a entrada de Lecor em Montevidéu, além de ter sido eleito senador para representar a Cisplatina no Rio de Janeiro; Francisco Llambí, jurisconsulto e cabildante em 1817 e, após a independência oriental, ministro da república; o fazendeiro Tomás García de Zúñiga, que pelas mãos do Império do Brasil tornou-se Barão de la Calera; Juan José Durán, membro do Cabildo de 1817; e Jerónimo Pio Bianqui, igualmente cabildante à época da ocupação.
Em 1821, a continuidade da ocupação lusa das terras orientais encontrou-se ameaçada. A Revolução Liberal do Porto – que teve, também, adeptos nos domínios americanos dos Bragança, inclusive em Montevidéu, através de tropas de Lecor – alçou ao cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros e Guerra Silvestre Pinheiro Ferreira, opositor à permanência portuguesa no Prata. Por esta razão, em um dos seus últimos atos no Rio de Janeiro, em 16 de abril de 1821, dez dias antes de retornar definitivamente a Portugal, o monarca ordenou que Lecor realizasse em Montevidéu um congresso inspirado nas Cortes de Lisboa para que a sociedade local decidisse o seu futuro.
Como os interesses de Lecor e dos seus aliados eram pela permanência dos portugueses na região platina, agiram, o general e o estancieiro Juan José Durán, chefe político da província à época, no sentido de que o referido congresso votasse pela incorporação da Banda Oriental ao cetro joanino.
No que refere-se ao contexto oriental, a ordem para a realização do Congresso foi expedida depois de vários anos de conflitos armados que devastaram a Banda Oriental, destruição esta que foi registrada por vários contemporâneos à ocupação de Lecor, como, por exemplo, Saint-Hilaire , Emeric Essex Vidal e Breckenridge . Assim, à época da designação do Congresso, a sociedade oriental vivia relativa paz, conseguindo, inclusive, alguma recuperação econômica e, além disto, interessava a orientais ligados ao setor produtivo a união à Coroa lusa, por esta acenar com perspectivas como a da realização de transações comerciais com os seus vastos domínios, fatores que fortaleciam politicamente o projeto da incorporação ao Reino Unido português.
Deste modo, diante do exposto, qual o posicionamento dos congressistas frente à missão de decidir (ou legitimar o já acertado nos bastidores políticos) o futuro oriental? Seguir com a Casa de Bragança ou abandoná-la? Qual a argumentação escolhida pelos deputados para legitimarem suas escolhas? Enfim, uma multiplicidade de questionamentos podem ser feitos em relação ao Congresso Cisplatino e, no item a seguir, serão demonstrados e analisados alguns deles.

O Congresso Cisplatino e a atuação dos parlamentares orientais

Para a reconstituição das reuniões do Congresso Cisplatino utiliza-se como fonte no presente artigo as suas atas, que encontram-se em Montevidéu, no Archivo General de la Nación. O conjunto documental é manuscrito em espanhol, composto de oitenta páginas, onde estão distribuídas as suas dezenove atas. Além disto, estes documentos apresentam as listagens e assinaturas dos deputados que estiveram presentes nas sessões, os seus discursos, as propostas e votações em questão, que perpassam da mesa diretiva até a decisão pela incorporação ao Reino Unido português, dentre outros elementos.
Sobre as amplas possibilidades analíticas que este conjunto documental oferece, o contato do historiador com a ata de cada sessão fornece-lhe valiosos dados acerca de vários aspectos da sociedade oriental de então. Como exemplo, através das atas identifica-se a boa aceitação que a ocupação portuguesa tinha junto a uma parcela dos segmentos dominantes da sociedade oriental. Igualmente, verifica-se a exclusão das camadas populares do congresso, o temor dos congressistas de que surgisse no território oriental uma nova liderança revolucionária como a de Artigas, além de uma série de aspectos políticos, econômicos e sociais da época.
Expostas as questões acima, as atas demonstram que o Congresso iniciou-se no dia 15 de julho de 1821, contando com doze deputados, e não dezoito conforme estipulado inicialmente. Como congressistas, estiveram na seção de abertura
Juan José Durán, Diputado por parte de esta Capital [Montevidéu], Presidente en esta Junta, como Gefe político de la Província: el Sor. Cura y Vicario D.or D. Dámaso Antonio Larrañaga, y el Sor. D. Tomás Garcia de Zúñiga también Diputados por esta Ciudad, así como su Síndico procurador general D. Gerónimo Pío Bianqui – el Sor. D. Fructuoso Rivera, y el Sor D.or D. Francisco Llambí, Diputado por el vecindario de extramuros – el Sor D. Luis Pérez, Diputado por el Departamento de S. José – el Sor D. José Alagón, Diputado por el de la Colonia del Sacramento – el Sor D. Romualdo Gimeno, diputado p.r el de Maldonado el Sor D. Loreto de Gomenzoro, Diputado por Mercedes como su Alcalde territorial: el Sor D. Vizente Gallegos, que lo es de Soriano y D. Manuel Lagos, del Cerro-Largo […]
Posteriormente, outros deputados apresentaram-se: no dia 16, Mateo Visillac, representante de Colônia do Sacramento e, no dia 18, Alejandro Chucarro, deputado pela vila de Guadalupe, Salvador García, síndico suplente da mesma localidade, Manuel Antonio Silva, síndico de Maldonado e Romualdo Gimeno, também deputado por Maldonado.
Mesmo com o atraso desses congressistas, elegeu-se a mesa diretiva a 15 de julho. Como presidente foi eleito Durán, como vice-presidente, Larrañaga, e como secretário, Llambí. Assim, os primeiros aliados que Lecor conquistou na Banda Oriental estiveram no comando do Congresso.
No segundo dia, a ameaça bélica que circundava os orientais já se fez presente através da seguinte mensagem que Lecor enviou aos congressistas, e que consta da ata da reunião do referido dia:
Señores del Muy Honorable Congreso extraordinario de esta Provincia= S.M. El Rey del reyno unido de Portugal, Brasil y Algarbes, ha tomado en consideración las repetidas instancias, que han elevado á su real Presencia, Autoridades muy respetables de esta Provincia, solicitando su incorporación á la Monarquía Portuguesa, como el único recurso que en medio de tan funestas circuntancias, puede salvar el País de los males de la guerra y de los horrores de la Anarquía. – Y deseando S.M. proceder en un asunto tan delicado con la circunspección q.e corresponde á la Dignidad de su Augusta persona, á la liberalidad, de sus principios, y al decoro de la Nación Portuguesa, ha determinado en la sabiduría de sus Consejos, que esta Provincia, representada en el Congreso extraordinario de sus Diputados, delibere y sancione en este negocio, con plena y absoluta libertad, lo que crea más útil y conveniente á la felicidad y verdaderos intereses de los pueblos que la constituyen. – Si el Muy Honorable Congreso tubiere á bien decretar la incorporación a la Monarquía Portuguesa, Yo me hallo autorizado por el Rey p.a continuar en el mando y sostener con el Ejército el órden interior y la seguridad exterior bajo el imperio de las Leyes. Pero si el Muy Honorable Congreso estimase más ventajoso á la felicidad de los pueblos incorporar la Provincia á otros estados ó librar sus destinos á la formación de un Gob.o independiente, solo espero sus decisiones para prepararme á la evacuación de este territorio en paz y amistad conforme á las órdenes Soberanas – La grandeza del asunto me excusa recomendarlo á la Sabiduría del Muy Honorable Congreso: todos esperan que la felicidad de la Provincia será la guía de sus acuerdos en tan difiiles circunstancias = Montevideo y julio diez y seis de mil ochocientos veinteuno = A los S.S. de Muy Honorable Congreso de esta Provincia = Barón de la Laguna [Lecor]=

Na mensagem de Lecor verifica-se a afirmação do general sobre a existência de autoridades locais que anelavam a união com a monarquia portuguesa, a vincular, ainda, em sua escrita, este desejo à manutenção da ordem e à salvação do território oriental. Associava-se, então, a manutenção da paz à permanência dos portugueses na região, estando o temor à possibilidade do retorno aos conflitos bélicos presente em diversas reuniões do Congresso.
Na sessão do dia 18 foi colocada em discussão pelo presidente, Juan José Durán, a questão da incorporação propriamente dita:
[…] se propuso por el Sor Presidente, como el punto principal p.a que había sido reunido este Congreso – si segun el presente estado de las circunstancias del Pais, convendría la incorporacion de esta Provincia á la Monarquía Portuguesa, y sobre que bases o condiciones; ó si por el contrario le sería más ventajoso constituirse independiente ó unirse á cualquiera otro Gobierno, evacuando el territorio las tropas de S.M.F.
O contato com as atas permite ao pesquisador identificar que Bianqui, Llambí e Larrañaga foram os únicos deputados que discursaram, sendo favoráveis à anexação à coroa bragantina, expondo os seus argumentos sempre fazendo menção à guerra. Neste conjunto documental podemos verificar que em sua fala Bianqui afirmou que transformar a província em um Estado era, no âmbito político, impossível. O deputado acrescentou que para sustentar a independência necessitavam-se de meios, no entanto, o território oriental não possuía população nem recursos para que fosse governado pacificamente. Os orientais não teriam como impedir uma guerra civil, nem ataques externos, nem como conquistar o respeito das outras nações, além de que haveria a emigração dos capitalistas, voltando, assim, a Banda Oriental, a ser o “teatro da anarquia” e “a presa de um ambicioso atrevido”.
Observa-se que Bianqui utilizou o temor existente no imaginário oriental do retorno aos conflitos em sua argumentação, pois se este medo não fosse presente, não haveria razão do congressista ter enfatizado a possibilidade do retorno ao “caos”, nem mencionaria a possibilidade do surgimento de “um ambicioso atrevido”, aludindo, provavelmente, a um possível aparecimento de alguma outra liderança revolucionária como a de Artigas. A ameaça bélica, independentemente de existir ou não, independente do congressista acreditar nela ou não, estava a ser trabalhada intencionalmente em seu discurso no Congresso Cisplatino, afinal as cicatrizes dos conflitos armados da década anterior permaneciam abertas e o território oriental continuava circundado por uma gama de províncias que ainda viviam os horrores das guerras desencadeadas desde a Revolução de Maio.
Bianqui, ao anular a possibilidade da Banda Oriental em constituir-se estado autônomo, apontava, em seguida, a necessidade de incorporar-se a outro estado, excluindo Buenos Aires e Entre Rios em função de seus respectivos conflitos internos. A Espanha também foi descartada, pois segundo o deputado oriental, os pueblos já haviam votado contra ela e que Madri foi incapaz de manter a paz na província. Deste modo, para o congressista, não havia outra opção que não fosse a incorporação à monarquia portuguesa sob uma constituição liberal. Com a manutenção do poder luso, dizia o deputado, impossibilitar-se-ia a anarquia, o setor produtivo continuaria as suas atividades, sendo, assim, restituídos os anos de prejuízos, e os “arruaceiros” teriam que dedicar-se ao trabalho ou então sofrer com o rigor das leis.
As atas também mostram ao pesquisador que, em seguida, Llambí discursou. Ele alertou sobre a alta probabilidade de que com a saída das tropas de Lecor o território oriental viesse a sofrer novas invasões ou, então, mergulharia em uma guerra civil. Sem entrar no mérito se a análise deste parlamentar foi ou não exagerada, ela insere-se perfeitamente no contexto social da Banda Oriental. Por exemplo, mesmo não estando, no momento do Congresso, em armas contra Lecor e os seus aliados, o governo de coalização luso-oriental não poderia confiar totalmente em elementos como Juan António Lavalleja e a família Oribe – apesar de terem existido diálogos e aproximações, ao longo da gestão do general, entre estes diversos atores políticos, não se pode ignorar que os Oribe e Lavalleja iniciaram, em 1825, uma guerra civil contra Lecor e o seu grupo político. Além disto, em relação ao âmbito externo à província, o contato com uma gama de documentos da administração Lecor mostram que os governos limítrofes tinham o interesse de controlar a Banda Oriental e chegaram a elaborar projetos para ocupá-la.
Seguindo com a fala de Llambí, este retomou, corroborando com Bianqui, os conflitos que a Banda Oriental sofreu nos anos anteriores, a afirmar, inclusive, que mais da metade da população foi dizimada, bem como as suas riquezas, e que os orientais perderam o pouco armamento que tinham. Supondo eventuais exageros, inclusive para justificar o seu voto e legitimar a permanência lusa, identifica-se, mais uma vez, a ida aos anos de guerra, traumatizantes e sempre associados a uma gigantesca destruição – o que, por outro lado, não é contrário a outras fontes, como os supracitados relatos dos viajantes da época. Igualmente, detecta-se a ideia de que estes anos foram tão devastadores que a Banda Oriental ainda carregava os pesados danos destes conflitos que duraram praticamente uma década. Portanto, ao desenvolver a sua argumentação neste sentido, provavelmente o parlamentar o fazia por haver público receptor, “terreno fértil” para suas ideias, e que provavelmente não haveria quem se lhe opusesse (ou se o houvesse seria facilmente rebatido).
Llambí também apontou a devastação que a província encontrava-se e utilizou-se desta situação para argumentar a incapacidade desta tornar-se independente, e retomou a questão da estabilidade, já levantada no Congresso: “[…] Un Gobierno independiente pues entre nosotros, sería tan insubsistente, como lo es, el del que no puede ni tiene medios necesarios para sentar las primeras bases de su estabilidad.”
A possibilidade da incorporação a outros estados também foi abordada por Llambí. O congressista listou a Espanha, Buenos Aires, Entre Rios e o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Castela foi descartada por razões como a distância, a sua impossibilidade de resolver as mazelas orientais e, ainda, porque levaria a conflitos armados no interior da província entre seus partidários e seus antagonistas. As guerras em que Buenos Aires e Entre Rios estavam envolvidas impossibilitavam, nas palavras de Llambí, a união da Banda Oriental a estes estados. Assim, o deputado expunha que “A cualquier parte que vuelvo la vista me veo amenazado de los efectos de esta [a guerra]; y si à todos se les presenta con el horroroso aspecto que á mí, ningún mal deberémos temer tanto como él.”
Llambi ainda afirmou que, de fato, a Banda Oriental estava em poder das tropas portuguesas, o que não se podia evitar, e que qualquer resolução dos orientais, por melhor que fosse, podia ser destruída por alguém que pudesse agrupar um pequeno número de combatentes. O aventurar-se nestas contingências seria uma imprudência que os congressistas teriam que responder eternamente aos pueblos.
Identifica-se no discurso de Llambí uma forte dose de pragmatismo ao destacar a fragilidade da província para sustentar-se independente. Se Llambí acreditava em sua argumentação, ou se a mesma foi um meio de justificar o seu voto e de congregar partidários em torno da opção acordada com Lecor, ou simplesmente uma mera encenação, não é o objetivo do presente artigo. Importante é detectar a constante utilização do temor do retorno aos conflitos armados e que o discurso do deputado é um meio para o historiador identificar que a sociedade oriental à época tinha o seu imaginário temeroso no que refere-se às guerras em seu território.
Após a fala de Llambí, conforme constata-se nas atas, Larrañaga foi o deputado que discursou, demonstrando uma posição pragmática e o rechaço em relação à guerra, revelando também uma espécie de trauma no que refere-se aos conflitos armados. Larrañaga afirmou que os orientais encontravam-se, desde 1814, abandonados pela Espanha. Buenos Aires e as demais províncias platinas fizeram o mesmo, deixando a Banda Oriental sozinha em uma guerra muito superior às suas forças e, por esta razão, o religioso anulou qualquer ligação do território com as províncias limítrofes e com a Madri. Assim, detecta-se que a questão dos conflitos bélicos estava presente na argumentação de mais um dos congressistas.
Outro ponto a se observar é que Larrañaga afirmou que após dez anos de revolução, a província estava distante do ponto de partida e que o dever dos congressistas era conservar o que restou do seu aniquilamento e, caso o conseguissem, seriam, então, verdadeiros patriotas. Pragmaticamente, Larrañaga conclamou os deputados a afastarem a guerra e a desfrutarem da paz e da tranquilidade através da união da província à monarquia portuguesa. No entanto, esta união seria sob determinadas condições: o padre defendeu a autonomia da Banda Oriental, propondo que esta fosse considerada como um estado separado, conservando-se, por exemplo, as suas leis e autoridades no conjunto do Império português.
Da mesma forma que os outros deputados, o contato com a ata da sessão que discutiu a anexação permite afirmar que Larrañaga utilizava a possibilidade do retorno à guerra como legitimadora da opção pela permanência dos portugueses na Banda Oriental e, depois do seu discurso, acordava-se a incorporação do território oriental ao Reino Unido português:
Entónces por una aclamacion general los S.S. Diputados dijeron: Este es el único medio de salvar la Provincia; y en el presente estado à ninguno pueden ocultàrse las ventajas que se seguiran de la Incorporac.n bajo condiciones que aseguren la libertad civil […] En este estado, declaràndose suficientemente discutido el punto, acordaron la necesidad de incorporar esta Provincia, al Reyno Unido de Portugal, Brasil y Algarbes, Constitucional, y bajo la precisa circuntancia de que sean admitidas las condiciones que se propondrán y acordarán por el mismo Congreso en sus ulteriores sesiones, como bases principales y esenciales de este acto […]
Assim, no dia 18 de julho de 1821, os congressistas votaram, unanimemente, pela incorporação de Montevidéu e sua campanha ao Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.
Sucintamente, menciona-se que o conjunto das atas também mostra que, no dia 23, denominou-se a província recém anexada de Estado Cisplatino Oriental, e que nesta data decidiu-se que os cisplatinos teriam representação no Congresso Nacional em Lisboa. No dia 31, segundo a documentação, Lecor aceitou a anexação em nome de D. João VI, sendo que no quinto dia de agosto ocorreu o juramento da mesma, comparecendo Lecor, os congressistas, e todas as autoridades e funcionários de Montevidéu. No dia 8 houve a dissolução do Congresso e suas últimas ordens foram no sentido de enviar cópia das atas a Lecor, para informar ao rei e as cortes de Lisboa dos acontecimentos platinos.
Era mantida, assim, a estrutura de poder iniciada em 1817, aquando da ocupação de Montevidéu por Lecor, porém, a partir de 1821, legitimada não pelo Cabildo, organismo político-administrativo de âmbito municipal, mas por um Congresso representante de toda a província, que, a seu turno, encaixava-se nos moldes liberais, doutrina em voga e ascensão nos quadros do Império bragantino, que vivia a lenta agonia do Antigo Regime português.

Conclusão

Deste modo, conclui-se que o temor em relação ao retorno à guerra foi utilizado pelos congressistas para defenderem a incorporação à monarquia portuguesa e para legitimar a permanência da ocupação liderada por Lecor, sendo as atas importantes fontes para reconstituir o discurso dos deputados, seus argumentos para a criação do Estado Cisplatino Oriental e para analisar o temor existente na sociedade local no que refere-se à possibilidade do retorno aos conflitos bélicos.
Provavelmente, inseridos com sucesso na coalização luso-oriental, os deputados orientais utilizaram no Congresso a argumentação do retorno aos conflitos bélicos pelos seus interesses pessoais (e dos grupamentos que eles estavam vinculados) em incorporar a Banda Oriental à monarquia portuguesa. Bianqui, Llambi e Larrañaga empregaram argumentos plausíveis para respaldarem seus discursos, pois estavam inseridos em uma sociedade duramente marcada pelos anos de conflitos e com seu imaginário temeroso no que referia-se ao retorno das guerras. Além disto, não se pode ignorar que a ameaça bélica era um risco eminente não só para a Banda Oriental, mas para toda a região do Prata, visto os combates militares que as províncias limítrofes estavam mergulhadas, ratificando o quão plausível era a argumentação dos congressistas.
Assim, o discurso enfatizando as antagônicas e concretas possibilidades de guerra e de paz que desenhavam-se diante dos orientais, associadas à concreta recuperação do setor produtivo durante a ocupação lusa foi, sem dúvida, altamente persuasivo e influenciador da anexação à coroa portuguesa, em especial em um contexto social em que a população sofreu por longos anos em virtude de questões bélicas e da destruição da província.
Outro ponto é que mesmo que a participação popular tenha sido vedada no Congresso, sendo este constituído por membros dos segmentos dominantes, provavelmente, o que foi discutido em suas reuniões teve repercussão junto à sociedade oriental, criando, portanto, junto à população oriental argumentos favoráveis à atitude dos congressistas de anexarem o território oriental à monarquia portuguesa. Com os discursos dos deputados ecoando pela Banda Oriental, é provável que estes agregariam partidários e defensores de suas ações por eles terem sido importantes agentes que afastaram a guerra da traumatizada e exaurida província.
Sendo assim, a manutenção do poder português acenava ser, ao menos nos idos de 1821, a solução mais conciliatória e a menos conflituosa para a sociedade oriental e para os grupamentos locais mais destacados, representados no Congresso Cisplatino e partícipes da coalizão luso-oriental. No entanto, a opção dos orientais pela incorporação ao Reino Unido português não os livrou de novas guerras. Com a independência do Brasil, a pública adesão de Lecor ao Império e a fidelidade de parte de suas tropas a Lisboa fez com que conflitos bélicos fossem novamente estabelecidos em terras orientais, tendo, por fim, a situação oriental agravado-se após 1825, quando eclodiu a Guerra da Cisplatina.
Finalizando, o Congresso Cisplatino veio a mudar o destino oriental, pois uniu legalmente este território à Coroa de Bragança, oficializando, portanto, a ocupação lusa. Ademais, interferiu na geopolítica platina, mantendo territorialmente Portugal e, depois, o Brasil, no Prata, diretamente vinculados aos assuntos desta região, tendo que lidar com as constantes oposições e mudanças políticas características das províncias limítrofes à época. Agrega-se ainda que o resultado do Congresso, que levou à permanência de portugueses e brasileiros no território oriental, foi fato crucial para a eclosão da Guerra da Cisplatina, logo para a criação da República Oriental do Uruguai tal como os fatos se desencadearam no reinado de D. Pedro I.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E DOCUMENTAIS

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Organização militar, poder local e autoridade nas conquistas: considerações acerca da atuação dos corpos de ordenanças no contexto do Império português

 

Artigo de Ana Paula Pereira Costa1 Doutoranda em História Social pelo PPGHIS/UFRJ

Introdução

Não obstante alguns autores enfatizarem a importância das organizações militares para a Coroa portuguesa, seja enquanto força coercitiva seja enquanto força administrativa, o interesse pela história militar no Brasil colonial tem-se mostrado bastante reduzido2. Boa parte da historiografia que trata do período colonial destaca a relevância das forças militares para a Coroa na administração dos domínios ultramarinos visto que normatizavam a população a fim de enquadrá-la em uma ordem que permitisse o bom funcionamento da sociedade colonial3.

A estrutura militar lusitana, que se transferiu para o Brasil, se dividia em três tipos específicos de força: os Corpos Regulares (conhecidos também por Tropa Paga ou de Linha), as Milícias ou Corpo de Auxiliares e as Ordenanças ou Corpos Irregulares. Os Corpos Regulares, criados em 1640 em Portugal, constituíam-se no exército "profissional" português, sendo a única força paga pela Fazenda Real. Essa força organizava-se em terços e companhias, cujo comando pertencia a fidalgos de nomeação real. Cada terço era dirigido por um mestre-de-campo e seus membros estavam sujeitos a regulamentos disciplinares. Teoricamente, dedicar-se-iam exclusivamente às atividades militares. Seriam mantidos sempre em armas, exercitados e disciplinados4.

As Milícias ou Corpos de Auxiliares, criados em Portugal em 1641, eram de serviço não remunerado e obrigatório para os civis constituindo-se em forças deslocáveis que prestavam serviço de apoio às Tropas Pagas. Organizavam-se em terços e companhias, sendo seu enquadramento feito em bases territoriais, junto à população civil. Os Corpos de Auxiliares eram armados, exercitados e disciplinados, não somente para operar com a Tropa Regular, mas também para substituí-la quando aquela fosse chamada para fora de seu território. Esta força era composta por homens aptos para o serviço militar, já que eram "treinados" para tanto e que sempre eram mobilizados em caso de necessidade bélica. Entretanto, não ficavam ligados permanentemente à função militar como ocorre nas Tropas Regulares. Sua hierarquia se organizava da seguinte forma: mestres-de-campo, coronéis, sargento-mores, tenentes-coronéis, capitães, tenentes, alferes, sargentos, furriéis, cabos-de-esquadra, porta-estandartes e tambor. Deve-se observar que o título de Mestre de Campo era atribuído ao comandante de Terço de Infantaria, enquanto o título de Coronel era atribuído ao comandante do Terço de Cavalaria5.

A completar o tripé da organização militar estariam os Corpos de Ordenanças. Criados pela lei de 1549 de D. João III e organizados conforme o Regimento das Ordenanças de 15706 e da provisão de 15747, os Corpos de Ordenanças, possuíam um sistema de recrutamento que deveria abranger toda a população masculina entre 18 e 60 anos que ainda não tivesse sido recrutada pelas duas primeiras forças, excetuando-se os privilegiados8. Conhecidos também por "paisanos armados" possuíam um forte caráter local e procuravam efetuar um arrolamento de toda a população para as situações de necessidade militar. Os componentes das Ordenanças também não recebiam soldo, permaneciam em seus serviços particulares e, somente em caso de grave perturbação da ordem pública, abandonavam suas atividades. O termo "paisanos armados" carrega em si a essência do que seria a qualidade militar dos integrantes das Ordenanças, isto é, um grupo de homens que não possuía instrução militar sistemática, mas que, de forma paradoxal, eram utilizados em missões de caráter militar e em atividades de controle interno9. Também se organizavam em terços que se subdividiam em companhias10. Os postos de Ordenanças de mais alta patente eram: capitão-mor, sargento-mor, capitão. Os oficiais inferiores eram os alferes, sargentos, furriéis, cabos-de-esquadra, porta-estandartes e tambor11.

O presente artigo pretende abordar alguns aspectos acerca dos mecanismos de funcionamento desta última força militar, tendo como recorte espacial e cronológico a comarca de Vila Rica entre os anos de 1735-1777, atentando-se sobretudo para os direitos, privilégios e obrigações inerentes a seus postos de mais alta patente. Neste sentido, consideramos que era fundamental que o ocupante de um posto nas Ordenanças obtivesse autoridade e reconhecimento público e social para que conseguissem tornar-se face visível do poder.

Assim, consideraremos que se por um lado os direitos, privilégios e obrigações apresentadas a este oficialato delimitavam seus papéis sociais e funções, por outro, lhes propiciavam firmar espaços de prestígio e distinção, os quais levavam à consolidação de seus instrumentos de mando e "qualidade" social nas conquistas.

Ressaltes-se que a invocação da "qualidade" (social) é visível nos atos de nomeações para postos militares a fim de escolher o dirigente ideal12, pois tanto em Portugal quanto no ultramar, mais importante que os saberes particulares de guerra na composição de um chefe militar era sua "qualidade"13.

No ultramar esta qualidade estava invariavelmente associada à nobreza, mas não a uma nobreza derivada do ilustre nascimento, do sangue e hereditária, e sim a um ideal que invocava a concepção de "nobreza civil ou política" isto é, baseada na prestação de serviços ao Monarca14 , bem como a um ideal com um caráter guerreiro, atrelado à noção de conquistador15.

1. Conhecendo as forças

De acordo com António Hespanha, as Ordenanças em Portugal, e mesmo no ultramar, tiveram um impacto político disciplinador, pois através delas se fazia chegar às periferias as determinações do centro; bem como tiveram um caráter dispersor do poder régio ao fomentar o reforço das elites locais e também ao se oporem aos comandos centralizados da Tropa profissional Paga16.

Para o caso português, alguns autores têm destacado a importância das Ordenanças como fonte de poder na esfera local e aliada na implementação das diretrizes administrativas17. Por seu turno, a convivência da Coroa com os poderes locais tem sido apontada como principal contraponto do exercício "absoluto" da autoridade régia em seus domínios18. O papel que tais poderes desempenharam compreende uma conjugação entre comportamentos classicistas (pois as classes dirigentes das localidades não eram homogêneas, fato que repercutiu em seus comportamentos), solidariedades estamentais e laços de patrocínio, tudo conjugado com o poder conferido pela outorga de honras pelo Rei. Este poder podia ser significativo quando a Coroa tinha uma ampla capacidade de patrocínio visto que, quando usado judiciosamente, permitia incorporar novos grupos sociais ao aparelho estatal e assim ampliar sua base social. Entretanto, este processo fazia com que a Coroa não pudesse prescindir do apoio destes grupos dando lugar ao florescimento de clientelas e de redes de intermediários sociais19.

Vale lembrar que esta sociedade regia-se a partir de um paradigma corporativista segundo o qual o indivíduo não existe sozinho e sim como parte de um todo ocupando um lugar na ordem, uma tarefa ou dever social20. Desta forma, a partir deste paradigma pregava-se que o poder era, por natureza, repartido; e, numa sociedade bem governada, esta partilha natural deveria traduzir-se na autonomia político-jurídica dos corpos sociais. A função da cabeça (Rei) não era, pois, a de destruir a autonomia de cada corpo social, mas por um lado, a de representar externamente a unidade do corpo e, por outro, a de manter a harmonia entre todos os seus membros, atribuindo a cada um aquilo que lhe é próprio; garantindo a cada qual o seu estatuto ("foro", "direito", "privilégio"); numa palavra, realizando a justiça21. Nesta perspectiva, a representação do sistema político ocorreria através de uma articulação hierarquizada de múltiplos círculos autônomos de poder tais como as famílias, as cidades, as corporações, os senhorios, os reinos, o Império, nos quais a articulação dos poderes se faria de acordo com os mecanismos espontâneos decalcados sobre as relações sociais de poder, ou seja, sobre o poder efetivo de cada esfera para impor às outras o seu reconhecimento22.

Deste modo, e conforme destacou António Hespanha, o Estado português na Época Moderna não deve ser entendido sob o ponto de vista da centralização excessiva, mas a partir do conceito de Monarquia Corporativa. Neste sentido teríamos um Estado no qual o poder real partilhava o espaço político com outras instâncias de poder: Igreja, Concelhos, Senhores, Família; onde o direito legislativo da Coroa seria enquadrado pela doutrina jurídica e por usos e práticas locais; onde os deveres políticos cediam ante os deveres morais (graça, piedade, gratidão, misericórdia) ou afetivos (redes de amigos e clientes); e onde os oficiais régios teriam ampla proteção de seus direitos e atribuições, tendendo a minar o poder real23.

Assim, ao mesmo tempo em que se reconheceu a importância dos poderes locais para a efetivação do poder régio em muitos de seus domínios, se descobriu que a vitalidades do mesmo era indissociável da constituição de poderosas elites locais24. Como bem demonstrou Pedro Cardim, o Rei estabelecia com os grupos dirigentes do reino, e das localidades ultramarinas, vínculos de interdependência e de complementaridade: o monarca cada vez mais contou com os serviços destes homens nomeando-os para os mais variados postos e cargos nos mais variados lugares de seu Império. Por seu turno, tais indivíduos esperavam que a realeza os recompensassem devidamente pelos serviços prestados. Este sistema de remuneração de serviços funcionou como o principal suporte do regime político luso moderno. Em contrapartida, este mesmo sistema de concessão de mercês abriu espaço para uma maior perifização do poder e para a emergência de grupos locais com interesses próprios25.

Dentro deste viés, na última década estudos que têm se dedicado ao processo de colonização brasileira vêm se atentando para a limitação dos poderes régios e, consequentemente, para a atuação de poderes locais na construção da autoridade metropolitana na colônia; para a negociação que envolvia as relações entre Coroa e súditos, para a formação de uma "nobreza da terra" e para a influência de práticas e valores de Antigo Regime nos diferentes setores da sociedade26. Esta historiografia assinala que as tensões afetando os principais grupos de poder na América Portuguesa estiveram vinculadas a um dado perfil de formação do súdito colonial, destacando a forma e a força da dinâmica local nas relações de poder. Conforme destacou Jack Greene as elites coloniais foram capazes tanto de opor resistência quanto de usar as instituições metropolitanas em prol de seus objetivos27.

Ressalte-se que este processo de atuação das elites no território colonial vinha seguindo um padrão definido em moldes gerais pelas normas e agências institucionais estabelecidas pela própria Coroa. Maria Fernanda Bicalho analisou muito bem esta questão destacando que nas conquistas, através do controle de instituições locais como as Câmaras, as Ordenanças e as Irmandades, as elites coloniais procuraram ter acesso a honras, privilégios e signos de distinção28. Estes três órgãos/instituições constituíam-se em esferas de poder local, sendo fundamentais para garantir a convivência "ordenada" da população na América Portuguesa29.

No caso das Ordenanças sua importância para a Coroa tem sido atestada por se constituírem em um espaço de negociação que fundamentava os vínculos políticos entre a Metrópole e a Colônia sendo, portanto, um canal de encontro e colaboração entre Metrópole e comunidades locais, bem como uma esfera de negociação de conflitos e divergências30, e também por se constituírem em um importante componente da administração lusa na colônia, pois levavam a ordem legal e administrativa da Coroa para os lugares mais longínquos de seu vasto Império31. Este elemento também é ressaltado por Raymundo Faoro, para quem as Ordenanças constituíram a "espinha dorsal" da colônia, elemento de ordem e disciplina32.

Alguns autores destacam que os indivíduos que ocupavam os quadros da oficialidade de Ordenanças eram, em sua maioria, membros das elites proprietárias locais, sem nenhuma experiência militar, e que sua posição de patenteado implicava em prestígio e poder, mas em nenhuma responsabilidade, e por isso atuavam, muitas vezes, de forma independente, violando ordens e abusando de sua autoridade33. Não se desconsidera que os abusos de autoridade existiram, muito menos que os indivíduos atuantes nas Ordenanças não se constituíam em meros executantes dos interesses do poder central e de seus representantes ultramarinos, pois eram também agentes representantes de interesses inscritos na esfera local34. Contudo, a idéia de que os oficiais de Ordenanças não possuíam nenhuma responsabilidade e de que se constituíam em forças independentes sem nenhuma ligação com o poder régio, é demasiado deturpada. Estes estudos não se atentaram para o fato de que o Rei detinha o controle da nomeação dos oficiais, através da concessão de postos militares, e que por meio disto, e da concessão de outras mercês, a Coroa estabelecia vínculos estratégicos com os colonos que propiciavam a expansão de seus interesses no além-mar35.

2. Direitos, privilégios e obrigações apresentadas aos oficiais de Ordenanças

Ser capitão- mor, sargento-mor, capitão era uma forma de identificação no mundo colonial que muitos indivíduos passaram a assumir instalados nas conquistas e essa identificação definia seu lugar social na hierarquia do Antigo Regime que, além de lhes impor uma série de obrigações, lhes garantiam também direitos que faziam questão de usufruir36.

Os privilégios adquiridos com uma patente de Ordenanças eram vários e sempre sublinhados nas cartas patentes que assim sobre eles discorriam "[…] na ocupação do posto não vencerá soldo algum mas gozará de todas as honras, privilégios, liberdades e isenções e franquezas que em razão dele lhe pertencem […]". Através do Regimento de 1570 podemos ter acesso a alguns destes privilégios dados aos homens de patente. No referido Regimento ficava assim estipulado:

"[…] todo capitão-mor e capitão logram do privilegio de cavalleiro fidalgo; todo militar goza de nobreza pelo privilegio do foro, ainda que antes de o ser militar tenha sido mecanico, de qualquer qualidade, ou condição, por ella he dado a suas mulheres, filhas e descendentes do genero feminino o titulo de dom. São tambem isentos dos encargos dos concelhos, não pagão jogados aos reguengos, não podem ser presos em ferros nem presos por dívida,; lograo privilegio de aposentadoria ativa e passiva […]"37.

De todos os direitos que possuíam, o que os possibilitavam meio de nobilitação era o mais valorizado e sempre que alguma situação impedia que tal direito fosse exercido, os oficiais não se privavam de reivindicá-lo. O caso do capitão-mor de Ouro Preto António Ramos dos Reis denota exemplarmente o que estamos querendo dizer quando remete para o Conselho Ultramarino uma reclamação de que os privilégios cabíveis a seu posto não estavam sendo respeitados e validados. Natural do Porto chegara ao Brasil com 9 anos de idade com seus pais António Martins Ramos e Maria Gonçalves e vivera no Rio de Janeiro antes de vir para as Minas. No Rio de Janeiro se casou com Vitória dos Reis e com ela tivera três filhos. Ainda nesta cidade iniciou sua carreira militar servindo alguns anos em praça de soldado infante em um dos terços da Guarnição do Rio de Janeiro38. Em 1714 encontramos António Ramos dos Reis em Minas Gerais onde estabeleceu uma trajetória de sucesso ocupando vários postos militares importantes como o de capitão de auxiliares no distrito de São Bartolomeu, o de mestre-de-campo de Vila Rica em 1732 e ,em 1741, o de capitão-mor das Ordenanças de Vila Rica. Mostrou-se:

"[…] fiel a V. Mag. em todos estes serviços fazendo muitas de suas obrigações com despesas de sua fazenda, como na ocasião em que socorreu o Rio de Janeiro quando os franceses invadiram tal cidade com seus escravos armados e fazendo tal jornada à custa de sua fazenda. Como também na ocasião em que ajudou na contenção da revolta contra o ouvidor geral Manoel da Costa Amorim com seus escravos armados […]"39.

Além da ocupação de importantes postos militares, António Ramos dos Reis ocupou também importantes cargos como o de vereador e o de juiz de órfãos, ambos em Vila Rica, sendo também membro de importantes Irmandades de Vila Rica, do Rio de Janeiro e de Portugal40. Além de todos estes postos e cargos que lhe conferiam enorme prestígio e atestavam sua "qualidade" , este oficial foi também um dos homens mais abastados das Minas Gerais, sendo descobridor de uma grandiosa lavra localizada no morro chamado comumente de morro do Ramos onde tem serviço de talho aberto e varias minas com muitas grades, tanques de recolher águas onde tem para cima de 100 escravos. Além disso, tinha também várias moradas de casas em Ouro Preto e no Rio de Janeiro, além de outra fazenda, também no Rio de Janeiro, com casa de vivenda e capela, hum curral de criação de gado vacum com mais de 20 escravos41, dados nada desprezíveis nesta sociedade para aqueles que quisessem reconhecimento público da distinta posição social que ocupavam. António Ramos dos Reis era também cavaleiro professo da Ordem de Cristo42, o que consistia num poderoso mecanismo de distinção social que evocava dignidade e nobreza43.

Segundo Norbert Elias, numa sociedade permeada por valores e práticas de Antigo Regime, a forma como se era visto era imprescindível para a determinação de sua posição e distinção enquanto elite44, e as festas barrocas eram excelente momento para se externalizar posições de mando e prestígio. Emanuel Araújo destaca que as festas eram lugar de expressão de fidalguia, que ressaltava o brilho, o poder e a grandeza dos participantes, sendo legitimadoras do poder local na medida em que introjetavam valores necessários à ordenação e domínio sobre a sociedade45.

Assim, nesta sociedade marcada por símbolos, rituais e valores voltados para a distinção e nobiliarquia, o respeito às regras do cerimonial e a ocupação das posições de destaque eram fundamentais para o reconhecimento da "qualidade" e da autoridade.

Não por acaso, António Ramos dos Reis reclama que suas honras e lugar que deveria ocupar na festa realizada em Vila Rica para comemorar o nascimento da infanta não foram respeitados. Argumenta que:

"[…] na referida festa se deo ao suplicante acento com impropriedade faltandose a elle a honra devida e que por ocupar o posto de capitão-mor lhe eram competentes todas as honras e privilegios, liberdades e isençoens concedidos às pessoas que ocupam tais postos em qualquer parte do reino […]"46.

Para tentar evidenciar que este privilégio era quase um "direito adquirido" o dito oficial cita um caso semelhante ao seu que ocorreu na Bahia em 1716 ao se negarem as honras ao mestre de campo Miguel Pereira da Costa onde se resolveu que se restituissem ao dito mestre de campo seu lugar de direito47.

Do acima exposto depreende-se que em uma sociedade de Antigo Regime, para que os oficiais conseguissem manter sua "qualidade", fazia-se necessário estar em constante movimentação nas teias sociais que permeavam seu cotidiano. Por ser uma sociedade marcada por tensão permanente, a estagnação podia ser fatal para aqueles que almejassem ascender socialmente48. Por estagnação entendemos o não aproveitamento dos recursos de que este oficialato dispunha nesta sociedade para adquirir mais prestígio e aumentar suas posições de comando; recursos estes que surgiam das próprias relações sociais que eles mantinham e que em última instância denotava autonomia e autoridade política por parte destes indivíduos.

Muitas também eram as obrigações a que este oficialato estava sujeito. Talvez uma das mais elementares era ter de morar no distrito onde atuava. Em todas as cartas patentes vinha assim estipulado "[…] são obrigados a residir sempre dentro do distrito da dita sua companhia, sob pena de se lhes dar baixa e prover outra pessoa no referido posto […]”. O Regimento das Ordenanças de 1570 também dissertava acerca deste assunto argumentando que “[…] se o capitão-mor se ausentar até 2 meses no verão e 6 meses no inverno o sargento-mor lhe substitui, se sua ausência passar disso deve-se eleger outro capitão-mor […]"49. De fato, encontramos alguns casos em que a perda de um posto foi devida à mudança para outras localidades. António Luís Brandão, por exemplo, ganha a patente de capitão de Ordenança de Pé no arraial da passagem em 1741 devido "[…] ausência que fez para o Rio de Janeiro o capitão della António Álvares da Cruz, estabelecendo nesta cidade sua casa, como me constou por informação do capitão mor desta villa"50. A importância do "critério da residência" é atestada por Fernando Dores Costa para quem "a cadeia de autoridade definida na companhia rege-se pelo critério da residência. O 'espírito' que parece guiar o regimento é o de garantir a presença dos dirigentes do treino obrigatório nos locais onde se organizam as companhias"51.

Outra obrigação dos oficiais de Ordenanças, sobretudo dos capitães-mores, bem como dos sargentos-mores era organizar os alardos ou "mostras gerais", ou seja, impor o treino militar. Estes deveriam ter lugar duas vezes por ano, mas sem uma regularidade definida. Após a convocatória as companhias de cada localidade deveriam reunir-se no local determinado, geralmente na praça pública em frente às câmaras, para serem inspecionados e se efetuarem os exercícios. Durante os alardos estes oficiais examinavam as armas dos soldados, para verificar se estas se encontravam em condições de uso52.

Cabia ainda aos oficiais, em caso de ataque inimigo, organizar a defesa e zelar pela conservação e reparo das estruturas defensivas. Durante todo o século XVIII foi constante a atuação de oficiais de Ordenanças em contenção de revoltas, ataque a quilombos, vigilância de caminhos e defesa de fronteiras.

A fragilidade da estrutura burocrática da Coroa determinava que para o desempenho de certas funções administrativas também se recorresse à colaboração dos oficiais de Ordenanças, o que acabou se tornando quase uma "obrigação" para estes indivíduos, até porque sem estas prestações de serviços não conseguiam sua ascensão e atestação de sua "qualidade". Eleitos entre os "principais da terra", eles eram muitas vezes chamados a desempenhar funções que em princípio caberiam as extensões periféricas do poder central, realidade presente não só no ultramar mas também no reino53. Entre estas atividades administrativas sob responsabilidade dos oficiais de Ordenanças, no período abordado, estavam a construção de obras públicas e a coleta de alguns tributos, como a capitação e o quinto, atuações com as quais também contribuíam para a manutenção da ordem pública54.

Por exemplo, em 1748 Manuel Cardoso Cruz e Manuel Teixeira Chaves, capitães de Ordenanças de Mariana, enviam um requerimento ao Rei D. João V solicitando que se ajustasse a melhor forma de se evitar as inundações da cidade, causadas pelas cheias do ribeirão do Carmo. Argumentam que:

"[…] desejam evitar os dannos que se encaminha para a cidade e a ruina dos seos habitantes e que querem fazer hua obra para evitar as ditas cheias, mas que tal obra é impocivel não só as rendas do senado da vila, mas ainda as posses de todos os moradores da vizinhança della […]"55.

Reconhecem que tal obra era de utilidade ao "bem comum" e à Coroa e se oferecem para fazer a dita obra "movidos não só de utilidade própria, mas do bem comum e pelo desejo que como leais vacalos tem de servir a S. Mag". Entretanto, colocam algumas condições:

"[…] pedem uma pequena despesa annual do senado da mesma cidade, os foros que se paga ao senado das terras que se tem aforado e aforarem de casas feitas que rendem 600 mil por anno(…)e pedem também as terras por onde passa o dito rio das quais já se tirou já o ouro e que alguns proprietários os ajudem com certo número de escravos correspondentes as terras que tiverem, e pedem também que os escravos, assim como pardos, prettos, forros que por crimes merecerem degredos lhe sejam dados para trabalharem na dita obra"56.

Do acima exposto pode-se dizer que os oficiais participavam de certa forma do controle da vida política e econômica das localidades, exerciam um relativo poder sobre as populações e revelavam-se essenciais a um aparelho estatal em construção; um recurso que a Coroa lançou mão em Portugal, depois da guerra da Restauração, e que foi repassado para a América57.

Para finalizar destaco que o funcionamento da organização bélica, pelo menos no que diz respeito às Ordenanças na região e período enfocados, estava estritamente ligado às medidas régias que por meio do sistema de mercês, coadunava as ações e relações dos coloniais, no caso dos oficiais, para o ordenamento do espaço social que pretendia dominar. Obviamente que nem sempre os desígnios régios para ordenamento do espaço social iam de encontro aos interesses dos indivíduos ou grupos que os colocavam em prática, e que justamente por se constituírem em homens possuidores de autoridade dos quais a Coroa não podia prescindir, podiam negociar com a mesma a defesa de interesses.

_________________________________________________________________________

Notas

01 – As observações aqui apresentadas foram retiradas de minha Dissertação de Mestrado intitulada "Atuação de poderes locais no Império Lusitano: uma análise do perfil das chefias militares dos Corpos de Ordenanças e de suas estratégias na construção de sua autoridade. Vila Rica, (1735-1777)" defendida no PPGHIS/UFRJ.

02 – MELLO, Christiane Figueiredo Pagano de. Os Corpos de Auxiliares e de Ordenanças na segunda metade do século XVIII: as capitanias do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e a manutenção do Império Português no centro-sul da América. Niterói: UFF, 2002. Tese de doutorado, p. 1.

03 – Neste sentido ver FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. Vol. 1. São Paulo: Globo; Publifolha, 2000, passim e PRADO Jr. Caio, Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000, especialmente o capítulo 3; LEONZO, Nanci. As companhias de ordenanças na capitania de São Paulo: das origens ao governo de Morgado de Mateus. São Paulo: coleção do museu paulista, série história, v. 6, 1977; BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Autoridade e conflito no Brasil colonial: o governo do Morgado de Mateus em São Paulo (1765-1775). São Paulo, Conselho Estadual de Artes e Ciências Humanas, 1979; PEREGALLI, Enrique. Recrutamento militar no Brasil colonial. Campinas: Editora da Unicamp, 1986. MELLO, Christiane Figueiredo Pagano de. Os corpos de auxiliares e de ordenanças na segunda metade do século XVIII… Op. cit.; MELLO E SOUZA, Laura de. Desclassificados do ouro… Op. c it.; ANASTASIA, Carla. Vassalos e rebeldes: violência coletiva nas Minas na primeira metade do século XVIII. Belo Horizonte: C/ Arte, 1998.

04 – SILVA, Kalina Vanderlei. O miserável soldo & a boa ordem da sociedade colonial: militarização e marginalidade na Capitania de Pernambuco dos séculos XVII e XVIII. Recife: Fundação de Cultura Cidade de Recife, 2001, ver capítulo 2.

05 – FILHO, Jorge da Cunha Pereira. "Tropas militares luso-brasileiras nos séculos XVIII e XIX". In: Boletim do Projeto "Pesquisa Genealógica Sobre as Origens da Família Cunha Pereira". Ano 03, nº. 12, 1998, p. 19-21.

06 – A respeito disso ver: Regimento das Ordenanças de 1570. In: COSTA, Veríssimo Antonio Ferreira da. Collecção Systematica das Leis Militares de Portugal, Tomo IV – "Leis pertencentes às Ordenanças", Lisboa, Impressão Regia, 1816. Localização: BN/F,4,3-5/Divisão de Obras Raras.

07 – Esta provisão editada quatro anos depois de promulgado o Regimento das Ordenanças complementava o mesmo com algumas alterações e esclarecimentos fundamentados nas necessidades decorrentes da atuação prática das Ordenanças. Para maiores detalhes ver: Provisão das Ordenanças de 1574. In: COSTA, Veríssimo Antonio Ferreira da. Collecção Systematica… Op. cit.

08 – MONTEIRO Nuno G. "Os concelhos e as comunidades". In: HESPANHA, António M. (Org). História de Portugal: o Antigo Regime. Lisboa: Editorial Estampa, 1998. Vol. 4, p. 273.

09 – COTTA, Francis Albert. "Os Terços de Homens Pardos e Pretos Libertos: mobilidade social via postos militares nas Minas do século XVIII". MNEME – Revista de Humanidades. http://www.seol.com.br/mneme/, p. 3.

10 – Idem, p. 4.

11 – FILHO, Jorge da Cunha Pereira. "Tropas militares luso-brasileiras nos séculos XVIII e XIX…" Op. cit., p. 5-9.

12 – COSTA, Fernando Dores. "Fidalgos e plebeus". In: HESPANHA, António M. (Org). Nova História Militar de Portugal. Vol. II – séculos XVI-XVII. Lisboa: Círculo de Leitores: 2003, p. 106-107.

13 – HESPANHA, António M. "Introdução". In: HESPANHA, António Manuel (Org). Nova História Militar de Portugal… Op. cit., p. 20-24.

14 – MONTEIRO, Nuno Gonçalo. "Poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia" In: HESPANHA, Antônio M. (Org). História de Portugal…Op. cit., p. 298-299. Conforme destacou Nizza da Silva, a nobilitação dos coloniais perpassa pela prestação de serviços ao Monarca que retribui com mercês que vão nobilitando cada vez mais estes indivíduos. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Ser nobre na colônia. São Paulo: Ed. Unesp, 2005, p.7-10.

15 – Acerca desta noção ver: FRAGOSO, João. "A nobreza da República: notas sobre a formação da primeira elite senhorial do Rio de Janeiro (séculos XVI e XVII)". In: Topoi: Revista de História. Rio de Janeiro, vol. 1, 2000; FRAGOSO, João. "A nobreza vive em bandos: a economia política das melhores famílias da terra do Rio de Janeiro, século XVII: algumas notas de pesquisa". Revista Tempo. Niterói, volume 15, 2003. Ver ainda BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império: o Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, principalmente capítulo 12.

16 – HESPANHA, António M. "Conclusão". In: HESPANHA, António Manuel (Org). Nova História Militar de Portugal… Op. cit., p. 362.

17 – MONTEIRO, Nuno G. "Os concelhos e as comunidades…" Op. cit., p. 273. Ver também: ALDEN, Dauril. Royal government in colonial Brazil: with special reference to the administration of the Marquis of Lavradio, Viceroy, 1769-1779. Berkeley and Los Angeles: University of California Press, 1968. p. 443-446. Ver ainda: HESPANHA, António Manuel (Org). Nova História Militar de Portugal… Op. cit.

18 – MONTEIRO, Nuno G. "Os concelhos e as comunidades". In: HESPANHA, António M. (Org.). História de Portugal… Op. cit., p. 275.

19 – PUJOL, Xavier G. "Centralismo e localismo? Sobre as relações políticas e culturais entre capital e territórios nas monarquias européias dos séculos XVI e XVII". In: Penélope, n. 6, 1991. p. 129.

20 – HESPANHA, A M. Panorama Histórico da Cultura Jurídica Européia. Madri: Editorial Tecnos, 1998. p. 59-61.

21 – Idem, p. 61-63.

22 – HESPANHA, António M. As vésperas do Leviathan: instituições e poder político. Portugal – século XVII. Coimbra: Almedina, 1994. p. 298-308.

23 – HESPANHA, António. "A constituição do Império Português: revisão de alguns enviesamentos correntes". In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria F. & GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI – XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 166-167.

24 – MONTEIRO, Nuno G. "Os concelhos e as comunidades…" Op. cit., p. 288.

25 – CARDIM, Pedro. "Centralização política e Estado na recente historiografia sobre o Portugal do Antigo Regime". In: Revista Nação e Defesa. Lisboa: Instituto de Defesa Nacional, nº. 87, 1998. p. 134-135.

26 – A título de ilustração podemos citar: FRAGOSO, João. "A nobreza da República: notas sobre a formação da primeira elite senhorial do Rio de Janeiro"… Op. cit., p. 45-122; FRAGOSO, João, BICALHO, Maria F. & GOUVÊA, Maria F. (Orgs). O Antigo Regime nos trópicos… Op. cit.; BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império… Op. cit.; FURTADO, Júnia Ferreira. Homens de negócio: a interiorizarão da metrópole e do comércio nas minas setecentistas. São Paulo: HUCITEC, 1999.

27 – GREENE, Jack. "Negotiated Authorities: the problem of governance in the extended polities of the early modern Atlantic world". In: Negotiated Authorities. Essays in colonial political and constitutional history. Charlottesville, University Press of Virginia, 1994. Passim.

28 -BICALHO, Maria F. "As câmaras ultramarinas e o governo do Império" In: FRAGOSO, João, BICALHO, Maria F. & GOUVÊA, Maria F. (Orgs). O Antigo Regime nos trópicos… Op. cit., p. 207.

29 – GOUVÊA, Maria de Fátima. "Redes de poder na América Portuguesa: o caso dos Homens Bons do Rio de Janeiro (1790-1822)" In: Revista Brasileira de História, v. 8, nº. 36, p. 297-330. 1998, p. 310.

30 – MELLO, Christiane F. Pagano de. Os Corpos de Auxiliares e de Ordenanças na segunda metade do século XVIII… Op. cit., . p. 2-9.

31 – PRADO Jr. Caio, Formação do Brasil Contemporâneo… Op. cit., , p. 324.

32 – FAORO, Raimundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro… Op. cit., p. 222.

33 – AUFDERHEIDE, Patricia Ann. Order and violence: social deviance and social control in Brazil, 1780-1840. Thesis of the University of Minnesota, 1976. Vol. 1. p. 126. Ver ainda: KARASCH, Mary. "The Periphery of the periphery? Vila Boa de Goiás, 1780-1835". In: DANIELS, Christine & KENNEDY, Michael V. Negotiated Empires: Centers and Peripheries in the Americas, 1500-1820. New York & London: Routledge, 2003, p. 155.

34 – MELLO, Christiane F. Pagano de. Os Corpos de Auxiliares e de Ordenanças na segunda metade do século XVIII… Op. cit., p. 5.

35 – FRAGOSO, João, BICALHO, Maria F. B. & GOUVÊA, Maria. "Bases da materialidade e da Governabilidade no Império: uma leitura do Brasil colonial". Penélope, n.º 23, Lisboa, 2000, p. 75.

36 – Ver: ALMEIDA, Maria Regina C. de. Metamorfoses Indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003., p. 260.

37 – "Regimento das Ordenanças de 1570" In: COSTA, Veríssimo Antonio Ferreira da. Collecção Systematica das Leis Militares de Portugal… Op. cit., p. 62.

38 – Casa do Pilar de Ouro Preto, 1º ofício – Testamento de António Ramos dos Reis. Livro nº. 20, folha 74, (1761).

39 – Arquivo Histórico Ultramarino/ Projeto Resgate – Documentação avulsa de Minas Gerais/Cd- rom/cx:39; doc:67.

40 – CPOP, 1º ofício – Testamento de António Ramos dos Reis. Livro nº. 20, folha 74, (1761).

41 – Idem.

42 – AHU/MG/cx: 31; doc:1.

43 – CUNHA, Mafalda Soares da. A Casa de Bragança, 1560-1640: práticas senhorias e redes clientelares. Lisboa: Editora Estampa, 2000, p.48-53.

44 – ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. Parte III.

45 – ARAÚJO, Emanuel. O teatro dos vícios: transgressão e transigência na sociedade urbana colonial. Rio de Janeiro: ed. José Olímpio, 1997. Passim.

46 – AHU/MG/cx: 41; doc: 10.

47 – Idem.

48 – ELIAS, Norbert. A sociedade de Corte…Op. cit., partes III, IV, V e VI.

49 – "Regimento das Ordenanças de 1570". In: COSTA, António. "Collecção sistemática de leys…" Op. cit. p. 9.

50 – AHU/MG/cx: 41; doc: 35. Grifo meu.

51 – COSTA, Fernando Dores. "Milícia e sociedade: recrutamento". In: HESPANHA, António M. (Org). Nova História Militar de Portugal… Op. cit, p. 73.

52 – RODRIGUES, José Damião. "A guerra nos Açores" In: HESPANHA, António M. (Org). Nova História Militar de Portugal… Op. cit. p. 249.

53 – Idem, p. 252.

54 – FIGUEIREDO, Luciano Raposo de A. "Glossário". In: Códice Costa Mattoso. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1999. Volume 2. Coleção Mineiriana.

55 – AHU/MG/cx: 51; doc: 45.

56 – Idem.

57 – RODRIGUES, José Damião. "A guerra nos Açores…" Op. cit. p. 252.

 

 

 

 

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D. João VI, o general Lecor e a criação da Cisplatina

Artigo de Fábio Ferreira
Mestre em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde defendeu a dissertação intitulada "O General Lecor e as articulações políticas para a criação da Província Cisplatina: 1820-1822."

 

Com o processo de independência dos antigos domínios espanhóis na América e a conseqüente desagregação do Vice Reino do Rio da Prata, a parte denominada Banda Oriental, que corresponde à atual República Oriental do Uruguai, atravessou uma árdua guerra civil, que destruiu grande parte do seu setor produtivo e levou à desorganização a sociedade oriental.

Neste quadro, o príncipe regente D. João tentou estender, em dois momentos, as fronteiras dos seus domínios americanos até o Prata, apossando-se da Banda Oriental. Em 1811, o príncipe realizou a primeira incursão militar nesta área. No entanto, por pressão da Inglaterra, D. João retirou as suas tropas no ano seguinte.

Em 1816 ocorreu a segunda tentativa expansionista, que obteve êxito. Nesse ano, as forças militares do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, lideradas pelo general português Carlos Frederico Lecor1, invadiram o território oriental e conquistaram pacificamente Montevidéu em 20 de janeiro de 1817, após articulações com o Cabildo desse núcleo urbano. A partir de então, Lecor instalou-se na cidade, que passou a ter um governo luso. Concomitantemente, as forças revolucionárias do oriental José Gervásio Artigas resistiam a Lecor, entretanto, em 1820, Artigas foi derrotado, exilando-se no Paraguai do ditador Francia.

Enquanto Lecor realizava a sua administração da Banda Oriental ocorria, em Portugal, mais especificamente no Porto, em agosto de 1820, a Revolução Liberal, que logo chegava a Lisboa e, no ano seguinte, proporcionava agitações em distintas partes do Reino do Brasil, como Pará, Bahia e Rio de Janeiro. Dentre as demandas dos revoltosos estava o estabelecimento das Cortes, a elaboração de uma constituição e o retorno de D. João VI para a Europa.

Em 26 de fevereiro, a guarnição militar do Rio de Janeiro rebelou-se e, com a participação do príncipe D. Pedro, obrigaram D. João VI a jurar a Constituição que estava a ser elaborada em Lisboa. Além disto, o monarca comprometia-se a retornar a Portugal e foi-lhe imposto um novo ministério, em que, dentre outras figuras, estava o liberal Silvestre Pinheiro Ferreira, que ocupou a pasta dos Negócios Estrangeiros e Guerra.2

Em 16 de abril, dez dias antes de retornar para Portugal, D. João VI expediu duas medidas importantes para a região do Prata. A primeira delas foi o reconhecimento da independência das províncias platinas em relação à Espanha. A segunda foi no sentido de resolver a questão da ocupação da Banda Oriental. Assim, ordenou-se a constituição do Congresso Cisplatino para que os orientais votassem o futuro do seu território.

Primeiramente, sobre o Congresso, a idéia deste partiu de Pinheiro Ferreira, que era contrário à permanência dos portugueses na Banda Oriental, argumentando junto ao rei que esta acarretava uma série de prejuízos, seja pela ação de corsários contra o comércio luso, seja pela despesa anual que gerava ao tesouro público.3

Outros fatores apontados pelo ministro liberal que deveria levar-se em conta para o abandono da Banda Oriental era o descontentamento e as insubordinações das tropas lusas estacionadas no Prata, bem como as reivindicações da Espanha em relação ao território oriental. Segundo Pinheiro Ferreira, se D. João VI não resolvesse a questão envolvendo a Banda Oriental antes de partir da América para a Europa, o monarca teria que negociá-la com os espanhóis quando estivesse de volta ao Velho Mundo,4 o que, evidentemente, colocava o rei português sob maiores pressões de Madrid.

Além disto, Pinheiro Ferreira inviabilizava a incorporação do território oriental ao Brasil, afirmando que um decreto não iria transformar os orientais em portugueses, sendo, assim, D. João VI não poderia contar com a fidelidade dos habitantes dessa província e, ainda, o ministro questionava a idéia de que a Banda Oriental desejava unir-se ao Brasil, argumentando que este era o anseio de alguns indivíduos, os aliados de Lecor, que se auto-intitulavam portadores dos desejos da província para fazer o que lhes fosse conveniente. Assim, a única solução que o ministro encontrava era a de que os orientais se reunissem em Assembléia para definir o futuro de sua província.5

Somada à questão de um possível abandono da Banda Oriental, Pinheiro Ferreira sugeriu o envio de João Manoel Figueiredo a Buenos Aires, em missão que mostrasse aos portenhos e aos governos circunvizinhos, como a República de Entre Rios, o desejo de D. João VI de ter relações amigáveis com eles, bem como para incrementar o comércio destes governos com o Reino Unido português. Na proposta do ministro, Figueiredo entraria, uma vez em Buenos Aires, em contato com Chile, Entre Rios, dentre outros governos, e "[…] ao General Barão da Laguna se dará ordem para que coopere com elle [Figueiredo] para restabelecer a boa intelligencia entre aquelles differentes Estados e os Povos do Brazil." Além disto, "Por esta occasião se lhes participará as medidas de liberal conducta que na maneira acima exposta S.M. tem adoptado a respeito da Banda Oriental como huma prova do espírito de Justiça e disinteresse de que o Governo Portuguez se acha animado"6

No próprio dia 16 de abril, Pinheiro Ferreira escreveu a Lecor comunicando que D. João VI ordenava que os orientais votassem pelo futuro do território ocupado, de maneira livre, sob a proteção das armas lusas, mas sem qualquer tipo de pressão. Além disto, Pinheiro Ferreira afirmava que o resultado mais provável do Congresso era o da Banda Oriental constituir-se em um Estado independente, então Lecor ficaria encarregado de acertar com o novo governo a proteção da fronteira e a segurança interna dos orientais. O governador do Rio Grande cuidaria das forças militares responsáveis pela fronteira entre o novo estado oriental e o Brasil.7

A união da Banda Oriental com o Brasil era definida pelo ministro como pouco provável, porém, ele qualificava como algo que não era impossível. Assim, Pinheiro Ferreira expunha que D. João VI desejava que Lecor permanecesse como governador e capitão geral da nova província.8

Por fim, João Manoel Figueiredo portava o ofício que seria entregue a Lecor com as ordens do Congresso Cisplatino e o general deveria ajudá-lo, para que se lograsse a paz com os vizinhos do Brasil. Entretanto, a missão de Figueiredo não foi duradoura. O cônsul apresentou-se ao governo de Buenos Aires em 28 de julho de 1821, porém, menos de um mês depois, em 21 de agosto, o cônsul expirava, nesta cidade, de maneira súbita.9

 

A BANDA ORIENTAL DE D. JOÃO VI E AS RELAÇÕES COM OS VIZINHOS DO REINO DO BRASIL

Para a melhor compreensão das formulações por parte do Rio de Janeiro das ordens para a realização do Congresso Cisplatino é mister a compreensão das relações da Banda Oriental e do Brasil de D. João VI com as repúblicas sul-americanas, tema deste item do artigo.

Sucintamente, sobre as relações de Lecor com os governos limítrofes, é importante observar que eram relacionamentos instáveis, de desconfiança mútua, que variavam de conflitos armados prontos a eclodirem a alianças contra inimigos comuns. Além disto, no que referia-se às relações entre a Banda Oriental e as antigas áreas de dominação espanhola, Lecor tinha o interesse em estar sempre bem informado do que estava a ocorrer nas províncias que compuseram o Vice-Reino do Prata e, até mesmo, em localidades mais distantes, como o Chile e o Peru.

Do mesmo modo, o general buscava manter boas relações, principalmente, com os governos de Buenos Aires e Entre Rios, provavelmente pelo fato de que estes apresentavam grande potencial para rivalizar com os portugueses, por questões como a proximidade geográfica e pelas pretensões destes governos em conquistar a Banda Oriental.

Evidentemente, a atenção dispensada por Lecor aos antigos domínios espanhóis era reflexo da preocupação que existia em setores do Reino Unido português em relação aos seus vizinhos hispânicos. O Correio Brasiliense expunha, em várias de suas edições, que os assuntos referentes aos governos limítrofes eram, depois dos de Portugal, os mais importantes para o Brasil. Observa-se, ainda, que se os assuntos dos vizinhos do Brasil eram relevantes, as questões que envolviam os governos do Prata eram-no ainda mais. O governo de D. João VI tinha interesse pelo que estava a acontecer no espaço platino, buscando informações sobre as províncias desta região. Pinheiro Ferreira entendia que as relações com os vizinhos do Prata era uma das questões mais importantes da sua pasta.10

Assim, além de líder militar e político, Lecor também funcionava como uma espécie de informante do governo do Rio de Janeiro sobre os acontecimentos do antigo Vice-Reino platino e, até mesmo, do Chile e Peru. Por sua vez, o general luso também tinha a sua rede de informantes em diversos pontos do Prata, sendo, deste modo, abastecido com dados concernentes aos fatos ocorridos nos territórios hispânicos.

Em função dos adventos ocorridos no Reino Unido português, em especial após os acontecimentos de fevereiro de 1821 na Bahia e no Rio de Janeiro, Buenos Aires começava a articular os meios para entrar em conflitos armados com Lecor, esperando, somente, o resultado de expedição buenairense enviada a Lima. Os desdobramentos do liberalismo em Portugal e no Brasil só vieram a fortalecer o projeto de Buenos Aires e, ainda, nesta cidade tinha-se a ciência de que restabeleceria-se na Europa a sede da monarquia lusa, que, por sua vez, na concepção portenha, poderia prejudicar o systema americano.11

Além disto, Buenos Aires sabia que no Manifesto Nacional os portugueses apoiavam as queixas da Espanha sobre a ocupação da Banda Oriental, bem como expressavam a sua insatisfação em relação aos altos custos da ocupação do território oriental e o conseqüente desejo de Portugal abandonar a conquista platina. Deste modo, nos planos de Buenos Aires, era chegada a hora de indispor-se com a Banda Oriental portuguesa. Segundo Lecor, os planos dos portenhos era expulsá-lo da Banda Oriental e, ainda, levar às províncias do Brasil a guerra, fomentando a separação do reino americano de Portugal.12

Assim, nesse contexto de desconfianças e ameaças mútuas, foram expedidas pelo Rio de Janeiro as já citadas medidas relativas ao Prata. Aos portenhos, em ofício de 16 de abril, Pinheiro Ferreira mostrava o desejo de D. João VI de ter relações de amizade com os vizinhos do Brasil, sendo que as províncias de Buenos Aires ocupavam o primeiro lugar e, expressava, igualmente, o reconhecimento do rei à independência portenha. No mesmo documento, o ministro português comunicava a realização do Congresso Cisplatino, mas com o cuidado de construir a imagem das Cortes de Montevidéu como feitas da maneira mais livre e popular, sem a menor sombra de coerções e de manipulações.13

Além disto, no ofício, havia a justificativa do reconhecimento da independência dos governos limítrofes não ter sido feita antes pelo monarca, associando-se, assim, esta ação à ascensão do liberalismo no Reino Unido português, bem como a outras questões internas e externas, sem mencionar no documento quais e, ainda, à política dos Estados europeus. Igualmente, o governo de D. João VI anunciava que receberia em seus domínios os agentes portenhos, fossem eles comerciais ou diplomáticos, com todas as honras e considerações.14

Seguidamente a estas exposições, Pinheiro Ferreira afirmava aos portenhos que esperava que o reconhecimento feito por D. João VI gerasse nas províncias vizinhas similar reconhecimento em relação aos domínios lusos.15 No mais, o ofício redigido por Pinheiro Ferreira para o governo instalado em Buenos Aires era enviado, através de cópias, para as províncias do interior, para o Paraguai, Chile e Colômbia.16

Entretanto, as amigáveis intenções do ministro não conquistaram a confiança portenha. Por mais que as comunicações dirigidas a Buenos Aires tenham sido repletas de expressões e vocabulários indicadores de uma política de boa vizinhança e típicos do liberalismo, Martin Rodriguez, que estava a frente do governo portenho, escrevia à Junta de Representantes da Província de Buenos Aires, ao Chile e ao Paraguai expressando a sua desconfiança e ojeriza em relação ao ministro liberal e ao Congresso Cisplatino (Ressalta-se que Martin Rodriguez tomava este posicionamento antes mesmo do congresso ser realizado).17

Na carta a Francia, Rodriguez expunha que acreditava que o reconhecimento das independências era um meio para obrigá-los a consentir na incorporação do território oriental ao cedro de D. João VI. Além disto, Rodriguez entendia a Banda Oriental como parte da nação que Buenos Aires também fazia parte.18

Em Buenos Aires havia a desconfiança do que poderia haver por trás do reconhecimento da independência dos governos do Prata. Suspeitava-se que poderia ser uma espécie de moeda de troca com as forças políticas platinas, para que estas reconhecessem a presença lusa na Banda Oriental, presença que acabou por ser votada pelos orientais no Congresso Cisplatino, conforme será apresentado no próximo item.

 

A CRIAÇÃO DO ESTADO CISPLATINO ORIENTAL

Uma vez expedida pelo governo de D. João VI as ordens para a realização do Congresso e tendo ciência das tensas relações que envolviam o território oriental e, principalmente, o governo de Buenos Aires, é válido ressaltar que Lecor escreveu, em fins de maio de 1821, a Silvestre Pinheiro Ferreira, informando que os habitantes da província temiam que os portugueses de lá saíssem, pois acreditavam que se isto ocorresse, a Banda Oriental seria novamente vítima dos conflitos armados, mergulhando, assim, em uma nova guerra civil.19 Identifica-se, nesta questão, o interesse de Lecor em manter o poder português na Banda Oriental, com a construção de uma argumentação que buscava convencer o ministro liberal da necessidade da permanência da ocupação.

Dias depois, Lecor expediu, em 15 de junho de 1821, as ordens para a convocação do Congresso e de seus deputados. A comunicação do general português foi dada a Juan José Durán, chefe político da província. De acordo com as ordens de Lecor, baseadas nas de Pinheiro Ferreira, os deputados deveriam ser nomeados livremente, sem violência e da maneira mais adequada às circunstâncias e costumes do país – palavra utilizada na documentação para definir a Banda Oriental – de modo que se fosse consultada a vontade geral dos povos. Além disto, os parlamentares deveriam representar toda a província para deliberarem sobre o futuro oriental, de modo a decidir como esta seria governada.20

No documento, Lecor pediu a maior brevidade possível na instalação do Congresso, para que o mesmo fosse instalado ainda em 15 de julho de 1821, logo, um mês depois, e transferia toda a responsabilidade da convocação e do processo eleitoral do Congresso Cisplatino para Durán. Assim, o chefe político da província ficou responsável pela definição do número de deputados que iriam compor o Congresso e a quantidade de parlamentares que cada pueblo ou departamento enviaria a Montevidéu. Ressalta-se que Lecor somente informou que o critério de seleção dos componentes do Congresso deveria ser proporcional ao número aproximado de habitantes de cada parte da Banda Oriental. Após as instruções de Durán, iniciou-se, na Banda Oriental, o processo de seleção dos deputados e seus suplentes para o Congresso Cisplatino.

É importante ressaltar que, quatro dias depois, em 19 de junho, basicamente um mês antes da primeira reunião do Congresso Cisplatino, Lecor escreveu ao conde dos Arcos afirmando que acreditava que o seu resultado seria o de incorporar a Banda Oriental aos domínios de D. João VI. Na carta, além do resultado do Congresso, pois os orientais várias vezes haviam pedido que D. João VI permanecesse no controle definitivo da província, Lecor expunha que estava a preparar o Congresso da maneira que fosse conveniente para resultar na incorporação à monarquia lusa e, assim, esperava a aprovação do rei, mas, também, de D. Pedro, dos seus métodos.21 Nove dias depois, em 28 de junho, Lecor escreveu outra carta ao conde dos Arcos, demonstrando novamente o conhecimento prévio do resultado do Congresso Cisplatino.22

Também confirmando o resultado estavam os ofícios enviados por Martin Rodriguez, em dois de julho de 1821, antes ainda da primeira reunião do Congresso, ao Chile, Paraguai e às províncias platinas:

Sabe el Gobierno por noticias reservadas y reservadisimas q.e ha podido recoger del Brasil y del mismo Montevideo, q.e ha emprezado á plantificarse el plan, que dejó dispuesto S. M. F. al retirarse p.a Europa, de agregar al territorio brasiliense toda la Banda Oriental de este Rio adoptando p.a esto el simulado arbitrio de consultar, por medio de un Cong.o […] 23

Não se pode ignorar o quanto Martin Rodriguez era antipático à ocupação de Montevidéu e ao governo português, nem a sua busca de gerar semelhante rejeição nas províncias que hoje compõem a Argentina e nos governos do Chile e do Paraguai. Entretanto, do mesmo modo, não pode-se ignorar que as informações contidas no ofício de Martin Rodriguez não diferem da das cartas de Lecor. Rodriguez afirmou, antes do resultado do Congresso, que este resultaria na incorporação da Banda Oriental ao Brasil, e que o mentor do plano era D. João VI.

Além disto, no citado ofício, o governador de Buenos Aires expunha que o reconhecimento da independência das antigas colônias de Espanha significava o desejo, por parte de D. João VI, de que, como moeda de troca, os hispânicos reconhecessem a incorporação da Banda Oriental. Também parte do resultado acordado, os portugueses teriam colocado uma série de agentes no interior da Banda Oriental para trabalharem positivamente junto à população o resultado do Congresso Cisplatino.24

Sobre o Congresso, este iniciou-se no dia 15 de julho, "[…] en conformidad de lo dispuesto por S.M.F. El Rey del Reyno Unido de Portugal, Brasil y Algarves y publicado para su observancia y cumplimiento por el Ilmo y Exmo Sor. Barón de la Laguna, comandante en Gefe del ejército pacificador de esta Provincia: llegado el caso de reunirse un Congreso general extraordinario para tratar y decidir sobre la suerte futura del País […]"25 tendo como deputados diversos aliados de Lecor, como o próprio Durán, Fructuoso Rivera e Tomás García de Zúñiga. Além destes, foram congressistas o padre Dámaso Antonio Larrañaga, Jerónimo Pío Bianqui e Francisco Llambí, que compuseram, em 1817, o Cabildo que entregou Montevidéu a Lecor.

Três dias depois da abertura do Congresso Cisplatino, no dia 18 de julho, os congressistas votaram, unanimemente, pela incorporação ao Reino Unido português. Outra questão válida de ressaltar é que os deputados estabeleceram a clara vinculação entre a anexação e a garantia de uma certa autonomia para a província dentro dos quadros da monarquia portuguesa, inclusive com representação no Congresso Nacional, com a manutenção do castelhano como seu idioma oficial e dos limites com o Brasil sendo anteriores ao processo revolucionário do Prata. Além disto, no Congresso determinou-se que o nome do novo território correspondente à Banda Oriental seria Estado Cisplatino Oriental.26

Complementa-se que os deputados estabeleceram como uma das cláusulas da incorporação a permanência de Lecor no poder, definindo que o general continuaria no comando do Estado Cisplatino: "Continuará en el mando de este Estado, el Señor Barón de la Laguna."27 O oriental responsável por certificar-se do cumprimento das condições para a incorporação e resolver juntamente com Lecor eventuais solicitações dos pueblos recaiu sobre Tomás García de Zúñiga28, um dos principais aliados de Lecor, que, inúmeras vezes, chegou a financiar a administração do general com seus próprios recursos financeiros.

Quase um mês depois da sua primeira reunião, em oito de agosto de 1821, o Congresso Cisplatino encerrou-se. As suas últimas ordens foram no sentido de enviar cópia das atas a Lecor, para que o general informasse os últimos acontecimentos ao rei D. João VI, que a esta altura já estava em Portugal, e as Cortes de Lisboa.29 Assim, as desconfianças portenhas de que as forças de Lecor na Banda Oriental permaneceriam, concretizaram-se no citado Congresso. De semelhante modo, concretizavam-se as afirmações contidas nas epistolas de Lecor de que a anexação ocorreria.

 

CONCLUSÃO

Assim sendo, é provável que o reconhecimento da independência das Províncias do Prata esteja relacionado com o Congresso Cisplatino, significando uma espécie de troca, pois o reconhecimento da independência poderia ter sido feito pelo monarca em outro momento. Evidentemente, a ascensão do liberalismo no Reino Unido português não pode ser negada, pois mudava a correlação de forças no âmbito interno e externo dos domínios joaninos, com a ascensão de novos ministros e a mudança de Portugal dentro do jogo diplomático europeu.

Provavelmente, partindo para a Europa, D. João VI desejava resolver definitivamente as pendências existentes no espaço platino, neutralizando, com o reconhecimento da emancipação, a oposição do governo de Buenos Aires ao governo português. Também é provável que significasse que o monarca acreditasse que o resultado do Congresso viesse a desagradar aos portenhos e, para amenizar a ira destes, reconhecia, assim, a sua independência.

Finalizando, de acordo com a documentação, antes mesmo da instalação do Congresso Cisplatino, já havia o conhecimento do seu resultado, mostrando-se que as Cortes de Montevidéu foram um simulacro – utilizando-se aqui as palavras de Martin Rodriguez – de representação. Além disto, não pode-se negar a ação de Lecor e do seu grupo de aliados políticos no Congresso Cisplatino para que se lograsse o resultado que lhes fosse conveniente. Assim sendo, as articulações e a habilidade política do general Carlos Frederico Lecor foram fundamentais para a criação e anexação do Estado Cisplatino Oriental ao Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.

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Notas

01 – Lecor, de ascendência francesa, nasceu em Portugal na década de 1760, ingressando no final do século XVIII no exército português. Lutou na Campanha do Rosilhão, onde, em 1794, foi ferido gravemente, quase falecendo, no entanto, isto não impediu que o militar participasse das lutas contra Napoleão Bonaparte, liderando, inclusive, a Leal Legião Lusitana. Lecor lutou em território francês e, com a derrota da França, conduziu as vitoriosas tropas portuguesas de volta ao seu país.
Findo os conflitos na Europa e com os interesses da monarquia de Bragança nas questões geopolíticas relativas ao espaço platino, as tropas portuguesas situadas no velho mundo foram enviadas para o Brasil. Lecor, na ocasião Governador da Praça de Elvas, liderou a expedição destinada ao Prata.

02 – NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e constitucionais: A cultura política da independência (1820-1822): Rio de Janeiro: Revan, FAPERJ, 2003, p.249 e SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal: 1807 – 1832. Viseu: Verbo, 2002, p.372.

03 – Silvestre Pinheiro Ferreira. "Memória e Cartas biográficas". Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1876-1877. Volume II, Rio de Janeiro, Tipografia G. Lenzinger & Filhos. 1877. Apud: Devoto, El Congreso Cisplatino (1821): repertorio documental, seleccionado y precedido de um análisis. Revista del Instituto Histórico y Geográfico del Uruguay, t.XII. Montevideo: 1937, p.163-164.

04 – Idem.

05 – Idem, p.164.

06 – Idem, p.167.

07 – Arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, livro "Rio da Prata". Apud: Devoto, op.cit., p.169-171.

08 – Idem.

09 – La Gaceta de Buenos Aires, nº66, 01 de agosto de 1821, p.309 (Acervo da Biblioteca Nacional de Buenos Aires); Carta de Francisco da Costa Pereira ao Barão da Laguna. Buenos Aires, 23 de agosto de 1821, p.1-2. Lata 396, doc.10, v.2, p.98-99 (Acervo do IHGB); Documentos para la Historia Argentina. Correspondencias generales de la província de Buenos Aires relativas a relaciones exteriores (1820-1824), t.XIV. Facultad de Filosofía y Letras. Buenos Aires, 1921. Apud: DEVOTO, op.cit., p.180.

10 – Fundo: Cisplatina, cx. 977, pac. 02, doc.19, p.55-61 (Arquivo Nacional do Rio de Janeiro); Silvestre Pinheiro Ferreira. "Memória e Cartas biográficas". Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 1876-1877. Volume II, Rio de Janeiro, Tipografia G. Lenzinger & Filhos. 1877. Apud: Devoto, op.cit., p.163 e COSTA, Hipólito José da. Correio Braziliense, ou, Armazém literário, v.-XVI-XXIX. (1816-1822). São Paulo: Imprensa Oficial do Estado; Brasília: Correio Brasiliense, 2002.

11 – Carta do Barão da Laguna a Silvestre Pinheiro Ferreira. Montevidéu, 4 de abril de 1821, p.1. Lata 396, doc.10, v.2, p.30. (Acervo do IHGB).

12 – Idem.

13 – Arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal, livro "Rio da Prata". Apud: DEVOTO, op.cit., p.171 e 172.

14 – La Gaceta de Buenos Aires, nº66, 01 de agosto de 1821, p.309 (Acervo da Biblioteca Nacional de Buenos Aires).

15 – Idem, p.310.

16 – Idem.

17 – Documentos para la Historia Argentina. Correspondencias generales de la província de Buenos Aires relativas a relaciones exteriores (1820-1824), t.XIV. Facultad de Filosofía y Letras. Buenos Aires, 1921. In: DEVOTO, op.cit., p.176.

18 – Carta de Martín Rodríguez a Gaspar Rodríguez Francia, Buenos Aires, 27 de julho de 1821. Apud: DEVOTO, op.cit., p.385-386.

19 – Carta do Barão da Laguna a Silvestre Pinheiro Ferreira. Montevidéu, 25 de maio de 1821, p.1-3. Lata 396, doc.10, v.2, p.35-37. (Acervo do IHGB).

20 – Carta do Barão da Laguna ao Conde dos Arcos. Montevidéu, 19 de junho de 1821, p.1. Lata 396, doc.10, v.2, p.48. (Acervo do IHGB).

21 – Carta do Barão da Laguna ao Conde dos Arcos. Montevidéu, 28 de junho de 1821, p.1. Lata 396, doc.10, v.2, p.49. (Acervo do IHGB).

22 – Documentos para la Historia Argentina. Correspondencias generales de la província de Buenos Aires relativas a relaciones exteriores (1820-1824), t.XIV. Facultad de Filosofía y Letras. Buenos Aires, 1921. Apud: Devoto, op.cit., p.177.

23 – Idem, p.178.

24 – El Argos de Buenos Aires, 21 de julio de 1821. (Acervo da Biblioteca Nacional de Buenos Aires).

25 – ACTAS DEL CONGRESO CISPLATINO. Montevideo, 1821. Archivo General de la Nación., f.1. (Acervo do Archivo General de la Nación, Montevideo)

26 – Idem, f.8v-27v.

27 – Idem

28 – La Gaceta de Buenos Aires, op.cit., p.326. (Acervo da Biblioteca Nacional de Buenos Aires)

29 – ACTAS DEL CONGRESO…, op. cit., f.39 e 39v. (Acervo do Archivo General de la Nación, Montevideo)

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E DOCUMENTAIS

Fontes primárias

Archivo General de la Nación – Montevideo

ACTAS DEL CONGRESSO CISPLATINO. Montevidéu, 1821. Archivo General de la Nación.

Arquivo Nacional – Rio de Janeiro

COLEÇÃO CISPLATINA. Caixas 975-979.

Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) – Rio de Janeiro

LECOR, Carlos Frederico (Barão da Laguna). Guerra Cisplatina. Correspondência do Barão da Laguna. 1820 a 1822. Lata 396, doc. 10, 3v. (Acervo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB)

Biblioteca Nacional – Buenos Aires

EL ARGOS DE BUENOS AYRES. Diversos números: 1821-1822.

LA GACETA DE BUENOS AYRES. Diversos números: 1821-1822.

Fontes primárias impressas

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WASSERMAN, Claudia. (Coord.). História da América Latina: Cinco séculos. Porto Alegre, Editora da UFRGS, 2003.

 

 

 

 

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As fugas de escravos da província de São Pedro para o além-fronteira

Artigo de Silmei de Sant'Ana Petiz Professor do curso de História do Centro Universitário Unilasalle. Mestre em história pela UFRGS e doutorando pela Unisinos. Autor do livro: Buscando a Liberdade. Fugas de escravos da Província de São Pedro Para o além-fronteira de 1811 a 1851. Passo Fundo: editora UPF, 2006.

A visibilidade histórica do negro riograndense pode ser entendida como decorrência direta de um enfoque historiográfico contemporâneo que busca recuperar a participação de significativos segmentos populacionais anteriormente excluídos do estudo da própria história. Entre esses estudos se destacam os que procuram aprofundar suas analises com relação à resistência escrava. Ecoando de certo modo o fortalecimento do movimento negro, a produção acadêmica interessa-se cada vez mais pela rebeldia escrava. Afirmando que os cativos não haviam se submetido passivamente aos desmandos senhoriais.

A historiografia brasileira da década de 1980, influenciada por estudos de autores norte-americanos como Eric Williams, Eugene Genovese, Stanley Engerman e Herbet G. Gutman, passaram a investigar a multiplicidade das experiências negras sob o escravismo, buscando as visões escravas da escravidão e da liberdade. Procuraram mostrar como aqueles que estiveram submetidos ao cativeiro tinham valores e projetos – diferentes de seus senhores – e lutavam por eles de variadas formas. Esses estudos contestam o entendimento da resistência escrava somente como fuga, rebelião e violência contra senhores e capatazes.

Autores como Maria Helena Machado, João José Reis e Robert Slenes, têm demonstrado que não é cabível a oposição entre resistência escrava e acomodação, preferindo a utilização do conceito "adaptação", que significa dizer que eram diversificadas as estratégias de acordo com as peculiaridades de cada região e de cada período do escravismo. Em um país de dimensões continentais parece evidente que adaptações teriam que existir, não tendo a escravidão um único padrão mas uma diversidade de possibilidades e enquadramentos. A historiografia mais recente parece ter se conscientizado disso e passou a empreender estudos com marcos espaço-temporais mais limitados, sem a pretensão de generalizar os resultados obtidos para todo o conjunto brasileiro.

Redimensionando a abordagem do tema, estes pesquisadores afastaram-se do debate sobre os modos de produção e passaram a analisar os significados históricos das lutas escravas enfocando o ponto de vista dos escravos. Avançaram no sentido de recuperar as praticas cotidianas, os costumes, as resistências e os modos de sentir, conviver, pensar e agir dos escravos.

Sob essa perspectiva, este texto tem por objetivo contribuir para o estudo da escravidão que existiu na antiga Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Concordamos com a necessidade de perceber que as diretrizes que marcaram as esferas de controle e de reprodução da ordem escravista contextualizavam-se no tempo e no espaço, marcos essenciais para o estudo das experiências históricas na sua singularidade.

A escravidão e as especificidades da fronteira riograndense na primeira metade do século XIX.

Desde os primeiros estabelecimentos populacionais na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, a delimitação das fronteiras resultou em um difícil problema para ser solucionado. A vasta zona da campanha, pouco habitada, foi um cenário de distintos conflitos entre espanhóis e portugueses. Produto de diversos interesses, o estabelecimento de uma linha divisória que delimitaria o território constituiu um verdadeiro dilema para os distintos governos.

A conjuntura da primeira metade do século XIX, na região platina, foi de forte intercâmbio e intercruzamento das relações que podem ser percebidos através da invasão luso-brasileira da Banda Oriental, da Guerra dos Farrapos, da Guerra Grande e do apoio brasileiro a invasão de Flores. Contudo, devemos considerar que a fronteira não será entendida apenas como um espaço de disputa e ocupação territorial, mas também como um espaço de convivências e praticas social.

Compreender a situação histórica da escravidão que existiu nessa zona, exige uma definição previa do espaço fronteiriço, uma vez que a fronteira tende a ser concebida de diferentes formas. Em sentido etimológico está associado a conceitos legais e político, mas é também uma zona de interpenetração e um espaço de permanentes contatos e trocas . Medianeira Padoin (1999) expressa, trabalhamos com a noção de espaço fronteiriço platino como espaço social e economicamente construído e que adquiriu um perfil de região, com um sentido totalizador enquanto espaço de circulação de homens, de idéias, de culturas e de mercadorias.

Este conceito que tomamos define mais os atributos econômicos e sociais do que uma realidade física de uma zona territorial que se cria como limite ou marca frente a outro território. Neste sentido, consideramos a zona geográfica da antiga Província de São Pedro do Rio Grande do Sul como parte integrante da região platina. Sua fronteira foi um espaço propicio ao intercâmbio, as transgressões, deserções e local privilegiado para as fugas de escravos. Ao longo dos mais de 400 quilômetros de fronteira seca entre o Rio Grande do Sul e o Uruguai constitui-se um terreno fértil para o entrecruzamento da história regional.

Neste espaço fronteiriço a escravidão foi marcada por uma conjuntura muito particular, sobretudo no período analisado, quando esses diversos conflitos exigiram o uso indiscriminado de escravos-soldados, contribuíram para a ocorrência de fugas e favoreceram os constantes aliciamentos de cativos.

Diante dessa conjuntura de profundas vinculações internacionais, o negro escravizado exerceu os mais diferentes papeis: foi "produto" de comércio, foi soldado, foi fugitivo ou desertor, foi matéria de contrabando e por vezes um "companheiro" de longas jornadas acompanhando as peripécias de chefes caudilhos. Viveu e conviveu com constantes intercâmbios e foi, por certo, um sujeito conhecedor das especificidades que fizeram parte dessa região-fronteira.

Os escravos se relacionavam com comerciantes, desertores, e os demais sujeitos que se deslocavam para ambos os lados da fronteira, muitos devem ter conhecido os caminhos e as vantagens obtidas por homens livres que entrecruzavam a vida militar com negócios particulares. Conviveram com os medos e as incertezas de um cenário explosivo sempre sob o perigo da guerra e não devemos desprezar a astúcia daqueles que aprenderam a tirar vantagens dessas circunstâncias através de ações que pudessem minimizar a dor e o sofrimento cotidiano.

Na primeira metade do século XIX o Rio Grande do Sul conheceu seu maior contingente de escravos, sobretudo pela rápida expansão das charqueadas, crescimento das atividades agrícolas, pastoris e comerciais. Os dados censitários da época consideram que pelo menos um terço da população era formada por escravos1. Essa fase de prosperidade foi favorecida pela ocupação de luso-brasileiros que na década de 1820 após a ocupação da Província Cisplatina, se apossaram de extensas reservas de pastagem de gado e arruinaram as charqueadas locais, favorecendo a produção riograndense. Mesmo depois da independência uruguaia em 1828, estancieiros riograndenses continuaram agressivamente a mudarem-se para o Uruguai com escravos, capital e animais.

Nesse período, os negros escravizados podiam ser considerados uma força de mão-de-obra e uma reserva militar. Quando o governo provincial se defrontava com problemas militares, durante as numerosas crises fronteiriças, eles requisitavam ajuda as pecuaristas. Ao menos que a situação se tornasse critica, os escravos seriam os últimos na linha de frente de batalha, permitindo que estes continuassem com suas atividades nas estâncias.

Em 16 de novembro de 1835, o Estado Oriental do Uruguai comunicava através de um decreto, a proibição da introdução de escravos em seu território. Procuravam atingir, sobretudo, aos riograndenses que, com o advento da Revolução Farroupilha, contavam com o Uruguai como depositário de seus bens "móveis", por acreditarem que estariam mais seguros lá. Em oficio remetido pelo Império Brasileiro comunicava-se ao presidente da província: que o ministro das relações exteriores do governo do Estado Oriental do Uruguai, proibia a introdução de africanos no seu território, "quer a titulo de escravos, quer de colonos, feita em embarcações nacionais ou estrangeiras".2.

Medidas como essas foram, entretanto, de caráter limitado posto que a extensa fronteira dificultava qualquer tipo de controle e facilitava o contrabando e os constantes deslocamentos.

A partir de 1835 e durante dez anos a província de São Pedro do Rio Grande do Sul esteve emersa em um violento conflito. A Guerra dos Farrapos participou do cenário mais amplo da política platina da primeira metade do século XIX. As circunstâncias que a produziram estão ligadas à sucessão de lutas entre facções que configuraram a Guerra Grande uruguaia e os intermináveis conflitos entre Buenos Aires e as províncias interioranas na Argentina. Em todos esses acontecimentos foi significativa a presença de negros escravizados utilizados como soldados. Desta forma, por um certo tempo, coexistiram no espaço fronteiriço três grandes confrontos. A extensão dessas guerras afetou o espaço da fronteira através da elevação das fugas, emigrações diversas, deserções, confiscos, etc.

As características da fronteira facilitavam as rápidas incursões militares com arreios de reses e cavalos. A pratica da guerra foi caracterizada por devastações causadas por aprisionamentos e aniquilamento dos recursos do inimigo. Com relação aos escravos as guerras platinas ofereceram condições diversas de resistência, uma vez que nessas circunstâncias afrouxavam-se os meios coercitivos, facilitava-se à mobilidade e aumentava as possibilidades de que os mesmos contassem com a ajuda de terceiros, fato comprovado pela freqüência com que recebiam ativos estímulos de "fora" para rebelar-se. As fugas de escravos riograndense foram expressivas nesse período e não raramente eram denunciadas como facilitadas por espanhóis que se infiltravam entre os cativos com o objetivo de seduzi-los.

O certo é que, tanto riograndenses dissidentes, como uruguaios e argentinos estiveram desejosos por aceitar a participação militar de escravos nas suas causas. Estimulados pela facilidade geográfica, castelhanos tentaram influir na sublevação dos escravos de riograndenses, agravando os temores de senhores que já contavam com constantes conflitos e debilidades de um sistema sob permanente ameaça por parte daqueles que cotidianamente se opunham a escravidão.

Não por um acaso as fugas foram intensas com a passagem do lado brasileiro para o lado oriental, uma vez que do lado uruguaio a legislação amparava a fuga de estrangeiros. Entende-se, com isso, que as fugas além-fronteira foram uma importante característica da resistência praticada pelos escravos do Rio Grande do Sul frente às adversidades sofridas por sua condição. Foram facilitadas pelas guerras que assolaram o Prata quando recebiam maior estimulo externo e aspiravam através dos efetivos militares, a possibilidade de viver como livres.

As guerras platinas e a perspectiva dos escravos.

Na antiga Província de São Pedro, durante a Guerra dos Farrapos ao fugir, os negros não se limitavam, tão somente ao território da província ou do Império.. Muitos audaciosos ultrapassavam os limites e foram refugiar-se nos territórios de outras nações. Essas fugas acarretavam interferências diplomáticas e a inserção de cláusulas específicas de extradição, em instrumentos de tratados internacionais.

Sua importância explicita-se na quantidade de anúncios que aparecem nos jornais do século XIX, onde constam recompensas pela captura e dava-se a descrição do escravo fugitivo. Neste caso, não raramente, aparece a desconfiança de que o escravo dirigia-se para a fronteira.

Logo após a pacificação da província, foram freqüentes os reclames de riograndenses que buscavam informações sobre seus escravos. Entre 1848 e 1849 diversos levantamentos municipais registravam a fuga de escravos da Província de São Pedro para domínios estrangeiros. Esses documentos em seu conjunto registram a fuga de 944 escravos de 378 senhores que haviam se evadido durante o período farroupilha, das mais diversas localidades, tanto de republicanos quanto de legalistas.

O estudo dessas fugas nos remete, por sua vez, ao universo da escravidão e da utilização dos escravos durante o período farroupilha e a Guerra Grande uruguaia, permitindo o estudo das suas motivações e condições de existência.

Os negros fugiam porque a sua luta era por uma causa pessoal, ou seja, pela liberdade. Para estes, a guerras representou uma possibilidade concreta de mudança, ou seja, o abandono de um cotidiano muitas vezes enfadonho e cruel, pelo menos enquanto durasse o conflito em questão. Helga Piccolo, enfatizou essa questão da seguinte forma: "o papel decisivo jogado pela Fronteira para solapar o escravismo afrouxava os laços de dependência, dificultava a coerção e possibilitava a insubordinação"3.

Esse empreendimento crescerá demasiadamente durante os conflitos, levando ao desespero os proprietários riograndenses que não conseguiam coibir as fugas e não encontravam respaldo para as suas preocupações no Estado, que se encontrava debilitado e sem forças para proteger seus interesses.

Existem indícios de que uma boa parte dos escravos conhecessem tal possibilidade, é o que se compreende através de casos, como o do escravo Salvador, do município de Cruz Alta, que ameaçado de ir a leilão, como forma de pagamento por dividas deixada por seu senhor, insurge-se contra tal medida, afirmando que "no caso de ter que servir a alguém, que fugirá para o Estado Oriental"4.

A analise dos documentos sobre as fugas demonstra a existência de redes de relações que se estabelecia na tentativa de localizar os fugitivos ao mesmo tempo em que informam sobre a existência de laços de solidariedade ou de interesses econômicos estabelecidos entre escravos e os demais indivíduos daquela sociedade.

A crioula Antônia, de 25 anos, era rendeira, costureira, lavadeira e gomadeira, fugiu em 08/03/1843 para o Estado Oriental e ali encontrou abrigo na fazenda de um tal Domingos Lavandeiro, muito além do Rio Negro, onde foi vista. Tinha cicatriz em um ombro e marcas de queimadura de fogo"5.

A fuga, neste caso, pode ter sido motivada pelos castigos e evidencia uma clara tentativa de mudança de senhor. Fato que talvez tenha sido facilitado pelos dotes da escrava, que executava tarefas típicas de uma doméstica e de grande beleza física, tinha os pés pequenos, lábios grossos, bunda saltada, era vaidosa e costuma prender o cabelo. Informações que seu senhor fez questão de ressaltar, como que adivinhando o motivo da sedução.

Já o escravo Albino, de 30 anos, pardo, natural de São Paulo, foi considerado por senhor como um bom campeiro, salgueador e lenhador. Continha marcas de surra e sinais de laços pelas costas, "fugiu durante a revolta e consta existir como capataz em uma estância além das pontas do Quarahim, denominado Gesca"6.

Como podemos perceber, o fato de Albino estar residindo em uma outra estância, na condição de capataz, indica que sua aventura lhe surtiu resultado, além disso, parece ter sido bem sucedido por causa de suas habilidades profissionais como foram apontadas por seu senhor de direito.

Colocando-se sob a dependência de um outro senhor os escravos procuravam obter ganhos e nessa situação estabelecia-se, necessariamente, um pacto de cooperação, em que teriam condições de receber certas "regalias" posto que seu "novo senhor" precisa contar com a sua complacência visto que ao aproveitar-se do trabalho do escravo foragido estava em desacordo com a lei e podia a qualquer momento ser denunciado pelo escravo.

Evidenciam a iniciativa própria, de indivíduos nada passivos, ao contrário, espertos, inteligentes, determinados. É o que podemos evidenciar de relatos como o da senhora Bernardina Maria Ferreira, que "indo buscar a sua escrava, Maria, na vila do Salto, em presença do Juiz de Paz (..) foi exigido pela negra que a dita senhora apresentasse o titulo de compra, o que foi logo e prontamente exigido pelo Juiz. Não tendo outra escolha, a senhora necessitou retornar ao Rio Grande , a fim de buscar o documento. Quando voltou a vila do Salto "satisfazendo a vontade do juiz, não apareceu mais à dita escrava e tem-se que a mesma esteja escondida".

Esse caso indica a escrava era conhecedora da realidade fronteiriça, e sabia o que lhes reservava a aventura de se dirigir para o além-fronteira. Nos documentos que analisei encontrei quase sempre expressões do tipo "apresentou-se em Taquarembó", "fugiu procurando abrigo na fronteira", ou "dirigiu-se para o interior do Uruguai". Essas informações dão a entender que a maioria, assim como a preta Maria, sabia o que estavam fazendo, para onde e o que fariam após a fuga.

Há também o indicativo de que o negro buscava na fuga uma possibilidade para a sociabilidade e, mesmo diante da precariedade do que lhe era possível, alcançou nas fugas um momento de encontro. Senhores, vizinhos e parentes narram as peripécias de negros que, separados pela aquisição, mas próximos e com relativo contato, fogem juntos e procuram, na ajuda mutua e na convivência, uma melhor sorte. Em outros casos registram grandes aventuras e a luta de muitos que se aproveitavam das circunstancias bélicas para se afirmar como sujeitos lutando por sua autonomia.

Esse foi o caso do pardo Vicente, que tinha 32 anos de idade quando iniciou a guerra, até então servira como carpinteiro ao capitão Felipe Nery em Rio Pardo. Era uma exceção entre os seus companheiros de cativeiro pois sabia ler e escrever. Além de conhecer serviços de carpintaria era também copeiro e sabia traçar muito bem obras de palha grosseira. Em 1837 achava-se servindo entre os rebeldes da província, talvez tenha ingressado nessas fileiras acompanhando seu senhor, tenha sido capturado pelos farrapos ou mesmo se apresentado espontaneamente após ter fugido. Nunca saberemos ao certo, contudo, já no ano de 1838 por iniciativa própria "desertou" dos farrapos e fugiu em direção a fronteira. Neste mesmo ano foi visto servindo como cabo entre milicianos estacionados em Paysandu. Não satisfeito, em fins do mesmo ano passou para a Província de Entre-Rios e consta que "assistiu" no exército Entre Riano a Batalha do Pago Largo. Nesses anos de fuga, além de trocar de localidades com freqüência, também consta que aprendeu a falar "castelhano muito bem".

Ao escolher o caminho da fronteira Vicente agia conscientemente, provavelmente colocando em pratica um plano antigo. Como morador da vila de Rio Pardo e escravo de um militar, tinha acesso a informações sobre os caminhos a percorrer e os perigos a enfrentar. O fato de ter servido como cabo poucos anos após a fuga, comprova que sua estratégia foi acertada, quando avaliou os perigos que teria que enfrentar.

Ao longo do caminho pode ter parado em abrigos que o tenham aceitado por postar documentos falsos, mais fáceis de serem obtidos por alguém alfabetizado fato que na época era raro mesmo entre os livres. Não se descarta a possibilidade de que estivesse acompanhando outros desertores que também procurassem asilo na Província Oriental do Uruguai. Ele próprio era pardo claro e por certo soube avaliar que essas questões facilitavam, por exemplo, o despistar de bandos armados que se organizavam para capturar negros fugitivos visando rouba-los e vende-los posteriormente. Talvez tenha tido que furtar para obter meios de subsistência e avalia-se que as distâncias devem ter sido maiores para ele, visto que era um mal cavalheiro.

Bastante elucidativo foi o caso do escravo João, um cabra fubá, de 49 anos, que fugiu da estância do senhor José Rufino dos Santos Menezes em 1836, "quando do inicio da guerra". Na ocasião, tinha o oficio de domador: seus dedos dos pés eram bem tortos, como era comum entre escravos que executavam esse oficio. Natural de São Paulo, procurou como destino a Confederação Argentina. Apesar de ser um "bom domador e campeiro", gostava mesmo era de cantar e tocar viola. Após a fuga, foi visto em Corrientes, onde era conhecido como El Moreno Cantador. Pouco tempo depois de ter fugido, arranjou-se com uma negra, também brasileira e fugitiva, com quem casou e teve filhos, ambos faziam do seu modo de vida andar tocando e cantando pelos bailes e festas populares.

A musica também foi uma das predileções do escravo Daniel , um mulato de cara redonda, olhos pretos grandes e cabelo carapina. Tinha sido um escravo doméstico do capitão João Marcos de Araújo Pereira antes de ser vendido à dona Ursula Correia da Câmara em Rio Pardo, cidade onde nasceu . Em 1836 tinha 27 anos quando passou a fazer parte do exército republicano servindo na banda de músicos. Talvez tenha sido um dos primeiros a tocar o hino republicano, composto por um mulato em Rio Pardo, quando essa cidade esteve nas mãos dos farrapos. Em 1839 desertou e consta que tenha passado para o Estado Oriental, onde é conhecido pelo nome de Damião.

Trocar de nome, portar documentos falsos e passar-se por forro foram as principais estratégias utilizadas pelos escravos que fugiam durante a guerra. O escravo Antônio fugiu em novembro de 1845. Tomou a direção da fronteira, passou a se chamar André e no mesmo ano sentou praça nas forças do tenente Pinto quando este comandava o Serro Largo. Seu senhor -o vereador João Francisco Vieira de Braga- sabia do seu paradeiro por intermédio de terceiros e prestou diversas reclamações ao comandante do departamento do Serro Largo que nada fez a seu favor e ainda agravou o seu prejuízo mandando o escravo para o centro da campanha do Estado Oriental.

Os soldados-escravos eram categorias distintas, o uso considerável desse expediente causou grande agitação na província. Em diversos aspectos, certamente, os escravos sabiam disso e souberam obter ganhos pessoais multiplicando as formas de resistência. Segundo relato das autoridades que conviveram com o problema atribuía-se à intensidade das fugas a "mão oculta dos castelhanos" que se aproveitavam da situação para seduzir negros riograndenses.

Esse foi o caso do escravo Joaquim, um africano de 36 anos, cozinheiro seduzido em 1836 por um correntino que o passou ao major Lopes do Corpo do Coronel Diogo Lamas que o tornou seu criado. O próprio comandante Lamas contava, por sua vez, com um assistente de nome Tomas, africano de 38 anos de idade também levado do Rio Grande do Sul.

Obviamente, nem todos os escravos foram bem sucedidos com as fugas, mas é significativa a existência desses casos como os apontados acima, que comprovam a real possibilidade do escravo obter ganhos através de ações próprias, aproveitando da momentânea debilidade da província e as especificidades fronteiriças que como vimos foram forte estimulo a fuga de escravos.

_________________________________________________________________________ Notas

01 – Em 1814 sobre um total de 70.656 habitantes, 20.611 era escravos (29%), 5399 era libertos, com os quais os negros somavam 37% da população.

02 – Conforme Códice, Legislação No.59 pg.286. Lei de escravos do Governo do Império AHRGS.

03 – Caderno de estudos n6, pg.9.

04 – CF Inventário Post-mortem de Joaquim da Cruz Moreira. Cartório de Órfãos e Ausentes de Cruz Alta AHRGS maço 3 n95.

05 – Grupo Documental Estatística, maço 1, lata 531. AHRGS.

06 – Idem.

_________________________________________________________________________ BIBLIOGRAFIA

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As referências ao comunismo no início dos anos 30 no Diário de Notícias

Artigo de Cristiano Cruz Alves

Licenciado em História pela Universidade Federal da Bahia; pós-graduando em metodologia em pesquisa, educação e extensão pela Universidade do Estado da Bahia; Mestrando em História Social pela Universidade Federal da Bahia. Professor da rede municipal de ensino de Camaçari. E-mail: ccalves@ufba.br. Orientador Prof. Dr. Muniz Ferreira Gonçalves.

 

O COMUNISMO: UMA ILUSÃO

O anticomunismo é um fenômeno social e político que encerra em si um conjunto de ações, discursos e estratégias que visa combater o objeto da sua crítica e recusa: o comunismo (MOTTA, 2002, p. XIX). Para tanto, a construção de um conjunto de idéias acerca do comunismo é necessário para conformá-lo como um inimigo social, um ente que se contrapõem aos valores, instituições e estruturas sociais e econômicas vigentes na sociedade capitalista e ocidental.

Dentre os elementos mais importantes que estão presentes nos discursos anticomunistas é a idéia de que o comunismo tende a desintegrar a sociedade tal como as pessoas a conhecem e a aceitam, laçando-a numa desordem social. O discurso é concatenado com os referenciais sociais que mantém coeso o todo social em que as representações são criadas e transmitidas. O que pude constatar no caso baiano é que as idéias e noções disseminadas pelos anticomunistas estão relacionadas às questões religiosas, à família e a harmonia social, principalmente.

Estas idéias se constituíram num ideário disseminado pelas forças conservadoras da sociedade cuja formação se deveu à propagação de uma noção de comunismo como ameaçador para a ordem social e o proponente estabelecimento de uma sociedade comunista levaria ao fim valores cristãos e capitalistas. Por isto as classes dominantes no intuito de legitimar as desigualdades existentes e negar a eficácia do comunismo, descaracterizavam-no ao apresentar-lhe como um "perigo", redefinindo conceitos e moldando ações políticas.1

A construção de um imaginário em torno do comunismo, cuja definição é forjada pelos seus opositores mais radicais é um produto do anseio das classes dominantes de torná-lo aos "olhos" da sociedade um ideário de desgraça, da emergência do caos social e do terror político. Assim, o comunismo seria destrutivo, constituindo sua principal meta a aniquilação da escala de valores sociais, pois o comunismo é tão somente uma ideologia que cria o caos, elimina as distinções ou quebra escala de valores sociais.

Compreender a forma como e porque este imaginário é forjado e para que interesses ele serve é também apreender o significado na constituição deste, imaginário fundado em certas restrições ou preconceitos com relação a posturas e a mentalidade política e social. Se a sociedade baiana não era considerada um terreno fértil para a sementeira comunista, como afirmavam alguns anticomunistas, fica claro o contrário: a incipiente mobilização popular no início dos anos 30 provocou temores às alguns setores das elites que passaram a ver a Revolução de Outubro como ameaça à hierarquia social.2

 

A REVOLUÇÃO DE 30 E A BAHIA

A principal característica política do período 1889-1930 é a representatividade restrita e a rigidez da estrutura de poder. Baseado nestes dois elementos, os setores tradicionais conservaram-se no poder sem grandes percalços até 1930 quando houve um rompimento na perpetuação da monopolização dos espaços de poder.

A persistência desta máquina político-administrativa, excessivamente vulnerável ao poder das elites econômicas tradicionais, tornou-se incompatível com as mudanças em curso na sociedade brasileira, em vias de superação do status de economia primário-exportadora.(DINIZ, 2004, p.82)

A incompatibilidade exposta acima, entre as mudanças na sociedade e a permanência das mesmas elites agrário-exportadoras no poder, se expressava principalmente na demanda por uma participação autônoma de outros setores que vinham sistematicamente protestando contra o sistema político vigente, como por exemplo, o operariado, alguns funcionários públicos e a pequena classe média. Entretanto, na Bahia isso não ocorria de maneira intensa, tal como no Centro-Sul estava acontecendo.

A despeito das caracterizações que se possa fazer a respeito das mobilizações populares na Bahia nas primeiras três décadas do século XX, posto que sua importância está na negação da visão de indolente e pacífico que é atribuída ao baiano, as organizações e mobilizações do povo não atingiram o mesmo grau de contundência e enfrentamento se comparadas com as de São Paulo e Rio de Janeiro, exceto pela greve de 1919. Parafraseando um dos autores que estudou as condições do trabalhador baiano na Primeira República, um dos traços mais importantes foi a cooptação de setores populares por parte das classes dominantes e a sua domesticação. (SANTOS, 2001, p. 101)

Indo mais além, podemos afirmar que ao contrário do que algumas correntes pensam a respeito da reestruturação política, da participação e representação nacional após 1930, continuou existindo uma sistemática exclusão por parte das classes dominantes e por alguns representantes da própria classe trabalhadora. Constitui-se assim, na visão de Ítalo Tronca uma ocultação do real, já que a escrita da história da revolução de 1930 "foi e continua sendo um poderoso instrumento de dominação, na medida em que apagou a memória dos vencidos na luta e construiu o futuro na perspectiva dos vencedores." (TRONCA, 1982, p. 7)

O temor gerado pelas elites quanto às indefinições dos rumos que o país iria tomar gerou a continuidade e o aprimoramento de um circuito de dispositivos repressores e disseminadores do medo à instabilidade social. Ao mesmo tempo em que ocorria o recrudescimento da disposição totalitária, ocorria uma série de redefinições em relação a cidadania e ao que é "o brasileiro" e o contraponto disto – a formação de um inimigo configurado pela negação destas noções construídas pelo Estado e por parte da sociedade. Este inimigo seria o comunismo

A partir de 1930, ocorreu uma alteração na relevância que a imprensa escrita atribuía ao "credo de Moscou". No âmbito estatal, se conformaram também algumas mudanças em relação ao regime anterior, como a criação de uma seção especial de combate ao comunismo no Rio de Janeiro e a edição de leis que tornavam o movimento operário atrelado ao governo (TRONCA, 1982, p. 92-93). As ações policiais e as leis que limitavam a manifestação e organização das classes populares justificavam as repressões devido à propalada "ameaça comunista". Neste sentido, a preocupação era a contenção de possíveis movimentos que ameaçassem a estabilização do novo governo. Portanto, a violência continuou a ser infligida nas delegacias e prisões contra os dissidentes políticos e pertencentes às correntes políticas que não acatavam a normalização do regime tal como estava se processando, principalmente, os comunistas. (PINHEIRO, 1991, p. 259).

A Bahia não esteve alheia à profusão da institucionalização das ações autoritárias, principalmente após 1930, gerado pelo temor às mobilizações populares. Na Bahia, também ocorreu uma maior atenção ao comunismo por parte das elites locais. Contudo esta preocupação estava assentada em formulações ideológicas que remontam ao início da República. O comunismo era um elemento novo que contribuía para a "conturbação" social, mas que não se dissocia de outros – se pensarmos que o combate ao comportamento arredio das camadas populares tanto em seus aspectos culturais como em suas condições de trabalho já existia.

Refiro-me especificamente às modalidades de violência que se praticava para conter a ascensão de uma camada considerada inculta, irracional e incapaz de ocupar os espaços de poder. Este processo de constante segregação social que continuou na década de 1930 – não obstante certos momentos de legalidade liberal – ocorreu paralelamente a um projeto elitista de adequar á Bahia a um modelo de "civilização" que pelo seu caráter excluía manifestações outras que a ameaçavam sobremaneira. É possível nos aprofundarmos nisto se admitirmos que aspectos, abordagens, atores sociais negligenciados pela história factual agora se tornam vitais para entendermos o quanto pode parecer normal que na Bahia, não tendo um movimento operário hegemonizado pelo anarquismo ou comunismo possa existir um anticomunismo tão presente nos jornais.

Ações e idéias que excluíam a grande parte da população vinham sendo implementadas para afastar as classes perigosas do centro dos acontecimentos sociais e políticos. Um dos exemplos que poderia ser citado é o carnaval. Considerado pela elite baiana como uma festa européia porque resgatava elementos "bons" e "civilizados" do velho continente, o carnaval com influência africana não era bem visto. Vê-se no início do século XX, a linguagem de "civilização" contra o "barbarismo" devido ao aumento da africanização do carnaval.(BURKE, 2000, p. 228)

A violência não era descartada, pelo contrário, era elemento presente quando ocorria resistência de qualquer tipo a este modelo de sociedade, e nisto se inserem várias lutas contra a carestia, por exemplo. A partir de 1930, as mudanças que irão ocorrer no âmbito governamental para aplacar estas lutas, como a regulamentação trabalhista e a organização sindical terão reflexos na relação entre camadas populares e Estado, mas não fizeram dissipar a repressão tanto concreta como simbólica – nesta tendo como feixe principal o anticomunismo.

Estas características da sociedade baiana contribuíram sobremaneira para a construção do "outro" como inimigo. Recorrendo a Dutra, trabalho no qual faz um paralelo entre anticomunismo e a construção de um Estado autoritário e discricionário, o comunismo é este "outro" o que ameaça a ordem (DUTRA, 2002, p. 126). O anticomunismo, nesta ótica, então faz parte de um processo de reforço de valores morais, religiosos, familiares e pátrios que ao delimitá-los, os simpatizantes e seguidores do totalitarismo fascista automaticamente discricionam aqueles valores que não se inserem no campo conservador-autoritário. Esta ação combinada com a formulação de representações acerca do "outro" em uma sociedade que procura expurgar as classes populares, mais as resistências políticas à Revolução de 30 pelo seu caráter indefinido conflui para o comunismo.

Justificadas pela eminente desagregação social, provocada pela instabilidade política e econômica, as forças que defendiam um Estado forte atribuíam ao comunismo a causa para a desunião e a descrença nas instituições. Em 1935, aos olhos das elites, a Intentona Comunista veio apenas confirmar o perigo que representava, visto que, os conceitos e formulações acerca do comunismo estavam provando seu poder aniquilador do Estado e sociedade brasileiras. A conseqüência para os comunistas foi a intensificação da hostilidade e um clamor por punição e prevenção contra novas rebeliões.(HILTON, 1986, p. 93)

 

O DISCURSO ANTICOMUNISTA

Uma das manifestações mais importantes do início da década de 1930 que gerou protesto de vários jornais quanto ao seu caráter foi o Quebra-bondes.

Ocorreu no dia 4 de Outubro, um dia após o início do movimento militar. A insatisfação em relação aos aumentos de passagem aliada ao fato da companhia ser estrangeira fizeram surgir uma associação do explorador com a exploração. O culpado era o americano, que além de tudo usava a bandeira brasileira de maneira vil3. Houve a quebra dos bondes, um ataque ao edifício-sede do jornal A Tarde e a destruição de prédios públicos e privados. Os revoltosos foram presos. Eis a notícia que foi veiculada dois dias após, num jornal do interior da Bahia:4

 

OS GRAVES ACONTECIMENTOS DA BAHIA5

O povo, num assomo de revolta, depreda edifícios e incendeia bondes da Linha Circular. A Cidade viveu hontem uma noite de intensa agitação por ter um grupo numeroso de pessoas do povo, depois de engrossado e dividido por outros grupos, atacado o prédio da Companhia Circular apedrejando-o e modificando-o. Em seguida o referido grupo voltou-se para os bondes que desciam o Saldanha, rumo ao Terreiro, apedrejando-os rapidamnte. Appareceu logo ahi kerosene e gazolina e vários carros foram incendiados (…) Parece que há germem de comunismo nos graves acontecimentos de sabbado último.6

A intenção do jornal baiano neste evento específico era associar a violência do evento ao comunismo. Reforço do comunismo como um mal, a violência era uma das suas manifestações mais evidentes, causa para atitudes desreguladas socialmente. É neste sentido que as palavras guardam o efeito de produzir para o leitor as noções de Bem e Mal: O Bem são os baianos pacíficos e ordeiros, enquanto que o Mal, são os outros, neste caso o comunismo.

Nos meios de comunicação a ilusão da objetividade do discurso é mais visível por que intencional. O jornal, por exemplo, transmite uma ordem onde estão contidos valores ocidentais, "onde o bem é o anticomunismo em função dos consensos, explicações com encadeamentos de causa e efeito etc., que vão sendo organizados".(MARIANI, 1998, p.122). O discurso jornalístico tende a encadear os sentido e produzir uma lógica que aparenta ser imanente a realidade, sem discussão profunda do que venha a ser o comunismo e se o que está sendo posto como comunismo o é de fato.

O comunismo era uma ideologia que não tinha possibilidade de ser implantada no Brasil e para alguns se tinha que tomar todo cuidado por parte do governo para que o comunismo não pudesse se expandir e instituir a "anarquia". Neste sentido, a Revolução de 1930 trouxe um medo quanto à inserção de comunistas no movimento, como no texto abaixo:

Cuidados com as insídias communistas! […] Como em Buenos Aíres, incubiram-se dessa ignominiosa tarefa de subversão da ordem, para implantar o domínio da anarchia, os elementos comunistas que se acoitam neste momento, nas grandes capitais das nações civilizadas, aguardando opportunidade propícia, para semeadura dos seus planos machiavélicos. E, com esse propósito, e encorajados para essa finalidade, os comunistas do Rio de janeiro, aproveitando-se daquelles instantes de irreflectidas deliberadamente, crearam, de chofre, uma situação de desentendimento entre as forças do Exército nacional alli estacionados e a polícia militar e o corpo de bombeiros que deixaram os seus quartéis e, na praça pública, entraram, corpo a corpo, em lucta ingloriosa, dahi resultando o desfecho conquistador de um morticinio.7

A notícia se refere ao Rio de Janeiro, mas não impede sua análise por conta da concordância por parte do diário baiano em publicá-la. Demonstra preocupação em relação aos rumos da revolução em face de acontecimentos ocorridos em outros países. Os exemplos estrangeiros e de outros estados colaboram para a formação de um anticomunismo ao apontar a desordem causada ao alertar para a possibilidade disso ocorrer caso o comunismo destruísse o Estado.

Podemos inferir também que ao ressaltar os embates militares entre o exército e os comunistas, aqui ainda chamados de "anarquistas", a interpretação do leitor pode indicar um perigo de um conflito militar interno, o que contribui ainda mais para a rejeição do comunismo e seu combate como ideologia "perniciosa".

A partir de 1930, há uma atenção maior também para a situação do operariado. Este, considerado alvo preferencial pelos comunistas, precisava ser alertado das falsas promessas da "doutrina vermelha". Para tanto, notei que houve um discurso específico construído para "esclarecer" o que seria o comunismo e apontar as negatividades que poderia trazer para o operário se este fosse levado à adotar o comunismo.

Parte do que foi veiculado pelo Diário de Notícias foi realizado a partir de conclusões a respeito da condição do operariado russo após a revolução comunista de outubro. Mesmo não sendo explícitos neste ponto, os autores do artigo tomavam como referência o operariado da Rússia para estabelecer prognósticos sobre como poderia ser no Brasil, apontando as mazelas que seriam geradas caso o comunismo dominasse o país.

Um artigo que mostra este ponto de vista é apócrifo – como boa parte dos artigos o é:

O Operário da Indústria Escrevemos estes artigos como propaganda que instrua o povo brazileiro acerca dos porquês a que se expõe se prestar ouvindo à predica de falsos apóstolos da liberdade individual, da igualdade social e da fraternidade em que viverão os homens de todas as condições de cultura, de origem social. Promettem esses apóstolos uma organização social ideal, em que cessam as desigualdades e toda gente se bitola pelo principio, que nosso povo defini tão bom como tão bom. Pois espere isso o bom povo brazileiro: – o contrário há de acontecer porque taes apóstolos trazem, como disse o poeta lusitano – Mel na voz, fel na tenção. E quem são no Brasil taes pregadores do communismo, do anarchismo, da demolição total da organização social, para sobre sua ruína implantar-se o communismo , que significa guerra de noite à santa religião de Christo, de destruição completa da Família e obliteração do sentimeno da Pátria, que lida com indissolúvel cadeia, o indíviduo à gleba que o viva nascer? Sim, quem são esses homens. […] [nesta parte, o artigo descreve a vantagem da organização do trabalho em relações as aptidões dos indivíduos em determinadas áreas] E vide o que seria, si em vez dessa bella organização em que cada um escolhe o gênero de actividade que se coaduna com a sua natureza, todo um povo fosse obrigado a trabalhos necessários a apenas a sua subsistência, sob o mando de governos despóticos, sem liberdade na escolha do modo de applicar o seu esforço! E, a propósito disso, acabo citando a palavra de um autor – A rotina, a ausência de expontaneidade da vida communista, é um peso para os espíritos, que a segurança dos meios de vida não compensa.8

Neste texto, como na grande maioria, há uma referência à religião, onde se reafirma o comunismo como uma ameaça ao cristianismo. Denuncia também a "ilusão comunista" da liberdade, igualdade e fraternidade, cuja realização não é possível de acordo com os princípios e moldes comunistas. O problema desta utopia seria o represamento da espontaneidade humana que no comunismo estaria posta pela impossibilidade do homem escolher sua própria atividade. Atingindo a religião e a liberdade, bases fundamentais da sociedade brasileira para os liberais e conservadores da elite no poder, o jornal tende a criar nos seus leitores um repúdio ao comunismo pela negação destes aspectos da vida social.

Não obstante a isto tudo, o jornal representava os interesses do governo que acabara de ocupar o poder. Através da publicação de várias cartas e artigos de Agripino Nazareth, advogado e um dos líderes operários da Greve de 19199, o jornal compactuava com a política sindical do governo Vargas.Esta política que ao mesmo tempo legalizava direitos reivindicados por mais de duas décadas, trazia para perto de si líderes operários para auxiliar o governo a organizar os sindicatos para atender o seu desejo de controlar os trabalhadores.

As violências perpetradas contra a classe trabalhadora e a população descontente com o regime não eram noticiadas pelo Diário de Notícias. Mas a inquietação do governo quanto à organização e à articulação dos sindicatos baianos com os comunistas era algo latente, pois vários foram os textos jornalísticos que versavam sobre o assunto. Curiosamente, em quase todos eles Agripino Nazareth está presente, ou como destinatário de uma carta ou mencionado por outro autor, o que nos permite especular a respeito da função organizacional desempenhada por ele na Bahia com vistas ao controle e a impedir a inserção dos comunistas no sindicalismo baiano.

Um destes textos é uma resposta de Agripino Nazareth a um líder operário – não mencionado – em relação a preocupação do primeiro quanto ao comunismo.

Certo devereis prosseguir no trabalho de reivindicação do Centro Operário da Bahia para os operários, delle afastados os elementos estranhos que o converteram num colo de politicalha. […] O homem que ora dirige os destinos da Bahia vem de uma campanha iniciada na propaganda liberal, prosseguida nas urnas eleitorais e victoriosa, afinal, no embate das armas revolucionárias com as dos defensores do regimen olygarquicos. É, portanto, o interventor federal um integrado na mentalidade do Brasil Novo e não opporá entraves à reorganização syndical dos trabalhadores bahianos até porque fiéis à antiga orientação de adeptos do syndicalismo puro, sem mescla de ideologia política ou philosophica, sereis uma barreira á penetração do bolchevismo dissolvente e da politicagem profssional, um e outra igualmente funestos à vida das associações de classe. Com os meus agradecimentos às confortadoras expressões do telegrama que me dirigistes em nome do proletariado bahiano, o abraço fraternal a todos os companheiros e o concitamento a que retomeis o fio mentalmente interrompido da syndicalização obreira.10

O comunista é visto como estranho à classe operária baiana. Não merece atenção pois é "de fora", não pertence às tradições locais nem respeita às características do operariado baiano. O reforço de valores morais e religiosos combinada com a formulação de imagens acerca do outro confluem para o comunismo como aquilo que não se insere na sociedade e, portanto, o ameaça. É preciso então extirpá-lo; as práticas, ações e representação cumprem inseridos no jornal baiano cumprem este papel. Portanto, o comunismo é o "outro" por ser estranho ao processo de construção de valores religiosos e morais.(DUTRA, 2002, p.126)

No final há uma consideração interessante, que demonstra o quanto é inócuo o operário, incapaz de se auto-organizar e frágil politicamente para impedir a penetração do comunismo no sindicalismo baiano. Este era visto como "uma classe incapaz de pensar e agir por si mesma, totalmente manipulada pelo partido"[PCB].(SILVA, 2001, p. 73). Aliás é interessante assinalar que as algumas referências à sociedade baiana especificamente se acham implicitamente nestes textos – como o baiano pacífico e ordeiro.

Também havia a inquietação em relação às greves. Curioso foi ler que, no trecho abaixo, esta apreensão partiu dos próprios operários(sic)!

Tivemos oportunidade de receber hoje, nesta redação, a visita de uma comissão de empregados da Companhia Circular, comissão esta que era constituída dos seguintes srs.: Américo Gomes da Silva, inspector; Gumercindo Ferreira, inspector; Juvêncio Alves do Nascimento, inspector; Argileu de Oliveira Lima, fiscal; Albino Garcia Martins, motorneiro; Antonio Pereira Souza Filho, conductor e Euclydes Gomes da Silva, motorneiro. Em nome dos mesmos, falou interpretando a orientação geral o sr. Gumercindo, que disse dos sentimentos seus e de seus colegas, contrários a qualquer greve, nesta hora, em que urge a acção da paz e do trabalho , para que a população nada soffra nos seus interesses. Ora comprovar a solidariedade dos companheiros, exibiu-nos, então um abaixo-assassinado de cerca de quatrocentas assignaturas, estando já assignados 364 empregados e faltando ainda outros assinar. Acrescentou a Comissão que, nos visitou que os ensaios de gréve são promovidos por indivíduos estranhos à classe, tendo encontrado repulsa da mesma.11

Além da própria disposição dos operários a repudiarem o movimento grevista, eles reconhecem que este é promovido por estranhos ao operariado, nada tendo a ver com este. Infelizmente não é possível tecer afirmações a respeito deste texto, pois faltam ainda trabalhos sobre o operariado baiano no período, o que poderia contribuir em muito na resposta para várias questões acerca da relação do operário baiano com uma importante organização operária, o Centro Operário.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em geral o anticomunismo baiano circunscrito no Diário de Notícias no início doa anos 1930, seguiu a linha de argumentação que outros trabalhos do gênero identificam em jornais, revistas livros e imagens de outras regiões do país em relação ao comunismo.

A construção de algumas referências sobre o comunismo na Bahia por parte do Diário de Notícias se processou certamente pela ótica elitista, tendo em vista as concepções de participação política excludente e repressora eu esta camada sociedade propugnava de maneira velada, o eu tornava as manifestações populares como foi a do Quebra-bondes ou as ameaças de greve, preocupações as mais diversas possíveis, em relação a possível penetração do comunismo no seio das classes populares.

A "questão social" foi um tema recorrente no Diário de Notícias. Quando tratada pelos intelectuais do periódico baiano, a maior parte da população não era vista como um ente que emitisse opinião sobre os problemas sociais. Está nisto, ao meu ver, uma das razões pelas quais a repressão violenta a manifestações contra o aumento de preços do bonde e a redução das condições de trabalho era algo normal e aceito pela pelo poder instituído. Como não é capaz de seguir uma conduta "correta", segundo os parâmetros ditados pela "sociedade baiana" é necessário guiar o povo para eu não enverede pelo comunismo. Assim, os protestos e as greves são formas incorretas e insidiosas eu atentam contra os valores religiosos e morais.

O operário foi sem dúvida um dos temas mais freqüentes no Diário de Notícias. Seu tratamento se dava em certa medida pela mesma perspectiva em relação ao restante da população: era preciso instruí-lo para afastá-lo do "mal vermelho" e obter maior eficiência no trabalho. Mas diferentemente disto, ocorria em parte dos textos, uma precaução com relação à articulação do operariado baiano com o comunismo. A interferência de Agripino Nazareth demonstrava que o governo Vargas não pretendia deixar a pequena classe operária baiana à deriva dos "sabores do diabo vermelho".

A organização dos sindicatos era um tema crucial, sendo sempre levantado por Agripino Nazareth em alguns telegramas publicados pelo Diário de Notícias. A postura de alguns líderes operários e Agripino Nazareth era clara: organizar os operários para impedir a propagação do comunismo.

No jornalismo baiano, mais especificamente em dos seus principais jornais, o Diário de Notícias foi notado uma postura claramente anticomunista com a intenção de transmitir idéias e noções sobre o comunismo que pudessem "esclarecer" a população. Sendo um órgão da grande imprensa e chamando para si a responsabilidade de focalizar um inimigo imputando a ele parte das mazelas vividas pela sociedade, o jornal assumia uma postura que reforçava o interesse de classe e a manutenção de uma determinada ordem que mantinha os mesmos grupos políticos na disputa pelo poder.

_________________________________________________________________________ Notas

01 – Admito que só podemos definir classe quando se conhece o processo histórico na qual está inserido, pois é no desenvolvimento da inter-relação cultural entre os diversos grupos que se reconhecem como distintos dos outros, com o qual podemos definir quem são. Assim, não é o processo de produção e distribuição material entendido como economia pura e simplesmente que define classe sem nos reportarmos a outros aspectos sociais e a sua posição nas disputas de poder e espaço político.Classes dominantes seriam aquelas que detém a hegemonia na produção de valores, representações e idéias culturais que são comumente aceitas e permeam direta ou indiretamente a construção e desenvolvimento de outros universos culturais.

02 – Segundo Sampaio (1998, p. 222) a Bahia era legalista. A Revolução que começara em Minas Gerais, Rio Grande do Sul, não teve apoio dos grupos que ocupavam o poder naquele momento.

03 – Segundo Luiz Henrique (2001, p. 382), "os protestos tiveram origem no grupo de populares que teria visto a bandeira nacional servindo de tapume para obras na encosta dos fundos do prédio da Circular"

04 – Não houve por parte do Diário de Notícias a publicação de notícias referentes aos acontecimentos, apenas uma nota de lamento dos diretores da empresa de bondes quanto aos "incidentes". Alguns dias depois uma outra nota de esclarecimento foi publicada para explicar a paralisação de linhas por conta da destruição dos bondes no dia 4 de Outubro.

05 – A grafia original das citações dos jornais será mantidas

06 – Ver Diário da Tarde de Ilhéos 06/10/1930.

07 – Ver Diário de Notícias 30/10/1930

08 – Ver Diário de Notícias 10/07/1931

09 – Ver CASTELUCCI, Aldrin Armstrong Silva. Salvador dos Operários: uma história da greve de 1919 na Bahia, 2001. 152 p. Dissertação (Mestrado em História). UFBA. Salvador.

10 – Ver Diário de Notícias 08/01/1931.

11 – Ver Diário de Notícias 25/11/1930

_________________________________________________________________________ REFERÊNCIAS

CARONE, Edgard. A Segunda República (1930 – 1937). São Paulo: DIFEL, 1974.

BURKE, Peter. Variedades da História Cultural. Rio de Janeiro: Civilização, 2000.

CASTELUCCI, Aldrin Armstrong Silva. Salvador dos Operários: uma história da greve de 1919 na Bahia. 2001. 152 f. Dissertação (Mestrado em História). UFBA, Salvador.

DINIZ, Eli. "O Significado da Revolução de 30: conservação ou mudança". In FAUSTO Boris (org.) O Brasil republicano: sociedade e política (1930-1964). 3º ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004 (História Geral da Civilização Brasileira).

DUTRA, Eliana Regina Freitas. O fantasma do outro – espectros totalitários na cena política brasileira dos anos 30. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 12, n. 23/24, p. 125-141, out/2002.

HILTON, Stanley. A Rebelião Vermelha. São Paulo: Record, 1986.

MARIANI, Bethânia. O PCB e a imprensa: os comunistas no imaginário dos jornais (1922-1989). Rio de Janeiro: Revan; Campinas: UNICAMP, 1988, p. 120.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o "Perigo Vermelho": o anticomunismo no Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva, 2002.

PINHEIRO Paulo Sérgio. Estratégias da ilusão: a revolução mundial e o Brasil: 1922-1935. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

SAMPAIO, Consuelo Novais. Partidos políticos da Bahia na Primeira República: uma política de acomodação. Salvador: EDUFBA, 1998.

SANTOS, Mario Augusto da Silva. A República do povo: sobrevivência e tensão(1889-1930).Salvador: EDUFBA, 2001.

SILVA, Carla Luciana. Onda Vermelha: imaginários anticomunistas brasileiros (1931-1934). Porto Alegre: EDIPUCRGS, 2001.

TAVARES, Luís Henrique Dias.História da Bahia. São Paulo: Editora UNESP; Bahia: EDUFBA, 2001.

TRONCA, Ítalo. A Revolução de 30: a dominação oculta. 8º ed. São Paulo: Brasiliense, 1993.

 

 

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Tortuosos caminhos da “invenção de si”: política, nacionalismo cultural e estrangeiros no Brasil

Artigo de Neide Almeida Fiori e Eduardo Búrigo de Carvalho
Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL)

 

Política e nacionalismo cultural

A presente comunicação analisa as mútuas relações que se estabeleceram, nos tempos do governo de Getúlio Vargas (1930-1945), entre a política e o nacionalismo cultural da época e os imigrantes estrangeiros. Nessas relações, a escola ocupou um lugar estratégico pois é ela que, atendendo aos desejos do Estado, oferece aos alunos caminhos à "invenção de si". Na amplidão temática desta proposta, as análises enfatizam a política nacionalizadora implantada pelo Estado Novo e dirigida aos imigrantes estrangeiros e seus descendentes que, em sua maioria, haviam se estabelecido na região Sul do Brasil – estados do Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina.

A investigação exigiu um agir metodológico diversificado: pesquisa bibliográfica, entrevistas e pesquisa documental. Esta última desenvolveu-se em arquivos particulares e públicos, principalmente no Arquivo Público do Estado de Santa Catarina. Trata-se de uma investigação dirigida especialmente a documentos relacionados a escolas: planejamento de aulas, descrições de cerimônias cívicas, ofícios, atas, relatórios, muitos manuscritos por alunos que, com sua letra tímida, desde logo revelavam ser uma escrita infantil. Nessa parte, a investigação, por uma questão de viabilidade operacional e, principalmente, pela expressividade da situação catarinense1 no projeto nacionalizador, refere-se ao estado de Santa Catarina.

O governo Vargas, com as primeiras legislações interventoras do ano de 19382, inicia formalmente a implantação de um plano de nacionalização destinado a atingir toda a sociedade brasileira. Especial importância era dispensada à atuação das escolas pela sua capacidade de influir, como dirá mais tarde Charles Taylor (1997, p.15), na formação de "um agente humano, uma pessoa ou um self ".

Essa afirmativa figura em seu livro As fontes do self: a construção da identidade moderna, que reflete sobre as relações existentes entre as concepções morais e os sentidos do self, ambos relacionados com a identidade moderna. Do ponto de vista sociológico, toda identidade é construída, permeada por uma relação de poder, havendo alguns perfis específicos de identidade social. Nas extremidades de um continnum imaginário, pode-se colocar a identidade de projeto que ocorre "quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, de buscar a transformação de toda a estrutura social." (CASTELLS, 1999, p.24)

No outro extremo desse continuum imaginário encontra-se a identidade legitimadora, ou seja, aquela "introduzida pelas instituições dominantes da sociedade no intuito de expandir e racionalizar sua dominação em relação aos atores sociais, tema este que está no cerne da teoria da autoridade e dominação de Sennett, e se aplica às diversas teorias do nacionalismo." (CASTELLS, 1999, p.24)

Situações assim contribuíram para o desaparecimento da vida pública como um espaço de democracia, estimularam o grande crescimento das organizações burocráticas e de sua força de dominação, e foram o pano de fundo de um nacionalismo exacerbado que, ao buscar a afirmação de identidades que privilegiava, sufocava, das mais variadas e estranhas maneiras, as manifestações identitárias de outros grupos sociais.

 

Nacionalismo, uma questão atual?

Ao enfocar a questão da construção da identidade, Castells faz referência "às diversas teorias do nacionalismo" e conduz a autores clássicos como Karl Marx. Para este, o processo histórico tem na luta de classes o seu decisivo protagonista, sendo que as situações locais ou nacionais devem ser percebidas apenas como uma parte, e pouco expressiva, desse processo. Assim sendo, cabe às nações, Estados e cidades serem analisados sob a perspectiva da classe e da luta de classes, fenômenos com dimensão global. A partir do exposto, compreende-se que Marx não tenha se ocupado com uma teoria do nacionalismo. A suas posições, todavia, e a de seus seguidores tiveram importância para o rumo da questão nacional: apoiaram as causas nacionais consideradas grandes ou históricas, como na Hungria, na Polônia e na Alemanha; mas se mostraram hostis às pequenas nacionalidades, como de algumas nações eslavas. Enfim, um pensamento de síntese aponta que, em relação ao nacionalismo, o marxismo o interpreta como uma expressão dos interesses burgueses.

Em relação ao nacionalismo, a contribuição de Max Weber (1993, p.56) foi muito importante, especialmente pelas distinções que estabeleceu entre Estado e nação. Por Estado definiu uma comunidade humana que, nos limites de determinado território, "reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física3 " (aí se percebe quanto a "territorialidade" e a "violência" marcam a obra de Weber). E ainda elaborou um conceito de política cheio de força e que é paradigmático no pensamento weberiano: política significa poder – uma vontade se impondo sobre outra em uma relação desigual.4

Por sua vez, o conceito de nação em Weber, também muito importante, é elaborado em associação com a idéia de cultura, entendendo contudo que somente o Estado pode ser a base capaz de garantir a diversidade das manifestações culturais de cada nação de seu território. Embora a expressão nacionalismo não tenha sido mencionada por Weber, sem dúvida contribuiu decididamente para a sua compreensão especialmente ao estudar o Estado, a nação e os grupos étnicos.

Ao analisar situações e valores étnicos que estão ao alcance do poder do Estado, é importante lembrar que o pensamento de Weber aponta a esfera política como capaz de impor rumos à etnicidade. Nessas considerações, que contém muito da idéia de nação cultural ou de criação de identidades culturais coletivas, como isso se concretizaria, ou seja, como se poderia dar rumos à etnicidade? Nos Estados nacionais, para atingir esse objetivo, a "tarefa de assegurar uma cultura colectiva pública comum foi entregue a órgãos de socialização popular, como o sistema público de educação e os meios de comunicação." (SMITH, 1997, p.24).

Os procedimentos pedagógicos com objetivos nacionalistas centravam-se muito na idéia de pátria, uma expressão com várias nuances de interpretação. O termo tem mesmo uma história que costuma ser contada na perspectiva da cultura alemã, como relata Wolfgnag Thüne em A pátria como categoria sociológica e geopolítica:

A história do termo "pátria" (Heimat) remonta ao conceito Heim-ôit, o lugar de refúgio, de abrigo, de morada, o lugar onde se nasce, o lugar da infância. A "vida ao abrigo" assemelha-se à "vida escondida no lugar" (heim-lich), onde se guardam segredos (Ge-heim-nisse). Isso significa que a pátria está em oposição com aquilo que é do estrangeiro (alilante, Aus-land) onde o homem sente falta desses laços. (1991, p.46)

No que diz respeito à Sociologia, a categoria pátria vai ficar por algum tempo no esquecimento: "houve um período na sociologia, em que a 'sociedade' aparecia como o único quadro capaz de explicar o convívio humano. Através de uma guinada, a sociologia redescobre os conceitos de 'comunidade', 'pátria', 'integração', encontráveis na sociologia alemã, em Georg Simmel, Max Weber e, principalmente, em Ferdinand Tönnies"5 (THÜNE, 1991, p.07).

São muito próximos o sentido de nacionalismo e de patriotismo, e "uma vez que, na história da Europa, as pátrias adquiriram a forma de nações, o nacionalismo outra coisa não seria do que aquele primeiro sentido, do que o amor pela própria nação" (CHABOT, s.d., p.05). Quanto a Émile Durkheim, registre-se que não elaborou uma teoria explícita de nacionalismo, mas se ocupou com o assunto a partir de uma visão bem especifica e endossando a expressão patriotismo. Definiu-o como "um sentimento que liga o indivíduo à sociedade política, de tal modo que aqueles que conseguem constituí-la se sentem vinculados a ela por um laço de sentimento" (DURKHEIM6 apud GUIBERNAU, 1997, p.37). Durkheim entendia que esse sentimento, o patriotismo, não iria perdurar, ao ficar polarizado pelo ideal nacional ou pelo ideal amplo da idéia de humanidade.

No decorrer do processo histórico, a assertiva de Durkheim não se confirmou. O conceito de nação e os sentimentos nacionalistas, estiveram muito presentes na Primeira Grande Guerra e na Segunda Guerra Mundial. Foram épocas do que se poderia chamar de "nacionalismo conflituoso", segundo expressão de Baycroft. Tempos em que vigoravam "definições emocionais e racistas de identidade, a rivalidade nacional feroz que levou à agressão contra os inimigos da nação e a afirmação autoritária e violenta de que aquilo que a nação mais precisa é de glória e grandeza" (BAYCROFT, 2000, p.129).

Bem mais tarde, já na chamada Era da Globalização, também foi prevista a anunciada, desde muito tempo, morte do nacionalismo, ao dar-se a globalização da economia e a internacionalização das instituições políticas e também o

universalismo de uma cultura compartilhada, difundida pela mídia eletrônica, educação, alfabetização, urbanização e modernização; e os ataques desfechados por acadêmicos contra o conceito de nações, consideradas "comunidades imaginadas" numa versão menos agressiva da teoria antinacionalista, ou "criações históricas arbitrárias", como na contundente formulação de Gellner advindas de movimentos nacionalistas controlados pelas elites em seu projeto de estabelecimento do Estado-Nação moderno. (CASTELLS, 1999, p.44)

Para surpresa de muitos estudiosos ocorreu o contrário, a ponto de Castells afirmar que a "era da globalização é também a era do ressurgimento do nacionalismo, manifestado tanto pelo desafio que impõe a Estados-Nação estabelecidos, como pela ampla (re)construção da identidade com base na nacionalidade, invariavelmente definida por oposição ao estrangeiro." (CASTELLS, 1999, p.44). O nacionalismo continua tendo um caráter político evidente e um papel muito expressivo no discurso moderno de legitimidade política. Mas, para além dessa dimensão, Anthony Giddens, em O estado-nação e a violência, aponta claramente para a sua dimensão psicológica: "Por 'nacionalismo' quero dizer um fenômeno que é basicamente psicológico – a adesão de indivíduos a um conjunto de símbolos e crenças enfatizado comunalmente entre membros de uma ordem política." (GIDDENS, 2001, p.141).

 

A construção do sentimento de pertença

Ênfase na dimensão política ou na psicologia, por todos os caminhos há teorias que tentam explicar o nacionalismo. Que estranha essa questão que envolve o "sentimento de pertencer a uma comunidade cujos membros se identificam com um conjunto de símbolos, crenças e estilos de vida, e têm a vontade de decidir sobre seu destino político comum." (GUIBERNAU, 1997, p.56). Tudo isso, dito de forma simplificada, pode ser resumido na expressão sentimento de pertença.

Esta comunicação se ocupará com questões que se relacionam com o Estado nacional, entendido como um fenômeno dos tempos modernos, que procura unir o povo mediante uma homogeneização cultural caracterizada por símbolos e valores, tradições e mitos de origem, reais ou inventados, mas que são apresentadas ao grupo como sendo comum a todos. Do exposto, percebe-se as nações vistas como comunidades culturais; e foi trilhando esse caminho de interpretação que a escola, especialmente a escola elementar, assumiu a responsabilidade (planejada) de construção da homogeneidade cultural da nação. Esta expressão, todavia, tem que ser percebida, bastante ao estilo do que Durkheim expõe em seu livro Educação e Sociologia, como uma dicotomia na qual convivem homogeneidade/heterogeneidade.

O sentimento de pertença ajusta-se mais ao reino do subjetivo, da sensibilidade, sendo que o investimento emocional dos indivíduos, nos elementos de sua cultura, é um aspecto importante e que tem sido explorado pelo nacionalismo – o encantamento subjetivo provocado pelos hinos cívicos, a emoção de ver a bandeira pátria tremulando ao vento. Por sua vez, a identidade legitimadora situa-se mais no reino da racionalidade, sendo elaborada pelas instituições dominantes da sociedade, usualmente pelo Estado, que têm como meta expandir a dominação em relação a atores sociais; pode incluir a emoção mas esta faz parte das estratégias de seu agir – a exploração racional da emoção humana.

Há acima uma expressão chave do pensamento de Weber, a dominação. Segundo palavras de Giddens, em Capitalismo e moderna teoria social, o conceito de dominação "refere-se apenas aos casos de exercício de poder em que um agente obedece a uma ordem específica dada por outrem. A aceitação da dominação pode basear-se em motivos muito diferentes." (GIDDENS, 1994, p.218). Assim aqueles que se submetem às determinações, numa relação social caracterizada pela dominação, sinalizam que as reconhecem pelos mais variados motivos: apóiam-se em fundamentação legal; advém de uma autoridade respeitada; ajustam-se aos costumes, ao que sempre aconteceu?

 

A identidade legitimadora

Há mútuas relações entre o sentimento de pertença e a identidade legitimadora; harmoniosas proximidades que fizeram com que ambos fossem relevantes na elaboração deste estudo. Mas a presente investigação tomou como paradigma central a questão da identidade legitimadora em função de algumas razões, como o fato de esse tipo de identidade ser uma expressão do poder político dominante na sociedade.

No tempo histórico e recorte geográfico deste estudo, a identidade legitimadora vai se referir às posições do poder governamental brasileiro (governo Vargas, anos 1930-1945) que, como ponto de arranque burocrático, estavam centralizadas no Ministério da Educação.7 Comunicando com outras palavras e gerando, por certo, outra forma de compreensão, afirma-se que o governo brasileiro elaborou então um modelo de identidade legitimadora que veio a se constituir na vereda – caminho estreito, senda – que, em termos de identidade social, era oferecida aos alunos das escolas primárias do país como possibilidades da "invenção de si".

Esse modelo identitário se ajustava confortavelmente às populações escolares de origem luso-brasileira. Contudo, ao referir-se às zonas de imigração e ao alunado descendente de estrangeiros, o desconforto cultural era bastante grande e as ações curriculares se transformavam numa camisa de força. Mas deu-se de fato o emprego da força, na implantação desse modelo de identidade legitimadora, atingindo tudo que a ele se opunha ou que com ele não se harmonizava – escolas fechadas, professores presos, material escolar apreendido, o que não é o tema do presente estudo. De todas as ações o Ministério da Educação participou pois, como afirma Schwartzman, em Tempos de Capanema:

O "abrasilleiramento" destes núcleos de imigrantes era visto como um dos elementos cruciais do grande projeto cívico a ser cumprido através da educação, tarefa que acabou se exercendo de forma muito mais repressiva do que propriamente pedagógica, mas na qual o Ministério da Educação se empenharia a fundo. (2000, p.93)

A identidade imposta exigia, só para ilustrar um aspecto bastante objetivo da questão, o domínio do idioma português; e, saliente-se, sem manifestação de sotaque, ou seja, com o à vontade suave e quase musical com que os nativos dominam o seu idioma (Quadro 01).

Escola pública de Jaraguá do Sul
Associação escolar Liga Pró-Língua Nacional
– ano 1943 –
Uma ata da reunião registrou as orientações que deveriam ser seguidas pelos seus membros, indicando que era importante que se "corrigissem as palavras erradas pronunciadas pelos colegas, principalmente os "erres", tão difíceis de pronunciar para os descendentes de estrangeiros." (SANTA CATARINA, 1943b)
Quadro 1

Como uma forma de pressão para o abandono do idioma étnico, a língua dos antepassados, simbolizada na figura dos avós, era apresentada como algo sem utilidade alguma e perdida nas brumas passado (Quadro 02). Mas tratava-se do modo de falar de personagens que catalizavam muito amor nas famílias: o "Opa" e a "Oma" para os alemães; o "Nono" e Como uma forma de pressão para o abandono do idioma étnico, a língua dos antepassados, simbolizada na figura dos avós, era apresentada como algo sem utilidade alguma e perdida no horizonte do passado (Quadro 02); o modo de falar do "Opa" e a "Oma" para os alemães; do "Nono" e da "Nona" para os italianos.

A escola nacional exigia que seus pequenos alunos esquecessem abruptamente a cultura dos antepassados, sem entender que a assimilação é um processo e que tem um tempo para cumprir-se; e outras coisas mais que vão por essa mesma linha de pensamento.

Município de Blumenau – Grupo Escolar José Bonifácio

Reunião do Clube de Leitura

– 14 de julho de 1943 –

O diretor da escola, visando valorizar o idioma português, segundo a ata de reunião escrita por um aluno, discorreu "sobre o melhoramento da nossa língua que devemos por em prática quotidianamente em nossos lares também [interrogou]: para que fim guardamos com carinho a língua dos avós que não mais voltaria a ser falada, em parte alguma de nosso território." (SANTA CATARINA, 1943b)
Quadro 02

Pode-se perguntar: terá sido mesmo tão marcante a ação do Ministério da Educação na política educacional das escolas primárias, especialmente no Sul do país, área de nacionalização? Como está claro no Plano Nacional de Educação, mais tarde conhecido como Reforma Capanema, ao governo federal cabia a responsabilidade de conceber e controlar toda a política educacional do ensino primário e, nas regiões consideradas como "zonas de nacionalização", subvencionar esse nível de ensino.8 Os estados e municípios se situavam mais no âmbito das responsabilidades relacionadas com o administrar.

 

O fluxo do poder

Para atingir os objetivos de homogeneidade cultural que se relacionavam com a construção da identidade nacional e a nacionalização das populações estrangeiras (faces diferentes do mesmo processo homogeneizador) foi implantada, sob a orientação do Ministério da Educação,9 e a decidida colaboração das autoridades responsáveis pelas diversas unidades da federação, uma política educativa muito nacionalista. Eficiente, partindo da distante cúpula sediada na cidade do Rio de Janeiro, então capital do país, atingia efetivamente as escolas e os alunos. As ações chegavam às escolas cercadas pela força política de um regime ditatorial no qual tudo conduzia à obediência; e a esse poder acrescente-se o força que já é própria da instituição escolar enquanto monopolizadora da educação considerada como legítima. Nesse sentido Ernest Gellner , com a costumeira acidez com que analisa o nacionalismo, criticou a escola e a atuação do professor:

Na base do sistema social moderno encontra-se, não o carrasco, mas o professor. Não é a guilhotina, mas o (devidamente intitulado) doctorat d' état que constitui a principal ferramenta e o símbolo do poder do Estado. O monopólio da educação legítima é agora mais importante e mais central do que o monopólio da violência legítima. (GELLNER, 1993, p.59)

No caso catarinense, o Departamento de Educação, a Inspetoria da Nacionalização do Ensino,10 as Inspetorias de Educação, eram os principais órgãos que exerciam o seu poder de dominação (direta ou indireta) sobre as escolas e os alunos, a partir da autoridade de que estavam revestidos (Quadro 03).

Grupo Escolar Mauá – Tubarão

– 14 de julho de 1942-

Inicialmente, o Inspetor Escolar orienta no sentido do não emprego de castigos físicos pois, além de proibidos, não os considera eficientes. Mas alerta que um clima de vigilância deve reinar na escola: "É essencial que o aluno seja sempre vigiado onde quer que se encontre. É escusado dizer que essa vigilância deverá ser discreta, do contrário degenerará em espionagem contraproducente".(SANTA CATARINA, 1942)
Quadro 03

No momento cabe lembrar que, de acordo com a lição de Weber que não pode ser esquecida, a dominação gera obediência e, ainda, nas situações em análise, as autoridades da época (décadas 1930-1940) entendiam que, como um clima a impregnar toda a vida escolar (Quadro 04), as disciplinas do currículo deviam apresentar um cunho profundamente moral, sentimental.

Visita de Inspeção Escolar

– 09 de abril de 1941 –

O Inspetor Escolar Adriano Mosimann, um homem culto, uma liderança entre os educadores catarinenses, inspecionou uma escola pública na então distante vila de Cocal, uma região colonizada por imigrantes italianos. No Termo de Visita que assinou estavam escritas as instruções que deveriam ser seguidas pelo professor:

"As aulas de geografia, história e educação devem ter um cunho profundamente moral, sentimental, construtivo e patriótico. Por meio delas, a criança deve adquirir noções elementares, mas exatas, do bem e do mal,11 deve ainda afeiçoar-se ao ambiente em que vive, ao município, ao Estado e à Pátria e, principalmente, aprender a admirar os nossos grandes vultos e orgulhar-se dos grandes feitos para que, ao deixar os bancos escolares, tenha aprendido que há alguma coisa mais importante do que ganhar dinheiro, isto é: zelar, com amor e carinho, pelo rico patrimônio moral e material dos nossos maiores e que, um dia, lhe será legado." (SANTA CATARINA, 1941)

Quadro 04

Como caminho para desvendar um pouco os meandros dessa forma de dominação, escolheu-se a pesquisa documental. O material empírico, levantado no decorrer de pesquisa em arquivos públicos (algumas vezes, em acervos particulares), trouxe à tona documentos escolares muito expressivos. Tratava-se de documentos que cumpriam diretrizes de ação muito diversificadas como: criar e manter ativas associações escolares as mais variadas; fazer atas; escrever um jornal escolar; redigir cartas integrando uma rede de correspondência com alunos de outras escolas; cantar no coro da escola; elaborar programas cívicos; denunciar colegas que não respeitassem a brasilidade falando em idioma étnico, mesmo em momentos de recreio escolar; integrar o Pelotão da Bandeira; fazer parte da Liga Pró-Língua Nacional; auxiliar no Pelotão de Saúde; colecionar biografias do heróis nacionais; ser membro da Liga da Bondade; organizar cooperativas escolares; apreciar , nas Horas de Arte, os álbuns contendo imagens dos grandes vultos da pátria; elaborar relatórios; plantar verduras e flores como membro do Clube Agrícola; cantar hinos e recitar poesias que engrandecessem a pátria. Um pouco dessa documentação escolar, como um material ilustrativo, está apresentada nesta Comunicação.

Faz-se necessário enfatizar que, nas regiões de colonização estrangeira da terra catarinense, a partir da noção de brasilidade concebida com raízes lusitanas considerava-se fundamental que todos dominassem o idioma vernáculo, e que a língua de Camões imperasse na vida em família, nos lazeres infantis e, evidentemente, no âmbito escolar. Essa era mesmo a grande meta da chamada escola de nacionalização; e, para que alguém pudesse ser chamado de "bom brasileiro", esse domínio lingüístico era considerado fundamental. Havia, nas décadas de 1930-1940 como que uma guerra (ou seria uma guerra mesmo?) entre as culturas, que se expressava num confronto entre a brasilidade (a cultura nacional) e as culturas étnicas (as culturas com raízes estrangeiras). O confronto pode ser considerado como natural, na perspectiva do processo social no qual, ao conflito, segue-se a acomodação. Esta consiste num arranjo para conviver e sobreviver, com mais paz do que no conflito, mas ainda não tendo a suavidade da assimilação. E outra pergunta pode ser feita agora? Será que, no caso brasileiro, a assimilação de imigrantes teve contornos de suavidade? Não é esse o entender de Flávio Kothe no ensaio O cânone colonial: ensaio, quando falando sobre os tempos antigos do Brasil afirmou: "O que a Colônia fez com negros e índios, a República fez com os imigrantes. A assimilação foi o genocídio da diferença" (KOTHE, 1997, p.151).

Haveria mesmo então uma guerra entre as culturas? É por aí que vai o pensamento de Gilberto Freyre, nos tempos da Segunda Guerra Mundial, esta uma guerra de verdade, "de sangue", que grassando na Europa tornou-se mundial e provocou mais de 50 milhões de mortos. E que polarizou o mundo entre duas principais coligações: o Eixo, formado pela Alemanha, Itália e Japão; e os Aliados liderado pela Inglaterra, Estados Unidos e França. Essa polarização em grupos antagônicos leva, no Brasil, a uma polarização das culturas sendo que os alemães, italianos e japoneses (ou seus descendentes) que viviam no Brasil passam a ser vistos sob a ótica da segurança nacional ou como "inimigos em potencial" que era preciso nacionalizar com urgência. Parece se instaurar então um clima de guerra entre as culturas do país, umas ameaçando, outras se sentindo ameaçada. Esse momento está muito bem expresso numa obra de Gilberto Freyre publicada em 1940: Uma cultura ameaçada: a luso-brasileira. Mas o mais acirrado confronto, apontado inclusive na obra de Freyre, dava-se entre a brasilidade e germanismo (Quadro 05). Questões dessa natureza estavam na ordem do dia, especialmente a partir do momento em que o Brasil, em agosto de 1942, declarou guerra à Alemanha e à Itália.

Jornal A Gazeta, Florianópolis

– julho de 1942 –

Na época, os submarinos alemães e italianos exerciam uma forte vigilância sobre o mar com o objetivo de impedir as ligações marítimas entre o Brasil e o Atlântico norte, especialmente os Estados Unidos. Como decorrência, navios brasileiros começaram a ser atacados. Somente no mês de julho de 1942 foram afundados os navios Tamandaré, Piave e Barbacena, havendo muitas mortes. Esses fatos causaram uma grande comoção pública. Era guerra no mar e, em terra, continuava o confronto entre as culturas, ao qual vai se referir o Juiz de Direto, Marcílio Medeiros, em artigo do qual se apresenta um pequeno trecho seguir;

"A mocidade se está esclarecendo e aprendendo a amar o Brasil como sua única e verdadeira Pátria. Os confins do germanismo batem em retirada ante a marcha irresistível da brasilidade!. Longo é ainda o caminho a percorrer-se. Muito, porém, já se percorreu." (MEDEIROS, 1942, p.02 )

Quadro 05

Esse clima de nacionalismo impregnava a escola na qual moralidade e civismo eram a tônica; mas um civismo de tom excludente em relação ao alunado que não tinha raízes culturais luso-brasileiras. Sem desejar transmitir a idéia de inexistência de liberdade interior dos pequenos alunos na invenção de si, reafirma-se que esses eram caminhos marcantes que, tendo muito de compulsório, eram oferecidos ao alunado da escola elementar, aos tempos do Estado Novo. Frase intrigantemente pesada em seu conteúdo, mas que se apóia no fato de que, em busca de seus objetivos nacionalizadores, a escola apelava para a questão da moralidade, no sentido de que desejava que em relação aos comportamentos difundidos pela escola, se salientasse que estavam baseados nas determinações da moral – eram expressões do bem.

Essa concepção de moral tinha muito do pensamento de Durkheim expresso no livro Éducation et sociologie (1966, p.45) "a moral está estreitamente ligada com a natureza das sociedades visto que, como temos demonstrado, ela muda quando as sociedades mudam"12. Assim, entende-se que, nos tempos do governo Vargas que estão em análise, nacionalismo e moral tenham ficado de mãos dadas: eram essas, no momento, as necessidades sociais, enquanto expressas pelo Estado.

De acordo com Giddens (1981, p.52), interpretando o pensamento de Durkheim, o sistema educacional formal desempenha "um papel vital na inculcação das atitudes e capacidades morais que se requerem na sociedade orientada para esses ideais seculares" – os ideais do individualismo moral. Para atingir esse objetivo, a escola precisava endossar um estilo de moral laica impregnada de racionalismo e muito próxima do pensamento iluminista, e que foi assim exposta por Émile Durkheim em Sociologia, educação e moral.13

Por educação moral laica, há que entender-se uma educação que se furte a todo e qualquer recurso aos princípios nos quais assentam as religiões divulgadas, que se apóie exclusivamente em idéias, sentimentos e práticas sujeitas à jurisdição da simples razão, numa palavra, uma educação puramente racionalista. (1984, p.101)

Tratava-se de uma moral escolar laica, ou seja, racionalista em sua essência. Mas mesmo tendo essas características, sempre que exigiam os interesses das grandes instituições da sociedade, geralmente o Estado, a escola difundia os valores típicos da moral escolar religiosa. A religiosidade entrava aí como uma estratégia de ação – como um caminho eficiente para atingir as famílias e penetrar nas mentes infantis e que ajudava ainda no sentido de tornar os conteúdos ensinados mais atraentes. Esse fato, por decorrência, abria caminho para que a escola se ocupasse com os conceitos de bem e de mal.

Nos tempos e na realidade educacional que estamos estudando, a do estado de Santa Catarina, a escola elementar, claramente seguido orientações dos órgãos hierárquicos superiores difundia, em seu currículo e em todas as situações de aprendizagem, uma moral que colocava em primeiro plano os objetivos da política de estado; e nesse sentido, e à medida do interesse do nacionalismo oficial, difundia os valores típicos da religião. Muito ilustrativo de uma situação dessa ordem é a existência da associação escolar denominada Liga da Bondade que, em caráter obrigatório, devia ser organizada em todas as escolas primárias de Santa Catarina.

Nas décadas de 1930 e 1940, os que concebem os caminhos da educação elementar no país, demonstram saber que o conceito de moralidade é mais amplo do que as suas ligações com a religiosidade; tem raízes mais profundas. Tão profundas que em um livro atual denominado As fontes do self: a construção da identidade moderna (1997, p.10), Charles Taylor aponta para as "conexões [existentes] entre os sentidos do self e as concepções morais, entre a identidade e o bem". Dito de forma um pouco diferente: o autor aponta para as conexões que se estabelecem entre "identidade e moralidade" (1997, p.15).

Nos tempos do Estado Novo, "identidade e moralidade" foram duas questões que, de forma articulada, estiveram muito presentes na escola elementar. Identidade centrada no nacionalismo que se difundia na escola – a orgulhosa identidade de ser brasileiro e de falar o idioma português. E moralidade centrada na idéia de "bem" que tinha um desdobramento na expressão o bom brasileiro – aquele que não apenas nasceu no Brasil como que num acidente geográfico, mas que ama essa terra sobre todas as coisas e com todas as suas forças, que coloca a pátria acima da família, e que, de preferência sem sotaque, domina o idioma português. Para atingir esse último fim (o domínio, por pequeninos, filhos de estrangeiros, da língua vernácula), como já visto, todos deviam colaborar, inclusive os coleginhas de escola a quem cabia assumir a posição de "mestres no falar".

Afinal, o que eu sou como uma pessoa ou um self? Após reconhecer a necessidade de "retratar a relação entre self e moral" (TAYLOR, 1997, p.11), pode-se perguntar: que respostas a filosofia moral tem dado para isso? A verdade é que as respostas a essas questões têm sido muito limitadas, como discorre Charles Taylor. Expressiva parte da filosofia moral contemporânea tem abordado a moralidade de uma forma muito limitada enfocando menos o que é bom ser e, priorizando-se os aspectos operacionais ou pragmáticos, ocupando-se mais com o que o que é certo fazer:

Essa filosofia moral tendeu a se concentrar mais no que é certo fazer do que no que é bom ser, antes na definição do conteúdo da obrigação do que na natureza do bem viver; e não há nela espaço conceitual para a noção do bem como o objeto de nosso amor ou lealdade ou, como Íris Murdoch o retratou em sua obra, como o foco privilegiado da atenção ou da vontade. Essa filosofia sancionou uma concepção defeituosa e truncada da moralidade num sentido estreito, bem como de toda a gama de questões envolvidas na tentativa de levar a melhor vida possível, e isso não só para filósofos profissionais como para um público mais amplo. (TAYLOR, 1997, p.15-16)

Foi nesse naipe, estreito, que a filosofia moral animou as escolas primárias catarinenses nas décadas de 1930 e 1940. Uma filosofia que não se ocupava com questões referentes ao que era bom ser mas indicava enfaticamente aos alunos o que era certo fazer. Muitas dessas indicações, mesmo que atualmente pareçam um tanto exóticas, se dirigiam à questão lingüística. A língua vernácula deveria fatalmente predominar. O idioma, no caso a língua portuguesa, era concebido como uma fonte de poder e um estimulador da assimilação. E ter o domínio sobre a língua portuguesa era uma característica do "bom brasileiro" – uma representação simbólica identificada com a moralidade; enfim, com o "bem". Nesse sentido, no âmbito das escolas, algumas coisas estavam solidificadas como "certo fazer": aprender a língua portuguesa, sem sotaque; difundir o idioma no seio da família e entre os amigos; e, até mesmo, não responder quando alguém formulasse uma questão em idioma étnico. E mais ainda, ser "bom brasileiro" não era uma questão de opção mas de moralidade.

O sociólogo Zygmunt Bauman tem analisado temas clássicos da filosofia política. Ao tratar da construção social da ambivalência, discorre sobre a existência de amigos, de inimigos e de estranhos. Considera que "os amigos são criados pela pragmática da cooperação. São moldados pela responsabilidade e o dever moral. Os amigos são aqueles por cujo bem-estar eu sou responsável antes que ajam em reciprocidade e independente disso;" já "os inimigos, por outro lado, são criados pela pragmática da luta. Eles são construídos pela renúncia à responsabilidade e ao dever moral." (1999, p.63). Os inimigos são aqueles que não aceitam serem responsáveis pelo meu bem-estar antes que eu rejeite responsabilidade pelo bem-estar deles e mesmo independentemente disso. Sempre colocadas em oposição uns aos outros, assim Bauman entende as categorias de amigo e de inimigo. E, nesse contexto, como fica a posição do estranho?

Contra esse confortável antagonismo, contra essa colisão conflituosa de amigos e inimigos, rebela-se o estranho. A ameaça que ele carrega é mais terrível que a ameaça que se pode temer do inimigo. O estranho ameaça a própria sociação, a própria possibilidade de sociação. Ele desmascara a oposição entre amigos e inimigos como o compleat mappa mundi, como diferença que consome todas as diferenças e portanto não deixa nada fora dela. Como essa oposição é o fundamento no qual se assenta toda a vida social e todas as diferenças que a constroem e sustentam, o estranho solapa a própria vida social. E tudo isso porque o estranho não é nem amigo, nem inimigo – e porque pode ser ambos. E porque não sabemos nem temos como saber qual é o caso. (BAUMAN, 1999, p.64)

Não é um amigo, não é um inimigo, com quem, por serem posições claras, todos sabem como nortear as relações. O estranho, o imigrante, o estrangeiro é uma incógnita – fala outra língua, cultua outros heróis – faz-se necessário nacionalizá-lo (Quadro 06).

Escola Estadual do Núcleo Rio Branco

– 31 de maio de 1942 –

O Delegado de Polícia visitou a escola e deixou registrada sua opinião. Louvou a organização do estabelecimento de ensino, a ordem, a disciplina, o entusiasmo e o patriotismo que reinava na escola e deu loas ao professor, "por tudo isso e pela sua personalidade bem definida de bom brasileiro". (SANTA CATARINA, 1942)

Quadro 06

O estrangeiro não é um inimigo, como já se disse. Mas os militares e delegados de polícia se sentiam muito a vontade em entrar nas escolas de nacionalização, analisar tudo e, mais ainda, deixar seu parecer escrito onde se anotavam as visitas.

Os imigrantes brasileiros, os estrangeiros que tinham vindo de longe para morar no Brasil, não integravam o mito das três raças. E no âmbito das escolas primárias de então, as crianças aprendiam que esses grupos eram um "peso" na convivência social (não falavam o vernáculo, e do exposto, percebe-se as nações vistas como comunidades culturais; e foi trilhando esse caminho de interpretação que a escola, especialmente a escola elementar, assumiu a responsabilidade (planejada) de construção da homogeneidade cultural da nação. Esta expressão, todavia, tem que ser percebida, bastante ao estilo do que Durkheim expõe em seu livro Educação e sociologia, como uma dicotomia na qual convivem homogeneidade/heterogeneidade.

O sentimento de pertença ajusta-se mais ao reino do subjetivo, da sensibilidade, sendo que o investimento emocional dos indivíduos, nos elementos de sua cultura, é um aspecto importante e que tem sido explorado pelo nacionalismo – às vezes até professaram religião diferente da católica), podendo considerar-se feliz a região onde não haviam se localizado os estrangeiros (Quadro 07). Essa percepção estava presente no magistério catarinense e era mesmo, muito à vontade, comunicada em documentos dirigidos às autoridades de Santa Catarina.

Escola Mista Estadual de Passo do Sertão,Município de Araranguá-

17 de novembro de 1945 –

Trecho da correspondência da secretaria da escola, dirigida ao Inspetor Geral do Ensino

"Tenho o prazer de levar ao seu conhecimento que a Liga Pró-Língua Nacional anexa a este educandário tem funcionado regularmente, tendo os seus membros demonstrado grande interesse pela mesma. Já organizamos dois álbuns durante o corrente ano, todos os alunos já demonstraram bastante sentimentos patrióticos, adquiridos pelas horas de arte que realizamos mensalmente, homenageando brasileiros ilustres, demonstrando-lhes seus feitos e seu amor pela Pátria. Felizmente, nesta localidade todos os habitantes são brasileiros, não havendo grandes dificuldades para o bom cultivo da nossa bela língua pátria". (SANTA CATARINA, 1945)

Quadro 7

Os estrangeiros eram, face ao sentimento nacional brasileiro, chamados de alienígenas (Quadro 08). . O termo aponta para quem é de outro país, estrangeiro, indica o contrário de indígena; este nasceu na terra, é nativo. Como afirma Tânia Maria Baibich em seu livro Fronteiras da identidade: o auto-ódio tropical, a categoria sócio-política de estrangeiro coloca-o numa posição de alteridade que implica, necessariamente, uma exclusão. Ao demarcarem-se as fronteiras da identidade, firmam-se também as fronteiras da diferença, sempre desfavoráveis ao estrangeiro.

– 28 de abril de 1943 –

Uma professora do Grupo Escolar Feliciano Pires, cidade de Brusque, fez um estudo sobre "a nacionalização do espírito infantil" quando escreveu o que segue:

"A observação, durante vários anos de magistério, em centros coloniais de ordem alienígena deixa-me na convicção de que só poderemos ter resultados mais satisfatórios no ensino da língua pátria e das demais disciplinas escolares e, principalmente, na educação física, digo, cívica, quando pela ação do tempo, auxiliado por um severa legislação rigorosamente executada, conseguir-se modificar, nesses centros coloniais, o ambiente familiar, cumprindo ao professor não esmorecer nunca diante do pouco resultado obtido, cabendo-nos considerarmos no sopé da alta montanha pedregosa, cujo cimo, a integração de todos os seus filhos de origem estrangeira na comunhão nacional, devemos galgar removendo pedra por pedra, sem olhar a distância, nem o tempo, nem o esforço." (SANTA CATARINA, 1943a)

Quadro 08

Nas escolas primárias catarinenses também se difundia a expressão "alienígena", ao se referir ao grupo imigrante. Era uma forma de marcar a diferença entre "nós" e os "outros". O fato desperta especiais reflexões por se tratar de situação educativa, e, ainda de acordo com Tânia Maria Baibich (2001, p.24), "muitos têm apontado o preconceito como uma matéria de aprendizagem": as pessoas simplesmente assimilam preconceitos endossados pelos grupos com que se identificam, pais ou pares em geral. Daí porque os preconceitos apresentam força suficiente para se manterem no decorrer das gerações.

A expressão alienígena, na documentação escolar que está sendo o apoio da presente pesquisa, indica que havia variações no modo de falar. Assim, as regiões rurais, com suas pequenas propriedades cultivadas pelo agricultor e sua família, podiam até ser chamadas, um tanto solenemente, de "centros de colonização de origem alienígena" (SANTA CATARINA, 1943a). A professora catarinense que usou essa terminologia (Quadro 08) ainda teceu considerações sobre a maneira como os alunos se sentiam divididos entre o clima nacionalista da "escola brasileira" e o ambiente familiar onde predominavam os valores étnicos, como a forma de falar dos antepassados, tudo considerado como intolerável; como o caminho de solução, a mestra indicava a criação de uma legislação, severa, e que deveria ser rigorosamente cumprida.

O que se observava então, na sociedade e nas escolas catarinenses, era muito simples: alunos divididos entre dois mundos, dois sistemas de valores; simplesmente havia uma situação de ambivalência. Esta é, aliás, a espinha dorsal do livro Modernidade e ambivalência, de Zygmunt Bauman, que afirma também que os caminhos propostos para controlar a ambivalência têm sido a tecnologia e a administração. Assim, entende-se que muitos indiquem que "a redução da ambivalência é uma questão de descobrir e aplicar a tecnologia adequada – uma questão administrativa. Os dois fatores combinaram-se para fazer dos tempos modernos uma era de guerra particularmente dolorosa e implacável contra a ambivalência." (1999, p.11) Enfim, as escolas não sabiam (e não queriam) conviver com dois sistemas de valores – os nacionais e os étnicos. A ambivalência não era tolerada; os alienígenas necessitavam espelhar-se nos nacionais.

E por falar em alienígenas, recorde-se que as autoridade de todas as instâncias – federais, estaduais e municipais – tinham especial gosto no uso dessa expressão; e mais ainda, como um desdobramento de comunicação, os grupos de imigrantes e seus descendentes eram designados também como "quistos étnicos" ficando implícito (e explícito, muitas vezes) que era necessário extirpá-los da realidade social (Quadro 09). Essa analogia, já no ano de 1922 foi usada pelo Governador Hercílio Luz.

O Jornal do Comércio, Rio de Janeiro

– 7 de setembro de 1922 –

A questão referente ao "abrasileiramento" das populações imigrantes era assunto de interesse nacional. Mas o que acontecia em Santa Catarina, causava especial preocupação."Ao que se refere a realidade dos fatos, pode-se considerar resolvido o problema da nacionalização de uma não pequena parte da população catarinense de origem estrangeira (…). O abrasileiramento desses contingentes alienígenas veio, em boa hora, solucionar o que o Governador do Estado chamou, numa boa hora, numa metáfora sugestiva, 'Kysto ethinico' no organismo nacional". (JORNAL DO COMÉRCIO, 1922)

Quadro 09

O "bom brasileiro" ajudava a combater os quistos étnicos. A expressão, que no campo jurídicos se refere à nacionalidade – ser brasileiro -, era acrescida de um qualificativo que categorizava a realidade indicando (implicitamente) uma dicotomia: os brasileiros, aqueles que simplesmente haviam nascido no Brasil como que por um acidente circunstancial da vida; e os bons brasileiros. Cabia à escola formar os "bons brasileiros". Essa questão estava intimamente ligada à construção ideológica do Estado Novo que exigia um novo homem, novas leis, uma nova mentalidade. Isso fica bem evidente nas orientações governamentais que chegavam à escola (Quadro 10).

Recorde-se, acima de tudo, os bons brasileiros apoiavam o governo. Mas outras coisas também caracterizavam o bom brasileiro: o respeito às autoridades, um grande desejo que os Aliados vencessem a guerra, de modo especial nas frentes da Europa em que a luta envolvia a Alemanha e a Itália.

Grupo Escolar Henrique Lages em Imbituba

Reunião da Liga Pró-Língua Nacional

– novembro de 1943 –

"O Estado Novo, chefiado pelo dr. Getúlio Vargas, o guia sem par e muito querido do povo brasileiro, protegendo o operário, a família e a economia popular, melhorou as condições de vida no nosso país e fortaleceu, com acertadas medidas, a nossa nacionalidade".

E diz o documento que foi lido em uma reunião de alunos: "O Estado Novo, representado por seu grande presidente, tem, por isso, o apoio incondicional dos bons brasileiros". A reunião de alunos logo se encerrou ao som do Hino Nacional (SANTA CATARINA, 1943b)

Quadro 10

Além disso, o bom brasileiro era preferencialmente católico, demonstrava grande amor à família, dedicava-se aos estudos e, principalmente (isto nas zonas de nacionalização) amava o idioma português (Quadro 11). Como uma contra-face desse amor, abandonara o idioma étnico – a forma de falar de sua família, de sua comunidade local. Fatos dessa ordem exigem que se tenha claro que a questão idiomática era muito importante na perspectiva do nacionalismo. Nesse contexto, a língua passou a ser considerada como parte de ações da engenharia social e o seu significado, que transcendeu ao seu uso real, adquiriu um grande poder simbólico.

Escola Municipal de Rio do Meio, Município de Araranguá –

– 17 de julho de 1942 –

Em termo de visita do Inspetor Escolar Marcilio Dias de S. Tiago, consta:

"O aproveitamento dos alunos foi bom em aritmética, mas sofrível em leitura e linguagem, visto a influência de língua estrangeira, o que a professora precisa neutralizar proibindo outra língua e esforçando-se por bem falar a nossa" (SANTA CATARINA, 1942)

Quadro 11

Nas mais variadas regiões do mundo se pode identificar historicamente esforços para nativizar a língua, como um fator de aglutinação e de construção do estado nacional. No Brasil, a questão foi um pouco diferente pois a meta era um processo mais radical. O que se visava era a extirpação do falar étnico que tivesse raízes nos grupos de imigrantes estrangeiros. Essas ações, verdadeiras manifestações de poder direcionando a cultura, adquirem ricas perspectivas de análise (aqui houve apenas uma pequena mostra), quando entendidas em suas relações com a identidade coletiva e como fazendo parte dos tortuosos caminhos que cada um enfrenta na "invenção de si".

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Notas

1 – As pesquisas mais recentes que estudam o tema nacionalização e a violência cultural, e inclusive física, que foi dirigida aos imigrantes estrangeiros e seus descendentes, na região Sul, apontam que esses fatos adquiriram maior força no estado de Santa Catarina.

2 – Não está sendo esquecido que, no bojo dos acontecimentos relacionados com a Primeira Guerra Mundial, o governo federal fez intervenções nacionalizadoras nos sistemas de ensino da região Sul do país. Essas medidas, todavia, são consideradas tímidas quando comparadas com a campanha de nacionalização que se inicia no ano de 1938.

3 – Grifo do autor.

4 – Segundo Weber, situado dentro de uma relação social, "o poder é definido simplesmente como a probabilidade de um ator impor sua vontade a outro, mesmo contra a resistência deste". Cf.: (ARON, 1999, p.494).

5 – O renascimento do interesse por questões relacionadas com a pátria foi tão forte que nas escolas de Primeiro Grau da Alemanha, na década de 1920, havia uma disciplina curricular autônoma intitulada "O estudo da pátria".

6 – DURKHEIM, Emile. A debate on nationalism and patriotism. In: GIDDENS, Anthony. Durkheim on politics and the state. Londres: Fontana Paperbacks, 1987, p.206.

7 – No ano de 1937, a denominação completa era Ministério da Educação e Saúde.

8 – As subvenções federais ao ensino elementar ocorreram mas de forma tão modesta e aquém das necessidades que, de fato, foram estados que assumiram a maior parte dessas responsabilidades, no Paraná, em Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

9 – Com essa afirmativa não se está esquecendo a ação do exército, mas o Ministério da Educação era o grande executor das aspirações da corporação militar quando os assuntos da educação passam a ser considerados como "questões de segurança nacional". A partir daí, não cabia mais a temática educacional ficar somente no âmbito da ação militar, mas essa ordem de preocupações deveria também se articular com a mentalidade da escola civil.

10 – Durante um largo tempo, o nome completo desse órgão foi Inspetoria das Escolas Subvencionadas pelo Governo Federal e Nacionalização do Ensino, sendo conhecida usualmente como Inspetoria de Nacionalização do Ensino.

11 – Grifo nosso.

12 – Tradução nossa.

13 – Essa edição brasileira da obra de Durkheim contém dois estudos do autor: Educação e sociologia (Primeiro Livro) e A educação moral (Segundo Livro).

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Referências

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Prof. Dr. Carlos Gabriel Guimarães (Universidade Federal Fluminense)

A seguir, a entrevista que o historiador Carlos Gabriel Guimarães concedeu a Revista Tema Livre, no dia 16 de dezembro de 2005, no Campus do Gragoatá da Universidade Federal Fluminense. Na entrevista, dentre outros assuntos, o historiador questiona o mito em torno de Irineu Evangelista de Sousa, o Barão/Visconde de Mauá e, ainda, fala da ação dos comerciantes portugueses e ingleses no mundo luso-brasileiro.

Revista Tema Livre – O Sr. é o presidente da Associação Brasileira de Pesquisa em História Econômica (ABPHE). Assim, o Sr. pode falar um pouco sobre a instituição?

Carlos Gabriel Guimarães – Sou o atual presidente da ABPHE, eleito em 2005, com mandato até 2007, quando teremos, em Aracajú, o VII Congresso Brasileiro de História Econômica e a 8ª Conferência Internacional de História de Empresas, sob a organização do Prof. Dr. Josué Modesto dos Passos Subrinho, atual reitor da Universidade Federal de Sergipe e vice-presidente da ABPHE.

A ABPHE surgiu oficialmente em 1993, no I Congresso Brasileiro de História Econômica e 2ª Conferência Internacional de História de Empresas, que foram realizados na USP, e teve como primeiro presidente, o Prof. Dr. Tamás Szmrecsányi da UNICAMP.

Hoje, a ABPHE tem mais de 200 associados, do Amazonas ao Rio Grande do Sul, além de alguns sócios estrangeiros. Destaco aqui que é uma associação que envolve economistas e historiadores, mas, também, temos sociólogos, antropólogos, enfim, acho importante essa diversidade, acho que isso caracteriza a ABPHE.

A ABPHE vem estimulando o retorno das pesquisas em história econômica, após a queda ocorrida, principalmente, entre os anos de 1980 e 1990. Muitos estudos estão sendo realizados, especialmente por historiadores da história econômica social. Vale lembrar que grandes pesquisadores da história como Kátia Matoso, Maria Yeda Linhares, Eulália Lobo e Fernando Novais fizeram suas pesquisas iniciais em história econômica. Chamo a atenção dos jovens historiadores que acham que a história econômica está apenas calcada em números. Lembro que, mais importante que a questão quantitativa, está a pesquisa sobre os atores sociais.

RTL – O Sr. pode falar, resumidamente, sobre o curso que o Sr. é coordenador, a Pós Graduação Lato Sensu em História do Brasil da UFF?

Guimarães – A pós-graduação lato sensu em História do Brasil é uma das especializações oferecidas pelo Departamento de História da UFF. Considero importante que a Universidade Pública ofereça esse tipo de curso, pois auxilia na qualificação profissional da sociedade e promove a mudança da atuação da academia, passando a ser mais próxima da população. Com o curso procuramos realizar esta mudança, com aulas aos sábados e tendo como alunos, principalmente, professores da rede pública e privada dos ensinos fundamental e médio, além de profissionais de outras áreas, como jornalismo, direito e geografia. Muitos alunos trabalham de segunda a sexta, e se esforçam para se atualizarem aos sábados, assim, é um caminho de mão dupla, porque passamos conhecimento, mas temos contato com outra realidade. Por ser um curso pago, temos recebido muitas criticas por parte daqueles que consideram que estamos privatizando a Universidade. Mas é importante ressaltar que da receita do curso, aproximadamente entre trinta e trinta e cinco por cento vai para os cofres da Universidade, para o Departamento de História e para o Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. O restante é para pagar as despesas com professores e funcionários. Infelizmente temos que cobrar, já que não podemos usar a carga horária destinada a outras atividades, como, por exemplo, as aulas na graduação, para atender a esse tipo de curso.

RTL – O Sr. esteve em Portugal fazendo o pós-doutorado. Assim, pode contar-nos, sucintamente, sobre a sua pesquisa lá?

Guimarães – Eu fiz uma pesquisa com bolsa da CAPES, fiquei lá, ao todo, por nove meses, e foi um estudo envolvendo mercadores ingleses em Lisboa e no Brasil na primeira metade do século XIX. Esta pesquisa foi desdobramento da minha tese de doutorado, que foi sobre a Sociedade Bancária Mauá, MacGregor & Cia., sendo que o Mauá é, na verdade, um mito.

RTL – Fale-nos a respeito do mito do Mauá.

Guimarães – Antes de falar do mito, vamos falar um pouco dos comerciantes ingleses, que muitos deles estão ligados ao Mauá, como o Richard Carruthers. Com a pesquisa em Portugal consegui mapear o irmão dele, o Guilherme Carruthers.

O Richard Carruthers, antes de chegar ao Brasil, foi para Lisboa com o irmão, em 1822/23, e depois veio para cá. É uma trajetória que os ingleses faziam no mundo colonial português, a maioria parava em Lisboa e, depois, ia para o Brasil, ou para outras praças dentro do Império Português. Isso significa uma questão política e econômica. No caso dos irmãos Carruthers, o Guilherme ficou em Lisboa e o Richard veio para o Rio de Janeiro e eles se associaram a grandes negociantes portugueses. O Guilherme se associou ao José Bento de Araújo, um dos maiores negociantes do vintismo português. No Rio de Janeiro aconteceu à mesma coisa, o Richard se associou ao famoso João Rodrigues Pereira de Almeida, deputado da Junta de Comércio, acionista do Banco do Brasil e traficante de escravo.

Esta associação dos ingleses com os portugueses possibilita pensar no que chamamos de cultura de negócios, ou seja, perceber que as atividades comerciais (os negócios) estavam ligadas a uma lógica de mercado diferente do mercado capitalista. A associação de um inglês com um negociante e deputado da Junta de Comércio, como era o caso do João Rodrigues Pereira de Almeida, essa rede e essa associação são justamente para poder penetrar nesse mercado e saber como ele funcionava. Não sendo um mercado capitalista, não é um mercado contratual, e tem muito de relação pessoal, proximidade com a política. É lógico que capitalismo também tem isso. Agora, no mercado não capitalista, a política, muitas vezes, é o principal motor, aí tem que estar próximo dos homens que estão nessa política (no Estado), e estes negociantes portugueses estavam lá. Em virtude das pesquisas, tem-se demonstrado a importância do negociante de grosso do Império Português, principalmente a partir de Pombal. Com a chegada da Corte em 1808, os negociante reinos no Rio de Janeiro participaram cada vez mais desse Estado Imperial português, assim como no período de D. Pedro I.

Falando no Irineu Evangelista de Souza, o futuro Barão e, depois, Visconde de Mauá, ele era caixeiro do João Rodrigues Pereira de Almeida, que o recrutou ainda muito garoto, em virtude do seu tio, que era o capitão de navio daquele negociante. O Irineu foi levado pelo seu tio porque perdeu o pai, e quando o Pereira de Almeida faliu, ele vai para a firma do Richard Carruthers. Esta passagem do Mauá envolve muito do que falei anteriormente, das relações pessoais num mercado que na prática não é capitalista. E cuidado com esses “capitalistas ingleses”, pois, principalmente depois de 1850, foi que verificamos uma articulação muito mais capitalista no sentido moderno da palavra para essas firmas inglesas. É interessante, porque as pessoas acham que os ingleses são pragmáticos, objetivos… Toda a historiografia sobre os ingleses no Brasil destaca o quanto eles eram modernos e os portugueses o oposto, ou seja, arcaicos. Não é nada disso, os grandes negociantes portugueses tinham as suas letras assinadas e recebidas nas praças européias. É bom chamar a atenção disto para parar um pouco com essa idéia pejorativa do português “tamancão”, desculpe usar essa palavra, e o inglês, o moderno. Não tinha nada disso, as relações dos ingleses com seus agentes envolviam relações pessoais, familiares.

No tocante ao mito do Mauá, é uma coisa interessante, porque, na verdade, não foi construído pelo próprio Mauá. O Mauá é autor de um livro intitulado “Autobiografia.. Exposição aos Credores”, onde explica o porquê da falência, da quebra do seu banco. Ele está expondo não é para todos, está expondo ao público dele. Agora, quem é o público dele? É a sociedade imperial e, principalmente, a Associação Comercial do Rio de Janeiro.

O problema é que o Mauá foi sendo apropriado, eu falo isso em um texto da Revista de História da Biblioteca Nacional daqui do Rio de Janeiro [edição nº4, outubro de 2005], que o Mauá foi sendo apropriado, tanto por uma esquerda, quanto por uma direita, desculpe-me usar essa demarcação ideológica-política, para justamente ou privilegiar o liberal, o empreendedor que teve um Estado opressor, aí é uma visão à direita, dos liberais, ou então alguém, um brasileiro que competindo contra os estrangeiros, principalmente contra o poderio inglês, precisou do apoio do Estado, porém o Estado negou. É a leitura da esquerda nacionalista velha e datada. Na verdade, não é nada disso.

O Mauá, como já chamei a atenção, com o retorno do Richard Carruhthers para a Inglaterra em 1837, ele vai ser o diretor da firma inglesa Carruthers & Company, e na década de 1840, a firma inglesa vai estar ligada ao tráfico negreiro, como destacam o Robert Conrad e o Luis Henrique Tavares, este último no livro “O comércio proibido de escravos”, quando estes trabalharam com a documentação inglesa do Public Record Office. Eles utilizam, principalmente, as correspondências consulares dos cônsules ingleses no Brasil. Lá estão os cônsules dizendo que várias firmas inglesas estão ligadas ao tráfico, jogando seus produtos para financiar o tráfico negreiro. A Carruthers & Company estava ligada ao grande negreiro Manuel Pinto da Fonseca. Eu achei o Manuel Pinto da Fonseca como sócio da Sociedade Bancária Mauá, MacGregor, e olha que ele foi expulso do Brasil em 1852 por causa do contrabando e, tinha como um dos testamenteiros um sócio e amigo pessoal do Mauá, o José Antonio de Figueiredo Júnior, pai do futuro Visconde de Figueiredo, que no final do Império, foi o organizador do Banco Nacional. O pai do Visconde de Figueiredo e o futuro Barão de Mauá estavam vinculados a um dos negócios mais lucrativos, que era o comércio de carne humana, como diziam os negreiros. E não só o Mauá estava ligado ao tráfico negreiro, mas várias firmas inglesas também, até mesmo os agentes dos Rothschilds no Brasil.

O Mauá teve vários bancos, mas nunca organizou uma holding, ao contrário do que alguns biógrafos dizem. Mauá organizou seu último banco, o Mauá & Cia, em 1867, e nesse banco foi transportado todo os passivos dos seus negócios. Não foi à toa que deu no que deu, ou seja, quando estourou uma crise na Praça do Comércio, como a de 1875, o banco quebrou. É importante salientar que o Banco Mauá & Cia não era o Banco Mauá, MacGregor, que foi o segundo banco organizado pelo Mauá, já que o primeiro banco foi o Banco de Brasil de 1851. Aliás, o primeiro Banco com o nome de Mauá & Cia foi organizado na década de 1850 (em 1856), e se constituiu no principal banco e emissor de notas (moeda) no Uruguai, com “filiais” na Argentina e no porto do Rio Grande na Província do Rio Grande do Sul. Olha o barão de Mauá e a política externa do Império. Paulino Soares de Souza, o Visconde de Uruguai, coladinho com Mauá, que é um mito também no Uruguai, e existe uma praça Mauá em Montevidéu.

O que Mauá estava fazendo lá? Estava lá porque era empreendedor? Mauá estava coladinho com o projeto de expansão do Império brasileiro na Região do Rio da Prata. Quando se pagavam as tropas do Brasil na Guerra do Paraguai era o Banco Mauá que fazia.

Outro grande problema do mito do Mauá é aquela associação dele como industrial, pois isto na verdade não aconteceu. O Mauá organizou algumas empresas, mas tiveram curta duração. O Estaleiro Mauá, por exemplo, que seria uma referência de estaleiro moderno, tem que ter cuidado. Era um conjunto de oficinas, tinha muitos escravos. Ora, cadê o maior abolicionista que os biógrafos e que o filme fala? Não tem nada de abolicionista! O Mauá industrial? Que indústrias ele teve? O Estaleiro Mauá, curta duração. A Luz Esteárica, curta duração. E mais, com muita subvenção do governo imperial. Mas o Mauá sempre foi, como esta lá no registro de matriculas do Tribunal do Comércio do Código Comercial, negociante de grosso, e depois, quando ele organizou os bancos, banqueiro. É o negócio dele, o negócio dele foi o comércio. Com o fim do tráfico negreiro, aqueles capitais de origem negreira vão ser direcionados para a atividade comercial do Rio de Janeiro.

Assim, o Mauá é um mito tanto para a direita, quanto para a esquerda, ou seja, para estes, o brasileiro que precisou do apoio do Estado contra a opressão estrangeira. Opressão estrangeira? Ele era colado com os ingleses! Ou então os liberais defendendo o indivíduo que por si só poderia chegar lá, porém o Estado atrasado… Vamos parar com isto! Ele era um homem do Império. Virou mito, principalmente no século XX, por causa do projeto de desenvolvimento nacional (sinônimo de indústria/industrialização), e aí o Mauá serve para tudo. Ele está tanto no comércio, quanto na industria. Em associações comerciais, em vários locais do Brasil, tem uma sala Mauá. Em associações industriais está, por exemplo, na FIRJAN e na FIESP. Então o Mauá serve para o industrial e para o comerciante… Ele é uma figura mítica. Tratá-lo como empresário no estilo moderno é um grande absurdo, e pior ainda é como os nossos alunos, nossos filhos, nossos netos, lendo livros de história do Brasil, falando da segunda metade do século XIX, a “Era Mauá”…. Parece que dentro daquele Império atrasado teve um período moderno…. Pelo amor de Deus! É um grande equivoco, mas mito é isso.

Bem, Mauá ganha bastante destaque a partir da década de 1920, com Alberto Faria, que faz um livro com uma apologia ao Mauá. Nos anos 30, Lídia Besouchet publica “Mauá e o seu tempo”. Um descendente do Mauá, Cláudio Ganns reedita o livro do Mauá, “Autobiografia. Exposição aos Credores”. Repare bem como o mito vai sendo recriado. Depois, Caio Prado Junior, Celso Furtado, o primeiro marxista, e o outro keyneziano estruturalista, também embarcam no mito. No caso do Celso Furtado, ligado ao Plano de Metas de JK, e um dos teóricos do projeto nacional desenvolvimentista, o resgate do Mauá, o Mauá industrial, era importante. Ora, no Rio de Janeiro, a indústria propriamente dita foi criada depois de 1870, como diz Maria Bárbara Levy, Eulália Lobo, Geraldo Beauclair, e vários historiadores econômicos. Não é a “Era Mauá”. A industria no Rio de Janeiro é pós-Mauá.

Assim, o Mauá era um homem do seu tempo, e mais, o tempo do Mauá é o tempo do apogeu do Império. Depois de 1870 já tem outros grupos mercantis que vão se sobrepor ao Mauá. É lógico que com a crise de 1875 ele quebrou por problemas dele e pelo fato do Estado que, via Banco do Brasil, não o apoiou. Um outro banco que pesquiso, o Banco Rural e Hipotecário do Rio de Janeiro, contou com a ajuda do Banco do Brasil, que emprestou mais de 3.000 contos e conseguiu salvar o Banco Rural e Hipotecário. Não fez isso com o Mauá, mas por quê? É a relação de poder, já não era mais o tempo do Mauá e o seu grupo. A situação estava se modificando.

Leia outras entrevistas concedidas à Revista Tema Livre

Prof.ª Dr.ª Claudia Wasserman (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)

A seguir, a Revista Tema Livre apresenta entrevista concedida pela historiadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Claudia Wasserman. Na entrevista, a historiadora gaúcha fala, dentre outras questões, da sua trajetória acadêmica e do programa de pós-graduação em história da UFRGS, do qual é coordenadora. Além disto, Claudia Wasserman aborda a atuação de Francisco Madero, Hipólito Irigoyen e Getúlio Vargas, respectivamente, no México, Argentina e Brasil e, ainda, trata da guerra civil no Rio Grande do Sul no início da República brasileira.

Revista Tema Livre – Primeiramente, a Sra. pode falar-nos sobre a sua trajetória acadêmica?

Claudia Wasserman – Sou graduada em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 1981. Em 1984, fiz um curso de Especialização em História da América Latina também na UFRGS e em 1986 fui a primeira colocada na seleção de ingresso da primeira turma do Mestrado em História da UFRGS, onde hoje, no ano em que o curso completa 20 anos, sou a coordenadora. Mais do que uma interessante coincidência revela que os egressos de nosso Programa de Pós-Graduação colocaram-se profissionalmente com alguma facilidade. Temos mais dois professores que fizeram o Mestrado junto comigo. O Doutorado em História Social, eu realizei na Universidade Federal do Rio de Janeiro, tendo obtido o título em 1998. Os temas de pesquisa desses cursos estiveram sempre ligados à América Latina contemporânea, a começar pela especialização, onde o trabalho de conclusão era sobre a Revolução Mexicana e as questões econômicas do processo revolucionário. A partir do Mestrado os temas de história política começaram a predominar em meu itinerário de pesquisadora. Fiz uma dissertação sobre a construção da hegemonia burguesa no México, construída através do processo revolucionário, onde a curiosidade que moveu aquele estudo era entender porque o México era um dos poucos países da América Latina que não vivia sob a égide de ditadura militar de segurança nacional. As especificidades do processo mexicano permitiram àquele país a manutenção prolongada do processo democrático, ainda que com os devidos problemas típicos de países subdesenvolvidos. No Doutorado ampliei minhas pesquisas e tratei de entender o surgimento do nacionalismo em países da América Latina, quais eram os discursos políticos fundadores da nacionalidade em cada país, e para isso foi necessário uma análise aprofundada da literatura/historiografia da questão nacional na América Latina, desde os próceres das independências até o final do século XX. Na parte empírica, tratei dos discursos de campanha de três presidentes do México, Argentina e Brasil, respectivamente, Francisco Madero, Hipólito Irigoyen e Getúlio Vargas. Publiquei essa parte da pesquisa no livro “Palavra de Presidente” e venho trabalhando intensamente para publicar o primeiro capítulo que trata da bibliografia. Ao longo de toda essa trajetória de titulação trabalhei como professora em supletivo, ensino básico, ensino médio e ensino superior (Universidade de Passo Fundo – 1986, Centro La Salle de Ensino Superior – 1987,1988 e fui aprovada em concurso de História da América Latina na UFRGS, onde leciono desde outubro de 1988). A docência tem tido um papel fundamental no meu trabalho de pesquisa, conquanto tenho conseguido lecionar e pesquisar sobre as mesmas coisas, o que era raro no âmbito da história latino-americana, porque pelas dificuldades encontradas pelos pesquisadores na obtenção de bibliografia e na seleção de fontes: as pessoas lecionavam América Latina e faziam pesquisas sobre Rio Grande do Sul ou Brasil. Acho que, juntamente com outros colegas da UFRGS, pude contribuir para mudar esse quadro. Também atuo como escritora de livros de síntese universitária que, não sendo resultados de pesquisa direta, são de grande utilidade para divulgar o que vem sendo produzido na região e quais são os principais debates e seus conteúdos.

RTL – A Sra. poderia apontar os principais pontos em comum sobre a questão nacional no começo do século XX no Brasil, na Argentina e no México?

Wasserman – Francisco Madero (1910), Hipólito Irigoyen (1916) e Getúlio Vargas (1930) atuaram em três países, em épocas diferentes, mas tiveram em comum uma preocupação inédita, antes de suas aparições, com questões relativas à cidadania, sem a qual é impensável entender um país como nação. Segundo um dos mais renomados teóricos mundiais acerca do tema do nacionalismo, Eric Hobsbawn, “a questão nacional está na intersecção da política da tecnologia e da transformação social”, o que significa dizer que para existir de fato uma nação são necessários minimamente três fenômenos: a presença de um Estado político, a tecnologia advinda do desenvolvimento do capitalismo que permite a existência de uma imprensa que, por sua vez, dissemina a idéia de “comunidade imaginada” e, finalmente, a existência de um povo consciente de pertencer àquela comunidade, que se sinta incluído minimamente como cidadão. Esse último passo na direção da construção da nacionalidade de fato só ocorreu na América Latina quando as oligarquias primário-exportadoras foram questionadas pela primeira vez, porque esses grupos que estavam encastelados no poder desde o período colonial eram totalmente excludentes, não permitiam o acesso à cidadania. A abertura desses canais de participação ocorreram quando as oligarquias começaram a ser questionadas e abriu-se espaço para governantes burgueses, representados no México, na Argentina e Brasil por Francisco Madero (1910), Hipólito Irigoyen (1916) e Getúlio Vargas (1930), respectivamente.

RTL – A Sra. pode contar-nos, sucintamente, sobre a guerra civil no Rio Grande do Sul e a atuação das elites gaúchas na Primeira República?

Wasserman – Meu trabalho com as elites gaúchas na Primeira República tem muito a ver com essa pesquisa sobre a questão nacional, pois a década de 1920 constitui-se no Brasil no período de crise das oligarquias. As estudei nesse sentido. A luta de 1923 no Rio Grande do Sul é uma continuidade da Revolução Federalista de 1893. Questionou-se primeiramente o poder de Júlio de Castilhos e, depois, Borges de Medeiros. A solução do conflito levou Getúlio Vargas ao poder do estado em 1928, como candidato do consenso das elites que haviam lutado desde o final do século XIX. Era o fim da hegemonia do Partido Republicano Rio-grandense e o fim do predomínio absoluto das oligarquias no Brasil

RTL – A Sra. pode falar, brevemente, sobre os seus projetos de pesquisa “Percurso intelectual e historiográfico da questão nacional e identitária na América Latina” e “Movimentos Sociais latino-americanos: a construção de identidades nos movimentos de trabalhadores, estudantes, operários, mulheres e intelectuais.”?

Wasserman – São os projetos que desenvolvo atualmente. O primeiro, como já mencionei, é ainda resultado ampliado das pesquisas realizadas no âmbito do doutorado, visa desenvolver uma problemática pertinente na relação do papel exercido pelos intelectuais na construção da “comunidade imaginada”, qual o seu grau de intervenção na “invenção das nações”, etc. O segundo projeto tem mais a ver com a minha atividade como orientadora de mestrado, principalmente, e como docente de história contemporânea da América Latina. Estou escrevendo, junto com alguns alunos, um dicionário de movimentos sociais contemporâneos latino-americanos que deve sair até o final do ano.

RTL – No que tange o projeto de pesquisa “Percurso intelectual e historiográfico da questão nacional e identitária na América Latina” a Sra. pode apresentar alguns casos sobre os usos da História como legitimação de projetos sociais e sobre os modismos estrangeiros nos debates latino-americanos?

Wasserman – Sobre “modismos estrangeiros” eu diria que todo pensamento intelectual latino-americano foi marcado por uma influência daquilo que era produzido teoricamente no exterior; o liberalismo, o positivismo, os determinismos, o marxismo, o neoliberalismo, nada disso foi produzido originalmente na América Latina, mas somos tributários de todos esses aparatos conceituais. Modificados e adaptados à nossa realidade, mas produzidos com base em experiências concretas estranhas à nossa realidade, eles podem ser vistos como “modismos estrangeiros”, como também o são toda admiração que nossas elites têm e tiveram, ao longo da história, pelo exterior, desde a moda, culinária, cultura, até o pensamento social e político. Em relação à legitimação de projetos políticos por intermédio da história produzida na academia, isso é muito difícil de determinar, mas a utilização de eventos da história nacional pelos discursos políticos, isso acontece o tempo todo, basta ver as referências a episódios da história e a personagens, presentes nos discursos políticos até os dias de hoje.

RTL –Finalizando, conte-nos sobre a pesquisa intitulada “Arrolamento de documentos históricos da cidade de Passo Fundo”, coordenada pela Sra.

Wasserman – Essa pesquisa de início de carreira era, na verdade, uma exigência da Universidade de Passo Fundo para que eu pudesse ser mantida lá por pelo menos dois dias da semana. Assim, propus a eles fazer uma pesquisa na cidade e constatei que os arquivos locais eram desconhecidos dos pesquisadores e dos alunos que iniciavam uma carreira na cidade. Nesse sentido, a idéia de em primeiro lugar produzir uma espécie de catálogo com a documentação existente em cada local. Foi uma experiência muito interessante e relevante.

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Tema Livre Especial: Paço Imperial

Bicentenário da chegada da Corte portuguesa ao Brasil

O Rio de Janeiro e D. João VI, Rei de Portugal, Brasil e Algarves.

Imagem do Paço Imperial e da Praça XV feita por Jean-Baptiste Debret.

Imagem do Paço Imperial e da Praça XV feita por Jean-Baptiste Debret.

 

Em função dos 200 anos da chegada da família real portuguesa ao Brasil, que serão comemorados no próximo ano, 2008, a Revista Tema Livre inicia nesta edição, a de número 12, referente a abril de 2007, uma série de matérias que mostram os vestígios da época de D. João VI no atual Rio de Janeiro. A primeira matéria é sobre o Paço Imperial, edifício em estilo colonial, que ocupa uma área de 3.113 m², e é situado na Praça XV de Novembro, no centro da cidade, que, no período joanino, foi a sede administrativa da monarquia portuguesa.

 

Parte frontal do Paço Imperial visto a partir da Praça XV de Novembro.

Parte frontal do Paço Imperial visto a partir da Praça XV de Novembro.

 

Primeiramente, é importante ressaltar que o então príncipe regente D. João e a sua família partiram de Portugal em direção ao Brasil em novembro de 1807, em virtude da incursão militar que Napoleão Bonaparte realizava ao território peninsular. Em março de 1808, D. João estabeleceu-se no Rio de Janeiro. Uma vez esta cidade sendo a sede do governo bragantino, era a partir do Paço que administrava-se o Brasil, Portugal, os domínios lusos na África e na Ásia, bem como o atual Uruguai, transformado, em 1821, em Estado Cisplatino Oriental, como parte da monarquia portuguesa.

 

Lado esquerdo do Paço Imperial e trecho da Praça XV de Novembro.

Lado esquerdo do Paço Imperial e trecho da Praça XV de Novembro.

 

D. João permaneceu por 13 anos no Rio de Janeiro, até abril de 1821, quando retornou a Lisboa, e deixando no Novo Mundo o herdeiro de sua coroa, o príncipe D. Pedro, que proclama a Independência do Brasil no ano seguinte, tornando-se o primeiro imperador brasileiro.

 

Vista da lateral direita do Paço Imperial e a rua da Assembléia. Ao fundo, a rua Primeiro de Março, antiga Rua Direita.

Vista da lateral direita do Paço Imperial e a rua da Assembléia. Ao fundo, a rua Primeiro de Março, antiga Rua Direita.

 

Além disto, aponta-se que no período em que D. João esteve no Brasil, mais especificamente em 1818, ele foi aclamado rei, sob o título de D. João VI. Observa-se que este foi o único monarca de uma Casa Real européia a receber sua coroa na América e, do mesmo modo, o Rio de Janeiro foi a única cidade da América que foi palco da aclamação de um rei europeu. Também foi obra do governo de D. João, durante a estada da família real na porção americana de seus domínios, a criação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.

 

Lado esquerdo do Paço Imperial e a Praça XV.

Lado esquerdo do Paço Imperial e a Praça XV.

 

Sobre o prédio onde hoje encontra-se o denominado Paço Imperial, observa-se que ele já foi a Casa dos Contos ou da Moeda e, em 1743, iniciaram-se as obras do engenheiro José Fernandes Alpoim, estabelecendo neste sítio a Casa dos Governadores. Em 1763, com a transferência da sede do governo do Estado do Brasil de Salvador para o Rio de Janeiro, o prédio tornou-se o Palácio dos Vice-Reis e, a partir de 1808, Paço Real.

 

Fundos do Paço Imperial. Á direita do leitor, a Rua Primeiro de Março, antiga Rua Direita.

Fundos do Paço Imperial. Á direita do leitor, a Rua Primeiro de Março, antiga Rua Direita.

 

Ainda no que refere-se ao espaço onde o Paço situa-se, ele reproduzia as características de diversas praças do Império português, seja na Europa, seja no Ultramar, guardando uma série de semelhanças com o Terreiro do Paço, em Lisboa. Estava nesta área do Rio de Janeiro uma série de atividades vinculadas ao comércio e ao poder régio.

 

Interior do Paço Imperial.

Interior do Paço Imperial.

 

A praça, ainda hoje, abriga o chafariz de D. Maria I, obra do mestre Valentim da Fonseca e Silva, datada da segunda metade do século XVIII. Onde encontra-se o chafariz desembarcavam os navios oriundos de diversas partes do Império português. Hoje, o atracadouro do antigo porto está em uma das áreas aterradas da Baía de Guanabara. Mencionando a questão dos aterros, se estes não tivessem ocorrido, o mar chegaria bem próximo à atual Primeiro de Março (rua situada nos fundos do Paço Imperial)

 

Arquitetura colonial portuguesa em pleno centro do Rio.

Arquitetura colonial portuguesa em pleno centro do Rio.

 

Retornando ao período de D. João, com a chegada da monarquia bragantina ao Brasil, o prédio sofreu novas reformas, ganhando o seu terceiro pavimento, voltado para o mar. Além de sede do governo e palco de audiências reais, o paço foi o centro dos eventos relacionados à aclamação do então príncipe regente D. João como D. João VI, Rei de Portugal, Brasil e Algarves e, ainda, à recepção de D. Leopoldina da Áustria para o seu casamento com o herdeiro da Coroa portuguesa, o então príncipe D. Pedro.

 

Uma das entradas laterais do Paço.

Uma das entradas laterais do Paço.

 

Além disto, o Paço esteve vinculado a diversos momentos relevantes à história do Brasil e do Império português. Após a partida de D. João VI do Brasil, foi no Paço que aconteceram as articulações políticas entorno do príncipe D. Pedro e o Dia do Fico, que precederam à Independência do Brasil.

 

Pátio Interno do Paço.

Pátio Interno do Paço.

 

Com a separação do Brasil de Portugal, o Paço ganhou a designação de Imperial, que é a utilizada nos tempos atuais. Durante o Império, foi a partir do Paço que os imperadores administraram o Brasil. O prédio também foi palco dos festejos envolvendo as respectivas coroações de D. Pedro I, em 1822, e de D. Pedro II, em 1840. Em 1888, a Lei Áurea, que pos fim à escravidão no Brasil, foi assinada pela princesa Isabel de Orleans e Bragança no Paço Imperial.

 

Chafariz D. Maria I e o Paço Imperial ao fundo.

Chafariz D. Maria I e o Paço Imperial ao fundo.

 

Uma vez proclamada a República, em 15 de novembro de 1889, D. Pedro II e sua família abandonaram o prédio e partiram para o exílio na França. O local que era o centro de decisões da época da monarquia passou a ser sede dos Correios e Telégrafos, sofrendo uma série de intervenções para abrigar a repartição. É válido compreender que a República não queria vincular os seus pontos de poder com os antigos lugares monárquicos. Assim, o Paço foi rejeitado para ser a sede de ministérios e diversos palácios de antigos titulares do Império foram comprados pelo novo governo republicano para os seus ministérios.

 

Chafariz D. Maria I e o prédio da Bolsa de Valores do Rio. À direita, escada rolante que vai para o Mergulhão da Praça XV. Na foto, pode-se perceber claramente o quando a área foi aterrada.

Chafariz D. Maria I e o prédio da Bolsa de Valores do Rio. À direita, escada rolante que vai para o Mergulhão da Praça XV. Na foto, pode-se perceber claramente o quando a área foi aterrada.

 

No que tange às mudanças de nomenclaturas em função do regime político, é importante saber que o espaço onde o prédio situa-se é, desde 1890, designado Praça XV de Novembro, data que refere-se à Proclamação da República. Assim, o antigo centro da monarquia ganhava o nome da data comemorativa ao estabelecimento do regime republicano no país. A atual Praça XV já foi chamada de Largo do Carmo, Campo do Carmo, Terreiro da Polé e várzea da Senhora do Ó.

 

Paço Imperial visto a partir da Praça XV. À esquerda, Palácio Tiradentes, onde funcionou o parlamento brasileiro e, atualmente, o legislativo fluminense.

Paço Imperial visto a partir da Praça XV. À esquerda, Palácio Tiradentes, onde funcionou o parlamento brasileiro e, atualmente, o legislativo fluminense.

 

Quase 50 anos depois, mais especificamente em 1937, durante o governo de Getúlio Vargas, é criada a Secretária do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). No ano seguinte, em 1938, o atual Paço Imperial foi tombado.

 

Parte frontal do Paço.

Parte frontal do Paço.

 

Uma outra data importante para o Paço foi o ano de 1982, quando iniciaram-se as obras para a sua restauração, que retomaram o seu aspecto externo ao da época do Reino Unido português. Em 1985, o Paço tornou-se um centro cultural ligado ao IPHAN e à Secretaria de Patrimônio, Museus e Artes Plásticas, Ministério da Cultura. Também foi na década de 1980 que o prédio voltou a receber a sua designação da época da monarquia: Paço Imperial. Em 1991, foi criada a Associação dos Amigos do Paço Imperial.

 

Lateral direita do Paço, rua da Assembléia e, ao fundo, a rua 1º de Março.

Lateral direita do Paço, rua da Assembléia e, ao fundo, a rua 1º de Março.

 

Atualmente, 22 anos depois da criação do centro cultural, o Paço mantém esta função, abrigando exposições de arte contemporânea, concertos musicais, peças de teatro, seminários, conferências, cinema e biblioteca. Neste período, o Paço recebeu quase 2 milhões de visitantes.

 

Lateral do Paço Imperial à noite. Ao fundo, a Praça XV de Novembro.

Lateral do Paço Imperial à noite. Ao fundo, a Praça XV de Novembro.

 

Assim, o Paço Imperial é um ponto extremamente importante para a cultura e a história do Rio de Janeiro, bem como para a do Brasil e a de Portugal, rememorado, também, o periodo em que D. João VI, Rei de Portugal, Brasil e Algarves estava instalado na cidade. Além disto, o Paço Imperial compõe uma região da cidade do Rio com uma série de outros edifícios relevantes, como o Palácio Tiradentes, o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), a Casa França-Brasil, dentre outros. No entanto, estes sítios são uma outra história.

 

Endereço: Praça XV de Novembro, 48, Centro, Rio de Janeiro – RJ.
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Tel: +55 21 2533-4491 /2533-7762/ Fax: 2533 4359

Funcionamento: Terça a Domingo, das 12h às 18h.
Entrada Franca.

 

Sítios consultados

http://www.arquimuseus.fau.ufrj.br/

http://www.iphan.gov.br

http://www.pacoimperial.com.br/

 

 

Bibliografia

 

BICALHO, Maria Fernanda. A cidade e o Império: O Rio de Janeiro no século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

 

CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista: A vida e a construção da cidade da invasão francesa até a chegada da corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.

 

FERREIRA, Fábio. As incursões franco-espanholas ao território português: 1801-1810. In: Revista Tema Livre, ed.05, 23 abril 2003. Disponível em: http://www.revistatemalivre.com

 

ROBBA, Fábio; MACEDO, Silvio Soares. Praças Brasileiras. São Paulo: Edusp / Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2003.

 

SANTOS, Afonso Carlos Marques dos. Entre o mar e a montanha: a herança colonial portuguesa projetada para o Rio atual. In: LESSA, Carlos (org.) Os Lusíadas na aventura do Rio Moderno. Rio de Janeiro: Record, 2002.

 

SANTOS, Paulo F. Formação de Cidades no Brasil Colonial. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001.

Capítulos para a história luso-platina: a cidade de Buenos Aires como ponto de interseção do comércio entre Potosí e o Atlântico português

Artigo de Fábio Ferreira

Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História Social (PPGHIS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

 

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho propõe-se a abordar brevemente a presença lusa no comércio de Buenos Aires e como a cidade platina serve de ponto de interseção entre a área de dominação espanhola, mais especificamente Potosí, na atual Bolívia, e áreas de dominação portuguesa no Atlântico.

Assim, o próximo item do trabalho inicia-se com as primeiras navegações européias no rio da Prata, com expedições ordenadas por Portugal e Espanha, e a fundação das primeiras cidades nesta área de domínio espanhol. Nesse item ainda é apresentada a descoberta da prata em Potosí e as conseqüências desta exploração no interior da atual Argentina, bem como no Império português, que tem acesso ao metal através do fornecimento de uma série de mercadorias para a região mineradora através do porto de Buenos Aires.

O terceiro item é dedicado ao período posterior à Restauração, quando Portugal tem que lutar para manter-se independente da Espanha e, ainda, retomar diversas das suas possessões, que, naquele momento, são controladas pela Holanda. Estes fatores prejudicam a ação dos comerciantes lusos em Buenos Aires, pois os espanhóis controlam a cidade platina, impondo uma série de restrições ao comércio feito pelos súditos dos Bragança e os holandeses controlam áreas importantes para o comércio atlântico, como, por exemplo, Luanda e Recife. Ainda nesse item, é abordada a fundação da Colônia do Sacramento, tentativa lusa de manter-se no Prata, em um período onde a economia portuguesa encontra-se em crise e a mineração em Potosí não rende os mesmos dividendos.

Assim, nas linhas que se seguem, são encontradas questões a respeito do comércio realizado pelos portugueses em Buenos Aires e como a cidade platina está, ao mesmo tempo, conectada ao império espanhol e ao português, ao Alto Peru e a Angola e ao Brasil, ao comércio espanhol e ao português.

 

2. GÊNESE DA ATIVIDADE COMERCIAL LUSA NO ESPAÇO PLATINO

Mapa do português Bartolomeu Velho (1561): Tordesilhas a cortar o Prata, fazendo parte da América lusa.

Mapa do português Bartolomeu Velho (1561): Tordesilhas a cortar o Prata, transformando a região em parte da América lusa.

Em 1501-1502, Américo Vespúcio sai de Lisboa em expedição ao Atlântico Sul e navega ao longo do continente americano e, assim, os portugueses teriam sido os primeiros europeus a chegarem ao rio da Prata. Como comprovação deste fato há somente a documentação relativa à fundação da Colônia do Sacramento, datada de 1680, muito posterior à expedição. Há, também, a possibilidade dos portugueses terem realizado viagens secretas ao Prata, tanto com fins exploratórios, quanto de povoamento.

Com a expedição de Estevão Fróes e João de Lisboa, em 1511-1512, os portugueses chegam ao citado rio, mais especificamente ao que hoje corresponde a Punta del Este. No entanto, é o português Juan Díaz de Solís1, a serviço da Espanha2, quem, em 1516, efetivamente ingressou, explorou, e desembarcou no Prata.3

Solís foi morto pelos indígenas, mas isto não impede que a notícia da expedição chegue à Europa, e que Carlos I envie o também português Fernando de Magalhães4, que chega ao Prata em 1520. Agrega-se, ainda, que em 1531-1532, fiéis a D. João III, Martim Afonso de Sousa e Pero Lopes de Sousa entram no Prata, seguem até o Paraná, e realizam observações e deixam sinais de sua presença na via fluvial.

Outras expedições estiveram no Prata nas primeiras décadas do século XVI, como, por exemplo, a de Cristóvão Jaques, a mando do rei de Portugal, e a do veneziano Sebastião Caboto, que, a serviço de Espanha, adentra o rio em 1527 a buscar a mítica Serra da Prata5. A expedição prolonga-se até 1529, sem lograr o seu objetivo.

A Coroa espanhola crê na possibilidade de conseguir no rio da Prata os mesmos lucros que conseguia com a prata peruana, incorporando, assim, a região ao seu projeto imperial. Para executar o seu plano, funda, em 1536, Buenos Aires, porto de transbordo e, a partir daí, envia expedições ao Paraná, estabelecendo-se vários assentos. Neste contexto, é fundado, em 1537, o forte de Assunção.

No entanto, os espanhóis, em função das significativas perdas que sofrem em seus contingentes humanos, do conhecimento que adquirem da região e das instalações efetuadas na mesma, decidem-se por despovoar Buenos Aires em 1541. Deste modo, a organização municipal de Assunção é a única forma de governo representativa da primeira organização da província do rio da Prata.6

Assim, em virtude da escassez de ouro e prata, a província não integra-se à Espanha. São as áreas que abundam em metais nobres, a Nova Espanha e o Peru, que são os núcleos do império espanhol na América e estão integrados à Espanha.

As áreas periféricas, no caso, o Prata, pagam seus tributos à coroa com produtos da terra, que servem, somente, para o consumo dos oficiais da monarquia instalados na província. Sobre a tributação, é válido observar que o estabelecimento de colônias nas Américas significa para a Coroa espanhola uma oportunidade de criar nova estrutura de impostos. Na Espanha, os nobres, a igreja católica, as vilas, cidades e reinos, enfim, uma série de grupamentos e instituições reivindicam e exercem seus direitos de serem isentos de taxações, em função do seu papel em diversos momentos da reconquista cristã na Península Ibérica.

Deste modo, o sistema fiscal espanhol no Novo Mundo busca que esses condicionamentos não ocorram. A Real Fazenda assegura à Coroa uma parte das riquezas dos domínios do ultramar e, ainda, os impostos das Índias são empregados para os custos da manutenção das conquistas na América. O dinheiro obtido no espaço americano é empregado na sua própria defesa, administração, instituições sociais, religiosas, educativas, enfim, a Espanha nunca assumiu estes encargos em suas colônias. O suprimento financeiro dos domínios da América advém da arrecadação da própria área ocupada.7

Durante grande parte do século XVI a população platina abastece-se de produtos europeus através do sistema de Frota e Galeões8, que é extremamente dispendioso e inseguro. Através deste sistema, as mercadorias, primeiramente, chegam ao Panamá e, depois, são reenviadas a Lima para serem distribuídas a outras partes do Vice Reino do Peru, dentre elas, a região do Prata.

Em 1563 é constituída, sob a autoridade do vice-rei do Peru, a gobernación de Tucumán9, sendo que o povoamento de Tucumán é vinculado à conquista peruana, que gera processo de exploração em direção ao sul. A primeira cidade a ser fundada na região de Tucumán é Santiago del Estero, em 1553, que, por mais de uma década, constitui-se o único centro populacional permanente, pois outras tentativas malograram10. Agrega-se, ainda, que a região vem a encontrar grande desenvolvimento em função da produção mineira de Potosí, maior depósito de prata do continente, descoberta em 1545.11

Sobre a prata potosina, a sua extração foi lenta no período de 1545 a 1572. No entanto, a partir de 1573, com a incorporação do método da amalgama12, a sua produção encontra grande salto.13

Em 1572, buscando-se o escoamento da prata potosina pelo Atlântico, o governo de Tucumán funda Córdoba, às margens do rio Suquía. A criação de Córdoba foi de fundamental importância para a rota comercial que, nos anos seguintes, liga o Alto Peru ao rio da Prata e, também, esta última região ao Chile. Outras cidades14 são fundadas em virtude da economia mineira, como é o caso de Salta, em 1582, de La Rioja, em 1591, de Madrid, em 1592 e, por fim, de San Salvador de Jujuy, no ano de 1593.

Também em função de questões econômicas, mais especificamente a busca de um porto de saída no Atlântico e, ainda, às vastas possibilidades de comércio em razão do gado cimarrón, é fundada Santa Fé em 1573, e Buenos Aires é refundada em 1580. Agrega-se aos fatores de ordem econômica que estas cidades são criadas buscando deter o avanço luso na América.

Com a fundação dessas cidades, criam-se, nesta parte do Novo Mundo, rotas comerciais, seja por via terrestre, seja por via fluvial. Como exemplo, pode-se citar que Tucumán produz cereais, gado, algodão e têxteis, e que os seus excedentes são comercializados com Potosí, Chile, Brasil e Buenos Aires. Esta cidade também recebe os excedentes de vinho e aguardente de Cuyo e o trigo de Córdoba. Santiago del Estero envia para Potosí tecidos, cera e mel. Córdoba exporta têxteis de algodão e, em finais do século XVI, seus excedentes de gado abastecem o Alto Peru e, ainda, neste mesmo período inicia-se a criação de mulas. No entanto, não pode-se ignorar a periculosidade da atividade comercial, devido ao risco de ataques indígenas.15

Além das questões relativas ao comércio, observa-se que a organização do território platino, em fins do século XVI, está divido na Gobernación del Rio de la Plata, que engloba a Banda Oriental16, Paraguai, e partes dos atuais estados nacionais da Argentina17 e Brasil18. Esta gobernación está submetida política e judicialmente ao Vice-Reino do Peru19 e, no mesmo grau de subordinação, estão o Chile e Tucumán.

Ainda no fim desta centúria, com o já citado crescimento da exploração da prata do Potosí, o Alto Peru assiste a uma verdadeira explosão demográfica: De 3.000 habitantes em 1543, a região passa para 120.000 em 1580. Em apenas trinta e sete anos a população aumenta quarenta vezes, tornando-se, deste modo, um grande mercado consumidor, extremamente importante para a realização de atividades comerciais, englobando Tucumán, Buenos Aires e o Atlântico português.

Sobre o Atlântico português, ressalta-se que ele liga Buenos Aires ao Brasil, África, Mediterrâneo e portos do mar do Norte. Além disto, desde 1590, Buenos Aires é um ponto comercial controlado pelos portugueses e, ainda, a cidade passa a competir ilegalmente com Lima e com o circuito comercial espanhol. Mesmo com a proibição da Espanha em relação ao comércio portenho, datada de 159520, Buenos Aires exporta produtos agropecuários ao Brasil em troca de escravos africanos, e os reexporta para o Chile e Potosí.

No que tange a introdução de cativos, a primeira autorização real para introduzi-los no Prata dá-se em 1534. De um modo geral, a escravidão do negro na América espanhola dá-se em regiões onde o elemento indígena encontra-se disperso ou em pequeno número. Estima-se que, de inícios do século XVI até 1810, são introduzidos quase que um milhão de negros nos domínios espanhóis na América, sendo que uma grande quantidade é desembarcada no porto de Buenos Aires.21

Devido à prata do Alto Peru e à atividade comercial em Buenos Aires, cria-se, na América do Sul, um espaço econômico integrado e conectado pelo comércio: Lima, capital política do Vice Reino, que recebe legalmente mercadorias européias e centro distribuidor das mesmas; Potosí, com a sua produção mineira, além de centro consumidor; e Buenos Aires, na sua função de porto que integra o Alto Peru ao Atlântico e a Europa.22

É válido ainda observar que Buenos Aires compõe também o sistema atlântico português. Deste modo, a cidade é um ponto de contato entre os impérios português e espanhol, pode-se pensar neste porto como interseção dos dois impérios ibéricos. Buenos Aires recebe, por exemplo, do mundo hispânico, a prata do Alto Peru, e do luso, escravos das possessões de Portugal na África. Conforme apresentado no gráfico a seguir, Buenos Aires, no período de 1597 até os anos de 1620, recebe um número crescente de escravos, de cerca de 250 no final do século XVI a 1.500 na década de 20 da centúria seguinte23, o que significa um crescimento de seis vezes nas importações em aproximadamente 25 anos.

 

Quantidade de escravos recebidos por Buenos Aires (1597-1620)

 

 

Paralelamente a presença e ao desenvolvimento do comércio controlado pelos portugueses em Buenos Aires, Portugal está a viver sob o controle de Felipe II de Espanha24. Observa-se que, mesmo tendo o mesmo rei, os impérios português e espanhol mantêm-se como entidades distintas. Assim, o comércio entre Buenos Aires e o império português ocorre de maneira ilegal.

Acrescenta-se que os portugueses adquirem projeção na atividade comercial não só em Buenos Aires, mas, também, em outros pontos do império espanhol, como Lima, Potosí, Córdoba e Tucumán. Sobre a presença lusa no comércio do mundo colonial espanhol, Frederic Mauro afirma que os

"[…] portugueses tiravam proveito do afrouxamento das fronteiras políticas entre os dois impérios. Particularmente, os contratos para o comércio de escravos com a América espanhola abriram novos mercados aos comerciantes lusos. De modo geral, os comerciantes portugueses, na maioria das vezes cristãos-novos, se estabeleceram em Lima, Potosí, Cartagena e Cidade do México, assim como em Sevilha. Buenos Aires, sobretudo, tornou-se de fato uma feitoria portuguesa para o comércio ilegal com o Peru."25

No entanto, não pode-se ignorar que medidas tomadas pela coroa espanhola buscam anular a ação desses portugueses, através da consolidação de um grupo de mercadores composto pelos vecinos e, ainda, dando-lhes direitos de obterem licenças (permisos) para realizarem atividades comerciais: Assim ocorre no período de 1602 a 1618, quando a Coroa espanhola abre uma exceção para Buenos Aires, permitindo que deste porto se negocie com Brasil e Guiné, importando manufaturas e açúcar, e exportando farinha, charque e sebo. No entanto, só recebem autorização para realizar tal comércio os vecinos de Buenos Aires. Esta medida dos espanhóis é a busca de evitar-se a saída dos metais preciosos de seu império, como vinha ocorrendo através dos comerciantes lusos.26

Esses comerciantes seriam, majoritariamente, cristãos-novos, que foram para a América em função de perseguições do Santo Ofício na Europa e possuem papel fundamental na composição da burguesia lusa. Eles possuem relações comerciais que vão além do mundo ibérico, negociam com judeus em mercados como Londres e Amsterdão.

No entanto, mesmo no Novo Mundo, estes negociantes têm problemas com o Santo Ofício. Em função de disputas comerciais, freqüentemente, os comerciantes de origem portuguesa são denunciados pelos seus rivais espanhóis à inquisição de Lima, sendo que, muitas das vezes, isto é uma tática dos concorrentes, empregada independentemente ou não da religião do rival.

Observa-se que é criado no imaginário da população dos domínios espanhóis na América que os comerciantes de origem portuguesa são judeus, inimigos da fé católica. Talvez tal vinculação tenha sido concebida para deter a expansão dos comerciantes lusos na América espanhola. Chega-se ao ponto de que ser português é sinônimo de ser judeu, mesmo que, não necessariamente, estes comerciantes o sejam.27

No entanto, mesmo diante das oposições expostas acima, os portugueses controlam o comércio de Buenos Aires e, no período de 1590 a 1640 (ano da Restauração de Portugal), as atividades comerciais desta cidade são intensas com o Brasil e com a África portuguesa. A prata peruana representa 90% do total exportado a partir de Buenos Aires28 e o contrabando realizado pelos portugueses teria sido o responsável pelo crescimento de Buenos Aires, que, pelo seu desenvolvimento, leva a estagnação econômica e a queda da importância política de Assunção.29

Agrega-se que com a União Ibérica os espanhóis dificultam a navegação holandesa e inglesa nas colônias lusas e privilegia os seus súditos na concessão de licenças. Esta medida causa a oposição dos portugueses, que temem que os espanhóis controlem o comércio com o Brasil e, assim, são rechaçadas as tentativas dos comerciantes de Espanha para penetrarem no sistema comercial português.30 Assim, os comerciantes espanhóis não conseguem ter êxito nas possessões coloniais lusas. Por outro lado, os portugueses obtém sucesso no mundo colonial espanhol, basta remeter-se à proeminência lusa no comércio de Cartagena, Lima ou Buenos Aires.

Deste modo, retornando ao espaço colonial espanhol na América do Sul, a relação comercial com o Atlântico para abastecer Potosí faz com que as principais cidades na região de Tucumán sejam centros comerciais. A própria cidade de Tucumán, por exemplo, beneficia-se desta rota, a especializar-se na produção de carretas – já que possui bastante madeira e couro – que passam a circular nas vias que ligam o Alto Peru ao Atlântico. Curtumes desenvolvem-se nas áreas rurais, produzindo, por exemplo, botas, cintos e laços, que são comercializados tanto no mercado local, quanto no Alto Peru.

Outra região a beneficiar-se é Córdoba com a sua produção têxtil, que nas últimas décadas do século XVI e primeiras do XVII tem uma grande expansão. A demanda da região mineradora e, também, a de Assunção e a de Santa Fé, onde a produção têxtil é trocada por vinho e açúcar, são razões para o incremento da produção de Córdoba, ao lado de fatores como o próprio mercado local, o crescimento dos rebanhos de ovelhas e a existência de mão de obra indígena.

Também cresce em Córdoba a produção de gado, que com o seu excedente abastece o Alto Peru e com o sebo o Brasil. A produção de mulas também é algo de destaque na região e, a partir de 1630, torna-se o setor dominante das exportações, pelo fato de que este animal mostra-se mais resistente que as lhamas. Para maiores detalhes dos números destas exportações, vejamos as seguintes tabelas.

 

Tabela 1 – Cabeças de gado exportadas de Córdoba ao norte: Século XVI/XVII

 

Períodos 1596 – 1600 1641 – 1645 1681 – 1685
Cabeças de gado 7.000 42.000 70.000

Fonte: MILLETICH, op. cit., p.212.

 

Tabela 2 Quantidade anual que Córdoba exporta de mulas: Século XVII

 

Períodos 1630 – 1640 1650 – 1700
Mulas exportadas 12.000 20.000

Fonte: MILLETICH, op. cit., p.212, 213.

 

Assim, é no século XVII que a exportação de gados e mulas de Córdoba cresce. Agrega-se, ainda, que a partir da década de 1640 incorpora-se a esse comércio a produção de Santa Fé e, posteriormente, da campanha de Buenos Aires. A importância de Córdoba vai além da criação de mulas, reside também no processo de preparação dos animais oriundos das regiões vizinhas para a exportação ao Alto Peru.

Deste modo, observa-se que, pelo fato da produção mineira estar em um sítio inóspito e carente de populações sedentárias, a mineração tem conseqüências profundas e duradouras sobre a economia colonial, não só no espaço americano controlado pela Espanha, onde o comércio estende-se rapidamente para atender a demanda potosina, como também na América portuguesa e para os comerciantes lusos. Nas relações comercias com Buenos Aires, por exemplo, fornecia-se “[…] ao Brasil, carente de prata, a obtenção mais ou menos abundante deste metal, através dos ‘peruleiros’ que desciam do Alto Peru, trocando sua cobiçada mercadoria pelo não menos desejado escravo negro de suma utilidade ao trabalho crescente das minas do altiplano.”31

Sobre a circulação da prata peruana na América Portuguesa, mais precisamente no Rio de Janeiro e as relações comercias com o Prata, Muller e Lima mostram que

"[…] os comerciantes sediados no Rio de Janeiro compravam as mercadorias portuguesas para depois revendê-las na América espanhola. Dessa forma, os reales de prata do Peru afluíam ao Rio de Janeiro […] A entrada de reales de prata no Rio de Janeiro deve-se também ao fato de que os navios que saiam do Prata […] passaram a abastecer-se no Rio de Janeiro, onde compravam pau-brasil e mercadorias […] necessárias para alimentar a tripulação durante a travessia do Atlântico."32

Tal contato não fica restrito ao Rio de Janeiro. Em outro trabalho, Muller e Lima observam que “[…] no extremo sul, na área onde atualmente se localiza o estado do Rio Grande do Sul, circulavam indistintamente moedas brasileiras e dos países vizinhos”33, o que também evidencia a relação existente entre o Brasil e a região do Prata. Frederic Mauro34 afirma que a prata do Potosí é, no período da União Ibérica, moeda usual no Brasil.

Retornando ao espaço hispano-americano, a prata estimula uma série de atividades produtivas, como, por exemplo, a de grãos em Bajío, Michoacán, Cochabamba, a de vinhos em Cuyo e na costa peruana e chilena, a têxtil em Cuzco, Quito e Tucumán, a erva mate no Paraguai e a criação de gado no rio da Prata, sendo que a atividade comercial em torno desta criação leva, inclusive, a exportação de sebo para o Brasil. No que refere-se à importação, a região produtora de prata recebe escravos africanos, sedas e especiarias do Oriente, têxteis, vinhos e ferro da Europa, enfim, a atividade mineradora no Alto Peru gera uma série de atividades comerciais e produtivas35 e, ainda, a circulação da prata em partes do império espanhol, mas, também, do português.

No entanto, não pode-se ignorar que, em princípios do século XVII, 90% do comércio de Potosí dá-se com regiões do próprio espaço americano, com produtos agrários e têxteis e insumos feitos na própria América. As regiões mais beneficiadas são o Peru, Paraguai e Tucumán, que exportam para Potosí seus excedentes agrícolas e manufaturados, obtendo, deste modo, a maioria da sua prata.36

O comércio com as regiões citadas acima deixa somente 10% da atividade comercial de Potosí com áreas externas ao espaço americano. Nesta décima parte está a importação de escravos, manufaturas européias, ferro e papel. Os comerciantes de Buenos Aires – e os que estão na cidade para comercializar – buscam participar do lucrativo negócio com Potosí. A maneira encontrada é comercializar com as regiões que previamente abastecem Potosí. Deste modo, Córdoba torna-se importante ponto redistribuidor de escravos e manufaturas. Em Santa Fé, comerciantes portenhos podem realizar trocas de parte de suas manufaturas européias por gado e erva mate do Paraguai e, assim, em Salta, o conjunto é vendido para posterior revenda em Potosí.37

É válido ainda observar que as relações comerciais entre Assunção, Santa Fé e Buenos Aires levam, dentre outras, a produção de primitivas embarcações fluviais, que podem realizar a navegação de cabotagem até o Brasil. Também é através de Santa Fé que a erva mate do Paraguai chega, além de Potosí, conforme já apresentado, ao Chile e, por mar, até Lima e Quito.

Assim, pode-se perceber a existência de uma atividade produtiva e comercial nos territórios controlados pela Espanha na porção sul do Vice Reino do Peru. A realização do comércio permite o desenvolvimento destas regiões e, além disto, a circulação da prata. O porto de Buenos Aires, excluído pela Coroa do seu sistema comercial, realiza, mesmo que semi-clandestinamente, as suas atividades comerciais.

Buenos Aires escoa a prata de Potosí, no entanto, é fundamental para os buenairenses este conjunto de economias regionais e a sua integração. Os comerciantes portenhos atuam em uma rede de mercados locais, que englobam, por exemplo, no âmbito hispano-americano, Tucumán, Paraguai e Potosí.

Pode-se afirmar que as minas tornam-se o motor da atividade econômica, a prover o maior objeto de exportação e, ainda, o meio circulante. Em princípios do século XVII, a prata americana alcança, com grande contribuição do Peru, a sua quantidade máxima de extração, no entanto, segue-se um período de contração. Na década de 1670 a Nova Espanha já produz mais prata que o Peru e, no final do século XVIII, as jazidas mexicanas produzem mais que o dobro do que os distritos do Peru e do Rio da Prata em conjunto.38

 

3. AS RELAÇÕES COMERCIAIS ENTRE OS PORTUGUESES E O PRATA APÓS A RESTAURAÇÃO DE PORTUGAL

Salvador Correia de Sá e Benevides: no contexto da Restauração lusa, governador do Rio de Janeiro planeja conquistar Buenos Aires.

Salvador Correia de Sá e Benevides: no contexto da Restauração lusa, governador do Rio de Janeiro planeja conquistar Buenos Aires.

Após sessenta anos controlado pelo rei de Espanha, Portugal aclama, em 1640, o duque de Bragança como o rei D. João IV e, assim, termina-se o controle dos Habsburgos sobre o país e seus domínios ultramarinos. Observa-se que nos primeiros anos da restauração, Portugal tem que enfrentar uma série de adversidades, como, por exemplo, conflitos com a Espanha e a Holanda, que, no caso desta última, controla diversos territórios lusos, seja na África, no Brasil ou na Ásia. Assim, Portugal tem diversas possessões em várias partes do globo ocupadas pelos holandeses, como, por exemplo, Luanda, Pernambuco, Ceilão e Japão. Os holandeses controlam dois pontos extremamente importantes para a economia lusa: O nordeste açucareiro e possessões africanas, de onde os portugueses adquiriam escravos39.

As ocupações que a Holanda realiza na Guiné e em Angola comprometem seriamente o envio de escravos para Buenos Aires, que, por sua vez, prejudica todos os negócios realizados no porto platino.40 A dificuldade de negociar com Buenos Aires significa, para os portugueses, a complicação no acesso à prata.

Assim, surgem, ainda no período da União Ibérica, planos, por parte dos portugueses, para conquistar Buenos Aires. A idéia ganha mais força quando os lusos encontram dificuldades para comercializar com esta praça em função dos conflitos com a Espanha por causa da Restauração de Portugal.41 Chega-se a cogitar plano para que Buenos Aires rompa com o Peru e declare D. João IV como rei. A operação contaria com a população lusa da cidade, que, em meados do século XVII, são 25% dos habitantes.42

Também após a Restauração, a ação dos súditos da Coroa portuguesa em territórios espanhóis chega a Corrientes, Santa Fé e ao Paraguai, através da ação das bandeiras. Conjetura-se, igualmente, a ocupação, por parte de Portugal, das atuais províncias argentinas de Entre-Rios, Corrientes e Missiones com o intuito de controlar-se linhas de comunicação entre o interior das possessões espanholas e a cidade de Buenos Aires.43

Acrescenta-se, ainda, que neste mesmo período posterior a Restauração, mais especificamente em 1641-42, não só os lusos especulam a possibilidade de avançar e conquistar pontos espanhóis na América. Os holandeses planejam atacar Buenos Aires e, assim, controlar o Atlântico Sul e excluir os portugueses do fornecimento de escravos e da obtenção ilegal da prata.

Paralelamente, em Lisboa, vislumbra-se a possibilidade de Portugal invadir Buenos Aires. Em 1643, Salvador Correia de Sá e Benevides envia ao Conselho Ultramarino a sugestão de invadir a cidade platina, argumentando que não há outra maneira para reabrir o tráfico entre o Brasil e Buenos Aires, já que Portugal, em função dos holandeses, não tem como fornecer escravos aos portenhos e, em contrapartida, obter a prata peruana.44

Salvador de Sá afirma que a conquista de Buenos Aires também significa a possibilidade de abastecer o Brasil com couro e gêneros alimentícios, além de controlar a bacia do Prata e, posteriormente, a cidade consistiria em um ponto de partida para a conquista de Potosí. O plano seria posto em execução por forças navais do Rio de Janeiro e, por terra, a cidade seria atacada pelos bandeirantes,45 que desde a primeira metade do século XVII freqüentam os domínios espanhóis no Prata, inclusive para o aprisionamento de indígenas.46

Os planos para invadir Buenos Aires vão até a década de 1650.47 Em 1648 Luanda, Benguela e São Tomé são reconquistados e Pernambuco é recuperado em 1654.48 A partir da reconquista de Pernambuco, só falta, para Portugal, apoderar-se de Buenos Aires para recuperar as suas rotas atlânticas.

Neste contexto, o interesse na conquista da cidade vai além da obtenção da prata peruana e da venda de escravos. Buenos Aires pode fornecer outros produtos produzidos na região, como, por exemplo, couro, carne-seca e erva-mate.

Portanto, observa-se a importância de Buenos Aires para a o comércio português, a integração da cidade às rotas controladas pelos comerciantes lusos e aos domínios portugueses no Atlântico. A relação de Buenos Aires com o comércio atlântico é tanta que, uma vez que Portugal vê as suas possessões africanas nas mãos dos holandeses, os negócios com a cidade platina encontram-se comprometidos. E mesmo quando Portugal, já restaurado, recupera os seus domínios africanos, os empecilhos que a Espanha coloca para que os portugueses realizem atividades comerciais em Buenos Aires compromete o acesso dos lusos à prata.

O comércio com o porto platino é fundamental para Portugal e para os seus comerciantes, surgindo, assim, os citados planos de ocupação de Buenos Aires. Além disto, não pode-se ignorar que as proibições impostas pela Espanha levam ao aumento dos negócios ilícitos entre portugueses e portenhos.

As dificuldades que Portugal tem neste período posterior à Restauração são inúmeras e, assim, a ocupação de Buenos Aires pelas armas não concretiza-se. Portugal vive uma situação internacional de enfrentamento com a Espanha, que só reconhece a restauração em 166849, e com a Holanda. Assim, Portugal aproxima-se da Inglaterra e, em troca de apoio militar e político, concede aos britânicos uma série de privilégios econômicos e comerciais.50

Os anos de guerra e a pirataria levam ao desgaste da administração e das defesas do império português na América, África e Ásia, exaurindo os recursos de Portugal. É válido pensar nos custos das ações militares para a reconquista das possessões portuguesas nos cofres da Coroa recém restabelecida51 e, ainda, nos prejuízos à monarquia lusa em virtude dos ataques que os piratas holandeses realizam ao comércio entre Portugal e o Brasil.52 As coletas de impostos em Portugal e em todo o império ultramarino não bastam para suprir as rendas portuguesas, sendo que recursos são buscados através de empréstimos, sejam eles compulsórios ou voluntários.53

No inicio do seu reinado, a dinastia de Bragança54 tem que enfrentar uma série de adversidades, conforme apresentado anteriormente. Soma-se, ainda, outra gama de dificuldades, como, por exemplo, insubordinações dos governadores do Rio de Janeiro e Pernambuco em relação ao governo central em Salvador.55

Entretanto, mesmo submetido a Salvador, o Rio de Janeiro, ao longo do século XVII, já alcança alguma projeção nos quadros do império português e é nesta centúria que inicia-se a configuração do núcleo urbano e da elite mercantil fluminense, que, no século seguinte, vem a ser a principal praça mercantil do Atlântico Sul, com uma poderosa comunidade de negociantes de grosso trato.56

Não pode-se ignorar, já nos seiscentos, a atuação do Rio de Janeiro nos quadros do império português. Por exemplo, seus habitantes fornecem 55.000 cruzados para a expedição que expulsa os holandeses de Luanda e é o seu governador, Manuel Lobo, quem funda a Colônia do Sacramento, em frente a Buenos Aires, em 1680. Entretanto, o Rio de Janeiro tem as suas limitações como praça mercantil nos idos de 160057, com papel de capitania relativamente secundária no Império português.58

Mas, mesmo com todas as suas restrições, o grupamento comercial do Rio tem o seu interesse no comércio com o espaço platino. Ressalta-se que, conforme apresentado anteriormente, o número de portugueses em Buenos Aires é grande e que, durante a União Ibérica, o contrabando ocorria com a conivência castelhana. No entanto, a partir de 1640, com a separação de Portugal da Espanha, os súditos da monarquia lusa estabelecidos em Buenos Aires passam a sofrer cerceamentos por parte dos espanhóis às suas atividades comerciais. Assim, diante das impossibilidades impostas pelos espanhóis e pela impossibilidade da ação militar para ocupar Buenos Aires, a Câmara do Rio de Janeiro sugere a fundação de um estabelecimento luso na margem esquerda do Prata59, que corresponde ao território do atual Estado Nacional do Uruguai.

Agrega-se, ainda, que além de Portugal, outras nações européias têm interesse no Prata, como, por exemplo, França, Holanda e Dinamarca60. A Espanha também tem receios em relação à aliança entre Portugal e Inglaterra que, conjuntamente, poderiam apoderar-se do estuário do Prata. Assim, em um contexto em que diversos estados europeus têm interesse em apoderar-se do rio da Prata, Portugal antecipa-se e decide apossar-se de territórios às margens desta via fluvial.61

Manuel Lobo, nomeado governador do Rio de Janeiro em oito de outubro de 1678, funda, em 1º de janeiro de 1680, a Colônia do Sacramento. Acompanham-no famílias de colonos e tropas militares.62 Assim, Portugal age no sentido de estar presente no espaço platino, repleto de oportunidades de realizações de atividades comerciais, além, é claro, do caráter geopolítico da empreitada e do controle do Prata, via de acesso ao interior do atual Brasil e dos atuais Paraguai, Uruguai, Argentina e Bolívia. Ressalta-se, ainda, que é do Rio de Janeiro que partem os mais importantes recursos financeiros e humanos para a fundação da Colônia do Sacramento.

Sacramento significa a busca do restabelecimento do comércio luso com a região platina, principalmente da rota Rio da Prata–Rio de Janeiro–Luanda e a obtenção dos metais de Potosí. Observa-se que tal fundação deve-se às necessidades da Coroa e de grupos coloniais influentes, bem como está inserida em um contexto em que Portugal encontra-se em crise econômica, com escassez de metal.63

No último quartel do século XVII, a depressão econômica do império atlântico é profunda e o Brasil e Angola sofrem grave carência de moeda, pois os comerciantes lisboetas e portuenses preferem receber o pagamento em espécie e não com o equivalente em açúcar. Deste modo, Sacramento é a tentativa lusa de ter acesso à prata peruana como ocorria no período da União Ibérica.64

Sobre a fundação do estabelecimento luso no Prata, Moniz Bandeira afirma que

"A necessidade de manter a conexão com Potosi e, reativando o comércio de contrabando com a América espanhola, fomentar o fluxo de prata, que a economia de Portugal, em crise, demandava, determinou, naturalmente, o desencadeamento da operação militar […] com o duplo objetivo de assegurar o domínio de uma das margens do grande rio e, ao mesmo tempo, criar as condições para ulterior conquista de Buenos Aires."65

Em virtude da fundação de Sacramento, o governador de Buenos Aires teme que a população da cidade, composta por portugueses e lusos-descendentes, se alinhe com os ocupadores situados à outra margem do Prata. O interesse dos habitantes de Buenos Aires em aderir a Portugal dá-se pelo fornecimento de escravos, açúcar, tecidos, dentre outros bens que os lusos oferecem à cidade com um custo menor que Lima. O comércio ilícito entre os portugueses e os buenairenses atende, também, aos interesses dos habitantes de Córdoba, Tucumán e do Alto Peru. Assim,

"Na medida, pois, em que as necessidades das populações do litoral do Rio da Prata coincidiam com os interesses mercantis de Portugal, Buenos Aires tendia a apartar-se do eixo de gravitação do sistema colonial de Espanha, assentado sobre o complexo Pacífico-Caribe e a contrapor-se ao Vice-Reino do Peru. Esse fator […] favoreceu aos portugueses, cuja expansão comercial […] foi mais importante que a conquista de territórios por eles realizada, paralelamente, porquanto quebrantou, a começar de Buenos Aires, o monopólio comercial de Espanha na América do Sul."66

Observa-se que a fundação de Sacramento dá-se no mesmo contexto do avanço dos paulistas, com o apoio da Coroa, em direção ao sul. Nesta conjuntura, eles fundam, em 1664, São Francisco do Sul e, em 1684, Laguna. No entanto, os objetivos do avanço desde São Paulo diferem daqueles feitos a partir do Rio de Janeiro, sendo que estes dois núcleos lusos na América possuem características sociais e econômicas distintas, que refletem no modo de sua expansão. Os paulistas buscam terras e rebanhos, não estando vinculados ao comércio com Buenos Aires ou África, por exemplo. Deste modo, Fabrício Prado observa que

"[…] no fim do século XVII e começo do XVIII, pode-se verificar que, desde São Paulo, estendia-se rumo ao sul uma frente colonizadora, expandindo a fronteira agrícola. As terras e os recursos existentes sobre elas foram o móvel principal desse movimento, que avançava por terra, do norte para o sul, fortemente articulado política, social e economicamente com São Paulo. Os desígnios da Coroa, nesse momento, iam ao encontro dos interesses dos grupos locais. A expansão para o sul, por terra, desde São Paulo e Laguna, constituía, entretanto, apenas uma faceta das estratégias e interesses lusos rumo ao sul."67

No que tange a conquista do Prata a partir do Rio de Janeiro, em 1673, o governo instalado na cidade prepara plano de uma possível conquista de Maldonado e, ainda, após a fundação de Sacramento, Portugal inicia a ocupação da área onde mais tarde os espanhóis fundam Montevidéu.

Sacramento é um ponto de grande interesse à Coroa lusa e aos comerciantes estabelecidos no Rio de Janeiro, pois é o meio de acesso à prata e a couros, e à venda de escravos, açúcar, fumo, manufaturados e aguardente. Após o descobrimento de ouro em Minas Gerais, a elite comercial do Rio de Janeiro polariza o ouro68 e a prata (via Sacramento) da América do Sul, além de fornecer ao mercado platino o fumo baiano e o açúcar e a aguardente dos engenhos fluminenses. Também é o Rio de Janeiro que passa, pouco a pouco, a controlar parte das rotas para o Prata.69

Com a fundação da Colônia do Sacramento intensificam-se os contatos entre os portugueses e Buenos Aires. O contrabando, que já dava-se com uma certa freqüência antes de Sacramento, após a sua criação torna-se ainda maior. O comércio ilegal no Prata envolve, além de portugueses, holandeses, franceses e ingleses, sendo que os europeus introduzem em Buenos Aires bens europeus de maneira mais barata e escravos, recebendo em troca metais preciosos, burlando o monopólio imposto pela Espanha. Desenvolve-se, assim, uma elite comercial forte e vinculada ao contrabando.70

Agrega-se, ainda, que no século XVII, mais especificamente a partir de 1610, a produção da prata de Potosí entra em decréscimo, sendo que esta situação perdura até a terceira década do século XVIII, quando há recuperação. Mas esta retomada não leva Potosi aos altos patamares de produção do século XVI. O ápice desta recuperação corresponde a 50% do primeiro auge.71

No entanto, mesmo com o declínio da produção mineira de Potosí no século XVII, isto não significa a diminuição do interesse luso em Buenos Aires, conforme já apresentado. Mesmo com a queda da produção do Alto Peru, a realização de atividades mercantis com a cidade platina continua a ser rentável.

Vilma Milletich72 apresenta a hipótese de que em função da vitalidade e intensidade das trocas inter-regionais ocorridas ao longo do século XVII, mesmo período em que a produção mineira de Potosí decresce, há uma autonomia crescente das zonas produtoras e dos circuitos mercantis. Assim, este desenvolvimento, nesta altura, já ocorre sem ter que ver com Potosí. A autora aponta que na segunda metade do século XVII a produção da erva mate paraguaia expande-se ao Peru, aumenta-se a quantidade de mulas produzidas em Córdoba, e o tráfico transatlântico incrementa-se. Deste modo, mesmo diante de uma produção de prata em declínio, há o aumento da circulação interna de produtos europeus.

Sobre a introdução de escravos no Prata do século XVII, pode-se afirmar que o fornecimento da mão-de-obra para trabalhos compulsórios dá-se, em larga medida, ilegalmente, no entanto, com a participação de funcionários da administração espanhola e dos vecinos.

Estima-se que no período de 1586 a 1665 são importados entre 25.000 e 30.000 cativos. Destes, em torno de 6.000, ou 20%, se trabalharmos com o número máximo de 30.000 escravos, entram em Buenos Aires de forma legal. 7.000, ou cerca de 23%, chegam à cidade sem autorização, no entanto, através dos remates públicos são legalizados. Assim, temos um total de 13.000 cativos que, de uma maneira ou de outra, encontram-se legalizados. Ainda adotando a quantidade de 30.000 escravos introduzidos em Buenos Aires, 17.000, que corresponde a cerca de 57%, entram e permanecem de forma ilegal, um número bastante alto.73 O gráfico a seguir apresenta a situação dos escravos, dividida entre os introduzidos em Buenos Aires de forma legal, os legalizados na cidade platina e os ilegais.

 

Situação dos escravos em Buenos Aires (1586–1665)

 

Se somarmos escravos que são legalizados (7.000 ou 23%), que de qualquer maneira entram de forma ilegal em Buenos Aires, com os que permanecem como ilegais (17.000 ou 57%), temos 24.000 escravos, ou 80% da mão-de-obra cativa que entra no mundo hispano-americano através de Buenos Aires é de forma ilegal. O gráfico a seguir mostra a situação narrada neste parágrafo.

 

Situação da mão-de-obra cativa ao chegar a Buenos Aires (1586–1665)

 

 

 

 

Este grande número de negros africanos introduzidos como escravos em Buenos Aires e de forma ilegal mostra a amplitude do comércio ilícito realizado no Prata. Observa-se que a maioria dos escravos que chega a Buenos Aires é remetida em direção ao norte, onde estes cativos são comercializados nos centros urbanos da região.

Ainda sobre o norte, no que tange a expansão da fronteira, observa-se que, durante o século XVII não ocorrem grandes avanços. O Chaco não pode ser conquistado e Concepción del Bermejo, no caminho entre Tucumán e Assunção, tem que ser despovoada, em 1633, em função da ação dos indígenas locais e, assim, a população é transferida para Corrientes. Também em função de ataques indígenas Santa Fé, na década de 1650, é transferida de local.

No sul, a resistência indígena contribui para que não haja uma expansão. A fronteira encerra-se em Mendoza e comercializar e viver nesta região é extremamente perigoso em função dos nativos, bem como o caminho entre Buenos Aires e Córdoba é freqüentemente assolado pelos ataques das populações autóctones. Além da forte oposição dos índios, o desinteresse da Coroa espanhola nos territórios sulinos tem a sua influência na estagnação da expansão da fronteira em direção ao sul.

Sobre a organização política do espaço entre Potosí e Buenos Aires, esta dá-se, durante o século XVII, da seguinte maneira: a Gobernación de Tucumán, que existe até o século XVIII (mais especificamente até 1783 e, depois, torna-se parte do Vice-Reino do Rio da Prata) e é composta pelas cidades de Catamarca, La Rioja, San Miguel de Tucumán, Córdoba, Jujuy, Santiago del Estero (residência das autoridades até finais do século XVII, depois é substituída por Salta); e Rio de la Plata, que perdura até 1778, quando é convertida em vice-reino.

Rio de la Plata tem sua capital em Assunção até 1617 e, a partir desta data, Felipe III de Espanha e II de Portugal, divide-a entre Gobernación do Paraguai ou Guayrá, com capital em Assunção, que engloba as cidade de Vila Rica do Espírito Santo, Cidade Real do Guayrá e Santiago de Jerez74, e a Gobernación do Rio de la Plata, tendo como capital Buenos Aires, e incluindo as cidades de Corrientes, Santa Fé e Concepción del Bermejo.75

Sobre estas três cidades litorâneas, elas dependem essencialmente das atividades em torno do gado e não encontram alto grau de desenvolvimento econômico e populacional. Segundo os dados obtidos a partir do senso76 realizado pelo governador do Rio de la Plata, Diego de Góngora, nos anos de 1620-21, Santa Fé possui 168 vecinos, 266 índios na zona urbana e 1.007 nas reduções; Corrientes 91 vecinos, 89 índios e 1.292 nas reduções; e Concepción del Bermejo com 81 vecinos e 399 índios.

Na Gobernación de Tucumán, Santiago del Estero é, até princípios do século XVII, a sua principal cidade. Entretanto, em virtude do declino da produção mineira de Potosí, a cidade entra em declínio econômico, que vem a comprometer o seu crescimento populacional. Deste modo, Santiago del Estero perde para Córdoba a sede da arquidiocese e para Salta a sede da gobernación.

Córdoba é uma das cidades mais prósperas de Tucumán e não é fortemente abalada pela decadência da produção de Potosí no século XVII. A sua economia cresce durante esta centúria e, ainda, desenvolve a sua industria de lã, que, por seu turno, incentiva a criação de ovinos. Córdoba também é um importante centro de comunicação e redistribuição entre a região do Litoral e o Norte, bem como ganha importância com a criação da sua Universidade. Já a cidade de Salta não fica imune à crise do século XVII, mas retoma o seu crescimento no século seguinte. O comércio de mulas e a fertilidade das terras que circundam Salta contribuem para o crescimento de sua economia.

San Miguel de Tucumán e as cidades da Gobernación de Cuyo (dependente do Chile) também são afetas pela decadência da produção mineira. Porém Tucumán permanece com a sua produção de carretas, têxtil e de curtumes. As cidades cuyanas, Mendoza, San Luis e San Juan não crescem substancialmente. San Juan, durante o século XVII, devido à diminuição do comércio e a escassez de índios e escravos, quase desaparece. O crescimento do Chile, em finais dos seiscentos, repercute favoravelmente na região de Cuyo e, assim, Mendoza, por exemplo, inicia um desenvolvimento econômico e populacional em função do comércio e transportes de mercadorias.77

A economia de Tucumán, Cuyo e do Litoral giram, durante a maior parte do século XVII, em torno da demanda do Potosí. A partir das necessidades desta região mineradora, uma das mais importantes economicamente da América, gera-se uma importante relação comercial inter-regional, bem como o desenvolvimento destes mercados.

No final do século XVII a situação da produção de Potosí é de decadência, no entanto, a economia das gobernaciones de Tucumán e Rio de la Plata encontram-se menos dependentes em relação à mineração. O desenvolvimento do porto de Buenos Aires conecta o sul dos domínios espanhóis na América ao Atlântico luso e, ainda, surgem outras possibilidades de atividades econômicas nestas regiões controladas pela Espanha.

No entanto, o comércio de Buenos Aires, mesmo interligado ao Atlântico português e conectando partes do império espanhol ao luso, deixa de ser controlado pelos portugueses, conforme apresentado no decorrer do artigo. Ao final do século XVII e já nos limiares do século XVIII, o ponto comercial luso no Prata torna-se Colônia do Sacramento, não mais Buenos Aires.

 

4. CONCLUSÃO

Assim sendo, primeiramente, a atividade mineradora do Alto Peru é responsável pelo desenvolvimento econômico das regiões ao sul, do eixo que estende-se de Potosí até Buenos Aires. Neste caminho, surgem diversas cidades e atividades produtivas e comerciais para atender a demanda do Alto Peru. Além disto, o porto de Buenos Aires cresce e ganha importância por escoar a produção mineira de Potosí e, ainda, por receber mercadorias que suprem a região mineradora.

Não pode-se ignorar a importância da atividade mercantil para o desenvolvimento de Buenos Aires e para o paulatino desligamento da economia da cidade platina, bem como do Litoral e de partes de Tucumán em relação a Potosí. As economias das gobernaciones passam a tornar-se cada vez mais conectadas a Buenos Aires e ao Atlântico português.

Deste modo, a queda da produção mineira potosina não leva a uma estagnação econômica ou a “quebra” da economia portenha. Percebe-se, ainda, o alto grau de interação do interior da atual Argentina através do comércio com o Atlântico luso. Agrega-se, ainda, que ao longo do século XVII configura-se uma unidade econômica e social entre Cuyo, Tucumán e Buenos Aires, com a economia da região a orientar-se em direção ao Atlântico. É provável que esta integração tenha evitado que o decréscimo produtivo do Potosí viesse a arrasar as economias daquelas três localidades.

Entretanto, mesmo com a crescente importância do Atlântico para a economia portenha e, também, para outros pontos espanhóis na América, é no mesmo século XVII que o comércio rioplatense controlado pelos portugueses entra em decadência.

A partir de 1625, como conseqüência direta das perdas territoriais no Atlântico para os holandeses, inicia-se a crise do comércio luso no Prata. Contribui para o agravamento da situação dos comerciantes a retração econômica européia e o decréscimo da produção mineira de Potosí, bem como a Restauração e as proibições espanholas aos lusos estabelecidos em Buenos Aires. Mesmo valendo-se do contrabando, os portugueses perdem o controle do comércio portenho.

Colônia do Sacramento demonstra que Portugal não desiste do comércio no rio da Prata, sendo, inclusive, um ponto de ingresso de mercadorias clandestinas para Buenos Aires. No entanto, neste momento, os portugueses não conseguem o destaque anteriormente alcançado e já abastecem os portenhos com produtos majoritariamente britânicos, sendo que a Inglaterra está a tornar-se a maior potência marítima e comercial do mundo. Articula-se, assim, um circuito comercial entre Brasil, Lisboa e Londres, com a perda da supremacia lusa sobre Buenos Aires.78

Destarte, pode-se entender Buenos Aires como um ponto onde o mundo português e o espanhol se encontram, onde um império supre determinada carência do outro. Por exemplo, com o comércio realizado no porto platino, Portugal tem a sua necessidade de prata suprida, e os domínios espanhóis na América têm a sua demanda por mão-de-obra cativa atendida. Além do mais, são estas atividades comerciais entre os dois impérios que contribui enormemente para o desenvolvimento do porto de Buenos Aires.

Carlos Frederico Lecor: representante de D. João VI na última ocupação portuguesa da região do Prata.

Carlos Frederico Lecor: representante de D. João VI na última ocupação portuguesa da região do Prata.

Finalizando, o controle do comércio de Buenos Aires pelos portugueses pode ser entendido como um capítulo da presença lusa no Prata. Presença que dá-se desde as primeiras expedições ao rio, ainda nas décadas iniciais do século XVI, passando pela fundação da Colônia do Sacramento, em 1680, pela criação da Cisplatina, em 1821, quando o atual Uruguai torna-se uma província controlada pelo Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, e finalizando em 1824, quando as tropas portuguesas entregam Montevidéu ao general Lecor, Barão da Laguna, que a ocupa como representante de D. Pedro I.

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Notas

01 – Solís denomina o Prata de “Mar Dulce”. Em função do falecimento do navegador, a via fluvial passa a chamar-se rio de Solís e, depois, rio da Prata.

02 – É válido observar que, de acordo com a bula Inter Caetera, emitida em 1493 por Alexandre VI, dá-se o controle das terras recém descobertas a Castela e Leão e não à Espanha. Entretanto, o rei de Castela e o de Espanha são os mesmos, mas é Castela, dentro dos reinos que compõem a Espanha, que mais beneficia-se das Índias. São suas leis e instituições que são as diretrizes para o Novo Mundo e, também, é na América onde os comerciantes castelhanos têm os monopólios comerciais e os súditos de Castela adquirem os cargos públicos, enfim, uma série de vantagens são obtidas pelos castelhanos nos territórios americanos. (ELLIOTT, J.H. A Espanha e a América nos séculos XVI e XVII. In: BETHELL, Leslie (org.) História da América Latina: A América Latina Colonial I. v. I. São Paulo: EDUSP; Imprensa Oficial do Estado; Brasília: Fundação Alexandere de Gusmão, 1997)

03 – RELA, Walter. Exploraciones portuguesas en el Río de la Plata: 1512–1531. Porto Alegre: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2002.

04 – Fernando de Magalhães naturaliza-se espanhol em 1518. (RELA, Walter. España en el Río de la Plata: descubrimiento y doblamientos (1516–1588). Montevideo: Club Español de Montevideo, 2001.)

05 – Caboto organiza expedição para chegar às Molucas, com o objetivo de alcançar o comércio das especiarias, conseguindo o apoio financeiro de Carlos I e de um grupo de comerciantes vinculados a este negócio. Em função do mito da Serra da Prata, e por acreditar nos rendimentos que esta descoberta poderia render, muda os seus planos de chegar ao mercado de especiarias pelo estreito de Magalhães, partindo em direção ao Prata, mas não logra o seu objetivo. No Prata, funda o forte de Sancti Spiritus, primeira povoação espanhola no território da actual Argentina.

06 – GUÉRIN, Miguel Alberto. La organización inicial del espacio rioplatense. In: TANDETER, Enrique. La sociedad colonial. Nueva historia Argentina. Tomo 2. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 2000.

07 – MILLETICH, Vilma. El Río de la Plata en la economía colonial. In: TANDETER, Enrique. La sociedad colonial. Nueva Historia Argentina. Tomo 2. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 2000.

08 – A ligação marítima entre a América e Espanha é chamada de Carrera de Indias. O comércio da carrera envia para América pessoas, manufaturas, trigo, animais, como porcos, carneiros e gado, além de abastecer a Europa com batata, milho, açúcar, tabaco, ouro e prata. MACLEOD, Murdo J. A Espanha e a América: O comércio atlântico, 1492-1720. In: BETHELL, Leslie (org.) História da América Latina: a América Latina colonial I. v.1. São Paulo: EDUSP; Imprensa Oficial do Estado; Brasília: Fundação Alexandere de Gusmão, 1997.

09 – A cidade de San Miguel de Tucumán é fundada em 1565.

10 – Pode-se citar como exemplo de cidades fundadas no mesmo contexto que Santiago del Estero e que desaparecem, que têm curto tempo de vida, com menos de dez anos de existência, as seguintes: Londres (1556-1562), Barco I (1550-1551), Barco II (1551-1552), Barco III (1552-1553) e Cordova del Calchaqui (1559-1562). LOBATO, Mirta Zaida; SURIANO, Juan. Atlas Histórico. Nueva Historia Argentina. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 2000.

11 – Anteriormente às minas de Potosí, a Espanha explora a prata, desde 1530, nas cercanias da cidade do México. Na mesma década, na América do Sul, os espanhóis exploram jazidas utilizadas anteriormente pelos incas e, em 1540, descobrem-se jazidas de ouro no Chile e Carabaya. Nos decênios seguintes, inicia-se, ao norte da Nova Espanha, a exploração das minas de Zacatecas, Guanajuato e Sombrerete. MILLETICH, op. cit.

12 – A sua implementação demanda grandes inversões de capitais em maquinaria e infra-estrutura, além do emprego extensivo de mão-de-obra. Após extrair-se o mineral, ele é triturado em uma refinaria denominada, nos Andes, de engenho, e fica do tamanho de grãos de areia. Depois, faz-se uma espécie de massa a qual se aplica o mercúrio e, em algumas semanas, ela é lavada e com a ação o calor separa-se os restos de mercúrio, obtendo-se, assim, a prata pura. Este processo, geralmente, conta com a mão de obra indígena.

13 – O primeiro auge mineiro no Novo Mundo foi no Caribe, vinculado ao ouro. No continente, encontraram-se jazidas no México, América Central, Nova Granada, Chile central e Peru. Para ter-se uma idéia das enormes quantidades enviadas à Espanha, observa-se que, antes de 1550, exportou-se, por vias legais, do México, mais de cinco milhões de pesos de ouro, e do Peru, mais de dez milhões. MILLETICH, op. cit. e LOBATO; SURIANO, op.cit.

14 – Entende-se que a concepção de cidade no período e local estudados difere da atual compreensão do que é uma cidade. Moutoukias (2000) observa que os assentamentos espanhóis, na melhor das hipóteses, tinham algumas centenas de habitantes, mas ganham a denominação de cidade pela formatação política que tinham recebido, com Cabildos e determinado número de vecinos, a diferenciar-se, assim, de um simples povoado. Segundo Areces vecinos, no século XVI, de acordo com a Recopilación de Leyes de Indias, seriam “[…] aquellos españoles jefes de familia cuyos bienes garantizaran la supervivencia de sus allegados y mantuvieran especies animales y vegetales que cubrieran las necesidades alimenticias y de abrigo.” (ARECES, Nidia. Las sociedades urbanas coloniales. TANDETER, Enrique. La sociedad colonial. Nueva historia Argentina. Tomo 2. Buenos Aires: Editorial Sudamericana, 2000, p.151.)

15 – MILLETICH, op. cit.

16 – Atual República Oriental do Uruguai.

17 – Como, por exemplo, as províncias de Buenos Aires, Corrientes, Entre-Rios, Missiones, Santa Fé, Chaco, entre outras.

18 – No caso do Brasil, engloba-se o que hoje são os seguintes estados da federação: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso do Sul e frações de São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso.

19 – Observa-se que toda a América do Sul espanhola (inclusive partes significativas do Brasil de hoje) e o atual Panamá compõem, neste momento, o Vice Reino do Peru. O outro vice reino que os espanhóis possuem na América é a Nova Espanha, que, além do atual México, engloba, dentre outros, os atuais estados nacionais de Cuba, Costa Rica e Guatemala.

20 – Cédula real de dezembro de 1595 que proíbe o ingresso de escravos e de estrangeiros por Buenos Aires. GUÉRIN, op. cit.

21 – MILLETICH, op. cit., p.229.

22 – MILLETICH, op. cit.

23 – BANDEIRA, Moniz. O expansionismo brasileiro e a formação dos Estados na Bacia do Prata: Argentina, Uruguai e Paraguai, da colonização à Guerra da Tríplice Aliança. Rio de Janeiro: Revan; Brasília: Editora UnB, 1998.

24 – Felipe I de Portugal (sobrinho de D. João III). A ele sucedem-se Felipe II (1598) e Felipe III (1621) de Portugal, respectivamente Felipe III e Felipe IV de Espanha.

25 – MAURO, Frédéric. Portugal e o Brasil: A estrutura política e econômica do Império, 1580-1750. In: BETHELL, Leslie (org.) História da América Latina: a América Latina colonial I. v.1. São Paulo: EDUSP; Imprensa Oficial do Estado; Brasília: Fundação Alexandere de Gusmão, 1997, p.459.

26 – MILLETICH, op. cit.

27 – BANDEIRA, op. cit.

28 – MILLETICH, op. cit.

29 – BANDEIRA, op. cit.

30 – MAURO, op. cit.

31 – Disponível em:

32 – MULLER, Elisa.e LIMA, Fernando Carlos Cerqueira. A Circulação Monetária no Rio de Janeiro nos Tempos Coloniais. In: 4ª CONFERÊNCIA INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DE EMPRESAS, ABPHE, 1999, Curitiba. Anais.

33 – MULLER, Elisa e LIMA, Fernando Carlos Cerqueira. Moeda e Crédito no Brasil: breves reflexões sobre o primeiro Banco do Brasil (1808-1829). Revista Tema Livre, ed. 01. Disponível em:

34 – MAURO, op. cit.

35 – MILLETICH, op. cit.

36 – Op. cit.

37 – Op. cit.

38 – Op. cit.

39 – Miller (1999) aponta que o comércio de escravos angolanos inicia-se em pequena escala, em meados do século XVI e seu fluxo substancial dá-se em torno de 1600, quando o açúcar de Pernambuco e da Bahia torna-se o maior produto agrícola do mundo. Nas décadas de 1660 e 1670 são os produtores de açúcar do nordeste que controlam o tráfico de escravos no Atlântico Sul. A partir de 1680 os comerciantes da Bahia passam a abastecer-se de escravos na Costa da Mina, com conseqüente queda do comércio de Luanda. Pela relevância política destes comerciantes de Salvador, Angola tornar-se, neste período, ponto periférico na economia do Atlântico Sul. Curdo (1999) mostra a proeminência dos comerciantes estabelecidos no Brasil em relação aos portugueses no tráfico de escravos com Angola. O autor ainda demonstra que a cachaça, geribita, e o tabaco são utilizados como moeda em troca de homens para o trabalho compulsório. Mas é a geribita, por uma série de razões, como, por exemplo, seu alto teor alcoólico, o fato de não estragar na travessia do atlântico, preço mais baixo, que acaba por conquistar o mercado angolano, em detrimento do vinho português, que já era comercializado desde a metade do século XVI em Angola.

40 – BANDEIRA, op. cit.

41 – Em 20 de dezembro de 1640, através de carta régia, a Espanha proíbe a realização de atividades comerciais com o Brasil, sendo que embarcações provenientes desta colônia são impedidas de entrar no rio da Prata. (RELA, Walter. Colonia del Sacramento: 1678 – 1778. [S.l.]: Intendencia Municipal de Colonia: 2003, p.34)

42 – BANDEIRA, op. cit.

43 – CALÓGERAS, J. Pandiá. A política exterior do Império. Edição fac-similar. Brasília: Senado Federal, 1998.

44 – BANDEIRA, op. cit.

45 – Op. cit.

46 – PRADO, Fabrício. Colônia do Sacramento: o extremo sul da américa portuguesa no século XVIII. Porto Alegre: F.P. Prado, 2002.

47 – BANDEIRA, op. cit.

48 – MAURO, op. cit.

49 – Op. cit.

50 – BANDEIRA, op. cit.

51 – A guerra de Pernambuco, por exemplo, custa 500 mil cruzados anuais.

52 – Por exemplo, em 1647, perdem-se 108 navios mercantes e, no ano seguinte, 141. Em apenas dois anos, em um total de 300 embarcações, as perdas representam 83%.

53 – MAURO, op. cit.

54 – Várias medidas são tomadas pela nova dinastia. Dentre elas, pode-se citar como exemplo a criação, em 1649, da Companhia Geral do Comércio, monopolista, e feita com o capital de cristãos-novos condenados pela inquisição e de comerciantes de Lisboa. Pela primeira vez o comércio realizado entre Portugal e Brasil conta com um sistema de frotas e é garantido por escolta adequada. Outra medida que pode ser citada é o restabelecimento, em 1654, do Estado do Maranhão, distinto do Brasil, e com capital em São Luis (Até 1737. Após este ano, a capital é transferida para Belém). Uma companhia de comércio também é estabelecida para o Maranhão no ano de 1678.

55 – MAURO, op. cit.

56 – FRAGOSO, João. A formação da economia colonial no Rio de Janeiro e de sua primeira elite senhorial (séculos XVI e XVII). In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda Baptista; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva (orgs). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

57 – João Fragoso aponta que nesta centúria há o processo de acumulação de recursos da primeira elite senhorial do Rio. O açúcar nos engenhos fluminenses, a produção de alimentos, o aprisionamentos e vendas de índios e o comércio negreiro são atividades econômicas que esta elite está envolvida. Fragoso ainda afirma que a administração real e o domínio da câmara são mecanismos eficazes de acumulação de riquezas, pois “[…] permitiram a apropriação de recursos não de um ou outro setor particular da economia, mas sim de excedentes gerados por toda uma sociedade colonial em formação.” (FRAGOSO, op. cit. p.43).

58 – SAMPAIO, Antonio Carlos Jucá de. Os homens de negócio do Rio de Janeiro e sua atuação nos quadros do Império português (1701-1750). In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda Baptista; GOUVÊA, Maria de Fátima Silva (orgs). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

59 – CARVALHO, Carlos Delgado de. História Diplomática do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1998.

60 – Macleod (1997) narra que ao longo do século XVII Inglaterra, França e Holanda conquistam terras espanholas que estes dão pouca importância. Como exemplo pode-se citar que os holandeses conquistam Curaçao, estabelecendo vários entrepostos nas proximidades da Venezuela, os franceses se apoderam de Martinica, Guadalupe e ancoradouros em Hispaniola e os ingleses de Barbados, Jamaica e Antígua.

61 – BANDEIRA, op. cit.

62 – Documento 1. In: RELA, Walter. Colonia del Sacramento: 1678 – 1778. Documentario. [S.l.]: Intendencia Municipal de Colonia: 2003, p.176-177.

63 – PRADO, op. cit.

64 – BOXER, Charles R. O império marítimo português. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

65 – BANDEIRA, op. cit., p.32.

66 – Op. cit., p.33.

67 – PRADO, op. cit., p.43.

68 – O ouro e o abastecimento das Gerais têm papel importantíssimo no sentido de transformar o Rio de Janeiro no principal pólo mercantil da América portuguesa, que supera Salvador no decorrer da primeira metade do século XVIII. As mudanças econômicas no Rio influenciam as características do seu grupo mercantil: “[…] a passagem do século XVII para o XVIII viu essa elite mercantil constituir-se enquanto grupo social autônomo em face da elite agrária (o que não significa separação total entre as duas, mas sim a criação de uma esfera tipicamente mercantil de atuação, que inexistia no seiscentos fluminense). Mais do que isso, essas transformações caracterizaram esse novo grupo como a elite colonial setecentista, responsável direta pela própria reprodução da sociedade fluminense por meio do controle dos mecanismos de crédito e da oferta de mão-de-obra escrava […]” (SAMPAIO, op. cit., p.76 e 77).

69 – PRADO, op. cit.

70 – ARECES, op. cit.

71 – A época da recuperação da produção mineira de Potosí a sua prata representa 40% do total da produção peruana. Seguem-na em importância as minas de Oruro, que representam 14% da produção, e as de Pasco, com 13%. De 1736 até 1790 a extração da prata encontra crescimento e, a partir daí, entra novamente em declínio, por fatores, como, o esgotamento das minas, a suspensão européia do abastecimento de mercúrio em função das guerras que a Espanha envolve-se a partir de 1796 e, por fim, a crise geral que afeta o Alto Peru no período de 1800 a 1805, com secas, enfermidades e carência de alimentos, que tem como conseqüência a falta de trabalhadores e de água para a energia das maquinas de moenda dos engenhos da prata. MILLETICH, op. cit.

72 – Op. cit., p.217.

73 – Op. cit., p.231.

74 – Observa-se que a exceção de Assunção, as citadas cidades que compuseram a Gobernación do Paraguai não perduraram, e a sua localização é no território do atual estado nacional do Brasil. Jerez (1580-1632) estaria no atual Mato Grosso e Vila do Espírito Santo (1570-1631) e Cidade Real (1557-1631) no Paraná.

75 – LOBATO; SURIANO, op. cit.

76 – Op. cit.

77 – ARECES, op. cit.

78 – LOBATO; SURIANO, op. cit.

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A gênese da história do trabalho e dos trabalhadores no Brasil e os paradigmas da “transição” e da “substituição”

Artigo de Marcia Regina Oliveira Lupion
(Mestre em História Social e Professora Colaboradora da Universidade Estadual de Maringá)
Contato: marcia_abs@yahoo.com.br

1. Introdução

Este trabalho pretende discutir como, através de novas fontes e metodologias, os historiadores da “geração 80” produziram uma historiografia que considerou o trabalho escravo como a origem do trabalho e dos trabalhadores no Brasil. Essa produção teve por contraponto a produção histórica e sociológica das décadas de 60/70 sobre o período da abolição dos escravos no Brasil. Iniciaremos esse trabalho fazendo uma síntese da produção de 60/70 a partir da crítica feita por Sidney Chalhoub, Sílvia H. Lara e Robert Slens, os mesmos intelectuais que questionaram a produção gerada pelos autores dos anos 60 e 70 sobre a gênese do trabalho livre no Brasil .

De forma geral, a análise comparativa entre as teorias presentes nessas duas produções intelectuais demonstrou que, o olhar sobre as fontes e, principalmente a teoria aplicada para se compreender um processo histórico são de suma importância não só para a condução de uma pesquisa, mas, sobretudo, para os resultados por ela apresentados. Além disso, apontou para a necessidade de sejam feitas releituras constantes de produções inscritas em outras temporalidades dada a relevância que o momento histórico ocupa na elaboração e na análise dos dados levantados para a geração de uma informação, qualquer que seja a área do Conhecimento.

2. Geração 60/70 e Geração 80: uma discussão

O que se tem durante o período de 1960 a 1970 é uma produção historiográfica e sociológica voltada para reconhecer as fases de “transição” e a forma de “substituição” da mão-de-obra no modo de produção brasileiro. Segundo Lara, os paradigmas da “transição” e da “substituição” introduzidos pelos historiadores e sociólogos de 60/70, excluem o trabalhador escravo da gênese da história do trabalho no Brasil (1998, p. 26) e, consideram a origem da formação da classe trabalhadora brasileira somente a partir a partir do final do século XIX quando chegam os trabalhadores imigrantes estrangeiros.

Já na década de 80, a produção historiográfica estava mais voltada para compreender a “passagem” do trabalho escravo para o trabalho livre no Brasil partindo de premissas que abandonaram o determinismo das “fases transitórias” do processo histórico tão caras aos intelectuais dos decênios anteriores e passou a trabalhar, como considerou Chalhoub (1990, p. 22), a partir “da contextualização e da interpretação das transformações sociais”. Essa forma de abordar a temática relativa à formação da classe trabalhadora brasileira pelos historiadores da década de 80 trouxe um novo olhar sobre a origem desse grupo social, pois considerou que o trabalho livre no Brasil estava ligado não somente à mão-de-obra imigrante, mas sim, e principalmente, ao trabalhador escravo que antecedeu à vinda dos imigrantes estrangeiros.

Quanto ao paradigma da substituição, as considerações foram as seguintes. O paradigma da “substituição” diz respeito à introdução do trabalho imigrante no Brasil em detrimento do trabalho escravo. Para os autores da Geração 60/70 analisados por Lara, os imigrantes estrangeiros são os precursores do trabalho livre e assalariado no Brasil, elemento que desconsidera o trabalho escravo pré-existente na sociedade. Sobre o tema transição/substituição Lara (1998, p. 17) concluiu que “em sua modalidade mais radical, a historiografia da transição postula a tese da ‘substituição’ do escravo pelo trabalho livre; com o negro escravo desaparecendo da história, sendo substituído pelo imigrante europeu”.

Além dos paradigmas da “transição” e da “substituição”, a forma como as fontes foram utilizadas pela “geração 60/70” – relatos de viajantes europeus em sua maioria – também foram objeto de crítica na década de 80. Segundo Slens (1988, p. 203,) “o racismo, os preconceitos culturais e a ideologia do trabalho da época predispunham os viajantes europeus e os brasileiros ‘homens de bem’ a verem os negros, que aparentemente não seguiam as suas regras na vida íntima, como desregrados. Nessa perspectiva, o que se pode concluir da produção de 60/70 é que esses autores, ao buscarem compreender o processo de passagem do trabalho escravo para o trabalho livre e assalariado no Brasil, acabaram por construir teorias que transformaram o trabalhador escravo “em seres aniquilados pela compulsão violenta da escravidão” (Lara, 1998, p. 27). Nessas abordagens, o escravo tornou-se “coisa”, incapaz de “ação autonômica”, “anômico”, “desregrado”, e que encontrava no crime a única forma de alcançar sua liberdade.

Em sua análise, a produção de 60/70 considera que os processos históricos seriam constituídos a partir do modo de produção presente numa sociedade e que, através da determinação do modo de produção seria possível reconhecer a fase ou o estágio evolutivo de uma sociedade. Essa forma de análise desconsidera elementos significativos da formação e constituição de uma sociedade, pois, ao estabelecer parâmetros evolutivos de desenvolvimento baseados somente num aspecto da vida em sociedade, no caso a produção material, essa produção acabou descaracterizando aspectos importantes da cultura e da própria formação social da sociedade brasileira.

2.1 A Teoria do Escravo Coisa

Um dos cientistas sociais a trabalhar com essa questão foi Fernando Henrique Cardoso. Sua teoria sobre o “escravo coisa”, fortaleceu ainda mais a idéia já introduzida por Perdigão Malheiros, em 1860, ao enfocar a situação jurídica do escravo. De acordo com Chalhoub (1990, p. 38), Cardoso coloca a situação do escravo dessa forma:

“[…] os escravos se auto representavam como seres incapazes de ação autonômica; ou seja, os negros seriam incapazes de produzir valores e normas próprias que orientassem sua conduta social. […] os escravos apenas espelhavam passivamente os significados sociais impostos pelos senhores.”

Robert Slens, por sua vez, focaliza suas análises em busca da família escrava no sentido de contrapor-se à visão do escravo “anômico” e “desregrado”. Assim, suas críticas se voltam para autores como Emília Viotti da Costa, Roger Bastidi, Oracy Nogueira e Florestan Fernandes. Para Slens, o “fardo sociológico” que foi jogado sobre as costas do negro por essa produção historiográfica reforça a teoria de que os escravos foram profundamente marcados pela experiência da escravidão (Slens, 1988, p. 191). Dessa experiência teria resultado um ser sem laços familiares, sem laços de solidariedade, promíscuo e aculturado por introjetar os costumes de seu senhor. Slens ainda chama a atenção para o fato de que essas conclusões foram consideradas por Florestan Fernandes os motivos que impossibilitaram o negro de introduzir-se na dinâmica do trabalho livre, sendo dessa forma, incapaz de “enfrentar a concorrência do imigrante e alcançar a mobilidade social” (Slens, 1988, p. 191).

Em resumo, esse é o quadro construído por historiadores e sociólogos nas décadas de 60/70 sobre o período de abolição da escravidão no Brasil.

3. A Releitura da Geração 80 sobre o trabalho da Geração 60/70

Num segundo momento, buscaremos descrever a forma como a “geração 80” levantou argumentos que problematizaram a visão de 60/70 sobre a origem da história do trabalho e do trabalhador brasileiro. Começaremos por Slens (1998) por acreditar que, em seu breve artigo, esse autor conseguiu argumentar de forma extraordinária sobre a existência de laços familiares e de solidariedade entre os escravos. Para tanto, Slens utilizou-se do caso de Policarpo e Afra, dois escravos que tiveram seu longo casamento comprovado através do registro do batizado da filha do casal. Assim, ele buscou fontes em que seu argumento encontra respaldo concreto, e acaba por concluir que a “promiscuidade sexual” e a “instabilidade familiar” não foram regras entre os escravos como propunha as abordagens das décadas 60/70.

Nesse sentido, e, como já foi citado acima, o problema da produção sobre a escravidão em 60/70 foi terem feito uma leitura dos viajantes sem levar em consideração o contexto europeu em que estes estavam inseridos. Ou seja, as condições vividas pelos negros na instituição eram muito diferentes do cotidiano europeu, daí que, ao se fazer a leitura desses relatos, deve-se atentar para o problema das diferenças culturais e históricas conforme sugere o próprio Slens (1998, p. 198)

Em Visões da Liberdade (1999) de Sidney Chalhoub, encontraremos outros elementos que colocam em dúvida as conclusões da historiografia de 60/70. Por intermédio do relato de vários casos em que os escravos negociavam sua liberdade, o autor lança novos argumentos sobre a visão “escravo-coisa”, aquele que é incapaz “de ação autonômica”, sobre a “reificação” e ainda confirma a existência de laços de solidariedade entre os escravos.

Um desses argumentos é encontrado no da mãe alforriada que sai da Bahia e vai em busca de sua filha Felicidade, no sudoeste do país aonde esta era escrava. Após encontrá-la, conta com a solidariedade de outras negras para comprar a liberdade da filha. Essa liberdade, contudo, é ameaçada várias vezes pela falta de pagamento. São momentos como esse que se percebe que nem todas as negociações em busca da liberdade foram positivas. Entretanto, elas servem para ilustrar, mesmo que através de casos individualizados, que os negros possuíam formas de luta e resistência dentro da instituição que nem sempre passavam pelo crime ou pela fuga.

Em outro caso levantado por Chalhoub nas fontes do judiciário, um escravo de nome Bonifácio, auxiliado por outros escravos, ao saberem que seriam transferidos para o sudoeste do país para trabalharem nas lavouras de café, tomaram de assalto o “negociante” responsável pelo tráfico interprovincial, ferindo-o violentamente por não concordarem com a transferência. Em outro caso, a luta, a resistência e a negociação senão da liberdade, ao menos do direito de pertencer a determinado senhor foi assim descrita por Chalhoub sobre uma negra escrava: Recusar-se a trabalhar e viver aos gritos dentro de casa foi a forma encontrada pela escrava Carlota para se opor às regras do cativeiro (Chalhoub, 1990, p. 52).

Os demais casos, descritos densamente por Chalhoub, seguem essa mesma linha: as visões da liberdade que os negros possuíam nem sempre se encontravam nos quilombos, esses personagens da História do Brasil possuíam suas próprias formas de alcançar uma certa autonomia dentro da instituição. Não eram “coisas” sem consciência, eram sujeitos de sua própria história. Dito desta forma, o caráter violento da escravidão quase perde seu sentido. Chalhoub (1990, p. 35), porém, chama a atenção para essa falsa impressão:

“O mito do caráter benevolente ou não-violento da escravidão no Brasil já foi sobejamente demolido pela produção acadêmica das décadas de 1960 e 1970 e, no momento em que escrevo, não vejo no horizonte ninguém minimamente competente no assunto que queira argumentar o contrário.”

Outro trabalho que consideramos conveniente elencarmos nessa busca pelos argumentos dos historiadores da década 80 em relação à origem do trabalho e trabalhadores no Brasil, é o artigo de Silva Lara “Escravos trabalhadores” publicado em 1989 pela revista Trabalhadores. Nesse artigo, Lara enfoca algumas formas de resistência e luta por parte dos escravos, todavia, o que pretendemos reter deste trabalho diz respeito ao levantamento feito em relação às várias formas de trabalho que os negros exerciam em cativeiro ou já fora dele.

No período da escravidão no Brasil, os negros também eram explorados pelos senhores através de trabalhos que exerciam fora das fazendas. Esses trabalhos podiam ser nas vilas, estradas, ou nas cidades. Existiam também os “negros de ganho”, que eram emprestados para executar serviços a terceiros. Em qualquer dessas atividades para além do trabalho da fazenda a que pertenciam, os negros entregavam ao seu senhor a remuneração recebida (Lara, 1989, p. 07). Numa das passagens citadas por Lara a autora conclui que “… o trabalho dos cativos não se resumia em trabalhar para o senhor e servir a ele. No Brasil, a maior parte dos escravos também cultivavam terras […] para o provimento de sua própria subsistência” (LARA, 1989, p. 09).

Outro autor que aborda essa questão é João José Reis. No artigo intitulado “A greve negra de 1857 na Bahia” (1993), ele descreve o trabalho de negros, “escravos ou não”, que eram conhecidos como “ganhadores”. Citando o viajante alemão Robert Avé-Lallomant, Reis caracteriza o trabalho negro como sendo o responsável por tudo que trabalha, carrega, grita, transporta. (cf. Reis, p. 8)

Em Lara e Reis portanto, o paradigma da “substituição” perde seu sentido. Como se pode verificar, os negros, cativos ou forros, já estavam integrados à dinâmica do trabalho livre, o que os tornava aptos a competirem com os imigrantes e a ascenderem socialmente. Conclusão diametralmente oposta à conclusão de Florestan Fernandes citada anteriormente, em que o negro era tido como ser incapaz de praticar atividades de ordem capitalista por terem introjetado a condição de “coisa’ que o sistema escravista impunha.

No trabalho dos autores da década de 80, o que se percebe é que a própria dinâmica da escravidão propiciou condições em que os negros foram introduzidos no modo de produção capitalista. Em João José Reis, que trabalha a questão do trabalhador negro em âmbito urbano, essa introdução dos negros no trabalho livre torna-se mais explícita, pois ele trabalha com negros organizados para exercer a função de ganhadores. Dessa forma, percebe-se que a instituição escravista não inibiu nem o desenvolvimento do capitalismo no Brasil, nem o envolvimento dos escravos e forros nessa dinâmica econômica.

4. Considerações Finais

A forma suscinta com que foram resumidos os trabalhos desses autores talvez não consiga exemplificar completamente os argumentos que propus levantar no sentido de contrapor as historiografias de 60/70 e 80. Todavia, acredito que tenham servido para demonstrar que os argumentos utilizados pelos historiadores de 80 encontram melhor fundamentação teórica e metodológica que a produção acadêmica de 60/70.

As fontes privilegiadas, como os arquivos do judiciário; as leituras interpretativas e contextualizadas das mesmas; a descrição minuciosa e densa dos casos e, principalmente, a abundância dos relatos, tornam a produção dos anos 80 mais condizente com as produções acadêmicas de ordem histórica e até mesmo sociológicas. O momento histórico vivido durante a década de 80 também propiciou essa releitura, sobretudo no que diz respeito à produção historiográfica que passou a valorizar o conhecimento das sociedades humanas, suas transformações ou permanências, a partir de aspectos do cotidiano e da convivência social dos indivíduos e dos grupos, enfatizando a história como um processo e, acima de tudo, um processo passível de ser construído sobre vários aspectos que não somente o determinante econômico.

Entretanto, a produção mais importante desses autores diz respeito à condição que eles elevaram os escravos brasileiros em contraponto à condição “coisa” das décadas 60/70. Para os autores da “geração 80”, os escravos são sujeitos da história do trabalho no Brasil. Suas experiências cotidianas, sejam elas de luta ou de resistência, dentro ou fora da instituição, em busca de uma liberdade cujas condições fossem, na medida do possível, por eles negociadas, foi a maior contribuição histórica que os escravos, primeiros trabalhadores brasileiros, puderam receber de uma produção acadêmica.

Nesse sentido, concluímos que os paradigmas “substituição” e “transição” não abarcam todas as transformações acontecidas em fins do séc. XIX e início do XX no Brasil. Se houve em certas regiões do Brasil a preferência pela mão-de-obra imigrante, houveram fatores que levaram à essa preferência (cf. Lara, 1998, p. 35) e que não foram considerados pelos autores das décadas 60/70. Desconsiderações essas que acabaram por excluir, além de inferiorizar, o trabalhador negro da origem da história do Trabalho e do Trabalhador brasileiro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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A administração Lecor e a Montevidéu portuguesa: 1817 – 1822

Texto de Fábio Ferreira

Carlos Frederico Lecor: representante de D. João na ocupação de Montevidéu, personificando o antagonismo ao general Artigas.

Carlos Frederico Lecor: representante de D. João na ocupação de Montevidéu.

A monarquia portuguesa, durante o período de sua permanência no Rio de Janeiro, entre 1808 e 1821, tenta, em três momentos, conquistar o que corresponde à atual República Oriental do Uruguai. A primeira tentativa, em 1808, tem, inicialmente, o apoio do príncipe regente D. João, e corresponde ao projeto de Carlota Joaquina em exercer a regência espanhola a partir do Rio da Prata. No entanto, pela ação de Lorde Strangford, representante britânico no Rio de Janeiro, e de D. Rodrigo de Souza Coutinho, ministro de D. João, o plano de Carlota malogra.

Uma segunda tentativa expansionista lusa ocorre em 1811, mesmo ano em que José Gervásio Artigas adere à Revolução de Maio, iniciada em Buenos Aires, e que busca o rompimento com a Espanha. As tropas de D. João invadem o território oriental sob a alegação de preservá-lo aos Bourbon, casa real a qual Carlota pertence e, também, sob o argumento de que as perturbações no território oriental causavam turbulências na fronteira com o Rio Grande. No entanto, mais uma vez por pressão inglesa, D. João retira as suas tropas desse território em 1812.

Em 1816 ocorre a terceira tentativa expansionista lusa, que obtém êxito. As tropas do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves são lideradas pelo então general Carlos Frederico Lecor e invadem o território oriental, conquistando Montevidéu em 20 de janeiro de 1817.

Uma vez estabelecendo-se a conquista e o governo luso de Montevidéu, permanece à frente desta empreitada o general Lecor, que administra o território oriental a partir de Montevidéu até 1825. Assim, nas linhas a seguir serão apresentados alguns aspectos da administração Lecor.

Sobre Carlos Frederico Lecor, líder do projeto expansionista português na região do Prata, nasceu em Faro1, no Algarves. Descendia, pelo lado paterno, de franceses e, do materno, de alemães, sendo destinado por seus progenitores à vida comercial, vivendo, assim, na Holanda e na Inglaterra. Entretanto, opta pela carreira militar, assentando praça no regimento de Artilharia de Faro.

Na última década do século XVIII e na primeira do XIX, Lecor ascende no exército português, tendo tido, dentre outras patentes, as de soldado de artilharia, sargento e capitão. Com as três invasões francesas que Portugal sofre a partir de 1807, lideradas, respectivamente, pelos generais Junot, Soult e Massena, Lecor participa da ação contra os ocupadores e ascende na hierarquia militar durante a guerra contra Napoleão e, ainda, “[…] ostentaba como galardón de su carrera, el haber iniciado en Portugal la reacción contra el invasor. Carlos Frederico Lecor, el único de los oficiales extranjeros que mereciera el honor de comandar una división inglesa a las órdenes de Wellington […]”2

Durante o conflito o então Tenente-Coronel Lecor deserta, assim como outros oficiais lusos, indo para a Inglaterra, onde organiza a Leal Legião Lusitana contra o sistema napoleônico. Lecor luta em território francês e, uma vez havendo a derrota do oponente, as vitoriosas tropas portuguesas retornam ao seu país lideradas pelo marechal-de-campo Lecor.

Assim, com o fim da guerra no velho mundo e com os interesses da monarquia de Bragança nos assuntos americanos, é decidido que tropas sejam enviadas para a América. O Tenente-General Lecor, então Governador da Praça de Elvas3, é escolhido4 para liderar os militares portugueses envolvidos na conquista da Banda Oriental.

Com a conquista lusa de Montevidéu, Lecor fica à frente do governo instalado neste núcleo urbano e, na campanha, travam-se lutas contra Artigas. Uma vez no poder, Lecor aproxima-se de pessoas de destaque de Montevidéu, tendo no seu circulo figuras como, por exemplo, o Padre Larrañaga, que outrora fora aliado de Artigas, além de ter sido o fundador da Biblioteca Pública de Montevidéu, e autor de várias obras no âmbito científico, literário, teológico e político; Francisco Llambi, assessor do Cabildo de Montevidéu em 1815, período em que a cidade está sob o poder das forças artiguistas; e, ainda, Nicolas Herrera, figura controversa na historiografia uruguaia, pelo fato de ter sido aliado do portenho Alvear e, depois, de Lecor. Sobre este oriental, soma-se que, segundo Donghi, quando as forças de Lecor marcham sobre o território oriental, Herrera está ao lado do general, além de que “(…) ahora su función es asesorar a sus nuevos amos en esa conquista pacífica que debe acompañar a la militar.”5

Lecor também tenta compor politicamente com Artigas, entretanto, não obtém êxito. O general português, de acordo com as instruções que recebeu, propõe ao caudilho que venda as suas propriedades e bens legitimamente seus, além do exílio no Rio de Janeiro ou em qualquer outro lugar que D. João autorize e, ainda, o ganho de um soldo, que não exceda o de coronel de infantaria portuguesa. Porém, com Artigas, a “diplomacia” de Lecor malogra, não conseguindo a pacificação do território oriental.6

Para derrotar Artigas, Lecor aproveita-se do contexto oriental, pois à medida que o poderio do caudilho encolhe e o luso cresce, a população demonstra-se mais favorável aos ocupadores e, assim, Lecor militariza a população e organiza-a contra Artigas.7

Entretanto, isto não significa que Lecor obtém unanimidade, pois a resistência artiguista perdura até 1820. Porém, observa-se que Lecor sabe atrair para o seu lado aliados do caudilho8, como, por exemplo, Fructuoso Rivera.

Sobre a administração Lecor, é válido salientar que

“Mediante dádivas y honores, ganó la voluntad de los hombres; profundo conocedor de las flaquezas humanas, halagó a unos con promesas y a otros con realidades; repartió cruces y condecoraciones; distribuyó tierras que no eran de su Rey; conquistó a la sociedad de Montevideo con fiestas y saraos; casó a su oficiales con hijas del país, haciendo él lo propio; seleccionó los hombres para casa cometido; eligió a su gusto los Cabildos, organismos que tenían prestigio popular y que fueron el secreto de su política, y de tal suerte dispuso las cosas, que todos los actos de incorporación a la corona de don Juan VI o cesiones a favor de ella, parecieron siempre hechos espontáneos, debidos a solicitudes y ruegos de nuestro pueblo, que se lisonjeaba en proclamarlo su Rey.”9

Medida tomada por Lecor e apresentada na extração acima é a de incentivar o casamento entre os militares luso-brasileiros com as mulheres de Montevidéu. Observa-se, inclusive, que o próprio Lecor casa-se, em 1818, com Rosa Maria Josefa Herrera de Basavilbaso, que à época possuía 18 anos de idade.

No mesmo ano do seu casamento, Lecor recebe o título nobiliárquico de Barão da Laguna, em virtude das mercês que D. João VI concede pela sua aclamação e coroação como rei de Portugal, Brasil e Algarves. Sobre a origem do Laguna no título do militar português, Duarte afirma que “Acreditamos que, ao conferir o título de Barão da Laguna ao General Lecor, reportara-se o Rei ao fato de que fora naquela povoação catarinense que o Comandante da Divisão de Voluntários Reais iniciara a penosa marcha para atingir Montevidéu.”10

Uma vez no poder, Lecor também distribuí terras entre os ocupadores, tanto as que são de posse dos chefes artiguistas, quanto as abandonadas. Além deste benefício, os invasores adquirem estâncias a baixíssimo custo, tirando proveito da situação em que o território oriental vive. Igualmente os estancieiros criollos que apóiam Lecor são contemplados com essa política.11

No que tange a política de Lecor para os Cabildos, o general, através da sua destreza e de promessas, busca a interferência e, também, a simpatia destes corpos municipais. Lecor mantém os Cabildos e os alcaides de acordo com as instruções dadas pelo Marquês de Aguiar.12 Sobre o general e esta instituição municipal, é válido observar que

“En 1819 dispuso Lecor que se alejase del Cabildo la tercera parte de sus integrantes, a excepción de Juan José Durán y Jerónimo Pío Bianqui, debiéndose elegir los sustitutos y confirmar en sus puestos a los restantes; y el 9 de agosto de 1820, el propio Lecor ordenó la separación de cinco cabildantes que protestaban por el incumplimiento de las bases de incorporación ajustadas por los pueblos del interior con el Cabildo de Montevideo.”13

Ainda sobre os Cabildos, estas instituições “[…] habían perdido el carácter popular que en otras épocas los hiciera respetables, por irregularidades en la forma de su elección e influencia que en sus deliberaciones ejerciera el Barón de la Laguna.”, além de que durante o período do governo luso

“La posición de esos cuerpos municipales respecto de Lecor, no era uniforme. El de Montevideo, nombrado bajo su directa influencia, respondía ciegamente a sus intenciones cuyos secretos conocía; los del interior obedecían también sus directivas, pero sin tener una noción exacta de cuáles eran los planes de que venían a ser instrumentos.”

Assim, desacreditando estas instituições municipais, Devoto afirma que

“En los Cabildos de 1821, podía, sin duda, desde el punto de vista de las formas de su elección, reconocerse organismos legalmente constituidos, pero nombrados bajo la inspiración de Lecor, ¿hasta dónde representaban los intereses y las ideas de los pueblos? ¿Tenían, acaso, competencia para elegir sus diputados [no caso, elegê-los para o Congresso Cisplatino].”14

É válido observar que com o trecho acima, além de questionar a autonomia dos Cabildos, principalmente o de Montevidéu, Devoto apresenta as características de articulador político do general Lecor e a influência do mesmo nas instituições políticas orientais.

A atuação de Lecor à frente do território oriental é definida por Devoto como uma ação política, e que sua administração é baseada em suas articulações. O autor inclusive afirma que a característica política do personagem prepondera sobre a militar, pois, após citar o destaque de Lecor nas lutas da Europa, afirma que “en América [Lecor fue] un General de Gabinete que ganó en el campo de la intriga todas sus batallas” e que “Sus contemporáneos señalaron preferentemente una característica de su personalidad: la astucia. Lecor ‘es un raposo y no un León’, expresó con acierto Lavalleja.”15

A ação política de Lecor no território oriental não é ignorada por Duarte. O autor afirma que “Instalado em Montevidéu, iniciou o General Lecor seu trabalho de sapa, subterrâneo e paciente, implantando uma espécie de quinta-coluna, a fim de fortalecer o partido que representava, e fomentar a oposição à reconquista espanhola”16. O autor também expõe que

“Silencioso, mas dinâmico, caprichoso e astuto, sem parecer, por mais diplomático, que militar, como aparentava à luz do sol pelas revistas, formaturas e desfiles da Tropa, o General escolhido por D. João […] desenvolvia intenso labor num meio estranho, cercado de interesses de todos os matizes.

E, para bem cumprir a tarefa de extrema delicadeza que recebera, Lecor passou a usar a sutileza, a finura na penetração dos sentidos, agindo tanto pela força, como pelo suborno, estes às vezes claro, chocante, outras vezes, ameno e até colorido de malícia… Sempre no afã de arregimentar prosélitos, procurando-os, principalmente, nas agremiações nas quais uma defecção era compromisso passível de morte, em caso de reconquista espanhola ou portenha; era indispensável admitir ambas as hipóteses. Assim, entre os castelhanos buscava adeptos que, mais tarde, pelo próprio instinto de conservação, embaraçariam e afastariam a volta do domínio de Fernando VII, e nisso sua política, embora em círculo muito limitado, evidenciou-se portentosa.”

Assim, verifica-se que a dominação lusa não acontece somente pela força militar, outros componentes, como os de caráter político, são de fundamental importância para a permanência de Lecor no poder. O trecho acima também evidencia o lado político do general, além de que há a existência de um grupo em Montevidéu que dá-lhe suporte e articula com ele, e que existem alianças e negociações entre o militar e os habitantes da cidade ocupada.

Segundo Duarte, a conquista só concretiza-se em função das habilidades pessoais de Lecor:

“[…] o General Lecor emprestou grande contribuição pessoal [à tolerância e simpatia dos orientais em relação as tropas de ocupação], impondo a seus comandados uma disciplina que contrastava com o bárbaro procedimento dos soldados de Otorgués [representante de Artigas em Montevidéu]; sobretudo atuando junto aos párocos, de maneira que estes influíssem na opinião das ovelhas de seus rebanhos […]”

A respeito, é válido observar a relação de Lecor com a Igreja Católica. As forças ocupadoras têm, desde o início, o apoio do padre Larrañaga que, a princípio, pode ser entendido como o representante do clero católico na administração portuguesa de Montevidéu. Larrañaga está ao lado de Lecor em diversos momentos da administração do general, como, por exemplo, no Congresso Cisplatino, e na instalação da Escola de Lancaster na Cisplatina17.

Sobre o Congresso, realizado em julho e agosto de 1821, os seus deputados – Larrañaga é um deles – votam pela incorporação da Banda Oriental à monarquia portuguesa sob o nome de Estado Cisplatino Oriental, sendo, inclusive, a nomenclatura sugerida pelo sacerdote18. Grande parte da historiografia uruguaia aponta os congressistas como aliados de Lecor, e que o resultado do Congresso foi fruto das articulações políticas entre o general e os orientais. O contato com as atas do Congresso, disponíveis no Archivo General de Nación de Montevidéu, permite verificar o processo de articulação política entre Lecor e os congressistas em torno da criação da Cisplatina.

A Escola de Lancaster é implementada devido à atuação de Larrañaga e, com a aprovação do Cabildo, Lecor autoriza a implementação do método no território que está sob a sua autoridade. A Sociedade Lancasteriana de Montevidéu, constituída no dia 3 de novembro de 1821, tem como presidente Lecor

Assim, a participação do padre na constituição da Sociedade Lancasteriana, na adoção do método de ensino, e na criação da Cisplatina, são evidências que mostram a participação do sacerdote no governo luso-brasileiro e a proximidade existente na relação entre Larrañaga e Lecor. O relacionamento entre os dois também evidencia a participação oriental na administração Lecor.

Entretanto, apesar de ocorrer a participação de habitantes locais na administração do general, Lecor também atua na repressão aos seus opositores. Ele ordena, via uma publicação, que em relação aos seus oponentes a ordem é a de que

“[…] tais partidas seriam tratadas como salteadores de estradas e perturbadores da ordem pública. E, no caso de não poderem ser aprisionados os autores de tais atentados, se faria a mais séria represália às famílias e bens dos chefes e elementos dessas partidas, podendo […] [o] Exército português […] queimar as estâncias e levar suas famílias para bordo dos navios da esquadra.”19

Com isso, pode-se perceber a repressão por parte do governo de Lecor aos seus opositores. Autores uruguaios com os quais obtivemos contato caracterizam o governo de Lecor como violento. O que é bem provável, pois a força ocupadora, por mais que tenha um grupo que a apóie, tem os seus oponentes, que precisam ter a sua atuação anulada. Ressalta-se, também, que os opositores agem através da força e em um contexto de guerra, então para silenciar a oposição, emprega-se igualmente a força.

Provavelmente, Lecor, em determinados momentos, usa da força para alcançar os seus objetivos, no entanto, não pode-se ignorar a questão da cooptação, onde Lecor conquista a sociedade montevideana com títulos, festas e promessas.

Durante a administração Lecor, mais precisamente em 1819, é construído um farol na Ilha das Flores, nas imediações de Montevidéu. A alegação é a de que no local ocorrem constantemente acidentes – o que não é falso, inclusive, na ocasião, havia ocorrido um –, no entanto, o farol de Lecor tem um preço: o Cabildo montevideano passa para o Rio Grande vasto território pertencente à Banda Oriental.20

Neste território, de escassa população, mas abundante em gado, os ocupadores fazem vastas doações a oficiais e soldados portugueses e brasileiros, constituindo, deste modo, grande dependência econômica do território doado com o Rio Grande, “[…] a la que se pretendió anexar en 1819 con el denominado Tratado de la Farola que fijaba el límite meridional de aquélla en el río Arapey.”21

Ainda sobre a atuação de Lecor à frente do governo instalado em Montevidéu, observa-se que o personagem atua com relativa autonomia em relação ao monarca português, principalmente nos últimos momentos de união de Portugal e do Brasil. Como exemplo, pode-se citar o Congresso Cisplatino, onde o general age diferentemente das ordens do governo português, bem como procura atender os seus interesses e os do seu grupo de apoio:

“En uso de las amplias facultades que le diera la Corona, Lecor había gobernado la Provincia Oriental de manera absoluta y, en algunos casos, con independencia de la voluntad del Soberano y sus ministros, especialmente en los últimos tiempos en que los graves acontecimientos políticos de la metrópoli, rodearon de atenciones a estos últimos. La celebración del congreso dispuesta por Juan VI, fue encarada por Lecor como un asunto de su interés particular y del de su círculo. El ‘Club del Barón’ llamaron los contemporáneos a ese grupo político integrado en distintas épocas por Tomás García de Zúñiga, Juan José Durán, Nicolás Herrera, Lucas J. Obes, Dámaso A. Larrañaga, Francisco Llambí, Francisco J. Muños, Jerónimo Pío Bianqui, José Raimundo Guerra, entre otras figuras de menor volumen.”22

A respeito da participação de Lecor no Congresso Cisplatino e da conjuntura no território oriental à época do resultado da votação, Duarte afirma que

“Se a incorporação da Banda Oriental aos domínios da Coroa Portuguesa havia sido uma vitória pessoal das qualidades do Barão da Laguna, nem por isso foi ele justamente recompensado de seu árduo trabalho. Por essa época, irrompeu nas fileiras da Divisão de Voluntários Reais o manifesto desejo de retornar a Portugal […]”23

Pode-se constatar na extração acima as dificuldades que as tropas portuguesas estão a causar durante a administração de Lecor. Agrega-se, também, a habilidade política que o general tem que ter para mantê-los e comandá-los de maneira conveniente aos seus interesses.

Nesse momento, a situação do grupamento militar português instalado no território oriental é de insatisfação. As tropas portuguesas são a favor de que se jure a Constituição, enquanto Lecor não apóia o juramento, assim como as tropas americanas24 e, ainda, os lusos reclamam pelo fato de não receberem há vinte e dois meses e desejam retornar para Portugal.

Outra insubordinação que Lecor tem que lidar durante a sua administração é o motim das tropas portuguesas em 20 de março de 1821. Na ocasião, aquela Divisão, na praça de Montevidéu, reivindica o comprometimento do Barão da Laguna com a constituição e, ainda, exige a presença de Lecor para que seja formado um Conselho Militar sob a presidência do mesmo.

Agrega-se, ainda, que é proclamada e jurada a Constituição que viesse a ser realizada pelas Cortes de Portugal, e as forças lusas obrigam Lecor a fazer o mesmo. Estas tropas também solicitam a D. João VI o regresso ao seu país de origem.

Sobre o episódio acima, Duarte25 afirma que a conspiração é chefiada pelo “turbulento” e “sumamente ambicioso, agitado e despótico” Coronel Claudino Pimentel que, tendo perdido uma promoção para o Coronel D. Álvaro da Costa de Sousa Macedo, passa a “formar na facção dos revanchistas”.

Assim, Pimentel lidera o movimento, aproveitando-se do desconhecimento da tropa do que está ocorrendo na Europa. Observa-se ainda que, no caso de Lecor não aderir ao grupamento reivindicador, ele estaria deposto e substituído por Pimentel.

A atitude de Lecor diante de tal episódio é assim definida por Duarte:

“O arranhão na ‘disciplina militar prestante’ a que se sujeitou o Capitão-General, de certo modo foi um expediente hábil e sagaz, atendendo à situação periclitante em que se encontrava à frente dos destinos políticos da Banda Oriental. […] Foi um recurso extremo, empregado somente por aqueles que têm alto sentido político, para safar-se de críticas situações.

E o Barão da Laguna, parecendo vencido nessa batalha contra alguns de seus camaradas ambiciosos, era na verdade o vencedor, pois foi capaz, com uma atitude paciente e tolerante, de impedir o agravamento da situação política em que se encontrava, sem ter em quem escorar sua autoridade, em face dos graves acontecimentos ocorridos fora da sua área de comando, em Lisboa e no Rio de Janeiro, e que fatalmente propiciariam a eclosão de uma revolta declarada, sem precedentes, no seio da Divisão de Voluntários Reais.”26

Com a extração acima verifica-se as características políticas do personagem, apresentando atitudes pensadas, premeditadas e pragmáticas de Lecor.

Esta não é a única insubordinação que Lecor tem que enfrentar enquanto está no poder. Alguns meses mais tarde, mais precisamente na noite de 23 de julho, ocorrem novos problemas com as tropas lusas, em virtude dos soldos atrasados e do desejo de retornarem para Portugal.27

Assim, em 1821, a relação entre Lecor e as tropas lusas tornam-se tensas, estando a aproximação de Lecor com o governo do Rio de Janeiro como um dos fatores, bem como a assinatura da Constituição. Os portugueses são favoráveis a questão constitucionalista e ao movimento que originou-se no Porto, já Lecor não, posterga o seu posicionamento público em relação a Constituição. Sobre a questão, Devoto afirma que “El ejército portugués americano parecía no estar dispuesto a reconocer la Constitución liberal; los ‘Voluntarios Reales del Rey’ eran decididos partidarios de ella.”28

Durante a permanência de Lecor no poder, há também momentos de tensão com os governos limítrofes. O Barão da Laguna cogita e articula uma invasão a Entre Rios. Carreras e Alvear, opositores do governo portenho, buscam o apoio do militar português para ocupar militarmente Entre Rios. No entanto, a possibilidade da ocupação malogra, dentre outros fatores, pelas turbulências ocorridas no interior das tropas de Lecor.29

No que diz respeito a Buenos Aires, quando o General Martín Rodrigues toma conhecimento da ordem para a realização do Congresso Cisplatino, ele redige epistola ofensiva a Lecor, taxando o general português de o “dono do Mundo”30. Em ofício de seis de julho a Estanislao Lopez, líder de Santa Fé, Rodríguez ressalta o perigo do expansionismo luso na região. Acreditando que o Congresso poderia votar pela anexação do território oriental à monarquia portuguesa, o general portenho expõe a Lopez que poderia haver também a apropriação, por parte de Portugal, do território oriental ao Paraná, e que Santa Fé e o Paraguai poderiam vir a ser vítimas da expansão lusa na região.31

Rodrigues, em função do expansionismo luso no espaço platino e das atividades de Lecor neste sentido, “[…] dirigió en abril 1º de 1821, un violente oficio al Barón de la Laguna en el que calificaba de insulto la ocupación de la Provincia Oriental y pedía satisfacciones por las maniobras para invadir Entre Ríos […]” e que “El plan del Gobierno de Buenos Aires era provocar la insurrección en la Provincia Oriental para apoyarla luego”.32 Os portenhos tentam cooptar para a sua causa Fructuoso Rivera, que permanece ao lado de Lecor, e o plano não vinga.

Assim, não só a possibilidade de ocupar Entre Rios causa em Buenos Aires a hostilidade em relação ao Barão da Laguna e a ocupação luso-brasileira. O asilo que Lecor outorga a Carreras e Alvear contribui para o recrudescimento das relações entre o general e Buenos Aires.

A respeito da relação entre os governos luso-brasileiro e portenho, Devoto afirma que

“[…] se habían desarrollado en un terreno de neutralidad hasta el momento en que la protección dispensada en Montevideo a Carrera y Alvear, y posteriormente el apoyo prestado a los planes de Ramírez contra Buenos Aires, llevaron al ánimo de aquel Gobierno el convencimiento de que las aspiraciones de los portugueses en el Río de la Plata – de Lecor y su partido, mejor dicho – eran de una latitud indefinida.”33

Em novembro de 1821, mesmo depois da derrota de Ramírez, Lecor continua a ser uma ameaça a Entre Rios, tanto que o novo governador, Lucio Mansilla, através de ofícios, busca a cordialidade com o general português, evitando, deste modo, a invasão do território entrerriano. Lecor e Mansilla acabam por acordar a neutralidade, o primeiro não interviria em Entre Rios e o segundo faria o mesmo em relação à Cisplatina.34

Com a Independência do Brasil, agrava-se outro ponto de tensão existente na administração Lecor: o contingente militar luso. O Barão e as tropas portuguesas ficam de lados opostos, lutando uns contra os outros até 1824.

A respeito dos últimos anos de vida de Lecor pode-se dizer que após negociações de paz entre portugueses e brasileiros, em 1824, o general retorna a Montevidéu, ficando toda a Cisplatina sob o controle brasileiro, sendo este núcleo urbano o último ponto português na América.

No ano seguinte, o Império do Brasil eleva Lecor a Visconde da Laguna. Entretanto, a partir daí, o general enfrenta uma série de derrotas. Em 1825, os 33 orientais35 declaram a independência da Cisplatina e a reunião desta com as Províncias Unidas. Iniciam-se as lutas com os insurgentes, no que depois vem culminar na declaração de guerra do Brasil às Províncias Unidas do Rio da Prata, em 10 de dezembro de 1825, e a declaração dos portenhos, no primeiro dia de 1826, aos brasileiros. Assim, esse é o primeiro conflito externo do Brasil independente.

É válido observar que antes mesmo da resposta argentina, mais precisamente no dia 18 de novembro de 1825, Lecor é destituído pelo Imperador do governo da Cisplatina. O substituí o Tenente-General Francisco de Paula Magessi Tavares de Carvalho, futuro Barão de Vila Bela.

Lecor fica no comando do Exército do Sul, no entanto, é logo exonerado pelo Imperador, substituindo-o o Marquês de Barbacena. Porém, Lecor retorna ao cargo por mais duas vezes, somando três vezes a sua seleção.

Em 1828, após a intermediação da Inglaterra, finda-se o conflito entre o Brasil e as Províncias Unidas, criando-se a República Oriental do Uruguai. Não havendo mais o conflito entre Portugal e Espanha no território oriental, Brasil e Argentina, nos anos seguintes, exercem a sua influência e interferência na política uruguaia.

Em 1829 Lecor é promovido a marechal-de-exército e, assim, passa para a reserva. Entretanto, apesar da promoção, neste mesmo ano o Visconde da Laguna é submetido a um Conselho de Guerra Justificativo, em função da Guerra da Cisplatina, onde a votação é pela absolvição de Lecor. Após seu julgamento, o militar ainda preside uma comissão que tem o objetivo de reformar o artigo 150 da Constituição do Império, referente ao exército.

No dia 3 de agosto de 1836 falece Carlos Frederico Lecor, no Rio de Janeiro, a contar 72 anos de idade, sendo sepultado na Igreja de São Francisco de Paula. Lecor deixa como viúva a Viscondessa da Laguna, sem descendentes diretos e, segundo Duarte, o militar expira em uma má situação financeira.

 

Em estilo barroco, a Igreja do Largo de S. Francisco, no centro histórico do Rio., onde está enterrado Carlos Frederico Lecor.

Em estilo barroco, a Igreja do Largo de S. Francisco, no centro histórico do Rio., onde está enterrado Carlos Frederico Lecor.

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Notas

1 – Duarte (1985) afirma que Lecor nasceu no dia 11 de setembro de 1764. No entanto, Saint-Hilaire (2002), que esteve em Montevidéu em 1820, registra em seu diário no dia quatro de novembro a comemoração do natalício de Lecor, afirmando, ainda, que o general é um homem de cinqüenta anos. De acordo com a informação de Duarte, em 1820, Lecor completaria 56 anos. Deste modo, é plausível que Lecor em 1820 estivesse completando 56 anos e aparentasse os cinqüenta atribuídos pelo viajante francês, podendo, assim, proceder a informação de que o ano de nascimento do general é 1764. Fisicamente, Lecor, segundo Saint-Hilaire (Ibid., p.185), era “[…] alto, magro, cabelos louros, rosto moreno e olhos negros, fisionomia fria, mas que traduz bondade.”

2 – DEVOTO, Juan E. Pivel. El Congreso Cisplatino (1821): repertorio documental, seleccionado y precedido de um análisis. Revista del Instituto Histórico y Geográfico del Uruguay, t.XII. Montevideo: 1936, p.117.

3 – O irmão de Carlos Frederico Lecor, João Pedro, também foi governador em Portugal, no caso, de Albufeira, no Algarves.

4 – Segundo Duarte (1985), a escolha recai sobre Lecor em função do Marechal Beresford, que liderou as invasões inglesas a Buenos Aires e Montevidéu, respectivamente, em 1806 e 1807.

5 – DONGHI, Tulio Halperin. Historia Argentina de la Revolución de Independencia a la confederación rosista, volume III. Buenos Aires: Editorial Piados, 2000, p.120.

6 – SOUZA, J.A. Soares de. O Brasil e o Prata até 1828. In: BARRETO, Célia de Barros. O Brasil monárquico: o processo de emancipação. HOLANDA, Sérgio Buarque de. História geral da civilização brasileira, t.II, v.3. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p.363.

7 – LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, p.394.

8 – Op. cit.

9 – DEVOTO, op. cit., p.113.

10 – DUARTE. Paulo de Q. Lecor e a Cisplatina 1816-1828. v. 1. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1985, p.305.

11 – CASTELLANOS, Alfredo. La Cisplatina, la independência y la república caudillesca. Historia Uruguaya. Tomo 3. 1998. Buenos Aires: Ediciones de La Banda Oriental, p.7.

12 – SOUZA, op. cit., p.363.

13 – DEVOTO, op. cit., p.130.

14 – DEVOTO, op. cit., p.130 e 131.

15 – DEVOTO, op. cit., p.112 e 113.

16 – DUARTE, op. cit., p.271.

17 – FERREIRA, Fábio. O General Lecor e a Escola de Lancaster: Método e Instalação na Província Cisplatina. In: Revista Tema Livre, ed.09, 23 set. 2004. Disponível em: http://www.revistatemalivre.com

18 – ACTAS DEL CONGRESSO CISPLATINO. Sessão de 23 de julho de 1821. Montevideo, 1821. Archivo General de la Nación, f.17 e 17v.

19 – DUARTE, op. cit., p.273.

20 – Castellanos observa que D. João VI não ratifica o trato, entretanto, anos mais tarde, a chancelaria brasileira vem a evocá-lo na demarcação dos limites entre o Brasil e o Uruguai.

21 – CASTELLANOS, op. cit., p.7.

22 – DEVOTO, op. cit., p.125.

23 – DUARTE, op. cit., v.2, p.442.

24 – ABADIE; ROMERO, op. cit., p.326.

25 – DUARTE, op. cit., p.415.

26 – DUARTE, op. cit., p.418.

27 – DEVOTO, op. cit., p.140.

28 – DEVOTO, op. cit., p.120.

29 – ABADIE; ROMERO, op. cit., p.326.

30 – DUARTE, op. cit., p.439.

31 – RELA, Walter. Uruguay cronologia histórica anotada: dominación luso-brasilenã (1817-1828). Montevidéo: Alfar, 1999, p.20 e 42.

32 – DEVOTO, op. cit., p.123.

33 – DEVOTO, op. cit., p.119 e 120.

34 – RELA, op. cit., p.22.

35 – Segundo Carneiro (1946), dos 33 orientais, na verdade, somente 17 o eram. Onze eram argentinos, dois africanos, um paraguaio, outro francês e, ainda, um era brasileiro.

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Bibliografia e fontes

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Profª. Drª. Marieta de Morais Ferreira (CPDOC/UFRJ)

A seguir, a entrevista concedida pela Profª. Drª. Marieta de Morais Ferreira à Revista Tema Livre, realizada no CPDOC, em 28 de dezembro último. Na entrevista, a historiadora fala da sua formação acadêmica, da instalação do curso de história no Rio de Janeiro e da utilização da História Oral, entre outras questões.

Revista Tema Livre – Primeiramente, conte-nos a sua trajetória acadêmica.

Marieta de Morais Ferreira – Bom, eu fiz o curso de graduação em História na UFF e dei seguimento à minha formação acadêmica no programa de Pós-Graduação em história, também na UFF. Primeiro o mestrado e, depois, alguns anos mais tarde, o doutorado, na primeira turma.

Além disto, no começo da minha carreira, trabalhei como praticamente todos os meus colegas na época, na rede pública municipal. Logo que me formei fiz concurso, comecei a dar aula no ensino médio e fiquei alguns anos fazendo isso, mas, logo depois, eu tive a oportunidade de fazer um concurso para ser pesquisadora da Casa de Rui Barbosa, no centro de pesquisa em história, onde eu comecei a trabalhar com a primeira república, história empresarial… Neste período também comecei a dar aula na Faculdade de Filosofia Santa Dorotéia, em Nova Friburgo, para onde levei vários colegas da UFF, e reestruturamos o Departamento de História. Depois, já em 1979, eu vim trabalhar no CPDOC, ficando difícil conciliar essas várias atividades. Saí da Casa de Rui Barbosa, também deixei a Faculdade de Filosofia Santa Dorotéia e o ensino médio na rede pública. Então, aqui no CPDOC, eu fiquei trabalhando com dedicação exclusiva, me dedicando à História Política, que é uma área de pesquisa do CPDOC, com a história do século XX e até a história mais recente.

A minha tese de mestrado tinha sido sobre os Comissários de Café na Província Fluminense, século XIX. Quando eu vim para o CPDOC passei a me interessar mais, até por uma questão de que a instituição me levava a isso, a trabalhar com a História Política. Então, esta passou a ser uma área que se tornou um alvo por excelência da minha atuação. Coordenei um grupo de pesquisa sobre História Política do antigo Estado do Rio de Janeiro, fundei uma linha de pesquisa sobre História Política do Rio de Janeiro e, então, desenvolvi muitos trabalhos nesta área, sempre juntando História Política, História da República e História do Rio de Janeiro.

Passados alguns anos, eu me tornei Coordenadora do programa de História Oral do CPDOC. Aí abriu-se também outra área de trabalho, que era uma coisa que até então eu tinha feito de forma eventual, trabalhar com algumas entrevistas, mas sem ter uma sistemática maior. Quando me tornei Coordenadora, comecei a fazer um investimento grande nesse campo, de discutir as questões da memória, da História Oral, da História do Tempo Presente e, então, essa minha área de trabalho se ampliou, incorporando essas novas temáticas.

Ao lado de ser pesquisadora do CPDOC, também sou professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde eu ingressei em 1986. Desde então eu tenho sido professora lá, trabalhando na Graduação, no Mestrado e no Doutorado.

RTL – A Sra. pode falar da influência francesa na sua atuação acadêmica?

Marieta – Em relação a essa influência da França na minha carreira, eu acho que, efetivamente, a historiografia francesa tem uma presença muito importante aqui no Brasil, e acho que os historiadores franceses possuem uma produção muito interessante, muito inovadora e que realmente têm contribuído para uma atualização, renovação, da historiografia brasileira.

Mas, além disso, tive também uma possibilidade de ter um contato muito interessante quando eu fui para a França fazer o pós-doutorado. Passei um ano lá, na École des Hautes Etudes en Science Sociales, fazendo uma investigação sobre as missões francesas no Brasil, especialmente no Rio de Janeiro, para a criação dos cursos de história. Já há um conhecimento bastante razoável sobre essas missões no caso da USP, que tem figuras destacadas que vieram para colaborar na fundação do curso de História. Mas, para o Rio de Janeiro, havia muito pouca coisa. Fiz uma investigação interessante, destacando o papel de alguns professores franceses como Henri Hauser, Victor Tapié, Albertini, que eram grandes profissionais e que vieram para fundar o curso de História na Universidade do Distrito Federal. Depois, mais tarde, outros vieram para fundar o curso de História na Universidade do Brasil, que antecede a UFRJ. Essa foi também uma experiência bastante interessante.

RTL – E como foi a instalação do curso de história aqui no Rio de Janeiro?

Marieta – Isso ocorreu em 1935, quando, aqui no Distrito Federal, o prefeito Pedro Ernesto, juntamente com Anísio Teixeira, que tinha o papel de algo como secretário da educação, o nome não era exatamente este, criam então a chamada UDF, Universidade do Distrito Federal. Ela era uma Universidade com características muito inovadoras, preocupada em implementar o ensino laico e em formar professores. Então, o Anísio Teixeira vai negociar na França, com a embaixada francesa aqui no Rio, com o Ministério da Educação Nacional na França, a vinda de uma missão para o Rio de Janeiro, que era composta por vários professores, não só para o curso de História, mas também para as outras áreas, como Literatura, Filosofia, Matemática… Enfim, são vários especialistas que vêm, mas eu não me detive em estudar todas as áreas, me fixei fundamentalmente na de História. E foi interessante, porque eu acompanhei a trajetória de alguns professores. Então, são profissionais que não só vão dar aulas, mas também vão orientar sobre a carga horária, quantas horas deve ter cada curso, como deve ser o programa, enfim, é bastante interessante a maneira como isso é formatado.

RTL – Fale-nos sobre o papel do CPDOC como instituição de preservação e divulgação da história, bem como sobre a composição do seu acervo.

Marieta – Bom, o CPDOC é uma instituição que tem 30 anos e foi fundado para receber os chamados arquivos pessoais de homens públicos. Os primeiros arquivos que recebemos foi o de Getúlio Vargas, depois fomos recebendo vários outros arquivos pessoais de figuras que atuaram na chamada Era Vargas. Ministros, parlamentares, secretários de governo… pessoas como, por exemplo, Oswaldo Aranha, Anísio Teixeira, Sousa Costa, José Maria Victer, enfim, todas aquelas figuras que atuaram no período começaram a doar os seus arquivos para cá. E, então, hoje temos aqui um grande acervo, são cerca de dois milhões de documentos que são recebidos a partir da constituição destes arquivos pessoais. A partir da década de 80 o acervo do CPDOC começou a se ampliar e a receber também outros tipos de documentos. Continuava sendo de homens públicos, enfim, é até uma linha que a gente mantém, mas o foco da Era Vargas se ampliou, o Regime Militar de 64 passou a ser também um outro ponto temático para catalisar acervos para serem doados. Então, dentro desta linha, um acervo importante é o do presidente Geisel, também há de outros militares, como Cordeiro de Farias, Muricica, e outras figuras políticas, como Tancredo Neves e Ulisses Guimarães. Depois, mais tarde, recebemos o do Lysâneas Maciel, e acabamos de receber o do Franco Montoro… Então, quer dizer, na verdade, atualmente esse acervo do CPDOC tem cerca de 190 arquivos, que são mais ou menos uns dois milhões de documentos. Esse material é recebido, organizado, catalogado, informatizado e disponibilizado para que o público possa consultá-lo livremente.

RTL – Hoje vive-se o ressurgimento da História Política. A Sra. pode falar, grosso modo, das razões desse ressurgimento e o que corresponde a essa nova História Política?

Marieta – Olha, sobre a História Política, algumas pessoas acham que ela nunca deixou de ter importância ou que ela sempre continuou existindo. Eu já escrevi vários artigos sobre isto, chamando a atenção para esse renascimento, vamos dizer assim, essa renovação, acho que, talvez, a palavra renovação seja mais adequada até que renascimento. Porque, na verdade, ela nunca deixou de ser feita, de ser praticada, só que ela era, primeiro, vista com uma dose de desconfiança e de desvalorização muito grande. E, além da posição pouco valorizada no conjunto da historiografia, ela também enfocava principalmente temas mais tradicionais, de uma maneira igualmente tradicional de produzir e de escrever a História Política. A partir dos anos 80, principalmente 90, houve uma renovação bastante grande nesse retorno da História Política. Isto ocorreu, principalmente na França, mas aqui no Brasil tivemos reflexos nisso e, junto com a História Política, também outras temáticas foram revalorizadas, retrabalhadas, como a questão das biografias, que também era um tema que durante muito tempo foi desvalorizado. Por que? Porque a história que recebia melhor avaliação era aquela que atuava em áreas que privilegiavam a história social, a história das grandes massas, a história dos oprimidos, a história dos chamados de baixo… e, quando a História Política começou a ser retrabalhada, ela começou a fazer também a história política dos vencidos, eu não gosto desta palavra, mas dessas camadas menos privilegiadas, mas, também, a história das elites, que era uma área meio problemática e passou a ser revitalizada. E, também, as biografias, o estudo das biografias coletivas, o estudo da memória política, dos usos políticos da memória, da cultura política, enfim, vários temas novos foram incorporados à História Política. Eu creio que hoje uma área muito interessante para você trabalhar a História Política de uma forma bastante inovadora é com a memória política e com esta questão que está muito em voga dos vultos políticos do passado, então, acho que traz efetivamente uma renovação para o campo.

Eu me lembro que quando eu entrei no doutorado, o meu projeto de ingresso era sobre partidos políticos e aquilo eu tinha um interesse enorme. Fiz uma longa introdução me justificando para dizer como a História Política era importante, como é que você podia estudar a História Política, qual a importância de estudar os partidos e, até algumas pessoas da banca me indagaram por quê eu não ia estudar Ciência Política, por quê eu não ia fazer um doutorado em Ciência Política… E eu disse, não, eu não sou cientista política, e nem quero adotar uma abordagem da Ciência Política. Eu quero adotar uma abordagem da História, e aí trabalhamos História Política dentro de novas perspectivas, com novas abordagens, introduzindo novos conceitos.

RTL – Sobre a História Oral, como é tratada pela academia como fonte de pesquisa para o historiador? Além disto, quais os cuidados que o historiador deve ter na utilização da História Oral, seja no aspecto da seleção dos entrevistados, seja na certificação das informações?

Marieta – Essa questão da História Oral é interessante, porque, para mim, foi uma experiência engraçada. Quando eu comecei a dar aula na Pós-Graduação da UFRJ, eu me lembro de uma das primeiras vezes que eu fui dar um curso sobre História Oral. Mas, como era uma coisa tão problemática entre os meus colegas, eu nem tive coragem de botar este nome, eu coloquei o nome de fontes orais para dar uma disfarçada. Por quê? Porque muitas pessoas falavam comigo, mas como você está mexendo com essa coisa de História Oral, esse negócio de entrevista é tudo fofoca, é tudo mentira… O que está embutido neste tipo de afirmação, neste tipo de avaliação? A crença que tem alguma fonte que fala a verdade. Então, você tem fonte que fala a verdade e tem fonte que fala mentira. Eu acho que isso é uma questão muito problemática, e que na atualidade poucos historiadores ainda mantém esse tipo de perspectiva. Por que o jornal ou os anais da câmara, ou as publicações oficiais, por que elas têm uma maior veracidade do que um depoimento oral? Até mesmo os números, qualquer fonte tem marcas de subjetividade e eu acho que a coisa mais importante é assumir que as fontes têm uma maior ou menor dose de subjetividade e se preparar para lidar com esta questão. Quer dizer, não é fingindo que a fonte não tem a subjetividade que você está garantindo uma maior veracidade nas suas pesquisas e uma maior objetividade. Então, eu acho que a questão é você enfrentar e, principalmente, se você trabalha com as fontes orais, com a História Oral, introduzindo a questão da memória, creio que existem instrumentos para, efetivamente, poder fazer uma avaliação do material. Primeiro, assumindo que qualquer memória ela tem esquecimentos, silêncios, distorções… e cabe ao pesquisador lidar com isto. Interpretar isto. Por que silenciou? Não é porque uma entrevista, um depoimento, ele silencia sobre um fato, que ele deixa de ser útil. Ou porque ele passou uma informação distorcida, ou omitiu alguma informação, ou exagerou na outra, o que você tem que fazer, efetivamente, como, alias, em qualquer fonte, você tem que ter um estudo sobre aquela conjuntura, você tem que ter um aprofundamento sobre a produção historiográfica relativa àquela temática, você tem que ter um conhecimento factual daquela conjuntura, para que efetivamente você possa deter os instrumentos de avaliação daquela fonte, mas isso eu acho que não é só em relação a fonte oral, eu acho que isso é em relação a qualquer outra fonte.

No que diz respeito à seleção dos depoentes, ou aos cuidados que você deve ter, eu acho que, realmente, o pesquisador tem que conhecer o seu campo de investigação. Tendo as suas questões, tendo o conhecimento aprofundado, ele tem como avaliar, estabelecer critérios de seleção, como também se tem que estabelecer critérios de seleção quando se vai fazer uma pesquisa em um jornal, ou quando se vai fazer uma pesquisa quantitativa, tem sempre que se ter critérios para selecionar, para recortar as suas fontes. Então, eu vejo que a História Oral é uma metodologia para, efetivamente, se produzir depoimentos de uma forma controlada sobre determinadas temáticas. Neste sentido, o depoimento que é produzido a partir da metodologia da História Oral é diferente de entrevistas que são produzidas de formas mais aleatórias, sejam entrevistas jornalísticas, sejam entrevistas de um pesquisador sobre uma temática, em que não se lança mão desses procedimentos metodológicos, que dão um conhecimento sobre o depoente, que vai ser entrevistado, sobre a temática sobre a qual ele vai perguntar.

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Lançamento do livro: “Bem traçadas linhas – a história do Brasil em cartas pessoais”

“Bem traçadas linhas – a história do Brasil em cartas pessoais”, o mais recente livro do historiador Renato Lemos, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, teve o seu lançamento no último dia 30 de novembro, na livraria Folha Seca, no Centro do Rio de Janeiro.

Renato Lemos

Renato Lemos

A publicação apresenta a correspondência epistolar de diversas gerações de artistas, políticos e intelectuais dos séculos XIX e XX. Encontram-se, por exemplo, missivas de Francisco Varnhagen para D. Pedro II, de Joaquim Nabuco para Machado de Assis, de Mário de Andrade a Luís da Câmara Cascudo, de Gilberto Freire para Oliveira Lima, de Anísio Teixeira para Monteiro Lobato, de Fernando Sabino para Clarice Lispector, entre outros.

As epístolas são apresentadas em ordem cronológica, de acordo com a data em que foram escritas, a partir da década de 1840 até 1996. Além disto, os autores são agrupados em gerações, sendo cada uma correspondente ao período usual de trinta anos.

Assim, a publicação, através das cartas, apresenta hábitos sociais, movimentos artísticos e, ainda, adventos relevantes à História do Brasil, como, por exemplo, a Guerra do Paraguai, o Tenentismo e a instalação do regime militar de 1964.

capa_linhas“Bem traçadas linhas – a história do Brasil em cartas pessoais”.
Autor: Renato Lemos
Editora: Bom Texto
Nº de páginas: 480
Formato: 16x23cm

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Ensino e vivências: as apreensões da história local no cotidiano da sala de aula

Texto de Anderson Fabrício Moreira Mendes

“É o saber da História como possibilidade e não como determinação. O mundo não é. O mundo está sendo. Como subjetividade curiosa, inteligente, interferidora na objetividade com que dialeticamente me relaciono, meu papel no mundo não é só o de quem constata o que ocorre, mas também o de quem intervém como sujeito de ocorrências. Não sou apenas objeto da História, mas seu sujeito igualmente. No mundo da História, da cultura, da política, constato não para me adaptar,mas para mudar”1.

Diante das adversidades que a educação tem enfrentado, a construção de um conhecimento dinâmico e motivador torna-se um desafio cada vez maior, porém, jamais intransponível. No que diz respeito ao ensino de história, uma das perguntas mais recorrentes entre os alunos é: para que estudar história? Essa questão, aparentemente simples, tem as suas raízes fincadas na universidade, onde os debates historiográficos, propulsores de novos conceitos, lançam nas mãos dos novos e inexperientes professores uma vasta gama de conhecimentos que se chocam com a realidade do ensino fundamental e médio.

As contradições entre teoria e prática, discurso e realidade levam o professor de história a se indagar sobre o seu papel em sala de aula e como fazer com que os conteúdos de sua matéria não sejam estranhos e distantes do mundo do aluno. A produção acadêmica desvinculada do ensino, o ambiente escolar, ainda com um arcabouço arcaico, o vasto conteúdo programático baseado em uma historiografia tradicional são problemas apontados pelos professores. Como, então, o ensino de história pode despertar e estimular o aluno?

Em meio a essas dificuldades na estrutura educacional vigente é preciso encontrar novos caminhos, que não seja o de uma adesão acrítica à ideologia neoliberal/conservadora, que impõe um ensino reprodutivista, onde “a história serve de legitimadora e justificadora do projeto político de dominação burguesa””2. Nem tampouco, limitar-se ao meio acadêmico como único centro de produção do conhecimento, instaurando dessa forma “a lógica do produto (o Grande Livro de História) e o monopólio da produção (os Grandes Historiadores) contra a possibilidade de o ensino de História ensejar a universalização dos produtores e o diálogo entre diferentes produções”.3

Na última década, alguns avanços são percebidos, na tentativa de elaborar propostas que articulem questões atuais ao conteúdo tradicional, a produção acadêmica interagindo com a sociedade, apreendendo e dialogando com o saber dos desconhecidos, aprendendo com suas vivências. Projetos que:

a. Pensam a escola como um espaço de renovação, o lugar onde tradições e idéias, possam ser discutidas e não simplesmente reproduzidas, buscando, por exemplo, na realidade dos alunos a própria experiência de classe, historicizando os conflitos, mostrando que os estudantes, como sujeitos ativos e não passivos da história, estão inseridos nesse debate e podem mudar e transformar a sua realidade;

b. Enxergam o professor como sujeito de seu tempo, capaz de apreender e criticar, individual ou coletivamente a sociedade em que se insere, propondo transformá-la, efetivamente, através de propostas político-pedagógicas e a partir da escola..4

Um conhecimento revolucionário, aberto ao novo, porque suas esperanças e expectativas não estão fundamentadas em um discurso utópico, distante do mundo concreto, mas na capacidade do ser humano que reflete sobre a sua própria limitação e é capaz de se libertar, através do exercício da ação modificadora da realidade, rompendo com o discurso conformista. Um “educar” comprometido com a formação de um Ser humano que não espera acontecer, cair do céu, “mas porque sabe, faz a hora” , a sua vez, como voz ativa na construção de um discurso contra hegemônico. O ensino de uma história viva e transformadora!

A história local, trazendo à tona acontecimentos, atores e lugares comuns ao estudante faz com que este se aproxime da disciplina, percebendo a relação dialética entre o passado desconhecido e o presente, tão próximo. Pode-se, a partir desse ponto, estabelecer uma problematização que estimule o aluno a sair da curiosidade ingênua, conduzindo-o a um conhecimento crítico da realidade, contribuindo para a construção de sua consciência histórica e o amadurecimento de sua cidadania.

O interesse pela história local surgiu a partir do curso de História Oral que fiz na Universidade Federal Fluminense, quando estava na graduação em 2002. Sob a orientação dos professores Ismênia de Lima Martins, Hebe Mattos e Paulo Knauss, trabalhei no levantamento histórico do bairro de São Lourenço, do século XVI aos dias atuais, através das fontes secundárias, com documentos do período colonial e imperial. E em um segundo momento, no 2º semestre de 2003, na condição de monitor de pesquisa das professoras Hebe de Mattos e Ismênia de Lima Martins, nas entrevistas com os moradores do Outeiro de São Lourenço, juntamente com os demais colegas da turma, o que proporcionou a produção de um material que tornou-se a base empírica da minha monografia de bacharelado.

 

O LOCAL E A CIDADE: SÃO LOURENÇO DOS ÍNDIOS E NITERÓI

Visto como primeiro núcleo de povoamento da região, surgido no período da expulsão dos franceses da Baía de Guanabara, no século XVI, o aldeamento de São Lourenço foi tornando-se cada vez mais, ao longo do desenvolvimento da região, um espaço marginal, insalubre e distante dos ideais de urbanização. Por seus problemas geográficos – um morro cercado por um mangue – e por questões sociais – área de índios, tornou-se uma região distante dos ideais europeus trazidos pela corte portuguesa, no século XIX, que influenciaram na disciplinarização do espaço e normas de convívio social5. Quando, em 1819, foi criada a Vila Real da Praia Grande, o plano de urbanização proposto não apresentava nenhuma continuidade territorial com a antiga aldeia de São Lourenço.

O bairro só sairá do anonimato, passando a fazer parte da história da “heróica e virtuosa cidade” , nas primeiras décadas do século XX, com as obras de urbanização da cidade, o aterro do mangue, o processo de tombamento da igreja de São Lourenço dos Índios, a discussão em torno da figura de Araribóia e a inserção, no calendário da cidade, da missa em comemoração a fundação de Niterói, celebrada naquela capela. Contudo, o reaparecimento do bairro revela o fim de um espaço indígena, logo, uma área ocupada por novos atores, imigrantes portugueses e espanhóis, em sua maioria, além de migrantes do interior do Estado e descendentes de escravos, que constroem uma nova relação com o espaço.

Ao abordar a história de São Lourenço, partindo de uma visão mais global, inserindo-a no contexto nacional e regional, a memória emerge como fio condutor, dando sentido aos acontecimentos históricos, encadeados nas páginas da municipalidade e no discurso dos desconhecidos moradores do outeiro.

O discurso oficial, construído pela municipalidade, conferiu à imagem do chefe terminó e sua aldeia um papel embrionário na construção da cidade. A imponente estátua no centro da cidade e o busto na praça do outeiro são pontos de contato que adquirem na memória consagrada uma simbologia rica, contudo, distante de uma cronologia exata e arraigada em um tempo mítico. Mito político que reconstrói a narrativa histórica de forma criativa, reestruturando o seu sentido, sendo um instrumento importante para consciência social. Não só Niterói elabora sua identidade, a partir das gloriosas vitórias dos terminós, liderados por seu bravo guerreiro, em apoio à causa do valente Capitão Estácio de Sá, mas expande-se, ao exalar na atmosfera nacional a conquista e consolidação do território para metrópole portuguesa, fincando em solo nativo as marcas da civilização européia, anunciando um novo tempo. Tempo que Niterói reivindica para si, como herdeira do notável passado, que se re-atualiza na história da profícua cidade, com olhar atento para o progresso. Espraia-se também no cotidiano dos anônimos de São Lourenço, na valorização do Morro, através do discurso histórico, que estes utilizam ao reclamarem as melhoras no seu espaço. Essa imaginária “organiza simbolicamente o tempo histórico dos homens da cidade, presentificando o passado, sacralizando-o em bases afetivas e inscrevendo-o na paisagem”6.

Núcleo de povoamento, baluarte de defesa da Guanabara, Vila Real, Cidade Imperial, Capital da Província, Cidade Invicta, Cidade Sorriso, “quarta cidade em qualidade de vida do Brasil” , Niterói, ao longo da história, passa por várias transformações – urbanas, econômicas, políticas e sociais – diversificando o seu espaço. Nesse processo, a cidade ideal esbarra nas contradições do mundo real: os problemas físicos que procuraram ser erradicados pelo saber médico-higienista e engenheiro-urbanista, buscando mudar a paisagem insalubre; o impacto da Revolta da Armada (1893) e da Revolta Popular – o famoso quebra-quebra das barcas (1959) – na estrutura urbana; os traumas causados pelas tragédias públicas, sendo o incêndio do circo (1961) o mais doloroso para a cidade. Todavia, o discurso do “progresso” maquila essa complexidade, configurada no espaço múltiplo, estruturando e reestruturando uma memória oficial que valoriza a cidade moderna, ancorada no virtuoso passado, imortalizado nos lugares de memória. Cidade de identidade plural, percebida pelo exame cuidadoso do imaginário urbano – fio simbólico que une e dá forma ao tecido das representações e dos significados ao longo de sua história.

 

OS ANÔNIMOS CONTAM A HISTÓRIA

A memória oficial, construída ao longo da história da cidade de Niterói, vinculando o espaço do morro de São Lourenço, no universo da imaginária urbana, não é rejeitada ou refutada pelos moradores do local, ao contrário, reforça a identidade comunitária, que se apropria desta, projetando o outeiro para além de suas fronteiras naturais, definidas e reafirmadas, em relação ao morro da Boa Vista e a favela do Sabão, comunidades inseridas dentro do mesmo bairro. A comunidade residente no outeiro, consciente da historicidade do espaço, diferencia-se das demais, tidas como espaços marginais e destituídas do mesmo significado histórico. O grandioso passado reveste o território de uma rica simbologia, revelando uma dimensão mítica, que não falseia ou inventa os acontecimentos, todavia torna-os emblemáticos, ampliando o seu significado. Vincula-se, dessa forma, o local, ao regional e ao nacional.

Vivências e experiências relatadas no cotidiano associam as representações do passado com a dinâmica do presente, relacionando dialeticamente o anterior, o tempo de Araribóia e o posterior, o tempo atual dos orgulhosos moradores locais. O projeto7 apreendido na construção dessa memória coletiva usa a lembrança das virtuosas batalhas indígenas, aspecto desbravador do aldeamento e os vestígios materiais desse outro tempo, esquecendo-se, contudo, de qualquer outra ligação com essa cultura do passado. Da mesma forma a cidade usa a figura de Araribóia para projetar-se na conjuntura nacional, contudo, o outeiro no dia a dia da Niterói do futuro, é colocado na galeria de um longínquo passado, distanciado e inscrito nas empoeiradas páginas das efemérides da cidade. Páginas remexidas e sacudidas pela voz da comunidade que re-atualiza a memória, ritualizada na Festa de São Lourenço, festa popular e religiosa realizada pela comunidade no dia 10 de agosto, e a Festa de Fundação da Cidade, promovida pela prefeitura no dia 22 de novembro, que marcam a especificidade desse pitoresco espaço8.

 

A HISTÓRIA LOCAL NO COTIDIANO ESCOLAR: SÃO LOURENÇO E O COLÉGIO ESTADUAL BRIGADEIRO CASTRIOTO

Entender a história do bairro e da cidade através dos personagens vivos e ativos da comunidade faz com que a análise historiográfica esteja aberta às experiências humanas e as transformações sociais sejam apreendidas com mais profundidade. Da mesma forma, a vivência dos alunos no cotidiano da sala de aula, atualiza o debate histórico. Por isso, nada mais propício do que trabalhar a história do bairro em um colégio da rede estadual, nele inserido. O CEBRIC (Colégio Estadual Brigadeiro Castrioto), estabelecido no bairro desde a década de 1970, atualmente, procura se adequar aos parâmetros curriculares, mas depara-se com algumas dificuldades. Uma das diretoras, Sônia Regina Fontes Coutinho, ocupando esta função há oito anos, traça um perfil do ambiente escolar ressaltando os seguintes pontos:

a. Uma grande parte do corpo discente é composta por moradores de fora da comunidade, muitos, inclusive de São Gonçalo;

b. A maioria dos alunos, principalmente na última década, vem de escolas municipais, que têm o sistema de aprovação automática, fazendo com que os estudantes matriculados na 5ª série do Ensino Fundamental e no 1º ano do Ensino Médio, essas séries em especial, apresentem uma grande dificuldade de aprendizado na leitura e na escrita. O perfil desse aluno leva o colégio a buscar um caminho intermediário, onde haja uma adaptação de ambos os lados, o que muita das vezes faz com que a qualidade do ensino fique prejudicada. As professoras de História Claudia Maria Correia e Estela Ferreira Faria também destacam um desinteresse geral dos estudantes, o que a diretora encara como uma auto-estima muito baixa.

c. Uma grande parte dos professores, antigos na escola, utilizam um sistema tradicional de avaliação que não se adequa a realidade do aluno. O processo de aprendizagem fica comprometido, pois os educadores não conseguem atualizar-se, devido à pesada carga horária e a omissão do próprio Estado, na concretização de políticas que promovam cursos de especialização. Quando conseguem fazer algum curso, se deparam com a inviabilidade de executar seus projetos, entravados pela infraestrutura da escola arcaica e tradicional.

d. Por sua vez, as atividades extraclasses dinamizam a vida escolar. Projetos como a “Escola para além dos muros”. Uma parceria com a Universidade Federal Fluminense, aonde os alunos vão para os Espaço de Ciências e aprendem com os laboratórios e oficinas; “Jovens Talentos” – um convênio com a Fundação CECIERJ (Fundação Centro de Ciências e Educação Superior à Distância do Rio de Janeiro), ligado à FAPERJ (Fundação Carlos Chagas Filho de Ampara à Pesquisa do Rio de Janeiro), onde os melhores alunos do 2º ano do ensino médio são encaminhados para aprender com professores universitários em seus trabalhos de pesquisa. Dentro da escola também funciona uma oficina de reciclagem de papel.

e. Apesar de destacar uma ligação mais estreita com a Universidade Federal Fluminense, a diretora, também professora de história, ressalta que até hoje não conseguiu nenhum contato com o Departamento de História dessa universidade, nenhum projeto e lamenta estar tão próxima de um dos melhores cursos de História do país e não conseguir nenhum benefício para escola nessa área.

Os problemas apontados no cotidiano da escola são comuns a outras realidades espalhadas por todo país. Contudo, o CEBRIC tenta superar as dificuldades investindo em atividades fora da sala de aula, sendo receptivo a qualquer medida que contribua para melhora no ambiente escolar. Logo, o contato com a escola foi extremamente proveitoso. A escola colocou-se à disposição, entendendo a importância da pesquisa e sua relevância para o estudante.

Os professores de história, nas entrevistas, salientaram que por meio do conhecimento da localidade, de um espaço comum aos alunos seria muito mais prático passar os conceitos históricos, pois estes apreenderiam com muito mais facilidade os demais conteúdos da matéria a partir de uma realidade histórica que se aproximasse de seu cotidiano. O estudante a partir de então, veria a sua localidade, ou a localidade onde está situada sua escola, de uma outra forma. Deram sugestões como: trabalhar o material da pesquisa através de resumos de textos em sala de aula, onde os próprios professores, associando a novidade à proposta de uma História Integrada, atuariam com uma dinâmica mais agradável partindo do local ao internacional e vice-versa, como por exemplo, as guerras no Rio de Janeiro para expulsar os franceses – que não se submetiam às regras do Tratado de Tordesilhas – fato que causou a fundação da Aldeia de São Lourenço dos Índios; estimular a interdisciplinaridade por meio de oficinas de teatro; e passeios pelo bairro para melhor apreensão da diversidade cultural e temporal.

A Direção destaca ainda, que o conhecimento histórico da localidade é essencial para levantar a auto-estima desse estudante, tão desestimulado, pois conhecer o seu meio social, também é uma forma de conhecer-se e entender que a sociedade e o homem estão sempre em transformação. Transformação que leva a uma reflexão sobre a realidade atual e que medidas seriam possíveis para mudar e romper com as dificuldades sociais, políticas e econômicas do cotidiano.

O primeiro contato com os alunos foi através de uma palestra, onde a história do bairro foi apresentada de uma forma mais geral. Os alunos foram participativos, debatendo, intervindo, revelando um interesse pelo conteúdo histórico, visto, anteriormente, tão distante e tão estranho. Consciência histórica que se despertou a partir do entendimento da própria história contada pelos moradores do outeiro de São Lourenço. Entende-se, portanto, que o conhecimento histórico não deve ser privilégio dos acadêmicos ou dos professores, mas construído por todos, refletido e estimulado no contexto da sala de aula.

Temas como a colonização do Brasil, a questão indígena, nacionalidade, podem ser trabalhados no dia a dia da sala de aula, em oficinas com jornais, revistas, fontes primárias e imagens. A interdisciplinaridade também está implícita no projeto podendo fazer contato com a Literatura, por meio da história da capela em estilo barroco e do Auto de São Lourenço, através das mudanças no espaço está ligado à Geografia e, até mesmo a biologia por meio do estudo do meio ambiente. Enfim, abre-se um leque de oportunidades para escola, onde o aluno através do conhecimento do seu meio adquire um olhar crítico e uma postura diferente diante dos problemas do bairro que afetam não só a comunidade residente, mas a própria escola.

Estas foram as primeiras atividades do projeto que pretende, acima de tudo, contribuir para o crescimento do aluno enquanto cidadão, entendendo o seu espaço, sua história e colocando-se como um sujeito ativo e participativo, não conformado com a realidade adversa.

Mesmo sendo um exemplo pontual, pode-se perceber as possibilidades de integração universidade-sociedade, através de um curso de História Oral: articula-se com setores da comunidade relativos ao tema de estudo; dá voz aos agentes ignorados pela história oficial; sistematiza esse conhecimento e junto com as demais fontes existentes, problematiza e desenvolve um trabalho de pesquisa; retorna à mesma comunidade, disponibilizando à escola do bairro um material útil e relevante para o ensino da história local, revelando aos estudantes a dinâmica e a diversidade do processo de modificação e estruturação do espaço, que não é dado, mas construído; estimula a comunidade a reivindicar melhoras para o seu espaço; reflete sobre a aplicação do conhecimento no campo do ensino, o que contribui para o amadurecimento da pesquisa; e revela que o ensino da história local, por meio de medidas de amplo alcance, debates e discussões, pode viabilizar medidas pedagógicas que vão além da escola local e do próprio bairro.

Um ensino de história que não se restringe à academia, mas que está aberto ao debate com a sociedade, construindo-se e reconstruindo-se no ambiente escolar, ouvindo o aluno e percebendo o seu meio. Pensando, refletindo, intervindo sem jamais se entregar a um discurso fatalista. História local que não se restringe ao nome de ruas, personagens importantes ou datas comemorativas, mas que insere o aluno em um contexto histórico que lhe é comum, relacionado com toda uma conjuntura nacional e internacional. Aprendendo a partir do que está mais próximo, problematizando situações diárias na vida do estudante e inserindo-as na dinâmica de um contexto histórico mais amplo, o professor consegue não só estimular o aluno a entender a história, vendo a disciplina como algo relevante, mas motiva-o a interagir na construção e elaboração do conhecimento, através do diálogo democrático e de uma ação efetiva que o conduza a conscientização de sua cidadania.

 

NOTAS

01 – FREIRE, Paulo. PEDAGOGIA DA AUTONOMIA. São Paulo, Paz e Terra, 1996, pp. 85,86.

02 – NADDAI, Elza. O Ensino de História e a ‘Pedagogia do Cidadão’. In: O ENSINO DE HISTÓRIA E A CRIAÇÃO DO FATO. São Paulo, Contexto, 2004.

03 – SILVA, Marcos A. Ensino de História, Exclusão Social e Cidadania Cultural – Contra o horror pedagógico. In: A MEMÓRIA DO ENSINO DE HISTÓRIA. Santa Cruz do Sul, EDUNISC/ ANPUH, 2000. p.117.

04 – HELFER, Nadir Emma. A memória do ensino de História. In: A MEMÓRIA DO ENSINO DE HISTÓRIA. Santa Cruz do Sul, EDUNISC/ ANPUH, 2000.

05 – CAMPOS, Maristela Chicharo de. RISCANDO O SOLO.: O PRIMEIRO PLANO DE EDIFICAÇÃO PARA A VILA REAL DA PRAIA GRANDE. Niterói, RJ. Niterói Livros, 1998.

06 – KNAUSS, Paulo. Introdução. In: SORRISO DA CIDADE. SORRISO DA CIDADE – IMAGENS URBANAS E HISTÓRIA POLÍTICA DE NITERÓI. Niterói, RJ. Niterói: Fundação de Arte de Nierói, 2003.p. 11.

07 – VELHO, Gilberto. Memória, Identidade e Projeto. REVISTA TB, nº 95, p. 119-126, out/dez. 1988.

08 – Foram realizadas várias entrevistas com os moradores do Outeiro de São Lourenço no período de dezembro de 2003. Este material está organizado no Laboratório de História Oral e Imagem (LABHOI) da Universidade Federal Fluminense.

 

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