Educar para dominar? O projeto colonial de controle das elites indígenas no século XVIII
Como a educação colonial tentou controlar indígenas no século XVIII? Historiadora revela estratégias de imposição e resistência.
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Ao se pesquisar a educação colonial de indígenas e suas instituições, poucas ilustram com tanta nitidez as ambivalências do colonialismo espanhol quanto os colégios voltados aos filhos de caciques. Mais do que espaços de ensino, eram instrumentos de catequese estratégica e tentativa de domesticação simbólica da alteridade.
A historiadora chilena Lucrecia Enríquez, professora da Pontificia Universidad Católica de Chile, explora esses campos de tensão em seu livro Educar para civilizar e integrar: colegios de hijos de caciques araucanos y clero indígena en Chile en el siglo XVIII, publicado pela UNAM.
Como a educação foi usada para dominar povos indígenas
A obra examina como o Império Espanhol tentou integrar elites nativas por meio da escolarização religiosa e linguística. A promessa de inclusão soava generosa, mas exigia a renúncia à identidade indígena:
“A promessa de ascensão social vinha sempre atrelada à renúncia da própria cultura, idioma e identidade. O indígena educado era, por definição, um indígena disciplinado à lógica imperial.” (Enríquez, 2024, p. 113)
À sombra da Cédula de Honores de 1697, que permitia o ingresso de indígenas em estudos superiores, operava-se uma política de “inclusão subordinada”. Ascendia-se apenas quem melhor encarnasse os valores da monarquia cristã.
- Como foi a atuação indígena na Cisplatina? Muitas vezes ignorada, o trabalho dos povos originários marcou capítulo da história do Brasil e de Portugal no rio da Prata. Leia o artigo do Prof. Dr. Fábio Ferreira (UFF) publicado no projeto Indígenas na História (Associação Nacional de História/ANPUH) clicando aqui.
Evangelizar ou dominar?
Mais do que formar súditos, o projeto colonial ambicionava criar um clero indígena que reproduzisse a ortodoxia espanhola dentro das próprias comunidades autóctones. Esse objetivo, no entanto, se deparava com resistências veladas:
“Aprendiam os códigos para negociar sua permanência, esconder seus afetos e simular conversão — tudo sob vigilância.” (Enríquez, 2024, p. 167)
Simular conversão para sobreviver
A retórica evangelizadora ocultava práticas de controle e disciplinamento. Os colégios, nesse sentido, eram menos instituições pedagógicas do que instrumentos políticos.
O que foi a Cédula de Honores de 1697?
Decreto emitido pela monarquia espanhola autorizando o ingresso de indígenas em instituições de ensino superior. Embora progressista no papel, funcionava como filtro cultural: só ascendia quem demonstrasse total adaptação aos valores coloniais europeus.
O fracasso dos colégios para indígenas
Fundado em 1785, o colégio de nobres indígenas de Chillán buscava formar um clero composto por indivíduos oriundos dos povos originários totalmente disciplinado — um elo entre fé e poder. Mas enfrentou evasões, conflitos internos e a hostilidade de elites espanholas locais. Muitos estudantes fugiam, outros resistiam passivamente, e havia constantes dificuldades financeiras.
A experiência tornou-se símbolo dos limites do projeto civilizador e do fracasso da integração pela imposição. Como mostra Enríquez, as famílias indígenas muitas vezes aceitavam o envio de filhos às escolas como estratégia de sobrevivência, não de assimilação.
- Sugestão de leitura (artigo): Sequestros e tráfico de escravizados na fronteira Brasil x Uruguai: estudo de casos posteriores a 1850.
Como os indígenas resistiram à educação colonial
A autora destaca que as elites indígenas não eram agentes passivos do processo. Ao contrário, desenvolveram formas de resistência simbólica, como a simulação da conversão, o abandono estratégico das escolas, a apropriação seletiva do conteúdo escolar e o uso político do bilinguismo.
Entre dois mundos
Essas práticas revelam uma agência complexa. A escolarização não eliminou as cosmologias indígenas, mas obrigou as elites a transitar entre mundos e códigos distintos, reinventando identidades em meio à violência simbólica da colonização.
Comparações entre modelos coloniais de educação indígena
Enríquez contribui para uma historiografia que desafia o binarismo entre aculturação e resistência. Em comparação com casos como os da Nova Espanha e do Peru — onde colégios para indígenas foram mais institucionalizados —, o modelo chileno mostrou-se frágil, improvisado e instável.
A relativa autonomia indígena e a persistência da guerra de Arauco até o século XVIII dificultaram uma assimilação completa. Isso explica, em parte, a menor eficácia do projeto civilizador espanhol no território chileno.
Educação ou controle político?
O livro de Lucrecia Enríquez desmonta o mito de uma monarquia pedagógica e benevolente. A escolarização indígena era menos uma ferramenta de emancipação e mais uma tecnologia de poder. E, no entanto, mesmo sob vigilância, as elites nativas souberam negociar, contornar e, por vezes, sabotar o projeto colonial.
A história dos colégios de filhos de caciques permanece como uma janela para os conflitos e estratégias coloniais de assimilação e resistência — e, ao mesmo tempo, como um convite à reavaliação dos projetos de educação e poder nas Américas.

Leitura recomendada: Educar para civilizar e integrar, de Lucrecia Enríquez. Publicado pela UNAM (México), 2024. Baixe o livro gratuitamente clicando aqui (site da UNAM).
Como citar a matéria: REVISTA TEMA LIVRE. Historiadora analisa o controle dos indígenas através da educação. Niterói, 25 jun. 2025. Disponível em: https://revistatemalivre.com/educacao-colonial-indigenas/. Acesso em: (coloque a data).
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