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As referências ao comunismo no início dos anos 30 no Diário de Notícias

Artigo de Cristiano Cruz Alves

Licenciado em História pela Universidade Federal da Bahia; pós-graduando em metodologia em pesquisa, educação e extensão pela Universidade do Estado da Bahia; Mestrando em História Social pela Universidade Federal da Bahia. Professor da rede municipal de ensino de Camaçari. E-mail: ccalves@ufba.br. Orientador Prof. Dr. Muniz Ferreira Gonçalves.

 

O COMUNISMO: UMA ILUSÃO

O anticomunismo é um fenômeno social e político que encerra em si um conjunto de ações, discursos e estratégias que visa combater o objeto da sua crítica e recusa: o comunismo (MOTTA, 2002, p. XIX). Para tanto, a construção de um conjunto de idéias acerca do comunismo é necessário para conformá-lo como um inimigo social, um ente que se contrapõem aos valores, instituições e estruturas sociais e econômicas vigentes na sociedade capitalista e ocidental.

Dentre os elementos mais importantes que estão presentes nos discursos anticomunistas é a idéia de que o comunismo tende a desintegrar a sociedade tal como as pessoas a conhecem e a aceitam, laçando-a numa desordem social. O discurso é concatenado com os referenciais sociais que mantém coeso o todo social em que as representações são criadas e transmitidas. O que pude constatar no caso baiano é que as idéias e noções disseminadas pelos anticomunistas estão relacionadas às questões religiosas, à família e a harmonia social, principalmente.

Estas idéias se constituíram num ideário disseminado pelas forças conservadoras da sociedade cuja formação se deveu à propagação de uma noção de comunismo como ameaçador para a ordem social e o proponente estabelecimento de uma sociedade comunista levaria ao fim valores cristãos e capitalistas. Por isto as classes dominantes no intuito de legitimar as desigualdades existentes e negar a eficácia do comunismo, descaracterizavam-no ao apresentar-lhe como um "perigo", redefinindo conceitos e moldando ações políticas.1

A construção de um imaginário em torno do comunismo, cuja definição é forjada pelos seus opositores mais radicais é um produto do anseio das classes dominantes de torná-lo aos "olhos" da sociedade um ideário de desgraça, da emergência do caos social e do terror político. Assim, o comunismo seria destrutivo, constituindo sua principal meta a aniquilação da escala de valores sociais, pois o comunismo é tão somente uma ideologia que cria o caos, elimina as distinções ou quebra escala de valores sociais.

Compreender a forma como e porque este imaginário é forjado e para que interesses ele serve é também apreender o significado na constituição deste, imaginário fundado em certas restrições ou preconceitos com relação a posturas e a mentalidade política e social. Se a sociedade baiana não era considerada um terreno fértil para a sementeira comunista, como afirmavam alguns anticomunistas, fica claro o contrário: a incipiente mobilização popular no início dos anos 30 provocou temores às alguns setores das elites que passaram a ver a Revolução de Outubro como ameaça à hierarquia social.2

 

A REVOLUÇÃO DE 30 E A BAHIA

A principal característica política do período 1889-1930 é a representatividade restrita e a rigidez da estrutura de poder. Baseado nestes dois elementos, os setores tradicionais conservaram-se no poder sem grandes percalços até 1930 quando houve um rompimento na perpetuação da monopolização dos espaços de poder.

A persistência desta máquina político-administrativa, excessivamente vulnerável ao poder das elites econômicas tradicionais, tornou-se incompatível com as mudanças em curso na sociedade brasileira, em vias de superação do status de economia primário-exportadora.(DINIZ, 2004, p.82)

A incompatibilidade exposta acima, entre as mudanças na sociedade e a permanência das mesmas elites agrário-exportadoras no poder, se expressava principalmente na demanda por uma participação autônoma de outros setores que vinham sistematicamente protestando contra o sistema político vigente, como por exemplo, o operariado, alguns funcionários públicos e a pequena classe média. Entretanto, na Bahia isso não ocorria de maneira intensa, tal como no Centro-Sul estava acontecendo.

A despeito das caracterizações que se possa fazer a respeito das mobilizações populares na Bahia nas primeiras três décadas do século XX, posto que sua importância está na negação da visão de indolente e pacífico que é atribuída ao baiano, as organizações e mobilizações do povo não atingiram o mesmo grau de contundência e enfrentamento se comparadas com as de São Paulo e Rio de Janeiro, exceto pela greve de 1919. Parafraseando um dos autores que estudou as condições do trabalhador baiano na Primeira República, um dos traços mais importantes foi a cooptação de setores populares por parte das classes dominantes e a sua domesticação. (SANTOS, 2001, p. 101)

Indo mais além, podemos afirmar que ao contrário do que algumas correntes pensam a respeito da reestruturação política, da participação e representação nacional após 1930, continuou existindo uma sistemática exclusão por parte das classes dominantes e por alguns representantes da própria classe trabalhadora. Constitui-se assim, na visão de Ítalo Tronca uma ocultação do real, já que a escrita da história da revolução de 1930 "foi e continua sendo um poderoso instrumento de dominação, na medida em que apagou a memória dos vencidos na luta e construiu o futuro na perspectiva dos vencedores." (TRONCA, 1982, p. 7)

O temor gerado pelas elites quanto às indefinições dos rumos que o país iria tomar gerou a continuidade e o aprimoramento de um circuito de dispositivos repressores e disseminadores do medo à instabilidade social. Ao mesmo tempo em que ocorria o recrudescimento da disposição totalitária, ocorria uma série de redefinições em relação a cidadania e ao que é "o brasileiro" e o contraponto disto – a formação de um inimigo configurado pela negação destas noções construídas pelo Estado e por parte da sociedade. Este inimigo seria o comunismo

A partir de 1930, ocorreu uma alteração na relevância que a imprensa escrita atribuía ao "credo de Moscou". No âmbito estatal, se conformaram também algumas mudanças em relação ao regime anterior, como a criação de uma seção especial de combate ao comunismo no Rio de Janeiro e a edição de leis que tornavam o movimento operário atrelado ao governo (TRONCA, 1982, p. 92-93). As ações policiais e as leis que limitavam a manifestação e organização das classes populares justificavam as repressões devido à propalada "ameaça comunista". Neste sentido, a preocupação era a contenção de possíveis movimentos que ameaçassem a estabilização do novo governo. Portanto, a violência continuou a ser infligida nas delegacias e prisões contra os dissidentes políticos e pertencentes às correntes políticas que não acatavam a normalização do regime tal como estava se processando, principalmente, os comunistas. (PINHEIRO, 1991, p. 259).

A Bahia não esteve alheia à profusão da institucionalização das ações autoritárias, principalmente após 1930, gerado pelo temor às mobilizações populares. Na Bahia, também ocorreu uma maior atenção ao comunismo por parte das elites locais. Contudo esta preocupação estava assentada em formulações ideológicas que remontam ao início da República. O comunismo era um elemento novo que contribuía para a "conturbação" social, mas que não se dissocia de outros – se pensarmos que o combate ao comportamento arredio das camadas populares tanto em seus aspectos culturais como em suas condições de trabalho já existia.

Refiro-me especificamente às modalidades de violência que se praticava para conter a ascensão de uma camada considerada inculta, irracional e incapaz de ocupar os espaços de poder. Este processo de constante segregação social que continuou na década de 1930 – não obstante certos momentos de legalidade liberal – ocorreu paralelamente a um projeto elitista de adequar á Bahia a um modelo de "civilização" que pelo seu caráter excluía manifestações outras que a ameaçavam sobremaneira. É possível nos aprofundarmos nisto se admitirmos que aspectos, abordagens, atores sociais negligenciados pela história factual agora se tornam vitais para entendermos o quanto pode parecer normal que na Bahia, não tendo um movimento operário hegemonizado pelo anarquismo ou comunismo possa existir um anticomunismo tão presente nos jornais.

Ações e idéias que excluíam a grande parte da população vinham sendo implementadas para afastar as classes perigosas do centro dos acontecimentos sociais e políticos. Um dos exemplos que poderia ser citado é o carnaval. Considerado pela elite baiana como uma festa européia porque resgatava elementos "bons" e "civilizados" do velho continente, o carnaval com influência africana não era bem visto. Vê-se no início do século XX, a linguagem de "civilização" contra o "barbarismo" devido ao aumento da africanização do carnaval.(BURKE, 2000, p. 228)

A violência não era descartada, pelo contrário, era elemento presente quando ocorria resistência de qualquer tipo a este modelo de sociedade, e nisto se inserem várias lutas contra a carestia, por exemplo. A partir de 1930, as mudanças que irão ocorrer no âmbito governamental para aplacar estas lutas, como a regulamentação trabalhista e a organização sindical terão reflexos na relação entre camadas populares e Estado, mas não fizeram dissipar a repressão tanto concreta como simbólica – nesta tendo como feixe principal o anticomunismo.

Estas características da sociedade baiana contribuíram sobremaneira para a construção do "outro" como inimigo. Recorrendo a Dutra, trabalho no qual faz um paralelo entre anticomunismo e a construção de um Estado autoritário e discricionário, o comunismo é este "outro" o que ameaça a ordem (DUTRA, 2002, p. 126). O anticomunismo, nesta ótica, então faz parte de um processo de reforço de valores morais, religiosos, familiares e pátrios que ao delimitá-los, os simpatizantes e seguidores do totalitarismo fascista automaticamente discricionam aqueles valores que não se inserem no campo conservador-autoritário. Esta ação combinada com a formulação de representações acerca do "outro" em uma sociedade que procura expurgar as classes populares, mais as resistências políticas à Revolução de 30 pelo seu caráter indefinido conflui para o comunismo.

Justificadas pela eminente desagregação social, provocada pela instabilidade política e econômica, as forças que defendiam um Estado forte atribuíam ao comunismo a causa para a desunião e a descrença nas instituições. Em 1935, aos olhos das elites, a Intentona Comunista veio apenas confirmar o perigo que representava, visto que, os conceitos e formulações acerca do comunismo estavam provando seu poder aniquilador do Estado e sociedade brasileiras. A conseqüência para os comunistas foi a intensificação da hostilidade e um clamor por punição e prevenção contra novas rebeliões.(HILTON, 1986, p. 93)

 

O DISCURSO ANTICOMUNISTA

Uma das manifestações mais importantes do início da década de 1930 que gerou protesto de vários jornais quanto ao seu caráter foi o Quebra-bondes.

Ocorreu no dia 4 de Outubro, um dia após o início do movimento militar. A insatisfação em relação aos aumentos de passagem aliada ao fato da companhia ser estrangeira fizeram surgir uma associação do explorador com a exploração. O culpado era o americano, que além de tudo usava a bandeira brasileira de maneira vil3. Houve a quebra dos bondes, um ataque ao edifício-sede do jornal A Tarde e a destruição de prédios públicos e privados. Os revoltosos foram presos. Eis a notícia que foi veiculada dois dias após, num jornal do interior da Bahia:4

 

OS GRAVES ACONTECIMENTOS DA BAHIA5

O povo, num assomo de revolta, depreda edifícios e incendeia bondes da Linha Circular. A Cidade viveu hontem uma noite de intensa agitação por ter um grupo numeroso de pessoas do povo, depois de engrossado e dividido por outros grupos, atacado o prédio da Companhia Circular apedrejando-o e modificando-o. Em seguida o referido grupo voltou-se para os bondes que desciam o Saldanha, rumo ao Terreiro, apedrejando-os rapidamnte. Appareceu logo ahi kerosene e gazolina e vários carros foram incendiados (…) Parece que há germem de comunismo nos graves acontecimentos de sabbado último.6

A intenção do jornal baiano neste evento específico era associar a violência do evento ao comunismo. Reforço do comunismo como um mal, a violência era uma das suas manifestações mais evidentes, causa para atitudes desreguladas socialmente. É neste sentido que as palavras guardam o efeito de produzir para o leitor as noções de Bem e Mal: O Bem são os baianos pacíficos e ordeiros, enquanto que o Mal, são os outros, neste caso o comunismo.

Nos meios de comunicação a ilusão da objetividade do discurso é mais visível por que intencional. O jornal, por exemplo, transmite uma ordem onde estão contidos valores ocidentais, "onde o bem é o anticomunismo em função dos consensos, explicações com encadeamentos de causa e efeito etc., que vão sendo organizados".(MARIANI, 1998, p.122). O discurso jornalístico tende a encadear os sentido e produzir uma lógica que aparenta ser imanente a realidade, sem discussão profunda do que venha a ser o comunismo e se o que está sendo posto como comunismo o é de fato.

O comunismo era uma ideologia que não tinha possibilidade de ser implantada no Brasil e para alguns se tinha que tomar todo cuidado por parte do governo para que o comunismo não pudesse se expandir e instituir a "anarquia". Neste sentido, a Revolução de 1930 trouxe um medo quanto à inserção de comunistas no movimento, como no texto abaixo:

Cuidados com as insídias communistas! […] Como em Buenos Aíres, incubiram-se dessa ignominiosa tarefa de subversão da ordem, para implantar o domínio da anarchia, os elementos comunistas que se acoitam neste momento, nas grandes capitais das nações civilizadas, aguardando opportunidade propícia, para semeadura dos seus planos machiavélicos. E, com esse propósito, e encorajados para essa finalidade, os comunistas do Rio de janeiro, aproveitando-se daquelles instantes de irreflectidas deliberadamente, crearam, de chofre, uma situação de desentendimento entre as forças do Exército nacional alli estacionados e a polícia militar e o corpo de bombeiros que deixaram os seus quartéis e, na praça pública, entraram, corpo a corpo, em lucta ingloriosa, dahi resultando o desfecho conquistador de um morticinio.7

A notícia se refere ao Rio de Janeiro, mas não impede sua análise por conta da concordância por parte do diário baiano em publicá-la. Demonstra preocupação em relação aos rumos da revolução em face de acontecimentos ocorridos em outros países. Os exemplos estrangeiros e de outros estados colaboram para a formação de um anticomunismo ao apontar a desordem causada ao alertar para a possibilidade disso ocorrer caso o comunismo destruísse o Estado.

Podemos inferir também que ao ressaltar os embates militares entre o exército e os comunistas, aqui ainda chamados de "anarquistas", a interpretação do leitor pode indicar um perigo de um conflito militar interno, o que contribui ainda mais para a rejeição do comunismo e seu combate como ideologia "perniciosa".

A partir de 1930, há uma atenção maior também para a situação do operariado. Este, considerado alvo preferencial pelos comunistas, precisava ser alertado das falsas promessas da "doutrina vermelha". Para tanto, notei que houve um discurso específico construído para "esclarecer" o que seria o comunismo e apontar as negatividades que poderia trazer para o operário se este fosse levado à adotar o comunismo.

Parte do que foi veiculado pelo Diário de Notícias foi realizado a partir de conclusões a respeito da condição do operariado russo após a revolução comunista de outubro. Mesmo não sendo explícitos neste ponto, os autores do artigo tomavam como referência o operariado da Rússia para estabelecer prognósticos sobre como poderia ser no Brasil, apontando as mazelas que seriam geradas caso o comunismo dominasse o país.

Um artigo que mostra este ponto de vista é apócrifo – como boa parte dos artigos o é:

O Operário da Indústria Escrevemos estes artigos como propaganda que instrua o povo brazileiro acerca dos porquês a que se expõe se prestar ouvindo à predica de falsos apóstolos da liberdade individual, da igualdade social e da fraternidade em que viverão os homens de todas as condições de cultura, de origem social. Promettem esses apóstolos uma organização social ideal, em que cessam as desigualdades e toda gente se bitola pelo principio, que nosso povo defini tão bom como tão bom. Pois espere isso o bom povo brazileiro: – o contrário há de acontecer porque taes apóstolos trazem, como disse o poeta lusitano – Mel na voz, fel na tenção. E quem são no Brasil taes pregadores do communismo, do anarchismo, da demolição total da organização social, para sobre sua ruína implantar-se o communismo , que significa guerra de noite à santa religião de Christo, de destruição completa da Família e obliteração do sentimeno da Pátria, que lida com indissolúvel cadeia, o indíviduo à gleba que o viva nascer? Sim, quem são esses homens. […] [nesta parte, o artigo descreve a vantagem da organização do trabalho em relações as aptidões dos indivíduos em determinadas áreas] E vide o que seria, si em vez dessa bella organização em que cada um escolhe o gênero de actividade que se coaduna com a sua natureza, todo um povo fosse obrigado a trabalhos necessários a apenas a sua subsistência, sob o mando de governos despóticos, sem liberdade na escolha do modo de applicar o seu esforço! E, a propósito disso, acabo citando a palavra de um autor – A rotina, a ausência de expontaneidade da vida communista, é um peso para os espíritos, que a segurança dos meios de vida não compensa.8

Neste texto, como na grande maioria, há uma referência à religião, onde se reafirma o comunismo como uma ameaça ao cristianismo. Denuncia também a "ilusão comunista" da liberdade, igualdade e fraternidade, cuja realização não é possível de acordo com os princípios e moldes comunistas. O problema desta utopia seria o represamento da espontaneidade humana que no comunismo estaria posta pela impossibilidade do homem escolher sua própria atividade. Atingindo a religião e a liberdade, bases fundamentais da sociedade brasileira para os liberais e conservadores da elite no poder, o jornal tende a criar nos seus leitores um repúdio ao comunismo pela negação destes aspectos da vida social.

Não obstante a isto tudo, o jornal representava os interesses do governo que acabara de ocupar o poder. Através da publicação de várias cartas e artigos de Agripino Nazareth, advogado e um dos líderes operários da Greve de 19199, o jornal compactuava com a política sindical do governo Vargas.Esta política que ao mesmo tempo legalizava direitos reivindicados por mais de duas décadas, trazia para perto de si líderes operários para auxiliar o governo a organizar os sindicatos para atender o seu desejo de controlar os trabalhadores.

As violências perpetradas contra a classe trabalhadora e a população descontente com o regime não eram noticiadas pelo Diário de Notícias. Mas a inquietação do governo quanto à organização e à articulação dos sindicatos baianos com os comunistas era algo latente, pois vários foram os textos jornalísticos que versavam sobre o assunto. Curiosamente, em quase todos eles Agripino Nazareth está presente, ou como destinatário de uma carta ou mencionado por outro autor, o que nos permite especular a respeito da função organizacional desempenhada por ele na Bahia com vistas ao controle e a impedir a inserção dos comunistas no sindicalismo baiano.

Um destes textos é uma resposta de Agripino Nazareth a um líder operário – não mencionado – em relação a preocupação do primeiro quanto ao comunismo.

Certo devereis prosseguir no trabalho de reivindicação do Centro Operário da Bahia para os operários, delle afastados os elementos estranhos que o converteram num colo de politicalha. […] O homem que ora dirige os destinos da Bahia vem de uma campanha iniciada na propaganda liberal, prosseguida nas urnas eleitorais e victoriosa, afinal, no embate das armas revolucionárias com as dos defensores do regimen olygarquicos. É, portanto, o interventor federal um integrado na mentalidade do Brasil Novo e não opporá entraves à reorganização syndical dos trabalhadores bahianos até porque fiéis à antiga orientação de adeptos do syndicalismo puro, sem mescla de ideologia política ou philosophica, sereis uma barreira á penetração do bolchevismo dissolvente e da politicagem profssional, um e outra igualmente funestos à vida das associações de classe. Com os meus agradecimentos às confortadoras expressões do telegrama que me dirigistes em nome do proletariado bahiano, o abraço fraternal a todos os companheiros e o concitamento a que retomeis o fio mentalmente interrompido da syndicalização obreira.10

O comunista é visto como estranho à classe operária baiana. Não merece atenção pois é "de fora", não pertence às tradições locais nem respeita às características do operariado baiano. O reforço de valores morais e religiosos combinada com a formulação de imagens acerca do outro confluem para o comunismo como aquilo que não se insere na sociedade e, portanto, o ameaça. É preciso então extirpá-lo; as práticas, ações e representação cumprem inseridos no jornal baiano cumprem este papel. Portanto, o comunismo é o "outro" por ser estranho ao processo de construção de valores religiosos e morais.(DUTRA, 2002, p.126)

No final há uma consideração interessante, que demonstra o quanto é inócuo o operário, incapaz de se auto-organizar e frágil politicamente para impedir a penetração do comunismo no sindicalismo baiano. Este era visto como "uma classe incapaz de pensar e agir por si mesma, totalmente manipulada pelo partido"[PCB].(SILVA, 2001, p. 73). Aliás é interessante assinalar que as algumas referências à sociedade baiana especificamente se acham implicitamente nestes textos – como o baiano pacífico e ordeiro.

Também havia a inquietação em relação às greves. Curioso foi ler que, no trecho abaixo, esta apreensão partiu dos próprios operários(sic)!

Tivemos oportunidade de receber hoje, nesta redação, a visita de uma comissão de empregados da Companhia Circular, comissão esta que era constituída dos seguintes srs.: Américo Gomes da Silva, inspector; Gumercindo Ferreira, inspector; Juvêncio Alves do Nascimento, inspector; Argileu de Oliveira Lima, fiscal; Albino Garcia Martins, motorneiro; Antonio Pereira Souza Filho, conductor e Euclydes Gomes da Silva, motorneiro. Em nome dos mesmos, falou interpretando a orientação geral o sr. Gumercindo, que disse dos sentimentos seus e de seus colegas, contrários a qualquer greve, nesta hora, em que urge a acção da paz e do trabalho , para que a população nada soffra nos seus interesses. Ora comprovar a solidariedade dos companheiros, exibiu-nos, então um abaixo-assassinado de cerca de quatrocentas assignaturas, estando já assignados 364 empregados e faltando ainda outros assinar. Acrescentou a Comissão que, nos visitou que os ensaios de gréve são promovidos por indivíduos estranhos à classe, tendo encontrado repulsa da mesma.11

Além da própria disposição dos operários a repudiarem o movimento grevista, eles reconhecem que este é promovido por estranhos ao operariado, nada tendo a ver com este. Infelizmente não é possível tecer afirmações a respeito deste texto, pois faltam ainda trabalhos sobre o operariado baiano no período, o que poderia contribuir em muito na resposta para várias questões acerca da relação do operário baiano com uma importante organização operária, o Centro Operário.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em geral o anticomunismo baiano circunscrito no Diário de Notícias no início doa anos 1930, seguiu a linha de argumentação que outros trabalhos do gênero identificam em jornais, revistas livros e imagens de outras regiões do país em relação ao comunismo.

A construção de algumas referências sobre o comunismo na Bahia por parte do Diário de Notícias se processou certamente pela ótica elitista, tendo em vista as concepções de participação política excludente e repressora eu esta camada sociedade propugnava de maneira velada, o eu tornava as manifestações populares como foi a do Quebra-bondes ou as ameaças de greve, preocupações as mais diversas possíveis, em relação a possível penetração do comunismo no seio das classes populares.

A "questão social" foi um tema recorrente no Diário de Notícias. Quando tratada pelos intelectuais do periódico baiano, a maior parte da população não era vista como um ente que emitisse opinião sobre os problemas sociais. Está nisto, ao meu ver, uma das razões pelas quais a repressão violenta a manifestações contra o aumento de preços do bonde e a redução das condições de trabalho era algo normal e aceito pela pelo poder instituído. Como não é capaz de seguir uma conduta "correta", segundo os parâmetros ditados pela "sociedade baiana" é necessário guiar o povo para eu não enverede pelo comunismo. Assim, os protestos e as greves são formas incorretas e insidiosas eu atentam contra os valores religiosos e morais.

O operário foi sem dúvida um dos temas mais freqüentes no Diário de Notícias. Seu tratamento se dava em certa medida pela mesma perspectiva em relação ao restante da população: era preciso instruí-lo para afastá-lo do "mal vermelho" e obter maior eficiência no trabalho. Mas diferentemente disto, ocorria em parte dos textos, uma precaução com relação à articulação do operariado baiano com o comunismo. A interferência de Agripino Nazareth demonstrava que o governo Vargas não pretendia deixar a pequena classe operária baiana à deriva dos "sabores do diabo vermelho".

A organização dos sindicatos era um tema crucial, sendo sempre levantado por Agripino Nazareth em alguns telegramas publicados pelo Diário de Notícias. A postura de alguns líderes operários e Agripino Nazareth era clara: organizar os operários para impedir a propagação do comunismo.

No jornalismo baiano, mais especificamente em dos seus principais jornais, o Diário de Notícias foi notado uma postura claramente anticomunista com a intenção de transmitir idéias e noções sobre o comunismo que pudessem "esclarecer" a população. Sendo um órgão da grande imprensa e chamando para si a responsabilidade de focalizar um inimigo imputando a ele parte das mazelas vividas pela sociedade, o jornal assumia uma postura que reforçava o interesse de classe e a manutenção de uma determinada ordem que mantinha os mesmos grupos políticos na disputa pelo poder.

_________________________________________________________________________ Notas

01 – Admito que só podemos definir classe quando se conhece o processo histórico na qual está inserido, pois é no desenvolvimento da inter-relação cultural entre os diversos grupos que se reconhecem como distintos dos outros, com o qual podemos definir quem são. Assim, não é o processo de produção e distribuição material entendido como economia pura e simplesmente que define classe sem nos reportarmos a outros aspectos sociais e a sua posição nas disputas de poder e espaço político.Classes dominantes seriam aquelas que detém a hegemonia na produção de valores, representações e idéias culturais que são comumente aceitas e permeam direta ou indiretamente a construção e desenvolvimento de outros universos culturais.

02 – Segundo Sampaio (1998, p. 222) a Bahia era legalista. A Revolução que começara em Minas Gerais, Rio Grande do Sul, não teve apoio dos grupos que ocupavam o poder naquele momento.

03 – Segundo Luiz Henrique (2001, p. 382), "os protestos tiveram origem no grupo de populares que teria visto a bandeira nacional servindo de tapume para obras na encosta dos fundos do prédio da Circular"

04 – Não houve por parte do Diário de Notícias a publicação de notícias referentes aos acontecimentos, apenas uma nota de lamento dos diretores da empresa de bondes quanto aos "incidentes". Alguns dias depois uma outra nota de esclarecimento foi publicada para explicar a paralisação de linhas por conta da destruição dos bondes no dia 4 de Outubro.

05 – A grafia original das citações dos jornais será mantidas

06 – Ver Diário da Tarde de Ilhéos 06/10/1930.

07 – Ver Diário de Notícias 30/10/1930

08 – Ver Diário de Notícias 10/07/1931

09 – Ver CASTELUCCI, Aldrin Armstrong Silva. Salvador dos Operários: uma história da greve de 1919 na Bahia, 2001. 152 p. Dissertação (Mestrado em História). UFBA. Salvador.

10 – Ver Diário de Notícias 08/01/1931.

11 – Ver Diário de Notícias 25/11/1930

_________________________________________________________________________ REFERÊNCIAS

CARONE, Edgard. A Segunda República (1930 – 1937). São Paulo: DIFEL, 1974.

BURKE, Peter. Variedades da História Cultural. Rio de Janeiro: Civilização, 2000.

CASTELUCCI, Aldrin Armstrong Silva. Salvador dos Operários: uma história da greve de 1919 na Bahia. 2001. 152 f. Dissertação (Mestrado em História). UFBA, Salvador.

DINIZ, Eli. "O Significado da Revolução de 30: conservação ou mudança". In FAUSTO Boris (org.) O Brasil republicano: sociedade e política (1930-1964). 3º ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004 (História Geral da Civilização Brasileira).

DUTRA, Eliana Regina Freitas. O fantasma do outro – espectros totalitários na cena política brasileira dos anos 30. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 12, n. 23/24, p. 125-141, out/2002.

HILTON, Stanley. A Rebelião Vermelha. São Paulo: Record, 1986.

MARIANI, Bethânia. O PCB e a imprensa: os comunistas no imaginário dos jornais (1922-1989). Rio de Janeiro: Revan; Campinas: UNICAMP, 1988, p. 120.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o "Perigo Vermelho": o anticomunismo no Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva, 2002.

PINHEIRO Paulo Sérgio. Estratégias da ilusão: a revolução mundial e o Brasil: 1922-1935. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

SAMPAIO, Consuelo Novais. Partidos políticos da Bahia na Primeira República: uma política de acomodação. Salvador: EDUFBA, 1998.

SANTOS, Mario Augusto da Silva. A República do povo: sobrevivência e tensão(1889-1930).Salvador: EDUFBA, 2001.

SILVA, Carla Luciana. Onda Vermelha: imaginários anticomunistas brasileiros (1931-1934). Porto Alegre: EDIPUCRGS, 2001.

TAVARES, Luís Henrique Dias.História da Bahia. São Paulo: Editora UNESP; Bahia: EDUFBA, 2001.

TRONCA, Ítalo. A Revolução de 30: a dominação oculta. 8º ed. São Paulo: Brasiliense, 1993.

 

 

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Indisciplinados ou disciplinados? As discussões sobre os partidos políticos na câmara dos deputados

Artigo de Riberti de Almeida Felisbino
Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
E-mail: ribertialmeida@yahoo.com.br

 

 

No Brasil, o atual arranjo institucional vem estimulando cada vez mais o interesse de estudiosos brasileiros e brasilianistas que querem entender o seu funcionamento.1 Esse interesse tem produzido inúmeros estudos sobre o desempenho das instituições que compõem esse desenho, em especial da Câmara dos Deputados e dos partidos. Os pesquisadores que se dedicam a estudar o sistema político brasileiro se dividem em dois grupos com visões opostas sobre os estudos do poder Legislativo, sobretudo da atuação das legendas partidária no processo de decisão da Câmara dos Deputados.

O propósito deste artigo é discutir as opiniões dos dois grupos: 1) os adeptos do primeiro grupo concentram sua análise na forma de governo e nos sistemas eleitoral e partidário, e defendem que a combinação dessas instituições produz instabilidade institucional e pouca governabilidade; 2) os simpatizantes do segundo grupo analisam as regras do processo legislativo, e defendem que existem mecanismos institucionais que permitem a governabilidade e a estabilidade das decisões. Discutir estas duas visões é importante, pois pode ajudar aqueles cientistas sociais que querem estudar a história longitudinal da relação de poder existem no interior da Câmara dos Deputados, pois elas nos oferecem elementos para analisar essa relação.

Essas distintas visões são resultados dos trabalhos publicados por Juan Linz, Arturo Valenzuela e outros sobre a forma de governo, o presidencialismo, escolhida pelos membros das elites políticas dos países da América Latina. Para esses estudiosos, a funcionabilidade do presidencialismo poderia criar dificuldades à atividade governamental e ameaçar à estabilidade do regime democrático. Agora, se o presidencialismo é combinado com a representação proporcional de lista aberta e com o sistema multipartidário, a situação poderia aumentar os conflitos entre os poderes Executivo e Legislativo que, por sua vez, afetaria drasticamente a governabilidade. Atualmente, o Brasil apresenta essa combinação e se esperava que passasse, segundo Lamounier (1992), por uma síndrome da paralisia hiperativa, mas tal constatação não é confirmada.

O trabalho seminal de Sérgio Abranches nos informa que o conflito entre os poderes Executivo e Legislativo é crítico para a estabilidade da democracia. Esse conflito, segundo ele, é causado por dois fatores: i) a alta fragmentação partidária no interior do poder Legislativo e ii) pelos problemas impostos a agenda de trabalho do chefe do poder Executivo (Abranches, 1988). Para Abranches (1988), o mais crítico dos dois fatores é a alta fragmentação partidária que comprometeria a formação de maiorias estáveis para aprovar as reformas propostas pelo presidente da República. A solução para isto seria criar coalizões governamentais e como se vê hoje, é a prática mais comum dos chefes do Executivo. Sérgio Abranches chamou essa prática de presidencialismo de coalizão e o mais importante é que tal prática soube combinar com a representação proporcional de lista aberta, com o multipartidarismo extremado e com o presidencialismo em um mesmo arranjo estratégico que, por sua vez, provou que as proposições defendidas Juan Linz e outros carecem de sustentabilidade empírica.

Muitos estudiosos dão ênfase à explicação institucional centrada nos sistemas eleitoral e partidário, Carey (1997: 68) afirma que no Brasil "(…) o sistema eleitoral cria fortes incentivos para os parlamentares cultivarem fidelidades pessoais com os seus eleitores, mesmo quando isto significa ignorar uma agenda mais ampla de seus partidos"2, isto significa que os "(…) presidentes não podem contar com coalizões legislativas estáveis para negociar política (…)"3. Sartori (1993: 11) está de acordo com estes argumentos e aponta que os políticos "(…) mudam de partido e, frequentemente, votam em desacordo com sua orientação e se recusam a aceitar qualquer tipo de disciplina partidária". Nestas condições, o autor conclui que no Brasil os partidos são instituições frágeis e sem autoridade e que o chefe do Palácio do Planalto fica sem referência "(…) sobre um parlamento incontrolável e eminentemente atomizado" (1993: 11). É importante dizer que as idéias defendidas pelos estudiosos do primeiro grupo não se baseiam em estudos empíricos, mas são deduzidas das leis que constituem os sistemas eleitoral e partidário.

Scott Mainwaring, o brasilianista mais crítico do sistema político brasileiro, ressalta que a baixa disciplina dos principais partidos seria uma das características mais negativa do sistema político. Ainda para ele, o sistema partidário brasileiro é o mais subdesenvolvido do mundo e os partidos são incapazes de dar sustentabilidade à democracia (Mainwaring, 2001, 1993). Esse brasilianista chega a considerar que os responsáveis pelo mau funcionamento do sistema político realmente são as legendas partidárias, pois agrupam políticos com vocação individualista e quando eleitos estão interessados em benefícios clientelistas. Para Barry Ames, que também compartilha com as mesmas observações de Scott Mainwaring, na esfera nacional, os partidos brasileiros dificilmente poderiam ser considerados uma verdadeira legenda partidária, pois essas instituições não expressam e não representam a vontade do eleitor, ao mesmo tempo não cumprem com as funções de governar (Ames, 2003).

Para esses autores e outros, as mazelas do sistema político brasileiro são produzidas pelos aspectos institucionais da representação proporcional de lista aberta e também por outras instituições. Esse tipo de representação estimula os políticos a terem um comportamento individualista para conquistarem uma cadeira na casa Legislativa e depois de eleitos carregam para arena legislativa o sentimento individualista e nessa esfera agem independentemente do partido o que, por sua vez, dificulta a "(…) construção de identidades partidárias mais definidas" (Kinzo, 1988: 35). O comportamento individualista dos parlamentares pode dificultar a capacidade das lideranças partidárias de promover e assegurar o plano programático de ação do partido no interior do Congresso Nacional.

Para os simpatizantes do primeiro grupo, o sistema eleitoral também seria responsável pela alta fragmentação partidária, dando origem a um sistema sem limites. O Gráfico I apresenta o número de partidos que participaram das eleições gerais e municipais no período de 1982 a 2008. Ao longo do período aconteceram 15 eleições e participaram, no total, 416 partidos, com uma média de 27,7 legendas por eleição. Observa-se que a menor participação foi em 1982 com cinco legendas partidárias, mas essa participação subiu bruscamente para 28, em 1985, e chega a atingir 34, em 1992. Em 1994 a participação caiu para 23, mas em 1996 subiu para 30 e ficou estável até as eleições gerais de 2002 e na última eleição, em 2006, subiu para 29 partidos, mas no último pleito, em 2008, o número de partidos caiu levemente para 27.

 

Gráfico I
Número de partidos que participaram em eleições
Brasil, 1982-2008

quadroed13

Fonte: www.tse.gov.br

 

Os dados expostos no gráfico acima informam quantos partidos participaram das eleições, mas, como se sabe, são poucos aqueles que realmente têm influência na arena eleitoral. Para observar isto, apresenta-se o Quadro II que mostra, ao longo dos anos de 1990 a 2002, a média do Índice de Número Efetivo de Partidos de alguns países sul-americanos e da América Latina como um todo. 

 

Quadro II
Média do Número Efetivo de Partidos
Países e América Latina, 1990-2002

Paises e América Latina  Média NEP
BRASIL  8,1
Equador  6,1
Chile  5,3
Bolívia  4,7
Venezuela  4,7
Colômbia  3,7
Uruguai  3,2
Argentina  2,9
Paraguai  2,4
AMÉRICA LATINA  3,8
Fonte: http://www.democracia.undp.org/Default.asp

 

Neste quadro, ao longo do período de 1990 a 2002, a dispersão partidária no Brasil é maior do que nos outros países da região latina, o que significa que entre os países multipartidários da América do Sul, o Brasil se mantém como o mais fragmentado, apresentando uma média de Número Efetivo de Partidos igual a 8,1. Interessante assinalar que o Brasil está muito acima da média da América Latina, que corresponde a 3,8, isto significa que entre os países latino-americanos, o sistema partidário brasileiro é o mais fragmentado. Como visto anteriormente, a média de partido por eleição, entre o período de 1982 a 2008, foi de 27,7, mas o Índice de Número Efetivo de Partidos mostrou que somente oito siglas partidárias são importantes na arena eleitoral, ou seja, esses partidos estão constantemente lutando pelo poder. O aumento do número efetivo de partidos diminui a probabilidade de formar governos com partidos majoritários, em outras palavras, quem ganha não governa mais sozinho, tem que dividir o poder com outros partidos para fazer uma boa gestão.

Em um regime democrático, o principal âmbito de atuação dos partidos é no interior do poder Legislativo e devido a isto, a casa Legislativa abriga a fragmentação do sistema partidário. Isto reflete no número de legendas com representação parlamentar e hoje na Câmara dos Deputados a fragmentação é muito alta, pois está composto por 20 partidos: o bloco PMDB e PTC, PT, bloco PSB, PDT, PC do B, PMN e PRB, PSDB, DEM, PR, PP, PTB, PV, PPS, PSC, PSOL, PHS, PT do B e PRTB4. É possível distribuir esses partidos em três blocos ideológicos: na direita, o DEM, PR, PTB, PHS, PT do B, PRTB, PSC, PTC, PMN, PRB e PP; no centro, o PMDB e PSDB e na esquerda, o PT, PV, PPS, PSOL, PSB, PDT e PC do B. Atualmente das 20 siglas partidárias somente seis (o PMDB, PT, PSDB, DEM, PR e PP) controlam as atividades legislativas no interior da Câmara dos Deputados.

Devido à grande fragmentação partidária no interior do poder Legislativo, segundo os adeptos do primeiro grupo, o Brasil teria um quadro político composto por partidos pouco ideológicos e parlamentares com atitudes individualistas que, ao serem indisciplinados, nas votações no plenário, não seguiriam a orientação da liderança. O comportamento parlamentar desregrado seria o maior obstáculo às ações do chefe do poder Executivo, ou seja, as dificuldades do presidente da República em estabilizar a economia e em reformar o Estado estariam na fragilidade do apoio parlamentar às propostas do Executivo.

Para esse grupo, os sistemas vigentes – eleitoral e partidário – produzem um Legislativo disperso com um processo decisório lento, negociações clientelistas, coalizões partidárias instáveis, entre outras mazelas que, por sua vez, criariam uma tensão permanente entre os poderes Executivo e Legislativo. De acordo com Ames (2003: 235), "(…) a estrutura política brasileira enche o Legislativo de partidos fracos e indisciplinados, assim como de centenas de deputados que se preocupam muito mais com seu eleitorado pessoal e seus interesses particulares do que com grandes questões nacionais". Noutras palavras, no interior da Câmara dos Deputados não existe uma ordem, provocando instabilidades nas decisões e deixaria o governo instável e paralisado diante do caos.

O diagnóstico apresentado pelo primeiro grupo é refutado por alguns estudiosos. Ao contestarem a visão do grupo anterior, eles resgatam a atuação dos partidos durante o processo decisório e a importância da organização legislativa no interior da Câmara dos Deputados. Esses estudiosos apresentam evidências empíricas de que o processo legislativo é centralizado e favorável ao governo para que seus projetos sejam aprovados. O argumento central que está presente nessas análises é que os problemas gerados pelos sistemas eleitoral e partidário, apontados pelos adeptos do primeiro grupo, são anulados por outra arena institucional, a legislativa. Essa arena garantiria mais estabilidade às decisões coletivas e produziria políticas públicas mais eficientes. Eles também apontam que nessa arena, o comportamento dos parlamentares estaria sendo influenciado pelos poderes legislativos do presidente da República e pelos partidos em suas votações. Também seria influenciado pelas regras do jogo parlamentar, que são altamente centralizadas em um pequeno grupo de líderes, chamado Colégio de Líderes5.

Ao analisarem as votações nominais do período de 1989 a 1999 e as regras do processo decisório, Argelina Cheibub Figueiredo e Fernando Limongi revelam que existe disciplina partidária na Câmara dos Deputados, ou seja, o caos está longe de ocorrer e o que se observa é uma ordem estabelecida. De acordo com eles, "em média, 89,4% do plenário vota de acordo com a orientação de seu líder, taxa suficiente para predizer com acerto de 93,7% das votações nominais" (Figueiredo e Limongi, 1999: 20). Continuando, os autores mostram que "para uma votação qualquer na Câmara dos Deputados, a probabilidade de um parlamentar qualquer votar com a liderança de seu partido é de 0,894" (27) e mais: "como o voto disciplinado é a regra, a manifestação do plenário está longe de ser imprevisível" (89). Os dados apresentados por Argelina Cheibub Figueiredo e Fernando Limongi indicam que os partidos são disciplinados, refutando a principal tese do primeiro grupo, de que as legendas partidárias são indisciplinadas nas votações em plenário e produzindo, como conseqüência, um processo decisório caótico. Também os dados revelam que os partidos são importantes no processo de decisão. Ainda se pode dizer que o chefe do Palácio do Planalto organiza seu apoio à agenda legislativa em bases partidárias, muito similares ao encontrado nos regimes parlamentaristas.

Os estudos de Argelina Cheibub Figueiredo e Fernando Limongi mostram que os adeptos do primeiro grupo equivocaram-se ao prognosticar que o chefe do Executivo enfrentaria problemas para implementar sua agenda legislativa. Na América Latina, o presidente da República do Brasil é um dos que mais tem poderes para influenciar o processo de decisão e a formação de uma coalizão de apoio no poder Legislativo (Carey e Shugart, 1992). Com o atual arranjo constitucional, o presidente da República dispõe de prerrogativas legislativas capazes de influenciar significativamente o processo legislativo visando assegurar resultados satisfatórios às propostas do poder Executivo. Com esse arranjo, o chefe do Executivo tem a exclusividade de iniciativa em matérias administrativas, orçamentárias e fiscais. Também o chefe do Executivo pode solicitar urgência para todos os projetos de lei de sua iniciativa e editar medidas provisórias com força de lei. O chefe do poder Executivo impõe uma agenda legislativa determinando quando e quais propostas serão discutidas, pois o presidente da República detém de forma quase exclusiva o poder de propor projetos.

Ademais, o presidente da República conta com apoio dos principais líderes da coalizão para interferir no processo de decisão. Os estudos de Figueiredo e Limongi (1999) constatam que, mesmo sem o voto de liderança, os líderes seguem desfrutando de poderes para conduzir o processo legislativo. Segundo Figueiredo (2001: 6), as decisões na Câmara dos Deputados são altamente centralizadas em torno de alguns líderes partidários e a distribuição de direitos parlamentares favorece as lideranças dos grandes partidos. Esses líderes, juntamente com o presidente da Mesa Diretora, controlam a agenda de trabalho da casa Legislativa, ou seja, eles definem a pauta.

É interessante destacar que o poder dos líderes também se manifesta de outras maneiras, não ressaltadas por Argelina Cheibub Figueiredo, como, por exemplo, o controle das comissões permanentes e temporárias. As lideranças controlam a distribuição de postos nas comissões, postos esses que são alocados a partir de uma negociação entre esses líderes partidários. Também cabe a eles criar as comissões temporárias e indicar seus presidentes e relatores.

Uma outra influência decisiva dos líderes no processo de decisão é o uso freqüente do recurso de urgência. Se os líderes reconhecerem que uma proposta de lei tem que tramitar urgentemente, o regime de tramitação pode ser alterado de ordinário para urgência. Em regime de urgência, a proposta é retirada da comissão e incluída na ordem do dia para apreciação do plenário. Geralmente a urgência é usada nas propostas de iniciativa do chefe do poder Executivo e 1/3 dos membros da Câmara dos Deputados ou de líderes que representam esse número pode pedir o regime de urgência. Muitas das propostas tramitam em regime de urgência: Argelina Cheibub Figueiredo identificou que das 1.000 leis estudadas, "(…) 74,0% tiveram um pedido de urgência e foram à votação antes que as comissões dessem um parecer" (1995: 8). Isto significa que o esse regime retira das comissões sua prerrogativa decisória e também elas perdem a função de elaborar e melhorar as leis.

Além dos líderes interferirem nas comissões, eles também decidem se uma proposta de lei deve ser aprovada ou não. Na Câmara dos Deputados praticamente nenhum projeto de lei é submetido ao plenário sem que as lideranças façam uma prévia avaliação política da matéria. Antes das sessões da Câmara dos Deputados, especialmente nos dias em que ocorrem votações, as lideranças partidárias discutem as matérias em votação e tentam chegar a um acordo sobre a posição a ser tomada em plenário. Chegando a um acordo, a proposta de lei é referendada pela maioria dos parlamentares. Como é possível perceber, a institucionalização do Colégio de Líderes como instância com poder de decisão alija a maioria dos parlamentares do processo legislativo. Quanto a isto, Figueiredo e Limongi (1999: 68) lembram que os membros desse colégio

(…) intervém na tramitação da matéria e força sua rápida deliberação em plenário. Como essa intervenção é previamente negociada, a participação dos parlamentares em plenário depende dos resultados das negociações entre os líderes. No mais das vezes, cabe-lhes tão-somente referendar acordos previamente firmados. A participação dos parlamentares ocorre somente quando se encerram todas as possibilidades de um acordo e a matéria é submetida a voto.

E mais: Argelina Cheibub Figueiredo e Fernando Limongi ressaltam que "o grosso do trabalho legislativo independe da participação efetiva dos parlamentares, o que reduz os incentivos para sua participação" (68). De forma resumida, os líderes neutralizam a participação das comissões e também do próprio plenário.

As discussões empreendidas ao longo do texto mostram que para os adeptos do primeiro grupo a combinação de presidencialismo com outras instituições do sistema político é um casamento indesejado. Para os simpatizantes desse grupo, os problemas produzidos por essa combinação contaminariam os membros do poder Legislativo e produziriam políticas públicas ineficientes e crise de governabilidade, mas existem argumentos e dados empíricos consistentes para considerar que os problemas apontados pelos admiradores do primeiro grupo não afetam os parlamentares. À luz destas considerações, pode-se concluir este artigo dizendo que a alta concentração da estrutura legislativa da casa e a dura atuação do chefe do Palácio do Planalto e dos líderes ajudam a impedir os efeitos perversos produzidos pelos sistemas partidário e eleitoral.

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Notas

1 – Os brasilianistas são os estrangeiros que estudam o Brasil, por exemplo, Scott P. Mainwaring e Barry Ames são os mais conhecidos na Ciência Política.

2 – Original: "(…) the electoral system creates strong incentives for legislators to cultivate personality loyalties among voters, even when doing so means ignoring their parties broader agenda" (1997: 68).

3 – Original: "(…) the presidents cannot count on stable legislative coalitions to negotiate policy (…)" (1998: 68).

4 – Informações obtidas na página web: http://www2.camara.gov.br/

5 – O Colégio de Líderes funciona como uma espécie de órgão auxiliar da mesa diretora da Câmara dos Deputados. Esse colégio, juntamente com o presidente da Câmara dos Deputados, elabora a agenda de apreciação de proposições para o estabelecimento da ordem do dia do plenário e, acima de tudo, interfere substantivamente nas decisões por meio do recurso de tramitação urgente (Figueiredo e Limongi, 1999). Isto significa que o Colégio de Líderes não apenas concentra poder de decisão, como controla a pauta dos trabalhos legislativos.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Páginas webs consultadas

Câmara dos Deputados: http://www2.camara.gov.br/

PNUD: http://www.democracia.undp.org/Default.asp

Tribunal Superior Eleitoral: http://www.tse.gov.br

 

 

 

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