A reforma da previdência de 1998 como consequência da construção do discurso hegemônico pró-neoliberalismo

Por Helena Wagner Lourenço Ferreira

(Doutoranda no PPGH/UERJ-FFP, mesmo programa no qual a autora defendeu a dissertação “O papel dos partidos políticos nas reformas da previdência de 1998 e 2003“)

 

Construção de um discurso hegemônico

 

Antonio Gramsci ensina que a dominação não está apenas no campo da coerção, ou seja, do uso da violência, mas também se utiliza da produção de consenso, formando ambas, coerção+consenso a hegemonia. Dessa forma, pode-se verificar que a reforma da previdência ocorrida em 1998 houve a utilização de coerção e consenso. Através de um processo de convencimento, feito de maneira processual, a mesma foi aceita pela sociedade, embora tratando-se de retirada de direitos conquistados pois, segundo Cox, “a hegemonia é suficiente para garantir o comportamento submisso da maioria das pessoas durante a maior parte do tempo” (COX, 2007, p.105).

 

Diante disso, Gramsci trabalha com a ideia de Estado Ampliado, ou seja, sociedade civil mais sociedade política, isto é, hegemonia revestida de coerção, não identificando, portanto, o Estado apenas como um aparelho repressivo. Assim, a hegemonia não é construída só a partir do consenso, mas também a partir da coerção. Coutinho explica

 

O Estado em sentido amplo, “com novas determinações”, comporta duas esferas principais: a sociedade política (que Gramsci também chama de “Estado em sentido estrito” ou de “Estado-coerção”), que é formada pelo conjunto dos mecanismos através dos quais a classe dominante detém o monopólio legal da repressão e da violência […] e a sociedade civil, formada precisamente pelo conjunto das organizações responsáveis pela elaboração e/ou difusão das ideologias, compreendendo o sistema escolar, as igrejas, os partidos políticos, os sindicatos, as organizações profissionais, a organização material da cultura (revistas, jornais, editoras, meios de comunicação de massa), etc (COUTINHO, 1999, p. 76 e 77).

 

No intuito de construir a hegemonia, os partidos políticos têm o papel de moldarem as opiniões do proletariado, formando uma vontade coletiva, os fazendo crer que será melhor para eles apoiar aquilo que os partidos querem, ainda que seja a diminuição dos seus direitos conquistados pela Constituição do Brasil de 1988. De acordo com Marinho,

 

Ao partido caberá a “formação de uma vontade coletiva nacional-popular,da qual (…) é ao mesmo tempo o organizador e expressão ativa e atuante” e também a missão de preparar a “reforma intelectual e moral” (MARINHO, 2006, p. 58)

 

Essas ideias não são revolucionárias, mas têm origem no país que estabelece a hegemonia, conforme afirmado por Cox

 

o grupo portador de novas idéias não é um grupo social autóctone ativamente engajado em construir uma nova base econômica com uma nova estrutura de relações sociais. É um estrato intelectual que aproveita idéias originadas de uma revolução econômica e social ocorrida anteriormente no estrangeiro […] em geral, as instituições e regras internacionais se originam do Estado que estabalece a hegemonia (COX, p. 115 e 119)

 

Neto também corrobora esse entendimento

 

[…] a imposição para a adoção da mesma cartilha [neoliberal] veio quase sempre de fora. Mas, encontrou no interior das nações lideranças classistas dispostas a adotar pontos do receituário neoliberal que se adequavam aos seus interesses. Este foi o caso do Brasil (ALMEIDA, 2012, p. 144)

 

Dessa forma, aos poucos, a classe operária passa a ser a favor de privatizações, neoliberalismo, reformas tributárias, trabalhistas, previdenciárias, sem perceber que, na verdade, as mudanças prejudicam a sua classe, interessando, apenas, à classe dominante. De acordo com Gramsci,

 

As ideias e opiniões não “nascem” espontanemanete no cérebro de cada indivíduo: tiveram um centro de formação, de irradiação, de difusão, de persuasão, um grupo de homens ou inclusive uma individualidade que as elaborou e apresentou sob a forma política de atualidade (GRAMSCI, 1989, p. 88).

 

Segundo esse autor, o convencimento da sociedade a algo se completa através do trabalho dos “aparelhos privados de hegemonia”. Ou seja, utilização de jornais, revistas, escolas, que realizam uma reforma intelectual na população, fazendo com que esta passe a querer aquilo que esses aparelhos desejam. Pois,

 

a elaboração nacional unitária de uma consciência coletiva homogênea requer múltiplas condições e iniciativas. A difusão, por um centro homogêneo, de um modo de pensar e de agir homogêneo é a condição principal […] (GRAMSCI, 2001, p. 205)

 

Em que pese esses veículos se apresentarem como “neutros”, na verdade eles funcionam como partidos, não no sentindo stricto da palavra, mas no sentido lato de “ter um lado”, não sendo imparcial, mas trabalhando para convencer o interlocutor. Assim, Marinho declara que

 

Antonio Gramsci distingue duas formas de partido: o político e o ideológico. O partido ideológico está dentro do conjunto dos aparelhos privados de hegemonia – imprensa, círculos, associações, clubes. O partido tende a transformar cada indivíduo em intelectual, mais especificamente em dirigente, ou seja, intelectual capaz de desempenhar sua “função diretiva e organizativa, isto é, educativa ou intelectual” (MARINHO, 2006, p. 69)

 

A esse respeito, Coutinho conceitua “aparelhos privados de hegemonia” como “organismos de participação política aos quais se adere voluntariamente (e, por isso, “privados”) e que não se caracterizam pelo uso da repressão” (COUTINHO, 1999, p. 76). Ou seja, são privados, mas são voltadas ao interesse público, se dirigindo a este, possuindo função pública, se tornando um formador de opinião.

 

Esses aparelhos declaram que se, por exemplo, o neoliberalismo e as reformas previdenciárias forem implementadas, haverá crescimento econômico, combate à miséria, progresso, os recursos remanescentes serão distribuídos para outras áreas, como saúde e educação, porque a sua finalidade é moldar na sociedade a opinião de que a reforma da previdência, por exemplo, é boa e necessária. Pois,

 

[…] sua finalidade é modificar a opinião média de uma determinada sociedade, criticando, sugerindo, ironizando, corrigindo, renovando e, em última instância, introduzindo “novos lugares-comuns” (GRAMSCI, 2001, p. 208)

 

Fernando Henrique Cardoso, afirmou

 

A parceria com a iniciativa privada na infra-estrutura econômica abre espaço para que o Estado invista mais naquilo que é essencial:  em saúde, em educação, em cultura, em segurança. Em suma, para que o Brasil invista mais no seu povo […] (CARDOSO, 1994, p. 21)

 

E, em seu discurso de posse, em 1995 declarou a necessidade da utilização dos aparelhos privados de hegemonia,

 

esta verdadeira revolução social e de mentalidade só irá acontecer com o concurso da sociedade […] precisamos costurar novas formas de participação da sociedade no processo das mudanças. Parte fundamental dessa tomada de consciência, dessa reivindicação cidadã e dessa mobilização vai depender dos meios de comunicação de massa (CARDOSO, 1995, p. 23)

 

E, diante desse trabalho, aos poucos, os cidadãos vão se convencendo do discurso que a classe dominante quer, atuando como uma “massa de manobra”. De acordo com Gramsci,

 

A massa é simplesmente de “manobra” e é “conquistada” com pregações morais, estímulos sentimentais, mitos messiânicos de expectativa de idades fabulosas, nas quais todas as contradições e misérias do presente serão automaticamente resolvidas e sanadas (GRAMSCI, 1989, p. 24)

 

Como já exposto, os jornais são aparelhos privados de hegemonia, atuando para a construção da mentalidade do proletariado de que a reforma da previdência se fazia necessária e urgente. No entanto, isso não impede que o historiador problematize os fatos e vários ângulos da notícia, podendo, esses periódicos serem utilizados como fontes de pesquisa. Por essa razão, algumas reportagens da Folha de São Paulo serão utilizadas no presente trabalho.

 

O PSDB, através do então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, atuou como um verdadeiro partido político, sendo líder da construção do discurso hegemônico pró-neoliberalismo, que culminou em privatizações e, também, na reforma da previdência iniciada em 1995. Durante toda a sua campanha eleitoral, o assunto era o orçamento apertado, o desequilíbrio financeiro do setor público, falência do modelo previdenciário, necessidade de diversas reformas constitucionais, disseminando o medo, levando a população a crer que se não fossem realizadas mudanças urgentes na Constituição não haveria dinheiro para pagar aposentadoria, inexistiria possibilidade de aumento do salário mínimo, etc. Em seu discurso de posse FHC declarou

 

Ao escolher a mim para sucedê-lo [Itamar Franco], a maioria absoluta dos brasileiros fez uma opção pela continuidade do Plano Real, e pelas reformas estruturais necessárias para afastar de uma vez por todas o fantasma da inflação. A isto eu me dedicarei com toda a energia, como presidente […]

o movimento por reformas que eu represento não é contra ninguém. Não quer dividir a Nação. Quer uni-la em torno da perspectiva de um amanhã melhor para todos.

 

Ainda no mesmo discurso, a questão do convencimento consta também na fala de FHC:

 

buscando sempre os caminhos do diálogo e do convencimento […] temos o apoio da sociedade para mudar (CARDOSO, 1995, p. 13)

 

E, em outro discurso, fica clara a disseminação de que se não houver reforma constitucional haverá o desequilíbrio do sistema e impossibilidade de pagamentos e aumento do salário mínimo, causando medo na população, convencendo-na da necessidade das mudanças:

 

O Fundo Social de Emergência […] é um arranjo transitório […] se ele não for substituído por medidas permanentes, o precário equilíbrio fiscal – ou o “desequilibrio controlado” como diz o ministro Sérgio Cutollo sobre as contas da Previdência – dará lugar a um desequilíbrio aberto já em 96 […] Nem há como pensar em aumento real do salário mínimo enquanto o valor dos benefícios previdenciários estiver vinculado a ele (CARDOSO, 1994, p. 24 e 30)

 

No entanto, na contramão da argumentação presidencial, o Tribunal de Contas da União (TCU) realizou auditoria nas contas da previdência e em abril de 1995 declarou, através de relatório, que em 1994 a previdência não teve déficit, mas sim, um superávit de R$ 1,8 bilhão de reais e ainda que “o INSS vem tendo superávit de caixa nos últimos três anos”( O Globo, 18. abr. 1995, p. 5). Após esse relatório, o ministro da previdência, Reinhold Stephanes (PFL), informou que esse valor é considerado reserva de caixa(Ibid, 1995, p. 5). Ou seja, em nenhum momento o ministro confrontou a informação trazida pelo TCU, o que leva a crer que de fato havia superávit e não déficit no sistema em questão, ao menos em 1994, permitindo-se, portanto, concluir a respeito da ausência de necessidade da reforma.

 

E  ainda, apesar do aumento do salário mínimo e, consequentemente, a elevação do valor das aposentadorias e pensões, o secretário-executivo da Previdência, Luciano Oliva, declarou que a Previdência Social terá superávit em 1995 e não déficit (O Globo, 31mai. 1995, p. 7), o que, mais uma vez, corrobora o relatório do TCU. Tudo leva a crer que FHC assumiu o poder Executivo sem déficit no sistema previdenciário, sem necessidade de reforma, mas devido à imposição da construção da hegemonia neoliberal, realizou a mudança no sistema previdenciário, prejudicando a classe dominada, ou seja, a classe mais desfavorecida, como os trabalhadores.

 

Discurso hegemônico pró-neoliberalismo em âmbito internacional

 

A construção de um discurso hegemônico pró-neoliberalismo não ocorreu apenas em âmbito nacional, mas também a nível internacional. As organizações multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial também são utilizadas como aparelhos privados de hegemonia, sendo usados pelos Estados Unidos para que os países subalternos implantassem a nova ordem internacional. Dessa forma, nas décadas de 1950 a 1980, os países da América Latina se desenvolviam através de financiamento a juros baixos. No entanto, tendo em vista a segunda crise do petróleo, ocorrida em 1979, houve o aumento dos juros impostos pelo FED (Banco Central dos Estados Unidos), como uma política de defesa do dólar, que foi acompanhado por diversos outros países, como a Inglaterra.

 

Devido ao aumento dos juros, os países em desenvolvimento que haviam realizado empréstimos tiveram dificuldades para honrar com os seus pagamentos, ocorrendo aumento da inflação, queda de renda, aumento do desemprego e, em 1982, o México declarou moratória. Ou seja, estava-se diante da chamada “crise da dívida externa”. Belluzzo e Galipolo afirmam:

 

Em Belgrado, na reunião do FMI em 1979, o presidente do FED – o Banco Central americano – Paul Volcker, deixou os europeus falando sozinhos, voltou para os Estados Unidos e deflagrou o famoso choque de juros de outubro de 1979, alçado até 20% em abril de 1980 e provocando uma quebradeira geral, sobretudo dos endividados, como o Brasil (BELUZZO, 2017, p. 27)

 

Diante desse cenário, os países recorreram a empréstimos junto ao FMI (instituição pública, mantida através do financiamento e voto de seus países membros, onde apenas os Estados Unidos tem poder de veto, dando a este país extrema vantagem diante dos outros).  Quanto a isso Stiglitz expõe que,

 

O FMI é uma instituição pública, mantida com dinheiro fornecido pelos contribuintes do mundo todo. É importante lembrar disso porque o Fundo não se reporta diretamente nem aos cidadãos que o financiam nem àqueles cuja vida ele afeta. Em vez disso, reporta-se aos ministros da fazenda e aos bancos centrais dos governos do mundo […] mas as principais nações desenvolvidas comandam o espetáculo, sendo que somente um país, os estados Unidos, tem poder de veto (STIGLITZ, 2003, p. 39)

 

Esses empréstimos vinham acompanhados de exigência do cumprimento de algumas condições, como ajuste fiscal, diminuição da máquina do Estado, privatizações e, segundo o referido autor, quem “não seguir as regras do jogo, pode ser excluído do sistema de crédito internacional” (SCHWARTZ, 2008, P. 257), não permitindo ao país receptor da ajuda financeira governar a sua nação implantando as medidas que ache cabíveis. Em vez disso, a política econômica a ser colocada em prática já está pré-determinada pela hegemonia do capital financeiro. Dessa forma, o FMI foi usado como uma forma de universalizar o discurso hegemônico e impor o modelo econômico neoliberal aos países endividados. Verifica-se que

 

No nível exclusivo da política externa, as grandes potências têm uma liberdade relativa de determinar suas políticas externas em resposta a interesses nacionais; as potências menores têm menos autonomia. A vida econômica das nações subordinadas é invadida pela vida econômica de nações poderosas […] o Estado dominante encarrega-se de garantir a aquiescencia de outros Estados de acordo com uma hierarquia de poderes na interior da estrutura de hegemonia entre os Estados (COX, 2007, p. 114 e 120)

 

Pontua-se, ainda, que em 1989 ocorreu o Consenso de Washington que consistiu em um seminário com representantes de instituições financeiras como o FMI, Banco Mundial e o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, no intuito de “ajudar” a economia dos países em desenvolvimento, para que estes conseguissem arcar com os seus compromissos financeiros. Ou seja, na verdade, o intuito da reuinão foi impedir que os bancos privados recebessem um calote e o sistema financeiro internacional sofresse prejuízo. Nessa encontro, ficou determinado que os países ajudados financeiramente deveriam implementar dez medidas: disciplina fiscal, redução dos gastos públicos, reforma tributária, determinação de juros e câmbio pelo mercado, liberalização do comércio, investimento estrangeiro direto sem nenhuma restrição, privatização das empresas estatais, desregulamentação e respeito à propriedade intelectual. A respeito do assunto Rafael Vaz da Motta Brandão afirma que

 

[…] o congresso realizado na capital dos EUA, permitiu a elaboração de um conjunto de medidas neoliberais que deveriam ser seguidas pelos países da América Latina em troca da continuidade do financiamento por parte das agências e organismos internacionais (FMI e Banco Mundial). A esse conjunto de medidas deu-se o nome de “consenso de Washington”. Basicamente, podemos afirmar que o consenso de Washington fazia pate de amplo conjunto de reformas neoliberais que estava centrado na desregulação dos mercados, na abertura comercial, na liberalização dos fluxos de capitais, em uma rigorosa política monetária e fiscal e, fundamentalmente, na redução do papel do Estado nos países latino-americanos (BRANDÃO, 2013, p. 61).

 

Verifica-se que as “orientações”, em termos práticos, não passavam de verdadeiras imposições, construindo-se um discurso hegemônico mundial a favor de contrarreformas, ou seja, mudanças contrárias aos interesses da classe trabalhadora, transformando esse padrão em um modelo a ser imposto aos países latino-americanos. A esse respeito Cox afirma

 

[…] uma hegemonia mundial é, em seus primórdios, uma expansão para o exterior da hegemonia interna (nacional) estabelecida por uma classe social dominante. As instituições econômicas e sociais, a cultura e a tecnologia associadas a essa hegemonia nacional tornam-se modelos a serem imitados no exterior. Essa hegemonia expansiva é imposta aos países mais periféricos como uma revolução passiva (COX, 2007, p. 118)

 

Vale ressaltar que, segundo Stigliz, essas instituições são controladas pelos interesses dos países industrializados mais ricos do mundo, onde opera a hegemonia do capital financeiro, não representando, portanto, as pretensões dos países que são obrigados a realizarem as reformas estruturais em troca de benefício financeiro. Nas palavras de Stiglitz:

 

As instituições são controladas não só pelos países industrializados mais ricos do mundo, mas também pelos interesses comerciais e financeiros desses países […] embora quase todas as atividades atuais do FMI e do Banco Mundial sejam no mundo em desenvolvimento (com certeza, todas relativas a empréstimos), elas são conduzidas por representantes das nações industrializadas (por acordo tácito ou de praxe, o diretor do FMI é sempre europeu e o diretor do Banco Mundial, norte-americano). Eles são escolhidos a portas fechadas e nunca foi considerado pré-requisito  que esse profissional tenha qualquer experiência no mundo em desenvolvimento. As instituições não são representativas das nações a que servem […] A instituição, na verdade, não tem a pretensão de ser uma especialista em desenvolvimento STIGLITZ, 2003, p. 46 e 63)

 

Desta forma, verifica-se que os Estados Unidos, utilizando essas organizações como instrumento de poder, como meio de disseminação de hegemonia, determina a política que será implantada nos outros países, que, juntamente com governos classistas, facilita a imposição da hegemonia que os Estados Unidos quer. Segundo Cox

 

As instituições internacionais também desempenham um papel ideológico. Elas ajudam a definir diretrizes políticas para os Estados e a legitimar certas instituições e práticas no plano nacional, refletindo orientações favoráveis às forças sociais e econômicas dominantes (COX, 2007, p. 120)

 

Diante disso, é notória a rendição do Brasil a essas instituições financeiras, basta verificar a quantidade de empréstimos que o então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, conseguiu junto ao FMI. Segundo o jornal Folha de São Paulo

 

FHC fechou três acordos com o FMI […]Durante o governo Fernando Henrique Cardoso, foram fechados outros dois acordos com o FMI […] o primeiro, foi fechado em novembro de 1998 […] o acordo fechado em novembro de 1998 previa metas de ajuste fiscal até o final de 2001. Foram definidas metas de superávits primários (receitas menos despesas sem incluir despesas com juros) a cada trimestre e todas foram cumpridas. A cada revisão do acordo, feita pela missão técnica do FMI, o país tinha direito a um novo saque dos recursos disponibilizados. O Brasil não chegou a sacar todos os recursos a que tinha direito nesse acordo. Apesar disso, em setembro de 2001[…] as turbulências do mercado internacional […] forçaram o governo brasileiro a assinar um novo acordo com o Fundo. Esse novo acordo […] cancelou o crédito restante do acordo de 1998 […] o governo brasileiro teve que recorrer ao FMI em junho [do ano de 2002] (Folha de São Paulo, 07 ago. 2002).

 

Após emprestar o dinheiro e definir as metas, o FMI realiza visitas para verificar se estas estão sendo cumpridas. É possível perceber que todas as medidas impostas pelo Fundo foram cumpridas durante o governo mencionado. Se elas não haviam sido satisfeitas, não seria viável os recebimentos posteriores, pois “se um país não puder apresentar um número mínimo de parâmetros, o FMI suspende a ajuda e, geralmente quando o faz, outros doadores também o fazem” (STIGLITZ, 2003, p. 56).  Além disso, segundo Brandão, “o maior doador da campanha de FHC em 1998 foi o grupo Itaú” (BRANDÃO, 2003, p. 107), demonstrando como o governo brasileiro estava “jogando o jogo” dos interesses dos bancos e do sistema financeiro internacional, não governando conforme os interesses da população, se permitindo ser refém da imposição do discurso hegemônico pró-neoliberalismo.

 

Ao se construir o discurso pró-neoliberalismo, no século XX, as promessas eram de crescimento econômico, progresso, combate à miséria, mas não foram cumpridas. O que se viu em diversos países foi aumento do desemprego, crises financeiras cada vez mais frequentes, elevação da pobreza, conforme apontado por Stigliz.

 

Pode-se até considerar que o neoliberalismo foi bem sucedido no que diz respeito à redução da inflação, trazendo uma estabilidade macroeconômica, de uma maneira geral, aos países que o implementaram. Contudo, o preço que a sociedade paga por esse benefício é bem caro, pois, o resultado dessas implementações de medidas de caráter liberal tem sido retirada de direitos, através de contrarreformas tributárias, trabalhistas, previdenciárias, privatizações, aumento do desemprego, desigualdade, pobreza, caos político e social, recessão, redução de gastos sociais, segundo Pires. No entanto, nada disso atinge negativamente o sistema financeiro porque,

 

Partindo do pressuposto de que só o capital concentrado cria riquezas, isto é, aumento de capital significa investimentos, o desemprego, ou melhor, a taxa natural de desemprego, que faz diminuir os salários, garante maior taxa de lucro e, portanto, maior acumulação de capital. Desta forma, o desemprego não é uma consequência indesejada da economia neoliberal, mas um de seus componentes estratégicos (PIRES, 1999, p. 43).

 

E Varoufakis completa

 

É como se as sociedades capitalistas fossem desenhadas para gerar crises periódicas, que vão piorando na medida em que retiram o trabalho humano do processo de produção e o pensamento crítico do debate público (VAROUFAKIS, 2017, p. 48).

 

Conclusão

 

Diante do exposto, verifica-se que Gramsci entende que o discurso hegemônico é construído através de coerção e consenso. Através da atuação dos partidos políticos, reafirmados pela utilização dos aparelhos privados de hegemonia, ocorre uma reforma intelectual na classe subalterna e esta, por sua vez, passa a querer aquilo que a classe dominante deseja, se comportando como uma massa de manobra.

 

Dessa forma, a classe dominada passa a ser a favor de privatizações, contrarreformas, neoliberalismo, etc, sem perceber que essas mudanças só os prejudicam, pois retiram direitos consagrados na Constituição, ocasionando aumento do desemprego e da pobreza, por exemplo. Nesse contexto, no caso brasileiro, verifica-se que a reforma da previdência de 1998, durante o governo de FHC foi consequência da construção do discurso hegemônico pró-neoliberalismo.

 

A construção da hegemonia não se dá apenas no campo nacional, mas também em âmbito internacional. Através do uso das instituições multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, os países em desenvolvimento se vêem obrigados a implantar a nova ordem internacional. Pois, ao solicitarem empréstimos a essas organizações, são obrigados a cumprirem diversas exigências que culmina na retirada de direitos da sociedade através de contrarreformas, privatizações, diminuição da máquina do Estado, entre outras de caráter liberal.

 

Diante da quantidade de empréstimo que FHC conseguiu com o FMI durante o seu governo, bem como por ter sido um banco o maior doador da sua campanha, é indubitável sua rendição à dominação da hegemonia do capital financeiro, demonstrando que a reforma previdenciária realizada durante o seu governo não passou de mais uma exigência do grande capital e da construção da hegemonia pró-neoliberal em âmbito internacional que não encontrou resistência durante o seu governo.

 

Referências bibliográficas

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BRANDÃO, Rafael Vaz da Motta. Ajuste neoliberal no Brasil: desnacionalização e privatização do sistema bancário no governo Fernando Henrique Cardoso (1995/2002). 2013. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2013.

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COX, Robert. Gramsci, hegemonia e relações internacionais: um ensaio sobre o método. In: GILL, Stephen (org.). Gramsci: materialismo histórico e relações internacionais. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2007.

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GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989.

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MARINHO, Pedro Eduardo Mesquita de Monteiro. O Centauro Imperial e o “Partido” dos Engenheiros: a contribuição das concepções gramscianas para a noção de Estado Ampliado no Brasil Império. In: MENDONÇA, Sonia Regina de (org.). Estado e Historiografia no Brasil. Niterói: Ed. UFF, 2006.

SCHWARTZ, Gilson. Conferência de Bretton Woods (1944). In: MAGNOLI, Demétrio (org.). História da paz. São Paulo: Editora Contexto, 2008.

STIGLITZ, Joseph E. A globalização e seus malefícios: a promessa não-cumprida de benefícios globais. São Paulo: Ed. Futura. 4a edição, 2003.

VAROUFAKIS, Yanis. O minotauro global: a verdadeira origem da crise financeira e o futuro da economia. São Paulo: Editora autonomia literária, 2017.

Além do Ipiranga: uma história muito mais complexa da Independência*

Por Fábio Ferreira

Professor Associado da Universidade Federal Fluminense e líder do Grupo de Estudos das Trajetórias das Organizações (GESTOR)/CNPq. Doutor em História pelo PPGH/UFF. Mestre em História pelo PPGHIS/UFRJ. Graduado em História pela UFRJ.

 

Normalmente, quando se pensa na independência do Brasil, o senso comum costuma recordar-se da imagem do príncipe regente português Pedro de Bragança às margens do rio Ipiranga (hoje, parte do bairro de mesmo nome da cidade de São Paulo), a proclamar, em 7 de setembro de 1822, “Independência ou Morte”. Em tese, teria sido feita ali a separação de Portugal. Há, portanto, os que creem que, no ato, o Brasil tornou-se uma nação livre e soberana, inclusive essa versão contada ao longo de quase 200 anos foi consolidada junto à sociedade e, hoje, está presente no hino nacional, em livros, museus, monumentos nas praças, nomes de ruas de várias cidades, além de o dia 7 ser o principal feriado cívico nacional. Porém, qual seria a versão “mais complexa” da Independência do Brasil?

 

Em primeiro lugar, a emancipação foi um processo histórico que atravessou vários anos, o que já se constitui um elemento que convida a todos a olharem além do Ipiranga. Ademais, os historiadores devem voltar sua análise aos processos e não aos fatos isolados, como seria fazer se se fixassem unicamente no 7 de setembro.

 

Deve-se considerar ainda que, nesse período, independência podia significar a ruptura completa com Portugal, como ao fim e ao cabo ocorreu, mas também podia ser o estabelecimento de um governo autónomo que não rompesse totalmente com Lisboa, inclusive as mencionadas possibilidades estiveram presentes em projetos políticos da época. Entre muitas aspas, a Independência poderia ser uma proposta de inserção do Brasil na monarquia portuguesa que se assemelhasse à canadense ou à australiana na monarquia inglesa de hoje.

No tocante às identidades dos atores sociais do período, os indivíduos que viviam no Brasil tinham o sentimento de pertencimento à nação portuguesa, sendo que a brasileira sequer existia. Essa foi forjada depois de 1822. Então, os habitantes do Brasil se sentiam portugueses pertencentes à sua região de nascimento, a haver, por exemplo, os portugueses fluminenses (da capitania/província do Rio de Janeiro), os portugueses pernambucanos (Pernambuco), os portugueses riograndenses (da área que é o atual Rio Grande do Sul), etc.

Dito isso, para uma melhor explicação do processo de Independência, deve-se voltar a 1820, quando o sul da Europa viveu uma série de revoluções políticas de cunho liberal com diversas demandas, entre elas a de uma Constituição. Como exemplo, Nápoles, Espanha e Portugal foram palco desses levantes. Ao caso português agrega-se a particularidade que os liberais exigiam o retorno a Lisboa do rei D. João VI, que, desde 1808, vivia no Rio de Janeiro, pois ele e sua corte deixaram Portugal quando Napoleão Bonaparte invadiu a península ibérica, sendo que, apesar de o líder francês ter sido derrotado em 1815, ao monarca interessava-lhe permanecer nas Américas.

Voltando aos constitucionalistas portugueses, seus levantes reverberaram em diversas partes importantes dos territórios da monarquia portuguesa, como, por exemplo, Lisboa, Pará, Bahia e Rio de Janeiro. Nessas circunstâncias, sem o apoio de importantes regiões do Brasil, D. João decidiu voltar a Portugal, embora soubesse que na Europa ele teria seu poder político diminuído em razão dos liberais.

O rei partiu em abril de 1821, deixando no Brasil o seu filho mais velho, D. Pedro, como príncipe regente, o que significou que o primogênito dos Bragança seria responsável pelos assuntos americanos da Casa Real. À altura, na capital portuguesa, já havia se instalado um Congresso, também chamado de Cortes, no qual seus deputados elaboravam una constituição que deveria vigorar em todos os domínios portugueses ao redor do mundo, ou seja, na Europa, África, Ásia e América.

 

Entretanto, ainda que não existisse uma Constituição lusa até outubro de 1822, o governo lisboeta tomou medidas concretas para diminuir o poder político do príncipe Pedro e do Rio de Janeiro. Como exemplo, vários órgãos de governo que foram criados na cidade com a chegada de D. João em 1808 deveriam deixar, segundo as Cortes, de existir no Brasil.

 

Observa-se que, independentemente do seu local de nascimento, ou seja, se no Rio de Janeiro, Porto, Luanda, Goa ou Macau, essa medida desagradava aos poderosos estabelecidos no Novo Mundo, que tinham fechadas oportunidades de cargos e de influência na administração pública. Outra ação foi a exigência de Lisboa de que o príncipe Pedro deveria voltar à Europa, assim como seu pai havia feito meses antes, o que também desagradou a muitos dos portugueses que estavam no Brasil.

 

Desobedecendo às Cortes, em janeiro de 1822, D. Pedro declarou que ia ficar no Brasil, no famoso Dia do Fico. Em sintonia com seu ato político, o príncipe também expulsou do Rio de Janeiro tropas portuguesas fieis a Lisboa, alterou seu ministério e estabeleceu, sem o aval do governo lisboeta, órgão que deveria analisar as decisões das Cortes no que se referisse ao Brasil. Em junho, D. Pedro convocou uma Assembleia, que deveria fazer uma Constituição especifica aos domínios americanos dos Bragança e, ao mesmo tempo, tecia alianças políticas com vários setores sociais das províncias brasileiras, não obstante houvesse segmentos que estivessem presentes no Brasil e fossem fieis às Cortes. Além disso, conhecedor do processo de fragmentação dos vice-reinos espanhóis nas América, o príncipe buscava evitar que o mesmo ocorresse com o Brasil.

 

No segundo semestre de 1822, ocorreram vários fatos importantes, que aumentaram o desgaste das relações entre o Rio de Janeiro e Lisboa. Em agosto, D. Pedro decretou que as forças militares oriundas de Portugal que, porventura, desembarcassem no Brasil sem sua autorização seriam tratadas como inimigas. Igualmente, no citado mês, tornou público seu manifesto às nações estrangeiras onde justificava suas ações à frente do governo fluminense e enviou seus representantes diplomáticos a Londres, Paris e Washington.

 

Também em agosto, o príncipe foi a São Paulo tecer alianças e permaneceu na província até setembro. Nesse contexto, ocorreu o que hoje se compreende como a independência brasileira. Às margens do Ipiranga, à época área entendida como fora da cidade de São Paulo, D. Pedro recebeu cartas do governo do Rio de Janeiro. As epístolas informavam-lhe sobre as novas medidas das Cortes contra seu governo e, então, o príncipe disse aos membros de sua comitiva que estavam definitivamente rotos os enlaces com Portugal e, em seguida, voltou à capital da província. Deve-se destacar que esse fato não foi largamente explorado em 1822.

 

No entanto, nos anos posteriores, se criou uma versão heroica do fato ocorrido em São Paulo. D. Pedro e sua comitiva estariam montados em cavalos (mas, na verdade, eram mulas, pois era o animal que utilizava-se, rotineiramente, no período e na região, para transportar-se) e, quando ele teria lido as missivas, indignado com as medidas de Lisboa, tirara sua espada às margens do Ipiranga e teria gritado “Independência ou morte”, no que foi seguido por todos de sua comitiva.

Deixando a versão ufanista e retornando a 1822, mais especificamente a outubro, há de explorar-se o dia 12, quando D. Pedro foi aclamado imperador do Brasil no Rio de Janeiro, seguindo ritos das monarquias europeias, com o objetivo de pontuar seu governo como continuidade de una tradicional casa real do Velho Mundo. Ademais, a data era o dia do aniversário de D. Pedro e, ao menos em 1822, reverberou muito mais que o 7 de setembro. Ao longo da década de 1820 se compreendia que o Império foi criado em outubro e a data somente saiu do calendário das festas oficiais brasileiras em 1831, ano que, depois de uma grave crise de governabilidade, D. Pedro abdicou do trono brasileiro e retornou a Portugal.

No último mês de 1822, também no Rio de Janeiro, houve a coroação de D. Pedro como Imperador do Brasil. A data escolhida foi 1º de dezembro, dia importante, até o século XXI, para os portugueses, pois é o dia da Independência de Portugal, que, por sua vez, foi feita em 1640 por um antepassado de D. Pedro, o Duque de Bragança. Desejava-se, portanto, associar sua imagem e do seu Império a um passado glorioso no qual os portugueses e os Bragança estivessem envoltos.

Além dos fatos expostos, que contribuem para a compreensão de uma versão processual e mais complexa da independência do Brasil, nas províncias houve reações distintas aos episódios que tiveram o Rio de Janeiro e São Paulo como palco. Como exemplo, em parte significativa da região amazónica, os poderosos locais não aderiram ao projeto imperial. No caso específico do Pará, esse já havia se declarado parte de Portugal, a desvincular-se do Rio de Janeiro, antes mesmo da aclamação ou da coroação de D. Pedro. Salvador foi controlada por militares portugueses fiéis às Cortes até julho de 1823.

No rio da Prata, mais especificamente no território onde hoje é a República Oriental do Uruguai, que, por sua vez, desde 1821 era parte da monarquia portuguesa sob o nome de Estado Cisplatino Oriental, houve divisão interna: a parte das forças militares dos Bragança favoráveis a Lisboa associou-se a uma fração da elite “uruguaia” e, associados, controlaram Montevidéu, tendo sido árduos opositores do projeto do Império. Outra parte dos militares (comandados pelo general português Carlos Federico Lecor) e dos “uruguaios” estabeleceram a sede do poder brasileiro no interior.

Identifica-se, deste modo, que o novo imperador tinha um grande desafio para estender seu poder do Amazonas ao Prata. O grito no Ipiranga ou a aclamação não foram bastante para garantir-lhe o controle de todas as províncias. A isso soma-se que o Império não tinha a quantidade suficiente de militares para submeter todo o Brasil e, para consegui-lo, D. Pedro contratou mercenários franceses, como Labatut, que já havia lutado na América do Sul com Bolívar, e ingleses, como Cochrane, que, anteriormente, lutou no Chile ao lado de O’Higgins e San Martin (respectivamente próceres das independências chilena e argentina).

Embora os muitos conflitos que ocorreram entre forças imperiais e portuguesas, ao longo de 1823, pouco a pouco as resistências ao Império foram caindo. A última praça ocupada por portugueses foi Montevidéu, onde as forças brasileiras adentraram somente em março de 1824. Também nesse ano, D. Pedro outorgou a primeira constituição brasileira e, em 1825, Portugal reconheceu o Brasil como um Estado independente. No entanto, havia, ainda, uma árdua missão para o Império: ordenar a economia brasileira, debilitada pelos acontecimentos políticos; criar uma identidade nacional ao Estado que nasceu sem ser uma nação; e equilibrar-se nos complexos jogos políticos com as províncias imperiais e com os governos vizinhos – basta recordar-se que o primeiro conflito externo do Império iniciou-se em 1825 contra o governo de Buenos Aires pelo controle do “Uruguai”, na chamada Guerra da Cisplatina.

Por fim, ao longo dos anos, o grito do Ipiranga foi ganhando importância e se tornando a principal data cívica brasileira. O que aconteceu em outras partes do Brasil foi sendo esquecido e, hoje, fora dos círculos acadêmicos, poucos conhecem o processo de emancipação e sua complexidade. Ignora-se, por exemplo, que outros episódios além do Ipiranga poderiam ter sido reconhecidos como os da independência brasileira e serem, porventura, celebrados como episódios cívicos nacionais. Porém, esquecimentos e equívocos ocorrem em diversos processos históricos em vários países e cabe aos historiadores a análise e recordarem à sociedade o que foi esquecido, muitas das vezes, por séculos.

 

* A versão original do artigo foi publicada, em espanhol, na edição 655 (agosto de 2022) da revista “Todo Es Historia” (ISSN 0040-8611/IMPRESA, ISSN 2618-4354/DIGITAL) , destinada à divulgação científica, sob o título “Más Allá del Ipiranga: Una Historia Compleja”.

 

Referências

CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

 

FERREIRA, Fábio. O 1808 português e espanhol e os seus desdobramentos na Banda Oriental do Rio da Prata. In: ORTIZ ESCAMILLA, Juan; FRASQUET, Ivana (Org.). Jaquea la corona: la cuestión política en las independencias ibero-americanas. Castelló de la Plana: Universitat Jaume I, 2010.

 

KRAAY, Hendrik. A Invenção do Sete de Setembro, 1822-1831. In: Almanack Braziliense, n°11, mai. 2010. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/alb/article/view/11738/13513

 

NEVES, Lucia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e constitucionais: a cultura política da independência (1820-1822): Rio de Janeiro: Revan, FAPERJ, 2003.

 

PIMENTA, João Paulo. Independência do Brasil. São Paulo: Contexto, 2022.

 

Os 200 anos da Independência do Brasil

Niterói, 04 de maio de 2022.
Da Redação.

Como é de conhecimento público, nesse ano, completam-se 200 anos da Independência do Brasil. Depois da realização das séries de entrevistas sobre os bicentenários da criação do Estado Cisplatino Oriental e das emancipações do México e do Peru, que ocorreram ao longo de 2021, a revistatemalivre.com inicia hoje o ciclo dedicado ao Brasil no seu canal do YouTube
O bicentenário brasileiro é oportunidade para agregar pesquisadores de diversas instituições nacionais e estrangeiras para discutirem o complexo processo de independência brasileiro sob vários prismas, abarcando questões econômicas, políticas e culturais, que envolveram diversos atores e grupos sociais de norte a sul do Brasil. Constitui-se em momento de reflexão e análise da sociedade brasileira e sua história.

As conversas ocorrerão, quinzenalmente, no canal da revistatemalivre.com no YouTube às 19h. Para assisti-las, basta clicar aqui

 

 

A estreia
Logo mais, às 19h, "Brasil: 200 anos da Independência" tratará das influências de Napoleão Bonaparte no Brasil da primeira metade do século XIX, além dos mercenários franceses que lutaram ao lado de D. Pedro I, da imigração francesa para o Rio de Janeiro e a influência da França no campo intelectual brasileiro, além de muito mais. O convidado é o historiador francês Patrick Puigmal (Universidad de Los Lagos/Chile).

A próxima conversa ocorrerá no dia 18 de maio, também às 19h, e a convidada é a historiadora norte-americana Kirsten Schultz (Seton Hall University/EUA). O título do bate-papo é “A Versalhes Tropical: a corte portuguesa no Rio e a Independência”. Não deixe de participar.

 

 

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Outros bicentenários

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Cartaz de divulgação da série.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Cem anos da morte da princesa Isabel

Ao sancionar em 1888 uma das mais emblemáticas normas brasileiras — a Lei Áurea —, Isabel Cristina Leopoldina Augusta Micaela Gabriela Rafaela Gonzaga de Bourbon e Bragança, popularmente nominada princesa Isabel, "a Redentora", lapidou por definitivo seu nome entre os mais importantes da história nacional. No centenário de sua morte, ocorrida em 14 de novembro de 1921, a personalidade isabelina reflete uma mulher extremamente religiosa (engajada, crente e fiel), espiritualizada, letrada, otimista, autoritária e que buscou o reconhecimento de que estava apta a reinar — o que aconteceu por três vezes ao assumir interinamente o comando do Império, em meio a períodos de grande agitação social e política.

Filha de Dom Pedro II e Teresa Cristina de Bourbon, a princesa imperial, nascida em 1846, no Rio de Janeiro, só se tornou definitivamente a herdeira presuntiva do Império após a morte prematura de seus dois irmãos homens: o primogênito D. Afonso Pedro, falecido aos 2 anos, e D. Pedro Afonso, com pouco mais de 1 ano.

Com o caráter moldado por D. Pedro II para ser sua sucessora, a princesa imperial, assim como seu progenitor, adorava leitura, ciência, química, fotografia.

— Dom Pedro II era um conservador, parecido com seu avô D. João VI, já Dona Isabel era mais parecida com seu avô D. Pedro I, que era dos rompantes. Por ser mulher, era muito tolhida na sociedade em que viveu e na sua época era a única na política — explica o historiador Bruno da Silva Antunes de Cerqueira, coautor da obra Alegrias e Tristezas: estudos sobre a autobiografia de D. Isabel do Brasil, com a historiadora Fátima Argon.

A trajetória da princesa está documentada pelo Arquivo do Senado, em Brasília. Os registros revelam de congratulações a preocupações e apontam que muitos parlamentares não vislumbravam o comando em definitivo do Império nas mãos de uma mulher. 

Diferentes momentos da vida da Princesa Isabel (Imagens: Acervo da Biblioteca Nacional, do Arquivo Nacional e do Museu Imperial de Petrópolis)

Em agosto de 1850, as duas câmaras das Casas parlamentares se reuniram no Paço do Senado para a sessão de reconhecimento da princesa imperial como sucessora de seu pai, Dom Pedro II, no trono e na Coroa do Brasil. Dez anos depois, ao completar 14 anos, ela fez o juramento, diante da Assembleia Geral, como herdeira presuntiva do Império, no qual assegurou “manter a religião católica apostólica romana, observar a constituição política da nação brasileira, e ser obediente às leis, e ao imperador”.

Nos seus 18 anos, a princesa encontrava-se diante dos preparativos para seu casamento, firmado com o príncipe franco-germânico Luís Filipe Maria Fernando Gastão d'Orléans, o Conde d’Eu.

— Pensava-se no Conde d'Eu para minha irmã [princesa Leopoldina] e no Duque de Saxe para mim. Deus e os nossos corações decidiram diferentemente, e a 15 de outubro tinha eu a felicidade de desposar o Conde d'Eu — registrou a princesa Isabel.

A escolha do esposo da herdeira imperial, repudiada por alguns parlamentares, causava uma preocupação redobrada.

— Por ela ser mulher, os senadores e deputados, que eram absolutamente machistas, achavam que o marido é que iria mandar — esclarece o historiador Antunes de Cerqueira.

 

Casamento da princesa Isabel com o Conde d'Eu (Foto: Reprodução/União Monárquica Brasileira)

 

Em maio de 1871, foi aprovada pela Câmara e encaminhada ao Senado a proposta de outorga de consentimento para que o imperador pudesse deixar o país, em viagem à Europa por motivo do estado de saúde da imperatriz.

Tal autorização legal conclamava, na ausência de Dom Pedro II, a governança por parte da princesa imperial, pela primeira vez, como regente.

A manifestação ensejou debates no Plenário do Senado, com a defesa da proposta pelo presidente do Conselho de Ministros (primeiro-ministro), o senador Visconde do Rio-Branco (BA):

— O motivo é muito atendível e imperioso: a saúde de Sua Majestade a Imperatriz. (…) Nós, porém, pensamos que não há razão alguma para recear que uma ausência tão curta do chefe do Estado ponha em perigo a nação brasileira.

O senador J. M. Figueira de Mello (CE) não só defendeu a saída do imperador, como ratificou total e completamente as atribuições de poder moderador e de chefe do Poder Executivo à princesa.

Na contramão, o senador Zacarias de Góes e Vasconcellos (BA) demonstrou preocupação com a viagem, "diante de iminente reforma acerca da questão do estado servil" — que em alguns meses daria origem à Lei do Ventre Livre — e com as atribuições atribuídas no projeto à futura regente imperial.

Também contrário à saída do imperador, o senador Silveira da Motta (GO) foi convicto em propor ao menos uma data-limite para retorno, citando a “incerteza com que a regência continuará a funcionar como realeza temporária”.

Ao assegurar que o chefe do Estado estava sempre pronto a cumprir seus altos deveres, o presidente do Conselho de Ministros mais uma vez ponderou que “para o gabinete não é duvidoso que a regência, no caso de que se trata, compete à herdeira presuntiva da Coroa”.

Assim, em 19 de maio foi outorgado o consentimento ao imperador. No dia seguinte, Dona Isabel — assim chamada por ser alteza — fez seu juramento como regente diante da Assembleia Geral. Foi durante essa primeira regência que a princesa se tornou, aos 25 anos, a primeira senadora do Brasil, título assegurado a ela pela Constituição do Império.

 

Juramento da Princesa Isabel, no interior do Palácio do Conde dos Arcos (Pintura: Victor Meirelles)

O fim da escravidão nos Estados Unidos, em 1865, reforçou o espírito abolicionista no Brasil, onde por longos anos temeu-se a guerra civil em decorrência da procrastinação da abolição.

— Nessa primeira regência Dona Isabel era uma menina. Visconde do Rio-Branco, primeiro-ministro, é que detinha todo o poder. A Lei do Ventre Livre era obra sua, mas é claro que ele dá crédito à Dona Isabel, porque ele era um monarquista contumaz — explica Antunes de Cerqueira.

A par do comando de Rio Branco, a princesa imperial tinha completa noção do que fazia, conhecia o jogo político e sabia quem iria votar a favor ou contra à proposta da primeira lei abolicionista, segundo o historiador.

Muito esperada, a votação do projeto por deputados e senadores foi marcada por conflitos que perpassaram interesses políticos, partidários e escravocratas. 

Apenas dois dias após ter sancionado a Lei do Ventre Livre — que fixou a data de 28 de setembro de 1871 como o marco a partir do qual as mulheres escravizadas dariam à luz crianças livres —, a princesa imperial, grávida, fez sua primeira fala à Assembleia Geral, congratulando-se com os parlamentares pela extinção gradual do elemento servil.

— Esta última reforma marcará uma nova era no progresso moral e material do Brasil. É empresa que exige prudência, perseverantes esforços e o concurso espontâneo de todos os brasileiros. Tenho fé em que seremos bem sucedidos, sem prejuízo da agricultura, nossa principal indústria, porque esse cometimento é a expressão da vontade nacional, inspirada pelos mais elevados preceitos da religião e da política. O governo fará quanto lhe cumpre para a mais pronta e perfeita execução de tão importantes reformas, dedicando-lhes a mais solícita atenção — afirmou a regente.

Pouco tempo depois de Isabel ter encerrado sua primeira regência, o magistrado Sayão Lobato externou em sessão no Senado seus agradecimentos pelo tempo em que atuou como ministro da Justiça durante a primeira governança da princesa. Com Isabel, ele disse ter sido honrado com sua “graciosidade, extrema bondade e continuadas provas de confiança”.

 

harge do periódico 'Semana Ilustrada', em 1871, na sanção da Lei do Ventre Livre (Imagem: Biblioteca Nacional Digital)

 

Do fim da primeira regência até 1876, a princesa Isabel esteve completamente tomada pela vida íntima, assombrada pela dificuldade de gerar herdeiros. O primeiro aborto ocorreu em outubro de 1872, sucedido pela perda de um filho no parto, em 1874. Somente em outubro do ano seguinte nasceu o primeiro herdeiro da princesa, chamado Pedro de Alcântara em homenagem ao avô imperador.

Poucos meses depois, em março de 1876, a princesa imperial foi nomeada com totais poderes regente pela segunda vez, a partir de nova viagem do imperador. A segunda experiência no trono não lhe foi fácil, tornando-se ainda mais pesada com o registro de mais um aborto.

As eleições do final daquele ano foram marcadas por fraudes e violência. Sua extrema ligação com a Igreja a manteve na linha de severas críticas. A princesa também esteve no comando em um difícil período de pós-epidemia de varíola e de vindoura grande seca, que deixaram centenas de milhares de mortos.

Na abertura dos trabalhos legislativos do ano seguinte, a regente abrandou os acontecimentos turbulentos do período eleitoral e tratou do orçamento para o biênio 1877-1878. Aos parlamentares, ela assegurou que o governo procurou reduzir os gastos, mas que seria necessária a decretação de meios que fizessem desaparecer qualquer desequilíbrio entre a receita e a despesa:

— Causas conhecidas explicam o fato de não ter a receita pública atingido o algarismo em que foi calculada. Para segurança do crédito nacional, cumpre não confiar unicamente no aumento natural da renda. As obras de viação férrea e outras votadas exigem despesas a que não pode por si só fazer face a receita ordinária. E porque não fora prudente usar largamente dos recursos do crédito, atenta à nociva influência que os empenhos contraídos exercem sobre o presente e o futuro, é de bom conselho atender somente aos melhoramentos, que não possam ser adiados.

 

Princesa Isabel e seu primogênito, 1876. (Foto: Biblioteca Nacional)

 

Impossibilitada de comparecer à abertura da segunda sessão legislativa, em meados de junho de 1878, coube ao ministro e secretário de Estado dos negócios do Império, Antonio da Costa Pinto e Silva, transmitir aos parlamentares as palavras da regente, que não se esquivou de tratar da forte seca que assolava regiões do país.

— A prolongada falta de chuvas em algumas províncias do Norte e na de S. Pedro do Rio Grande do Sul acarretou sobre elas as provações inerentes a semelhante flagelo. O governo, auxiliado pela caridade particular, tem acudido as populações daqueles pontos do Império com gêneros alimentícios, autorizando ao mesmo tempo os presidentes a despenderem o que for preciso para aliviar os sofrimentos das classes mais necessitadas; e estudará os meios de prevenir, quanto for possível, os graves efeitos desse mal, de que periodicamente são vítimas, com especialidade as províncias do Norte.

Pouco tempo depois, o senador Góes de Vasconcellos, ao criticar a ausência do imperador, renegou afirmativas de que D. Pedro II não faria falta por ter deixado regente em seu lugar.

— Não procede a escusa. A virtuosa princesa, embora tenha, pela Constituição, plenos poderes para governar, é, afinal, simples regente, adstrita à vontade, às prescrições, aos conselhos do chefe ausente; não pode afastar-se daquilo que presuma ser a mente do augusto viajante. Demais a sua saúde não é muito vigorosa, segundo consta dos jornais, que, de vez em quando, anunciam que a princesa acha-se impedida de sair à rua e dedicar-se aos trabalhos de seu elevadíssimo cargo.

O machismo enraizado na época colocava recorrentemente em xeque as competências da princesa imperial. “Apático” era a palavra que definia o governo de Dona Isabel, segundo Góes de Vasconcellos, ao passo “que ela não governava como imperatriz, mas apenas como regente”.

— Ainda, se as circunstâncias do país fossem favoráveis, mas sendo críticas e cheias de dificuldades muito sérias, deverá estar à testa do governo quem ocupa efetivamente o trono, e não sua augusta filha. Ele, o sábio, o mais ilustrado dos monarcas do mundo, esse é quem devia estar no país à frente dos negócios — completou o senador.

Com o fim de sua segunda regência, a princesa voltou-se por completo à vida familiar. Em janeiro de 1878 veio o segundo herdeiro, príncipe D. Luís. Em Paris, em agosto de 1881, nasceu o terceiro filho, D. Antônio.

 

Plenário do Senado em 1888 (Foto: Antônio Luiz Ferreira e Alberto Henschel)

 

Com a partida de D. Pedro II para a Europa por recomendações médicas, aos 40 anos a princesa imperial iniciou a terceira e última regência, em julho de 1887, período tomado pelo crescimento do movimento abolicionista. Com seu apoio, não foram poucos os projetos pelo fim da escravidão apresentados na Câmara e no Senado.

Na presidência do Conselho de Ministros, o Barão de Cotegipe (BA) — líder da bancada escravagista — trabalhou pelo retardo das reformas que culminariam na abolição dos escravizados. O período foi ainda mais conturbado pela insubordinação militar no Exército brasileiro.

Em abril de 1888, a própria princesa imperial comandou, em cerimônia no Palácio de Cristal, a libertação dos últimos escravizados no município de Petrópolis.

— Fez o Gabinete todo e parlamentares subirem a serra para mostrar poder. Ela estava mostrando para aqueles homens o que era capaz de fazer — relata o historiador Antunes de Cerqueira.

Nessa mesma época, em uma manobra inteligente, a regente — certamente já bem mais madura politicamente — destituiu todo o gabinete e nomeou como novo presidente do Conselho dos Ministros o conservador pró-abolição João Alfredo Correia de Oliveira, em um ato que ela mesma nomeou de “golpe”.

Crítico da regente imperial, o liberal senador Saraiva (BA) destacou que a princesa queria que o ministério tivesse um homem da confiança dela, isto é, “um chefe de polícia que a deixasse dormir tranquilamente no seu palácio de Petrópolis”.

O senador Leão Velloso (BA) contestou comentários, dentro e fora do Parlamento, sobre os atos de Sua Alteza.

— No procedimento da Coroa nada se pode notar que não ache apoio nas doutrinas seguidas em outros países, ou não se harmonize perfeitamente com alguns precedentes.

Populares se reúnem em frente ao Paço Imperial no dia da sanção da Lei Áurea

 

Na abertura de sessão legislativa de maio de 1888, além de tratar de questões caras ao Brasil — como segurança pública, estado sanitário do país, educação, renda pública e organização militar —, a regente imperial não deixou de destacar a ânsia pelo fim da escravidão.

— A extinção do elemento servil, pelo influxo do sentimento nacional e das liberalidades particulares, em honra do Brasil, adiantou-se pacificamente de tal modo que é hoje aspiração aclamada por todas as classes, com admiráveis exemplos de abnegação da parte dos proprietários. Quando o próprio interesse privado vem espontaneamente colaborar para que o Brasil se desfaça da infeliz herança, que as necessidades da lavoura haviam mantido.

A princesa conclamou os parlamentares a não hesitarem “em apagar do direito pátrio a única exceção que nele figura em antagonismo com o espírito cristão e liberal das nossas instituições”.

Não demorou e, em 8 de maio, o gabinete de Correia de Oliveira encaminhou à Câmara dos Deputados a proposta de lei para a completa extinção da escravidão no Brasil. Bem recebido pelas duas Casas, o projeto foi aprovado pelos deputados dois dias depois. Quando chegou ao Senado, no dia 11, foi constituída comissão especial para apresentar parecer sobre a proposta.

 

Assinatura da Lei Áurea por Sua Alteza Real Princesa Isabel (Pintura: Victor Meirelles)

 

A urgência com que a matéria foi tratada nas duas Casas legislativas incomodou os escravagistas, que não se conformavam com a perda dos escravizados e de não haver qualquer previsão de ressarcimento aos seus então proprietários.

O senador Paulino de Souza (RJ), ao confessar-se vencido pelo projeto da Lei Áurea, lembrou que em 1885 “achávamos em plena propaganda abolicionista” e que a proposta que os parlamentares iriam votar era “inconstitucional, antieconômica e desumana”.

— Pois bem, é o governo regular do Brasil que, em contraposição àquele governo revolucionário, faz decretar, de um dia para outro, a abolição imediata, pura e simples, sem uma garantia para os proprietários, espoliando-os da propriedade legal, abandonando-os a sua sorte nos termos do nosso interior, entregando-os à ruína, expondo-os às mais temerosas contingências, sem também por outro lado tomar uma providência qualquer a bem daqueles, que voltam em grande parte à miséria e ao extermínio, nos primeiros passos de uma liberdade, de que, não preparados convenientemente, dificilmente saberão usar a seu benefício.

O senador afirmou “iludirem-se” aqueles que acreditavam remover uma grande dificuldade com a lei da abolição do elemento servil.

— Pelo contrário, é agora que recrescem, com a desorganização do trabalho e com a entrada de 700 mil indivíduos não preparados pela educação e pelos hábitos da liberdade anterior para a vida civil, as contingências previstas para a ordem econômica e social.

Com apoio de muitos no Plenário, o senador Dantas (BA) assegurou aos pares que a abolição da escravidão não marcaria para o Brasil uma época de miséria, de sofrimentos, de penúria.

— Uma simples consideração, porque a discussão longa virá depois, bastará para tranquilizar os que se aterrarem com os presságios dos honrados senadores que me precederam: dentro de espaço de 17 anos, 800 mil escravos têm desaparecido do Brasil. Pois bem, senhores, é justamente neste período que se nota maior riqueza no país, grande aumento de trabalho e com ele maior produção, e, como consequência, considerável aumento na renda pública.

As reformas liberais não poderiam representar, na opinião do parlamentar, um perigo ao Brasil, mas seriam “o complemento, o remate, a consequência natural do passo que estamos dando”.

O presidente do Conselho de Ministros, Correia de Oliveira, completou:

— Tem-se ainda apelado para os transtornos que desta proposta hão de provir. Sei bem que não se extirpa do organismo social um cancro secular sem que perturbações se operem. Nunca mais há de abrir-se, porém, a cicatriz desta ferida: e sobre ela se levantará — o patriotismo e o bom senso dos brasileiros o indica — o grande edifício da crescente prosperidade de nossa pátria.

 

 

Carta original da Lei Áurea (Lei Imperial 3.353) assinada pela princesa

 

No domingo de 13 de maio de 1888, apenas três dias após a deliberação do texto abolicionista na Câmara, o Senado aprovou a proposta, sancionada no Paço Imperial poucas horas depois pela regente imperial, aclamada a “Redentora”.

Sem poder agir publicamente pela abolição até janeiro de 1888, quando pôde externar seu abraço à causa já nacionalmente disseminada, a princesa Isabel agia na surdina — como em 1886, quando impediu a destruição do Quilombo do Leblon, portanto dois anos antes da completa abolição da escravidão.

— As pessoas não queriam dizer que a Lei Áurea, fruto de uma luta popular, dos líderes abolicionistas, que eram negros e brancos letrados, também foi uma luta palaciana. Isso ninguém queria reconhecer. Uma das coisas que mais incomodavam era o fato de que Dona Isabel tinha poder como mulher, porque era regente do Império, e ela atuou — expõe o historiador Antunes de Cerqueira.

Os chefes do movimento abolicionista (Joaquim Nabuco, André Rebouças e José do Patrocínio) eram três homens isabelistas, lembra ele:

— Isso tinha alguma significação: indica que eles queriam o terceiro reinado para implementar as reformas de que eles mesmos eram os baluartes. Ora, se o terceiro reinado não veio, como é que eles ou Dona Isabel podem ser culpados pelo pós-abolição? — questiona.

Os escravocratas denominaram a abolição como o “golpe de estado da Lei de 13 de maio”. Antunes de Cerqueira afirma que, ao sancionar a Lei Áurea, a princesa imperial fez algo que seu pai nunca faria. Tal discussão esteve em debate no Senado na época.

O senador Chistiano Ottoni (MG) tomou a palavra para retificar o que chamou de “inexatidões flagrantes”, como apontar Sua Alteza Imperial como a única que poderia decretar a lei de 13 de maio, “visto que seu pai seria incapaz de igual energia”.

— Ora, a verdade histórica é que o nome que há de ser citado no futuro como o primeiro autor da libertação é o do Sr. D. Pedro II. O começo da evolução, a aurora desse movimento, foi a carta escrita em 1866 pelo nosso ministro da Justiça aos sábios franceses prometendo a reforma; e desta carta declarou há dias o Sr. deputado Joaquim Nabuco que possui a minuta por letra do Imperador. Está, pois, a sua iniciativa mais que averiguada.

— Na verdade, os homens tinham asco dela por ser uma mulher com poder, ser a herdeira do trono. Ia ser a imperatriz, estar acima de todos eles, mandar. Eles eram machistas — diz o historiador Antunes de Cerqueira.

 

 

Isabel, o Conde d'Eu e o escritor Machado de Assis na Missa Campal da Abolição da Escravatura, em 17 de maio de 1888 (Foto: Antonio Luiz Ferreira, Coleção de Dom João de Orleans e Bragança/IMS)

 

A despeito de sancionar o ato abolicionista incondicional, a princesa continuava na mira das críticas, em especial da imprensa, muitas vezes agressiva. "Carola" e "retrógrada", por suas práticas religiosas, eram algumas das palavras que constantemente maculavam sua imagem.

Em meio à agitação política e econômica, a regente — favorável ao sufrágio feminino — acompanhava o crescimento de adesões a pedidos, de diferentes direções, para requerer mudanças na forma de governo.

Em setembro de 1888, o Papa Leão XIII concedeu a Rosa de Ouro à princesa Isabel. A honraria era destinada a personalidades católicas de grande destaque e benemerência, e foi outorgada a ela especialmente pela assinatura da Lei Áurea.

Tal fato acirrou ainda mais os debates no Senado, onde os parlamentares discutiram uma possível jura ou manifestação de obediência da regente à Santa Sé.

— Devo declarar que a notícia não é exata: não houve tal juramento — garantiu o presidente do Conselho, senador Correia de Oliveira.

A possibilidade de um futuro governo monárquico em definitivo nas mãos de uma mulher também inflava os debates na Casa.

O senador Soares Brandão (PE) explanou sobre o fato de mulheres oferecerem, em muitas partes do mundo, um reinado mais esplêndido do que os homens.

— Se é certo que elas não têm a grande virtude política de governo, que ordinariamente podem ter os homens (a de perdoar as injúrias); se são mais sensíveis, mais vingativas, mais nervosas, também é certo que têm sobre os homens uma imensa superioridade: não têm ciúmes, não têm invejas, os seus ministros não lhes fazem sombra; podem, pois, gloriar-se com o governo deles.

O retorno de Dom Pedro II ao comando do país, em agosto de 1888, não perpetuou por muito tempo sua governança, sucedida pela Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889.

— A República não foi feita contra a família imperial, mas claramente contra Dona Isabel, em seu terceiro reinado (os republicanos diziam que a abolição foi um confisco de propriedade e queriam indenização), e contra os negros. A República foi uma forma de impedir a politização do movimento abolicionista e ascensão dos negros — defende Antunes de Cerqueira.

Com a notícia da República, em vários lugares do país, como Rio de Janeiro, São Luís, Florianópolis e Cuiabá, os negros fizeram, nos dias subsequentes, rebeliões que terminaram com muitos mortos.  

— Os negros entendiam que Dona Isabel era legítima para reinar, porque ela, na verdade, do ponto de vista político, ameaçou seu próprio trono com a abolição. Eles achavam que mesmo ela sendo mulher, loira, branca e de olho azul, tinha legitimidade. A Guarda Negra da Redentora, que existia no Brasil inteiro, foi assassinada pela República Velha. São heróis anônimos — completa o historiador.

 

 Isabel, o Conde d'Eu e seus netos, na França, década de 1910. (Foto: Arquivo Nacional)

 

Com a República, chegou o exílio da família imperial, que desembarcou em Lisboa em dezembro do mesmo ano. Não tardou e semanas depois a imperatriz Teresa Cristina faleceu na cidade do Porto. A princesa Isabel e a família se mudaram para a França. Dom Pedro II morreu em dezembro de 1891, quando a princesa passou a ser reconhecida pelos monarquistas como a nova imperatriz.

Em 1920, o presidente da República, Epitácio Pessoa, deu fim ao banimento da família imperial. Com a saúde deteriorada, sem poder retornar ao Brasil, a princesa morreu em 14 de novembro de 1921, aos 75 anos, tendo sido inicialmente enterrada na França.

Ao declarar Isabel como “um grande nome da nossa história”, o senador Tobias Barreto (RN) pronunciou-se após sua morte:

— Parece que foi ironia do destino reservar a uma mulher o papel de consumar a grandiosa obra que os nossos homens de Estado durante 66 anos não souberam levar a cabo por si sós; ou então quis o destino que essa mulher constituísse um símbolo de bondade, para ficar na história, representando a forma incruenta pela qual realizamos uma verdadeira revolução, que a outros tinha custado caudais de sangue.

Isabelista, o senador afirmou que a princesa não era possuída da timidez do pai:

 — Quando lhe afrontavam os sentimentos, sabia defendê-los de viseira erguida.

Apesar de, poucos dias depois da morte de Isabel, ter sido apresentado projeto à Câmara dos Deputados para a repatriação de seu corpo, somente em 1953 os restos mortais chegaram, em navio de guerra, ao Brasil. Assim como o Conde d’Eu, ela foi reenterrada em 1971 na Catedral de São Pedro de Alcântara, em Petrópolis, santuário cuja obra foi iniciada pela própria princesa imperial, em 1884.

Está em andamento um pedido à Igreja de processo de beatificação de Isabel, enquanto no Congresso tramitam projetos de lei que sugerem a inserção de seu nome no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria.

— Os 100 anos de morte de Dona Isabel rememoram uma personagem nebulosa, fulcral, querida da população. Ela participou do processo abolicionista, mas isso foi negado e mal interpretado no próprio tempo em que ela viveu. A história dessa personagem explica um Brasil atual e também um Brasil que não veio — conclui Antunes de Cerqueira.

Fonte: Agência Senado

 

 

Saiba mais sobre o 13 de maio assistindo a entrevista a seguir

 

 

 

 

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Há 200 anos, o território que é hoje o Uruguai tornava-se parte do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves

Niterói, 08 de agosto de 2021

No dia 08 de agosto de 1821, portanto, há exatos 200 anos, o Congresso Cisplatino era dissolvido. Sua última ordem foi a de enviar cópias de suas atas ao general português Carlos Frederico Lecor para que o militar as enviasse a D. João VI e às Cortes de Lisboa. Porém, muitos leitores devem estar se perguntando o que foi esse Congresso? Qual a sua relação com o título do texto? Quais informações estavam contidas nas atas?
Para a obtenção das respostas, é necessário recuar a 1816, quando D. João invadiu a Banda Oriental, denominação que o território que é hoje o Uruguai tinha na época. Para conduzir o governo português da área ocupada, foi designado o general Lecor, que a administrou através de coalização com uma série de setores da sociedade local. Com a eclosão, em 1820, do movimento liberal em Portugal, e consequentemente com a drástica mudança nos destinos da política do Reino Unido português, que incluiu o retorno de D. João VI à Europa e o estabelecimento das Cortes Gerais em Lisboa para a elaboração de uma constituição, o recém empoçado ministro dos Negócios Estrangeiros e Guerra, Silvestre Pinheiro Ferreira, quis definir o futuro da ocupação militar no Prata.
Foi ordenado que em Montevidéu se estabelecessem Cortes, no modelo das de Lisboa, para que a sociedade local decidisse o futuro da invasão. Unidos, Lecor e atores locais montaram um jogo de cartas marcadas para que as Cortes de Montevidéu, ou Congresso Cisplatino (nome como as reuniões que se iniciaram em julho de 1821 ficaram conhecidas pela historiografia), decidissem pelo que lhes interessava: a união do que é hoje o Uruguai à monarquia portuguesa – fato histórico que teve o seu bicentenário nesse ano. 
O Congresso Cisplatino iniciou-se em um domingo, no dia 15 de julho de 1821. Três dias depois, os deputados votaram, unanimemente, pela incorporação. No dia 23, por decisão dos congressistas, a antiga Banda Oriental passou a chamar-se Estado Cisplatino Oriental. No dia 31, Lecor aceitou a incorporação em nome de D. João VI. No quinto dia de agosto ocorreu o juramento de incorporação, participando, do ato, Lecor, os congressistas e todas as autoridades e funcionários de Montevidéu. No dia 8 de agosto de 1821, uma quarta-feira, houve a dissolução do Congresso Cisplatino e a ordem para que fossem enviadas a Lecor as suas atas, pois o general deveria mandá-las para Lisboa. Nos documentos, a votação dos deputados, bem como o argumento dos aliados de Lecor, para que o território que é hoje o Uruguai se tornasse parte do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. 
Aparentemente, Lecor e seus atores sociais alcançavam os seus objetivos. Porém, a História é sempre mais complexa e, com 200 anos de vantagem, sabemos que o projeto cisplatino não vingou. O Reino Unido português dividiu-se, o Brasil tornou-se um Império a parte e, em 1825, eclodiu a Guerra da Cisplatina, que resultou na criação da República Oriental do Uruguai.

 

Bicentenário da criação do Estado Cisplatino Oriental
Em razão dos 200 anos da Cisplatina, a Revista Tema Livre aproveitou a oportunidade para debater esse episódio histórico e realizou uma série de lives com historiadores de diversas instituições da Argentina, Brasil, EUA e Uruguai. Assista à série completa no nosso canal do YouTube. Acesse: https://www.youtube.com/revistatemalivre

 

Lista dos episódios
1) Live de abertura: "Los partidarios de la corona española en la Cisplatina"
Convidada:  Prof.ª Dr.ª Ana Ribeiro (Investigadora, actual Vice Ministra de Educación y Cultura de Uruguay)

 


2) “Antes da Cisplatina: Sacramento, Montevidéu e os interesses portugueses no Rio da Prata”
Convidado: Prof. Dr. Fabrício Prado (College of William and Mary)

 


3) "O Congresso Cisplatino: a incorporação de Montevidéu e a sua campanha à monarquia portuguesa"
Convidado: Prof. Dr. Fábio Ferreira (Universidade Federal Fluminense – UFF)

 


4) Panfletos, jornais e a linguagem política na Cisplatina.
Convidado: Prof. Dr. Murillo Dias Winter (USP/FAPESP)

 


5) Live de enceramento: "El ciclo revolucionario en Iberoamérica. El Río de la Plata y Brasil en el escenario Atlántico"
Convidada: Prof.ª Dr.ª Marcela Ternavasio (Instituto de Estudios Críticos en Humanidades/Universidad Nacional de Rosario/CONICET)

 


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Há 30 anos, criação do Mercosul pôs fim às tensões históricas entre Brasil e Argentina

Neste ano, completam-se 30 anos que os presidentes do Brasil, da Argentina, do Uruguai e do Paraguai, reunidos em Assunção, assinaram o documento de criação do Mercosul. Desse ato, nasceu um bloco regional que hoje, se fosse um único país, surgiria como a 9ª maior economia do planeta. Sozinho, o Brasil é a 12ª economia mundial, pelas estatísticas do Fundo Monetário Internacional (FMI).Documentos guardados no Arquivo do Senado mostram que os senadores, de Brasília, acompanharam com atenção a histórica cerimônia internacional de 26 de março de 1991, na qual Fernando Collor, Carlos Menem, Luis Lacalle e Andrés Rodríguez firmaram o Tratado de Assunção.

— Na solenidade, o presidente Collor disse: ‘Começamos a escrever nossa própria modernidade’. De fato, o tratado tem um grande significado — discursou, no dia seguinte, o senador Marco Maciel (PFL-PE).

— O processo de integração pode ser a chave para uma inserção mais competitiva de nossos países no mundo. O Mercosul propiciará economias de escala e otimizará vantagens comparativas, levando à redução dos custos de produção. O projeto estimulará ainda os fluxos de comércio entre os quatros países e tornará os investimentos mais atrativos na região, com consequências positivas para o combate à inflação e a qualidade de vida da população — prosseguiu o parlamentar.

Por força do Tratado de Assunção, gradativamente, os quatro países eliminaram ou reduziram tributos alfandegários nas transações entre si e também unificaram impostos de importação e exportação incidentes no comércio com outras nações.

 

Tribuna da Imprensa noticia em 1991 a criação do Mercosul (imagem: Biblioteca Nacional)

Para além dos benefícios econômicos, a criação do Mercosul permitiu que as desconfianças e as tensões diplomáticas entre o Brasil e os países platinos, em especial a Argentina, finalmente chegassem ao fim. Era uma situação que se iniciara na época colonial (quando Portugal e Espanha disputavam o território sul-americano), persistira no Império (quando se travaram as Guerras da Cisplatina e do Paraguai e houve interferências brasileiras na política uruguaia) e se renovara logo nos primórdios da República (quando os vizinhos do Cone Sul não viram com bons olhos o protagonismo diplomático do Barão do Rio Branco na América do Sul).

— Mesmo a aliança entre o Brasil e a Argentina para enfrentar Solano López [na Guerra do Paraguai] foi, ao que se sabe agora, uma aliança de emergência entre parceiros que se olhavam com desconfiança, mas que naquela época temiam um inimigo [em comum] que se expandia e avançava — afirmou, em 1980, o senador Alberto Lavinas (PDS-RJ).

No início da década de 1940, na ditadura do Estado Novo, o presidente Getúlio Vargas ensaiou uma aproximação com os argentinos. Os planos eram promissores, mas acabaram indo por água abaixo quando o Brasil e a Argentina decidiram assumir posições distintas na Segunda Guerra Mundial. Enquanto os brasileiros entraram no conflito ao lado dos aliados, os argentinos optaram pela neutralidade.

Em 1985, numa audiência pública no Senado, o presidente da Petrobras, Carlos Theóphilo de Souza e Mello, disse uma curta frase que revelou o tamanho da rivalidade econômica que separava o Brasil e a Argentina:

— A Argentina tem dificuldades sérias de atingir os mercados internacionais pelas suas águas muito rasas. Isso é muito bom para o Brasil. As águas do Rio da Prata exigem um volume muito grande de dragagem para um calado de oito a dez metros. Eles hoje estão estudando um porto mais fora da barra do Rio da Prata, para ver se conseguem calados melhores, de 12 metros, de modo a chegar com seus produtos ao mercado externo com vantagens competitivas em relação ao Brasil.

 

Os presidentes Collor, Rodríguez, Menem e Lacalle na assinatura do Tratado de Assunção (Foto: Gabinete senador Fernando Collor)

No mesmo ano, o senador José Ignacio Ferreira (PMDB-ES) tratou de uma suposta corrida armamentista que havia no Cone Sul:

— Não faz sentido o Brasil e a Argentina lançarem-se em uma competição tecnológica que pode conduzir às armas nucleares. Em vez disso, os países devem juntar-se para resolverem a questão da dívida externa, do analfabetismo, do saneamento básico, das favelas.

Em 1991, o senador Pedro Simon (PMDB-RS) citou um caso quase prosaico do histórico descompasso entre brasileiros e argentinos:

— Os dois países se davam tão mal no passado que nós fizemos no Rio Grande do Sul uma estrada de ferro com bitola estreita, diferente da bitola larga da Argentina, só para dificultar uma possível invasão do Brasil pelos argentinos. Havia coisas dessa natureza.

Simon via o dedo das potências mundiais nesse afastamento. Para ele, “os do Norte” criavam “fuxicos” que não tinham razão de existir entre o Brasil e a Argentina. O senador Dirceu Carneiro (PSDB-SC), num pronunciamento em 1993, reforçou essa tese:

— O Tratado de Assunção teve a extraordinária virtude de enterrar uma história de longos anos de relações de desconfiança mútua. O setor militar sempre alimentou a hipótese de um conflito entre o Brasil e a Argentina e, para tal, sofreu a interferência do Primeiro Mundo, com interesses evidentemente próprios e pragmáticos, investindo numa desunião progressiva entre os países, fazendo com que virássemos as costas aos nossos vizinhos. Durante todo esse período, o Brasil não considerou a cultura nem a riqueza das trocas comerciais com os países limítrofes. Em todo esse período, tivemos os nossos olhos votados para a Europa, para os Estados Unidos, para o Atlântico.

 

Mensagem em que o presidente Collor pede ao Congresso que ratifique o tratado do Mercosul (imagem: Arquivo do Senado)

Os primeiros passos da aproximação entre Brasil e Argentina foram dados em 1979, quando os países resolveram a disputa em torno de projetos hidrelétricos na Bacia do Rio Paraná. A partir de então, só houve avanços. Em 1980, assinaram um acordo sobre o uso pacífico da tecnologia nuclear. Em 1982, o Brasil manifestou apoio às reivindicações argentinas na Guerra das Malvinas.

Em 1985, os presidentes José Sarney e Raúl Alfonsín aproveitaram a cerimônia de inauguração da Ponte Tancredo Neves, entre Foz do Iguaçu e Puerto Iguazú, para assinar a Declaração do Iguaçu, que previu a integração entre os dois países. O Brasil e a Argentina haviam acabado de sair de ditaduras militares, e a redemocratização facilitou a aproximação.

— Verificamos que há um avanço como nunca tinha havido — avaliou Simon. — Se compararmos todos os presidentes da República, desde o primeiro, Deodoro, veremos que todos juntos não visitaram a Argentina tantas vezes quanto o presidente Sarney visitou. Havia a interrogação em relação ao presidente Collor, se ele se dedicaria de corpo e alma à causa da integração. Afinal, ele fez uma campanha tão dura e tão ácida contra o presidente Sarney. Justiça seja feita. Ele assumiu no dia 15 de março [de 1990]; no dia 16, o presidente Collor e o presidente Menem assinavam convênios no Palácio do Planalto. Os dois faziam questão de demonstrar que defenderiam, que lutariam, que haveriam de avançar com a causa da integração Brasil-Argentina.

A Declaração do Iguaçu é considerada o embrião do Tratado de Assunção. O Uruguai e o Paraguai, que assistiram aos vizinhos assinando acordo atrás de acordo a partir de 1985, perceberam que a aliança era promissora e decidiram somar-se ao grupo. Foi assim que o degelo acelerado das relações bilaterais entre Brasil e Argentina deu origem ao Mercosul.

— Os dois presidentes [Sarney e Alfonsín], desde a inauguração da Ponte Tancredo Neves, estão decididos a encaminhar a economia dos dois países para um integração com que possam chegar a um futuro marcado. A integração começa com os dois. Depois virá o Uruguai. Depois será a vez do Chile. Foi a integração, pelo Mercado Comum Europeu, que salvou a Europa da pobreza e da dependência. Assim, me parece que a solução para a pobreza do nosso país e da nossa região é a sua integração em um mercado comum — disse, em 1989, o senador Ney Maranhão (PMB-PE).

Outro motivo que levou à criação Comunidade Econômica Europeia (antecessora da atual União Europeia), em 1958, foi justamente uma rivalidade histórica. A Alemanha e a França haviam protagonizado, sempre em lados opostos, as batalhas mais sangrentas da história da Europa, incluindo as duas guerras mundiais. Quando ambas as economias foram umbilicalmente conectadas, a tentativa de destruição mútua se transformou num mau negócio. Alemães e franceses nunca mais se enfrentaram.

 

Presidentes José Sarney e Raúl Alfonsín, precursores da integração Brasil-Argentina (foto: Victor Bugge)

Os papéis históricos do Arquivo do Senado indicam, no entanto, que o Mercosul não foi unanimidade. Alguns parlamentares encararam o novo bloco com ceticismo, ressalvas e até temores. Em 1992, o senador Gerson Camata (PDS-ES) afirmou que fazendeiros gaúchos estavam comprando terras no Uruguai e deixando de plantar no Brasil e que empresas como Autolatina, Cofap e Brahma estavam passando a produzir na Argentina para exportar para o mercado brasileiro:

— Criou-se um oba-oba em torno do Mercosul, que ficou, eu diria, como a ‘escola de samba campeã do ano’. Na realidade, os termos do Tratado de Assunção são desfavoráveis aos interesses do Brasil. O que estamos ganhando no primeiro ano? Começamos a perder bilhões de dólares nessas trocas com a Argentina, o Uruguai e o Paraguai. Estamos abrindo mão do poder de tomar decisões, abrindo mão do nosso mercado, em favor desses países, que são menores. Estamos perdendo empregos, renda e impostos.

No pronunciamento, Camata avisou que o Brasil ainda tinha tempo para abandonar o Mercosul:

— Felizmente para o Brasil, o tratado prevê que qualquer um dos seus integrantes dele poderá se retirar desde que o denuncie. Quanto mais cedo o Brasil denunciar esse tratado, melhor será.

Ainda em 1992, o senador Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP) afirmou que, apesar de ser partidário da integração do Brasil com os países vizinhos, o Mercosul tinha efeitos colaterais que não poderiam ser ignorados:

— Recentemente, fui ao interior de São Paulo, a São José do Rio Pardo, onde encontrei uma situação de desânimo. A cebola, base de riqueza da região, fora completamente deslocada pela importação da Argentina. Ora, dentro de pouco tempo estaremos totalmente presos pelo Tratado de Assunção. Se não tomarmos as medidas pertinentes no tempo oportuno, a integração, que é um fato positivo, terá um custo muito alto, capaz de destruir localmente certas bases de riqueza.

 

O palácio que abriga a sede do Mercosul, em Montevidéu, diante do Rio da Prata (foto: Mercosul)

Também um ano após a cerimônia em Assunção, o senador Nelson Wedekin (PDT-SC) criticou o fato de o tratado ser exclusivamente comercial:

— Ao privilegiar os aspetos mercadológicos, o Tratado de Assunção subestimou uma perspectiva que poderia ser bem mais abrangente. O conceito que defendemos é o da integração dos povos dos quatro países. Nossos esforços se devem somar para a busca do crescimento econômico e do progresso social, e não só para realçar a economia na óptica do empresariado. Por enquanto, o Mercosul está dentro desses limites estreitos. Ninguém até hoje sequer cogitou de uma aliança dos países membros para negociar em conjunto a dívida externa. O Mercosul poderia ser um espaço privilegiado que produzisse a reativação das nossas economias e uma política de distribuição de renda e riqueza. Não se espere isso, entretanto, das elites dos quatro países membros, que, quando muito, são capazes de vislumbrar o Mercosul como mero pacto de ampliação dos seus negócios.

Apesar das críticas de alguns senadores, o Congresso Nacional ratificou o Tratado de Assunção em setembro de 1991, seis meses depois do encontro dos presidentes no Paraguai.

Com o tempo, o Mercosul deixou de ser exclusivamente econômico e passou a se dedicar também a aspectos culturais e sociais. As escolas de ensino médio do Brasil, por exemplo, ficaram obrigadas a oferecer aulas de espanhol. Estudantes universitários de um país puderam dar prosseguimento aos estudos em outro país do bloco. O governo criou em Foz do Iguaçu, na fronteira com a Argentina e o Paraguai, a Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), que forma alunos dos países do Mercosul em cursos voltados para o desenvolvimento regional.

O tempo de trabalho e contribuição previdenciária em qualquer país do bloco passou a ser contabilizado para fins de aposentadoria. Os trâmites migratórios para turistas do bloco foram facilitados, dispensando a apresentação do passaporte. Os trâmites para residência temporária e permanente também ficaram menos burocráticos. As placas de veículos foram uniformizadas, para permitir um deslocamento mais ágil entre os países.

De acordo com a consultora legislativa Maria Claudia Drummond, que no Senado acompanha o Mercosul desde a assinatura do Tratado de Assunção, o bloco ajudou o Brasil a abrir-se para o mundo:

— Até então, o Brasil era um país fechadíssimo, tanto em exportações quanto em importações. A abertura ocorreu primeiro para os países do Mercosul, e não para o mundo de uma vez. Em função do Mercosul, foi um processo que se fez de forma controlada, aos poucos.

Ela observa que os brasileiros de uma forma geral têm pouco conhecimento sobre o bloco:

— Na Argentina, no Uruguai e no Paraguai, o Mercosul é bem mais conhecido. Como os territórios são menores e as pessoas atravessam mais a fronteira, o Mercosul é mais real para elas. Até mesmo o interesse acadêmico pelo Mercosul é mais forte nesses países. Aqui no Brasil, o desinteresse é total e isso vem se acentuando nos últimos anos.

Para o economista Luciano Wexell Severo, professor na Unila e coordenador do Observatório da Integração Econômica da América do Sul, o desinteresse dos cidadãos contribui com o enfraquecimento do bloco:

— Como o Brasil tem um território muito grande, existe uma aparência de autossuficiência. Mas não é assim. Hoje 85% dos itens que o Brasil exporta para os países do Mercosul são industrializados, como carro, carroceria, motor, cerveja e calçado. São itens que geram mais emprego, renda, arrecadação tributária e tecnologia do que produtos primários, como soja, celulose e carne, que exportamos para a China. Muitas vezes o trabalhador dessas indústrias não sabe que a integração com a Argentina, o Uruguai e o Paraguai é importante para ele. Esse trabalhador, por isso, não faz pressão política a favor do Mercosul. Isso é ruim porque o Brasil dificilmente terá uma economia pujante, com todos os benefícios sociais decorrentes disso, sem essa aproximação com os nossos vizinhos.

A Venezuela tornou-se a quinta nação integrante do Mercosul em 2012, mas foi suspensa em 2016, por ter descumprido acordos e tratados. A Bolívia está em processo de admissão desde 2015.

Fonte: Agência Senado

Reportagem e edição: Ricardo Westin

Pesquisa histórica: Arquivo do Senado

Edição de multimídia: Bernardo Ururahy

Edição de fotografia: Pillar Pedreira

 

 

 

 

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Extra, extra: parlamento derruba planos de D. Pedro I de restringir a liberdade de imprensa

D. Pedro I vivia em guerra com os jornais que criticavam o seu governo. Das 12 ocasiões em que discursou no Parlamento, em duas o imperador cobrou dos senadores e deputados uma lei que reduzisse a liberdade de imprensa e lhe permitisse punir e calar as “folhas” oposicionistas.

— O abuso da liberdade de imprensa, que infelizmente se tem propagado com notório escândalo por todo o Império, reclama a mais séria atenção da assembleia. É urgente reprimir um mal que não pode deixar em breve de trazer após de si resultados fatais — afirmou D. Pedro I em 1829.

O imperador pedia a aprovação de um projeto de lei restritivo que havia sido apresentado em 1827, mas vinha sendo levado em banho-maria pelo Parlamento. Diante da cobrança imperial, os parlamentares se viram obrigados a desengavetar essa proposta de Lei de Imprensa.

Documentos históricos hoje guardados no Arquivo do Senado, em Brasília, mostram que o projeto rachou os senadores. Para os governistas, a liberdade desfrutada pelos jornais estava mais para libertinagem e punha em risco a existência do Império recém-fundado (independente em 1822) e ainda não consolidado. Para os senadores oposicionistas, ao contrário, a imprensa livre era um dos requisitos para a sobrevivência da nação.

No fim, a oposição conseguiu barrar o ímpeto autoritário de D. Pedro I. A Lei de Imprensa de 1830 — a primeira do tipo aprovada pelo Parlamento brasileiro — concedeu aos jornais muito mais autonomia do que desejava o monarca.

 

 

Trecho do discurso pronunciado por D. Pedro I no Parlamento em 1830: desejo de amordaçar a imprensa (imagem: Falas do Trono/Biblioteca do Senado)

 

No Senado, a base governista tentou até o fim evitar a derrota do imperador.

— É lícito a cada um mostrar a sua opinião, mas é do nosso dever sustentar este governo e prevenir revoluções. Portanto, devemos castigar a quem atacar — argumentou o senador Carneiro de Campos (BA).

— O governo da Inglaterra é forte e justiceiro — discursou o senador Visconde de Cayru (BA), referindo-se ao grande modelo de Monarquia da época. — Quando há abuso da imprensa, o escritor é punido com pesada multa. Conforme a gravidade do caso, até é desterrado para a Nova Holanda [Austrália], sendo o transporte marítimo a ferros no porão do navio.

Para Cayru e Carneiro de Campos, jornais tendenciosos envenenavam a opinião pública e até poderiam persuadir os cidadãos a pegar em armas contra o governo, levando à dissolução do Império. Os autores de “folhas incendiárias”, portanto, deveriam ser levados ao banco dos réus e exemplarmente castigados.

Os senadores oposicionistas, por sua vez, argumentavam que os jornais não tinham tal poder e tão somente refletiam — e não criavam — a opinião pública. De acordo com esses parlamentares, a imprensa deveria ser o mais livre possível para que o monarca pudesse conhecer os verdadeiros anseios dos súditos e, assim, melhor governar o Brasil.

— A liberdade de imprensa é o esteio e o paládio do governo monárquico constitucional representativo. Sem ela, o governo não pode progredir — afirmou o senador Marquês de Caravelas (BA).

— A liberdade de imprensa é o veículo da felicidade de toda a sociedade, porque daqui é que vêm as luzes a todo o Império — acrescentou o senador Marquês de Queluz (PB). — Havemos nós de pôr uma mordaça ao cidadão? Será justo proibir-se-lhe que fale do governo, conhecendo qualquer defeito, quando das suas reflexões podem resultar melhoramentos? Eu quereria que a lei não punisse o escritor filósofo.

 

 

Jornal Astrea faz crítica ao autoritarismo de D. Pedro I sem citar o nome do imperador (imagem: Biblioteca Nacional Digital)

 

As tendências despóticas de D. Pedro I já eram explícitas. A sua medida mais rumorosa foi o fechamento arbitrário da Assembleia Constituinte em 1823. O imperador ficou irritado com os termos da Constituição em elaboração, que lhe dava menos poderes do que ele desejava. No ano seguinte, impôs uma Constituição ao seu gosto.

Mesmo com a Constituição de 1824 em pleno vigor, D. Pedro I adiou a convocação do Senado e da Câmara o máximo que pôde. As duas Casas do Parlamento só começariam a funcionar em 1826. Nesse interregno de dois anos, ele pôde comandar o país livremente, sem precisar dividir o governo com o Poder Legislativo.

No vácuo parlamentar, D. Pedro I assinou com Portugal o tratado de reconhecimento da Independência, que previa uma pesada indenização a ser paga pelos brasileiros. Ele também entrou na malfadada Guerra da Cisplatina, ao fim da qual o atual Uruguai conseguiu se libertar do Brasil. Ambos os episódios abalaram profundamente as finanças públicas, o custo de vida, o orgulho nacional e a confiança da população no soberano.

Mesmo quando o Parlamento se formou, o imperador relutou a repartir o poder. Ao escolher os ministros, por exemplo, ele recorria a pessoas do seu círculo de relações, e não a deputados da maioria parlamentar. As elites reagiram escrevendo na imprensa e votando na Câmara contra o monarca.

No início, o Senado não foi palco dessa reação pelo fato de ser naturalmente governista. Enquanto os deputados eram eleitos no voto, os senadores vitalícios eram escolhidos pelo próprio D. Pedro I a partir de uma lista tríplice. Ele, claro, só selecionava gente de sua confiança.

Sem assinar os textos, deputados recorriam aos jornais para disseminar as críticas ao monarca que não ousavam pronunciar da tribuna da Câmara. As leis da época permitiam o anonimato na imprensa.

Como a Constituição estabelecia que a pessoa do imperador era “inviolável e sagrada”, os ataques por texto se davam de forma camuflada. O expediente mais comum era chamá-lo de “tirano”, “déspota” e “absolutista” sem citar o seu nome. Por vezes, a referência direta era a reis de outras nações e outros tempos, como o francês Luís XIV. O contexto, porém, deixava claro que o alvo era D. Pedro I. Os jornais mais atrevidos recorriam à palavra “Poder” — anagrama de “Pedro”.

A imprensa oposicionista também alertava para o risco de o monarca tentar reunificar o Brasil a Portugal e rebaixar o novo Império à velha condição subalterna de Colônia. A hipótese não era de todo fantasiosa. Diante da morte de D. João VI em Lisboa em 1826, D. Pedro I havia despachado sua filha mais velha, D. Maria da Glória, para assumir o trono português, o que deixava os interesses das duas Coroas perigosamente embaralhados.

 

 

Slogan indica posicionamento do jornal Astrea contrário ao governo de D. Pedro I (imagem: Biblioteca Nacional Digital)

 

Nas discussões da Lei de Imprensa de 1830, os senadores governistas sugeriram a punição de quem escrevesse contra o monarca inclusive ataques dissimulados. O Visconde de Cayru discursou:

— Seria nula e irrisória a lei se unicamente punisse os ataques diretos. Só loucos rematados ou pessoas com tédio à vida poderiam publicar impressos em que diretamente afirmassem que se pode desobedecer ao chefe da nação. A esse respeito, os arteiros e temerários só inculcam malignas ironias, alegorias, epigramas, parábolas e romances, que são ainda de maior perigo, espalhando-se pelo vulgo. Muitas vezes, tais ataques indiretos são tão pungentes e evidentes que parecem apontar com o dedo os objetos contra os quais os mal-intencionados dirigem os seu tiros, ainda que os não nomeiem.

Outro ponto defendido pelo apoiadores de uma Lei de Imprensa dura foi a inclusão dos livros entre os escritos passíveis de processo judicial. Em reação, os adversários argumentaram que essa ideia não fazia sentido porque a população do Império era majoritariamente analfabeta — segundo o Censo de 1872, o primeiro do Brasil, não sabiam ler e escrever por volta de 80% das pessoas livres; entre os escravizados, o índice era de 99%.

— O livro que tivesse para cima de 100 páginas, este poderia circular. O povo não o lê nem quer que se lhe leia um livro assim. Lê folhas avulsas, e não livros, mormente se são dos que exigem mais aturada reflexão. Portanto, o livro pode muito bem passar, porque à liberdade de imprensa deve dar-se toda a extensão — disse o Marquês de Caravelas.

Apropriando-se justamente do argumento do analfabetismo, os governistas apresentaram outra ideia para tentar calar os adversários de D. Pedro I. Eles pediram que a futura Lei de Imprensa punisse também os desenhos. O senador Saturnino (MT) discursou:

— Quem duvida que pela estamparia se pode fazer, e de fato se tem feito, uso da poderosa arma do ridículo para abater, desacreditar e ainda transtornar os atos do governo dos quais muitas vezes pode depender a segurança do Estado?

Recorrendo a eufemismos, ele ainda tocou na delicada questão das gravuras pornográficas:

— Quem também duvida que a estamparia fornece o meio de espalhar pinturas indecentes, que corrompem a moral pública, principalmente na mocidade pouco acautelada, e que pela vulgarização de tais estampas se excitam paixões das quais podem resultar grandes males à sociedade?

 

 

Charge francesa trata da briga de D. Pedro I com o irmão D. Miguel pelo trono português: imperador jamais permitiria tal caricatura na imprensa brasileira (imagem: Honoré Daumier)

 

Um dos argumentos mais recorrentes dos aliados de D. Pedro I no Senado foi a Revolução Francesa, de 1789, marcada tanto pela convulsão social quanto pelo guilhotinamento do rei e pela derrubada do absolutismo monárquico. Apoiados nesse episódio, os senadores governistas sugeriram que a Lei de Imprensa punisse não só a palavra escrita, mas também a falada. Cayru continuou:

— O abuso nas palavras é a maior arma dos traidores. A hórrida prova se viu na Revolução da França tanto pela devassidão dos impressos malignos como pela verbal propagação de doutrinas subversivas em clubes, corpos de guarda, sociedades e até pelas inflamatórias pregações dos saltimbancos. Guardemo-nos dos horrores dos que, com gritarias, açulavam [incitavam] a plebe na França a enforcar nas lanternas das ruas, apelidando “aristocratas”, as pessoas mais distintas por seus títulos e serviços à nação. Para que fazermos ilusão, se este mesmo mal está entre nós e sobre nós?

Para os senadores da oposição, esse discurso do medo era balela.

— Não tem paridade o exemplo. Será o mesmo entre nós, uma nação pacífica, que uma nação revoltosa que não conhece lei, mas só o impulso do seu delírio em fermentação? — rebateu o senador Borges (PE). — Digo que, em tal caso [sendo as falas enquadradas na Lei de Imprensa], eu ficarei tremendo e não falarei mais, porque de minhas simples palavras se pode interpretar mal. Eu figuro um exemplo: se eu estiver fazendo um elogio a um ministro e der uma risada sardônica, será delito?

A imprensa no Primeiro Reinado era muito diferente da imprensa de hoje. Os jornais não noticiavam os acontecimentos, mas defendiam causas. A historiadora Tassia Toffoli Nunes, autora de uma dissertação de mestrado na Universidade de São Paulo (USP) sobre a liberdade de imprensa naquele tempo, explica:

— Os jornais foram espaços que as elites criaram para expor suas ideias políticas. Certas publicações faziam a defesa do governo; outras, a crítica. Para usar uma expressão da atualidade, o que se dava por meio da imprensa era uma guerra de narrativas. Sendo uma guerra, muito do que se publicava, claro, não era verdade. E não existiam jornais grandes, consolidados, profissionais. Eles normalmente rodavam algumas edições e desapareciam, sendo logo substituídos por novos títulos.

 

 

Em artigo, jornal Astrea pede a aprovação de uma lei que garanta a liberdade de imprensa (imagem: Biblioteca Nacional Digital)

 

D. Pedro I se preocupava com os jornais oposicionistas porque sabia que, mesmo a população sendo majoritariamente iletrada, a imprensa tinha, sim, influência sobre a sociedade. Foi por essa razão que, durante os três séculos do período colonial, Portugal jamais autorizou que se instalassem tipografias ou circulassem jornais no Brasil. A imprensa só foi permitida em 1808, quando D. João VI transferiu a sede do governo português de Lisboa para o Rio de Janeiro. Jornais e panfletos, de fato, acabaram sendo importantes na disseminação das ideias que levaram à Independência.

Ciente dessa influência, o soberano adotou a estratégia de apoiar jornais governistas que se contrapusessem às “folhas incendiárias”. Na Assembleia Constituinte de 1823, o deputado Carneiro da Cunha (PB) acusou D. Pedro I de pedir aos presidentes (governadores) das províncias que assinassem e distribuíssem nas repartições públicas o jornal O Regulador Brasileiro, escancaradamente pró-imperador.

Numa das edições, o jornal procurou criminalizar o mundo da política afirmando que, para o bem do Brasil, o Parlamento a ser criado pela Constituição não deveria ser autônomo, mas, sim, obediente ao monarca, uma vez que este seria o único capaz de fazer frente aos “abusos” dos legisladores.

Em 1829, o senador Borges disse que, a mando do governo, dois jornais publicavam fake news contra os parlamentares da oposição:

— Toda esta cidade [Rio de Janeiro] sabe como têm sido tratados os membros do Corpo Legislativo. E não vimos essa Gazeta do Brasil, que não teve outra tarefa mais que injuriá-los? E, se ela acabou, não vão aparecendo já certas alegorias nessa outra gazeta intitulada O Analista, que coincide com a primeira, porque admite injúrias muito palpáveis, apesar de se não publicarem os nomes das pessoas a quem são dirigidas?

Com frequência, o próprio D. Pedro I saía em defesa de seu governo nos jornais e assinava artigos disfarçado sob pseudônimos como Ultra Brasileiro, Constitucional Puro, Inimigo dos Marotos e Piolho Viajante.

Quando estava menos propenso aos argumentos, porém, ele podia partir para a violência. É conhecido o episódio em que seu braço-direito e ministro José Bonifácio de Andrada e Silva arbitrariamente mandou fechar jornais adversários no Rio de Janeiro. Episódio nebuloso foi o atentado contra o jornalista Luís Augusto May, do jornal oposicionista A Malagueta. May foi atacado em casa por homens encapuzados e por pouco não foi assassinado. A suspeita recaiu sobre Bonifácio.

 

 

Jornal governista O Regulador Brasileiro pede mais poderes para D. Pedro I e menos poderes para o Parlamento (imagem: Biblioteca Nacional Digital)

 

De acordo com o historiador Antonio Barbosa, professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB), a tendência despótica do imperador é explicada pelo momento histórico mundial em que ele viveu:

— No caso de D. Pedro I, o autoritarismo e os embates constantes com o Parlamento e a imprensa não podem ser interpretados como falha de caráter. Ele foi criado e educado para ser um monarca absolutista, como haviam sido seu pai, sua avó e todos os seus antepassados em Portugal. Quando chegou a sua vez de assumir o trono, contudo, a história acabava de virar a página, saindo do tempo do absolutismo, em que o rei governa em nome de Deus e tem poderes ilimitados, e entrando no tempo do liberalismo, em que o rei precisa seguir a Constituição e negociar com o Parlamento. O grande marco mundial dessa mudança foi a Revolução Francesa. D. Pedro I não soube lidar com a mudança dos ventos da história.

Barbosa acrescenta que o autoritarismo do primeiro imperador do Brasil também se explica pelo contexto nacional:

— Em 1822, existiam vários projetos de Brasil que disputavam a hegemonia. O plano de D. Pedro I, em que o país independente seria uma Monarquia, não era o único. Houve grupos que lutaram para que o país se transformasse numa República e grupos que se mobilizaram para que o Brasil continuasse fazendo parte de Portugal. Para fazer o seu projeto prevalecer, D. Pedro I entendeu que precisava agir com mão de ferro.

 

 

Embora educado para ser absolutista como D. João VI, D. Pedro I foi obrigado a dividir o poder com o Parlamento (imagem: Debret/The New York Public Library)

 

Diante da resistência de D. Pedro I a aceitar a partilha do poder característica dos governos constitucionais, até mesmo o Senado, aliado natural do imperador, no fim da década de 1820 mudou de lado, juntou-se à Câmara e tornou-se adversário. Foi assim que a Lei de Imprensa de 1830 saiu do Parlamento diferente da desejada pelo monarca.

Apesar de prever até nove anos de prisão para quem cometesse abusos em jornais, livros, desenhos e discursos, inclusive críticas indiretas ao imperador, a nova lei estabeleceu que os réus seriam julgados por tribunais do júri — isto é, por cidadãos comuns, e não por juízes. Isso, na prática, acabou por anular todo o rigor contido na letra da lei. Ao contrário dos juízes, os cidadãos comuns normalmente estavam afastados das brigas políticas e costumavam absolver os jornalistas processados.

A historiadora Tassia Toffoli Nunes diz:

— Pouco depois da aprovação da lei, houve juízes e professores de direito que a criticaram a avaliando que ela levava à impunidade dos redatores. Isso quer dizer que o Parlamento conseguiu fazer frente à tendência absolutista e arbitrária de D. Pedro I e favoreceu a liberdade de imprensa.

Ela chama a atenção para o fato de a censura prévia das publicações não ter sido aventada em momento algum das discussões no Parlamento:

— Nem mesmo os senadores e deputados mais conservadores do Primeiro Reinado chegaram a propor a censura prévia. Esse tipo de abuso só seria colocado em prática no Brasil muito tempo mais tarde, no Estado Novo [1937-1945] e na ditadura militar [1964-1985]. Nesses dois períodos ditatoriais da República, regredimos a uma prática arbitrária característica dos tempos da Colônia.

Logo após a aprovação da Lei de Imprensa de 1830, o jornalista Líbero Badaró foi assassinado em São Paulo. Nas páginas de seu jornal, O Observador Constitucional, Badaró não poupava D. Pedro I. Embora não se tenha atestado o envolvimento do monarca, o crime comoveu a opinião pública e contribuiu para minar ainda mais o governo. Meses depois, em 1831, o imperador viu-se forçado a abdicar do trono.

A partir de 1830 e até o fim do Império, a imprensa brasileira foi, na prática, livre. O oposto de seu pai, D. Pedro II jamais se incomodou com as críticas publicadas. Foram frequentes as charges que o retrataram em situações ridículas. Um dos apelidos que os jornais adversários lhe deram foi Pedro Banana. Até mesmo fake news contra ele circularam sem sofrer repressão.

 

 

Embora jornais o ridicularizassem, D. Pedro II não perseguia a imprensa (imagem: Biblioteca Nacional Digital)

 

Numa carta à princesa Isabel, D. Pedro II explicou:

“Entendo que se deve permitir toda a liberdade nestas manifestações [da imprensa] quando não se dê perturbação da tranquilidade pública, pois as doutrinas exprimidas nessas manifestações pacíficas se combatem por meios semelhantes, menos no excesso. Os ataques ao imperador, quando ele tem consciência de haver procurado proceder bem, não devem ser considerados pessoais, mas apenas manejo ou desabafo partidário”.

Reportagem e edição: Ricardo Westin

Pesquisa histórica: Arquivo do Senado

Edição de multimídia: Bernardo Ururahy

Edição de fotografia: Pillar Pedreira

Montagem da Capa: Aguinaldo Abreu

Fonte: Agência Senado

 

 

SAIBA MAIS – Assista à conversa entre os Profs. Drs. Fábio Ferreira e Isabel Lustosa intitulada "O nascimento da imprensa no Brasil: entre D. João VI e D. Pedro I"

 

 

 

 

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As CPIs ao longo da História do Brasil

Niterói, 19 de maio de 2021.
Da Redação.

Depoimento de PC Farias à CPMI que resultou no afastamento de Collor /Fonte: Agência Câmara de Notícias.

Recorrentemente, as Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) estão nos noticiários e nas rodas de conversa dos brasileiros. No entanto, quando surgiu a primeira CPI do Brasil? Talvez influenciados pela memória, muitos pensem que foi no período posterior ao Regime Militar (1964 – 85), em especial a de PC Farias (1992) e a dos Anões do Orçamento (1993), que foram marcantes para aqueles que viveram os anos de 1990. Porém, quem apostou na própria memória, errou. Como a história não é uma ciência exata, pode-se entender que, dependendo do prisma, já nos anos iniciais do Império, o Brasil assistiu à sua primeira CPI. Dependendo da interpretação, foi na Era Vargas (1930 – 45), que houve a primeira Comissão Parlamentar de Inquérito.

Primeiro, há de se apontar as razões para duas possibilidades de interpretação. Sobre os que entendem que o surgimento deu-se no Império, o argumento baseia-se no fato de que, em 1826, um grupo de deputados e senadores uniram-se para fiscalizar o Banco do Brasil, que vivia uma séria crise, não muito diferente do contexto político e econômico do país à altura. Embora à época não tenha sido usado o termo CPI, na prática a atuação conjunta dos parlamentares foi a da fiscalização, cerne das CPIs atuais.

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Para os que arrogam que foi durante a Era Vargas que o Brasil teve a sua primeira CPI, o argumento consiste no fato de que na constituição de 1934 já havia a previsão do estabelecimento de Comissão Parlamentar de Inquérito com a função fiscalizadora, ou seja, com a mesma designação e fins dos dias atuais. Os Estados também foram autorizados a realizarem as suas respectivas CPIs, sendo apenas o de São Paulo e o do Mato Grosso que declinaram dessa possibilidade. Curiosamente, em um período de exceção surgia a possibilidade de instalação de CPIs nos âmbitos nacional e estadual.

De acordo com a carta magna de 1934, apenas a Câmara dos Deputados tinha a prerrogativa de criar uma CPI, desde que se tivesse um terço dos membros da casa. Diferentemente dos dias de hoje, o Senado Federal não tinha tal competência. Em 1935, a partir de requerimento assinado por 106 parlamentares, foi estabelecida a CPI relativa às “condições de vida dos trabalhadores urbanos e agrícolas”.]

– Mais conhecimento: para artigos acadêmicos, clique aqui.

Advogado e opositor ao governo federal, o deputado baiano João Mangabeira foi quem pediu a criação da comissão, que, uma vez instalada, além da sua participação, teve como presidente o advogado Victor Russomano (deputado pelo Rio Grande do Sul) e, como vice, o oposicionista José Augusto Bezerra de Medeiros (Rio Grande do Norte), além de outros membros como o empresário carioca Eduardo Duvivier, o paulista Aniz Badra, intitulado deputado classista (modalidade de parlamentar existente no período), que representava empregados da lavoura e pecuária, e o baiano Lima Teixeira, classista representante dos empregadores da lavoura e da pecuária, dentre outros nomes.

Em 1937, com o Estado Novo, o Brasil ganhou uma nova constituição, que não previa CPIs. Estas só foram retomadas na carta de 1946. Durante o Regime Militar surgiram as Comissões Parlamentares Mistas de Inquéritos (CPMIs), compostas por deputados e senadores, que, por sua vez, tinham um determinado período de tempo para realizarem suas investigações.

Em foto do acervo do Arquivo Nacional, o Palácio Tiradentes, no centro do Rio: palco da CPI de 1935.

Ao longo do século XX, o Brasil teve CPIs que investigaram os mais distintos temas, que incluíram de questões separatistas (em 1965 em relação ao Acre) à fuga de cérebros (1968), passando pela devastação da Amazônia (1979 e 1989), Violência Urbana (1980) e corrupção (infelizmente, inúmeras, impossíveis de se pontuar).

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GETÚLIO

Cartaz do filme Getúlio.
Cartaz do filme Getúlio.
Direção: João Jardim/Roteiro: George Moura

Elenco:  Tony Ramos, Drica Moraes, Alexandre Borges, Thiago Justino, Alexandre Nero, Jackson Antunes, Clarice Abujamra, Fernando Eiras e Daniel Dantas.

Coprodução: Globo Filmes, Copacabana Filmes, Fogo Azul Filmes, Midas Filmes.

O filme de João Jardim aborda os últimos dias de vida do presidente Getúlio Vargas (Tony Ramos), com o profundo entrelace entre a vida pessoal do personagem, o seu governo democrático e a História do Brasil. 
A película inicia-se com o famoso atentado a Carlos Lacerda (Alexandre Borges) na rua Tonelero, em Copacabana, que resulta no assassinato de militar da Aeronáutica. Nas próximas horas do filme, o espectador assiste à investigação criminal e, em especial, as consequências na política nacional e para Vargas do crime em questão. Pouco a pouco, vai-se, nesse thriller político e psicológico, desvendando-se um Vargas fragilizado não só politicamente, mas, também, emocionalmente, cansado das intrigas típicas dos jogos de poder. Vai-se, assim, descortinando um personagem que os âmbitos político e pessoal estiveram, por décadas, intrinsecamente ligados. Em seu crepúsculo, seja como homem público, seja como indivíduo, um inocente Vargas descobre paulatinamente o quão perto de si estava o “mar de lama”, expressão utilizada por seus opositores, que a política brasileira e o Catete estavam mergulhados. O filme termina com o já conhecido desfecho trágico da situação, para, em seguida, brindar o público com várias imagens da época.
Brilhantemente, Tony Ramos e Drica Morais interpretam, respectivamente, o personagem título e a sua filha. Mesmo não guardando semelhanças físicas com o presidente em questão, vê-se, em Tony Ramos, Getúlio Vargas. Drica passa ao público o drama de Alzira, filha que vê o declínio político e pessoal de seu pai. Alexandre Borges faz o ferrenho opositor do líder máximo da nação. Jackson Antunes dá vida ao vice, Café Filho, desejoso de poder, mesmo que para isso venha a trair Vargas. Enigmático, Thiago Justino interpreta Gregório Fortunato.
Importante pontuar que as lentes de Jardim captam com maestria a beleza ímpar do Palácio do Catete. Valendo-se do cenário em que os fatos históricos se desenrolaram, o diretor realiza vários takes, que apontam a dramaticidade do momento da História do Brasil e dos Vargas.
Assim, Vargas é uma produção brasileira que traz ao público parte da história republicana em um interessante filme, valorizado, também, pela beleza estética da película, pelos ótimos atores que interpretam com maestria personagens históricos e com roteiro que prende o espectador do início ao fim. Vale muito assistir! 

 

Saiba mais sobre a Era Vargas clicando aqui.

 

Tony Ramos como Vargas.
Tony Ramos como Vargas.

 

 

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