Niterói, 3 de junho de 2025.
A História perde uma de suas figuras de maior projeção internacional. Pierre Nora faleceu ontem (2 de junho), em Paris, aos 93 anos. A notícia foi divulgada por sua esposa, a jornalista Anne Sinclair, e confirmada por familiares à imprensa francesa.
Ao longo de sete décadas de atuação intelectual, Nora foi um dos protagonistas na renovação da história cultural e um dos responsáveis por consolidar o campo da história da memória na historiografia contemporânea. Sua obra reconfigurou a compreensão da identidade nacional francesa e deixou marcas profundas nos debates historiográficos da atualidade.
Infância, guerra e formação
Nascido em Paris, em 17 de novembro de 1931, Pierre Nora era filho do médico Gaston Nora e de Julie Lehman, ambos judeus. A família materna de Nora tinha conexões com os fundadores do banco de investimentos Lehman Brothers, criado nos Estados Unidos. Esse vínculo, no entanto, não impediu que sua família fosse alvo das perseguições nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.
Após frequentar o Lycée Louis-le-Grand, Pierre Nora formou-se em filosofia e, em 1958, foi aprovado na exigente agrégation d’histoire, concurso nacional que habilita professores ao ensino superior na França. Sua primeira experiência como docente foi na Argélia, no final dos anos 1950 — experiência que resultaria no livro Les Français d’Algérie (1961), uma análise crítica da identidade colonial e da memória francesa na região.
O arquiteto dos “lugares de memória”
A obra mais emblemática de sua trajetória é o monumental Les Lieux de Mémoire (Lugares de Memória), projeto que coordenou entre 1984 e 1992. Publicado em sete volumes e reunindo mais de 130 autores, o empreendimento mapeou os símbolos, espaços, textos e rituais nos quais a França cristalizou sua memória coletiva — como o Panteão, a Enciclopédia Larousse, a Tour de France e a Declaração dos Direitos do Homem.
O projeto nasceu da constatação de que, na modernidade, a memória coletiva deixou de ser orgânica e espontânea, como ocorria nas sociedades tradicionais. Para Nora, os “lugares de memória” surgem justamente quando a transmissão viva da memória se enfraquece — tornando necessário fixá-la em espaços materiais, cerimônias, arquivos ou museus.
Editor, mediador e figura pública
Muito além de pesquisador, Pierre Nora também foi editor e mediador de debates públicos. Na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), onde ingressou em 1977 como diretor de estudos, coordenou seminários decisivos sobre memória, identidade e narrativa histórica. Também lecionou no Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po), onde consolidou sua reputação como grande pedagogo.
Na Gallimard, editora à qual esteve vinculado desde os anos 1960, fundou coleções fundamentais em ciências humanas, como a Bibliothèque des sciences humaines e a Bibliothèque des histoires. Dirigiu ainda a coleção Archives na editora Julliard e, com Jacques Le Goff, foi coorganizador da influente trilogia Faire de l’histoire (1974), um marco da chamada “nova história” francesa.
Em 1980, fundou com o filósofo Marcel Gauchet a revista Le Débat, espaço que dirigiu por quatro décadas e que se afirmou como uma das mais influentes publicações intelectuais da França. A revista buscava distanciar-se tanto do marxismo dogmático quanto do relativismo pós-moderno. Em 2001, foi eleito membro da Academia Francesa.
Conflitos, engajamentos e legado
Figura de grande influência, Nora não escapou a controvérsias. Em sua trajetória editorial, por exemplo, recusou a publicação de A Era dos Extremos, de Eric Hobsbawm — escolha que mais tarde reconheceu como um erro. Foi também um dos críticos mais severos das chamadas leis memorais na França, como a lei Gayssot, que criminaliza a negação do Holocausto. Segundo ele, tais legislações comprometeriam a liberdade de pesquisa histórica. Em resposta, fundou em 2008 a associação Liberté pour l’Histoire, que presidiu até seus últimos anos.
Nora defendia a independência dos historiadores frente às agendas ideológicas ou políticas. Embora frequentemente classificado como um homem da centro-esquerda, seu pensamento se caracterizava por um ceticismo republicano e uma defesa firme das instituições democráticas contra radicalismos de qualquer espectro.
Um intelectual da França livre
Como sintetizou o Le Figaro, Nora era “um cidadão republicano, laico e duro”, comprometido com o espírito crítico e o pluralismo. Para o Público, de Portugal, sua trajetória marca o ponto de transição entre a era dos grandes compromissos ideológicos e o tempo das disputas em torno da memória, da identidade e do papel público do historiador.
Sua obra, marcada pela abertura intelectual, pela sensibilidade histórica e pela inquietação com os usos políticos do passado, continuará sendo fonte essencial para quem busca compreender como as sociedades narram — e disputam — suas memórias.
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